O SINTOMA: DE FREUD A LACAN1
Maria das Graças Leite Villela Dias*
RESUMO. O artigo aborda a teoria do sintoma em Freud e a releitura efetuada por Lacan, na dimensão do simbólico – pelo viés do
“inconsciente estruturado como linguagem” – e na dimensão do real – pela vertente do “inconsciente pulsional”, apontando para as
duas dimensões do sintoma: o “sintoma-metáfora”, uma formação do inconsciente que se sustenta em uma satisfação de desejo e tem
um sentido recalcado, que pode ser decifrado; e, o “sintoma-letra de gozo”, que se distingue das demais formações do inconsciente na
medida em que a satisfação de desejo, nele envolvida, tem um caráter problemático e paradoxal: é uma “satisfação real”, “às avessas”,
para além do princípio do prazer e vinculada à pulsão demorte.
Palavras-chave: sintoma, sintoma-metáfora, sintoma-letra de gozo.
THE SYMPTOM: FROM FREUD TO LACAN
ABSTRACT. This article deals with both, the ‘theory of symptom’ in Freud, as well as, Lacan’s re-reading of it, in the dimension of
the symbolic – through the vein of the ‘unconscious, structured as language’ and, in the dimension of the real – from the point of view
of the ‘driving unconscious’. Thus, it points to two dimensions of the symptom: firstly, ‘the symptom-metaphor’, an unconscious
formation, supported by the satisfaction of a wish with a repressed sense, which can be deciphered; and secondly, ‘the enjoyment
letter-symptom’, different from the other unconscious formations, once the wish-fulfilment involved in it, has a problematic and
paradoxical feature: it is a ‘real satisfaction’, but ‘inside out’, beyond the pleasure principle and linked to the death instinct.
Key words: Symptom, symptom-metaphor, enjoyment letter-symptom.
EL SÍNTOMA: DE FREUD A LACAN
RESUMEN. Este artículo trata la teoría del síntoma en Freud y la relectura efectuada por Lacan, en la dimensión de lo simbólico –
bajo el prisma del “inconsciente estructurado como lenguaje” - y en la dimensión de lo real – desde el punto de vista del “inconsciente
pulsional”, señalando las dos dimensiones del síntoma: primeramente, el “síntoma metáfora”, una formación del inconsciente, apoyada
en una satisfacción de deseo con un sentido reprimido que puede descifrarse; y secundariamente, el “síntoma goce”, diferente de las
otras formaciones inconscientes, una vez que la satisfacción de deseo involucrada en él, tiene un rasgo problemático y paradójico: es
una “satisfacción real”, “al revés”, más allá del principio del placer y unida a la pulsión demuerte.
Palabras-clave: síntoma, síntoma metáfora, síntoma goce.
1 Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais-FAPEMIG.
* Psicanalista. Doutora. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei–UFSJ/MG.
Neste artigo abordamos a teoria do sintoma em Freud e a releitura efetuada por Lacan, a partir de
textos da década de 1950 e do início da década de 1960. A abordagem se dá, na dimensão do simbólico,
pelo viés do “inconsciente estruturado como linguagem” e, na dimensão do real, pela vertente do
“inconsciente pulsional”. Na dimensão do simbólico, o sintoma-mensagem se sustenta num sentido
recalcado, que pode ser decifrado como as demais formações do inconsciente. Porém, Lacan, no
desenrolar de sua elaboração, comprova que o franqueamento do recalcamento é estruturalmente
impossível e que o significado permanece discordante, sem acesso à consciência. No sintoma, assim como
nas demais formações do inconsciente, há umasatisfação de desejo, mas esta satisfação tem um
caráter problemático e paradoxal, uma vez que étambém uma “satisfação real” (Freud, 1917/1980, p.
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421), uma “satisfação às avessas” (Lacan, 1957-
1958/1999, p. 331), para além do princípio do prazer e
vinculada à pulsão de morte. Esta satisfação paradoxal
é o fundamento da concepção do núcleo real de gozo
impossível de ser simbolizado, situado no cerne do
sintoma.
A TEORIA DO SINTOMA EM FREUD
A psicanálise começou seu trabalho pelo estudo da neurose e dos sintomas. Sua trajetória, do sintoma ao
inconsciente, à pulsão e à sexualidade, nos ensina que as neuroses são expressão de conflitos entre o eu e as
pulsões que, por serem incompatíveis com a integridade ou com os padrões éticos do eu, são recalcadas, ou seja, são impedidas de se tornar conscientes, bem como são afastadas, de início, da possibilidade de satisfação. O recalcamento, no entanto, facilmente fracassa e a libido represada, insatisfeita, que foi repelida pela realidade, deve agora procurar outras saídas do inconsciente, outras vias de satisfação, seguindo por caminhos indiretos. Ela regride a fases anteriores do desenvolvimento infantil e a atitudes anteriores para
com os objetos – pontos de fixações infantis – e irrompe na consciência, obtendo satisfação. O
resultado é um sintoma e, conseqüentemente, em sua essência, uma satisfação sexual substitutiva para
desejos sexuais não realizados, ou seja, um substituto de algo que foi afastado pelo recalcamento, indicação
de um retorno do recalcado; uma satisfação substituta deformada, irreconhecível, uma vez que o sintoma não escapa inteiramente à censura, submetendo-se, assim, a modificações e deslocamentos.Os sintomas são ou uma satisfação de algum desejo sexual ou medidas para impedir tal satisfação e, via de regra, têm a natureza de conciliação, de formação de compromisso entre as duas forças que entraram em luta no conflito: a libido insatisfeita, que representa o recalcado, e a força repressora, que compartilhou de sua origem. É esse acordo entre as partes em luta que torna o sintoma tão resistente.
Em “Os caminhos da formação dos sintomas”, Freud (1917/1980) esclarece que “pelo caminho
indireto, via inconsciente e antigas fixações, a libido finalmente consegue achar sua saída até uma
satisfação real – embora seja uma satisfação extremamente restrita e que mal se reconhece como
tal” (p. 421-422, grifo nosso). Para romper o recalcamento, a libido encontra as fixações
necessárias nas experiências do início da vida sexual, que, por ocorrerem numa época de desenvolvimento incompleto – marcado pelo estado de desamparo e dependência absolutos –, são capazes de ter efeitos traumáticos. Conforme Freud, “de algum modo, o sintoma repete essa forma infantil de satisfação, deformada pela censura que surge no conflito, via de regra transformada em uma sensação de sofrimento e mesclada com elementos provenientes da causa precipitante da doença” (p. 427).
Destarte, o sintoma é concebido, de início, como a expressão do recalcado. O trauma é a base real do
sintoma e o real derradeiro é, em Freud, a castração. Porém, a partir dos dados da experiência clínica, Freud conclui que o trauma é, via de regra, suposto ou inferido, o que o leva ao abandono da teoria do trauma e à concepção da teoria da fantasia, em que o trauma é tido como parte da realidade psíquica do sujeito e fundamento da fantasia. O sintoma é, então, definido como a realização de uma fantasia de conteúdo sexual, ou seja, representa, na totalidade ou em parte, a atividade sexual do sujeito provinda das fontes daspulsões parciais, normais ou perversas.
Se o discurso psicanalítico pôde emergir, foi porque Freud soube ouvir o discurso do neurótico. Foi a partir do discurso da histérica que pôde demonstrar que o sintoma tem um sentido, um sentido inconsciente,
ou seja, o sintoma diz alguma coisa, mesmo que o sujeito nada saiba disso. E não somente diz, mas
também serve a um fim de satisfação, uma “satisfação real”, reconhecida pelo sujeito como um sofrimento. O sintoma é o lugar paradoxal onde o sujeito, sem que ele o saiba, tem a sua satisfação sexual e, também, o seu sofrimento. Essa satisfação real, reconhecida como sofrimento, é apontada por Lacan como a referência
freudiana, na teoria do sintoma, ao real traumático, inapreensível, que escapa à decifração do sintoma e
cujos indícios podemos encontrar na fantasia. Ainda no texto “Os caminhos da formação dos
sintomas” (Freud, 1917/1980), ao buscar resposta para a questão de como a libido encontra o caminho para chegar a esses pontos de fixação, Freud (1917/1980) assinala a importância assumida pela fantasia na
formação dos sintomas: Todos os objetos e tendências que a libido abandonou ainda não foram abandonados em todos os sentidos. Tais objetos e tendências, ou seus derivados, ainda são mantidos, com
alguma intensidade, nas fantasias. Assim, a libido necessita apenas retirar-se para as fantasias, a fim de encontrar aberto o caminho que conduz a todas as fixações recalcadas (p. 435-436).
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E conclui: “partindo daquilo que, agora, são
fantasias inconscientes, a libido movimenta-se para
trás, até às origens dessas fantasias no inconsciente –
aos seus próprios pontos de fixação” (Freud,
1917/1980, p. 436). A psicanálise nos mostra que,
pelos mecanismos da condensação e do deslocamento,
o sintoma tornou-se uma satisfação substituta de uma
série de fantasias e de recordações de experiências
traumáticas do início da vida sexual.
Nos anos 1920, com a introdução da segunda
tópica do aparelho psíquico e da noção de pulsão de
morte, Freud avança no sentido de demonstrar que,
para além do princípio do prazer, há um real de gozo
impossível de ser representado, demonstrando, assim, o
caráter problemático da realidade psíquica que se
expressa no sintoma.
Em “Inibição, sintoma e angústia” (1926/1980),
Freud apresenta o sintoma como “um sinal e um
substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu
em estado jacente; [o sintoma] é uma conseqüência do
processo de recalcamento” (Freud, 1926/1980, p. 112).
O eu – parte organizada do isso – demonstra sua
força pelo ato de recalcamento. Mas, por sua vez, a
impotência do eu se revela nesse mesmo ato, pois,
como conseqüência do processo de recalcamento, surge
um sintoma, através do qual a libido insatisfeita
encontra uma satisfação substituta. Segundo Freud, “O
processo mental que se transformou em um sintoma
devido ao recalcamento mantém agora sua existência
fora da organização do eu e independentemente dele”
(Freud, 1926/1980, p. 119), adquirindo, assim como os
seus derivados, o privilégio de extraterritorialidade.
O eu, devido à necessidade de unificação e síntese,
impede que os sintomas permaneçam isolados e busca
agregá-los e incorporá-los em sua organização, fazendo
uma adaptação ao sintoma e tirando proveito da
situação, o que resulta no que conhecemos como ganho
secundário proveniente da doença. De acordo com
Freud, “esta recuperação vem em ajuda do eu no seu
esforço para incorporar o sintoma, e aumenta a fixação
deste último” (Freud, 1926/1980, p. 122), garantindo
sua persistência.
O sintoma, derivado do recalcado, é, ao mesmo
tempo, “território estrangeiro” (Freud, 1933a/1980, p.
75) para o eu e representante do recalcado perante o eu.
É, também, a via indireta de satisfação pulsional, uma
satisfação substitutiva, deformada e irreconhecível,
sentida como sofrimento e geradora de desprazer e
angústia. Nessa situação, a angústia sentida pelo eu é o
sinal de desprazer que leva o eu a pôr-se em posição de
defesa, desencadeando o recalcamento e a formação de
sintomas.
No curso de sua investigação, Freud introduz a
relação altamente significativa entre a geração de
angústia e a formação de sintomas, verificando que os
dois processos se representam e substituem um ao
outro. A partir da análise da fobia de Hans, conclui que
a angústia, essência da fobia, provém não do processo
de recalcamento, como acreditava anteriormente2, mas
do próprio agente recalcador; ou seja, a angústia está
na origem e põe o recalcamento em movimento e,
conseqüentemente, põe a formação de sintomas em
movimento.
A angústia se manifesta sob a forma de “um medo
realístico, o medo de um perigo que era realmente
iminente ou que era julgado real” (Freud, 1926/1980,
p. 131). A angústia é a reação a esse perigo e o sintoma
é criado para evitar o surgimento do estado de angústia.
A formação de sintomas, dessa maneira, põe termo à
situação de perigo. Na conferência “Angústia e vida
pulsional”, Freud (1933b/1980) conclui: “Parece, com
efeito, que a geração da angústia é o que surgiu
primeiro, e a formação dos sintomas, o que veio depois,
como se os sintomas fossem criados a fim de evitar a
irrupção do estado de angústia” (Freud, 1933b/1980, p.
106). A angústia é, portanto, uma reação a uma
situação de perigo. A reação de angústia sinaliza a
presença de uma situação de perigo, e é para fugir a
essa situação de perigo que se criam sintomas. O
perigo, aquilo que é temido, é evidentemente a própria
energia pulsional.
Para Freud, a angústia é um afeto, “um estado especial
de desprazer com atos de descarga ao longo de trilhas
específicas” (Freud, 1926/1980, p. 156). O caráter
acentuado de desprazer tem seu aspecto próprio em função
das experiências traumáticas que reproduz e do decorrente
acúmulo de excitação que, por um lado, produz o caráter
específico do desprazer e, por outro, encontra satisfação
nos atos de descarga, por “trilhas específicas”, traçadas
pelos pontos de fixação e retenção das situações infantis de
perigo. A pulsão, sob uma influência automática ou, como
prefere dizer Freud, “sob a influência da compulsão à
repetição” (Freud, 1926/1980, p. 117), seguirá a mesma
trilha que o impulso mais antigo recalcado.
Em “O mal-estar na cultura”, Freud (1930/1980)
postula a autonomia e a prevalência da pulsão de
morte. Para além do princípio do prazer, aparece a
face opaca da pulsão de morte, lei para além de toda
lei. A pulsão de morte é, em última instância, a
responsável pela repetição, fazendo com que se
2 No artigo “Recalcamento” (Freud, 1915/1980), a angústia
é apontada por Freud como uma das vicissitudes do
recalcamento.
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retorne sempre a um mesmo lugar; lugar de sofrimento
e desprazer, o qual proporciona uma satisfação
paradoxal, para além do princípio do prazer, que faz o
sujeito gozar de seu mal-estar, traçando as vias por
onde circula. A necessidade de repetir a mesma coisa é
onde se situa o recurso de tudo aquilo que se manifesta
do inconsciente sob a forma de reprodução sintomática.
A DIMENSÃO DO SIMBÓLICO
O momento inaugural do ensinamento de Lacan
tem por base a primazia do simbólico, fundada na
fórmula do “inconsciente estruturado como
linguagem”, que privilegia o deciframento simbólico,
numa tentativa de dar conta do que é decifrável do
inconsciente na experiência analítica.
No início de sua elaboração, em seu retorno a
Freud, munido da lingüística estrutural, Lacan estende
a reescritura, em termos simbólicos, aos demais
conceitos da teoria freudiana (recalcamento, pulsão,
libido, trauma, fixação, regressão, fantasia, desejo,
objeto, falo, gozo...), operando uma significantização
dos mesmos. Os textos da década de 1950 são
marcados pela prevalência da ordem simbólica em todo
fenômeno analítico e em tudo que participa do campo
analítico.
A pulsão se estrutura em termos de linguagem e é
reduzida a uma cadeia significante. O que se pode dizer
da satisfação é sempre dito em termos simbólicos. O
trauma, ligado à cena primária, que opera no cerne da
descoberta do inconsciente, é retranscrito por Lacan
como significante, “significante em estado puro, que
não pode, de maneira alguma, articular-se nem se
resolver” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 477). A
regressão é o que ocorre quando esses significantes,
que perfilam na dimensão da demanda, são
reencontrados no discurso do sujeito. A fixação
demonstra a prevalência de um significante que serviu
ao sujeito para articular sua demanda em fases mais
antigas. A fantasia inconsciente é estruturada pelas
condições do significante, e os objetos da fantasia
fazem parte de uma bateria de termos substitutos,
fadados à equivalência.
Conforme Lacan, “O desejo só consegue
satisfação sob a condição de fazer uma renúncia
parcial (...) ele tem de se tornar demanda, ou seja,
desejo significado, significado pela existência e pela
intervenção do significante, ou seja, em parte, desejo
alienado” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 298). O desejo é
inapreensível e inarticulável, por não se inscrever no
registro do significante. Contudo, só podemos inferi-lo
na medida em que, necessariamente, se articula na
demanda. A demanda, por sua vez, é constituída pelos
significantes emitidos pelo sujeito e tem apenas um
significado: o desejo, que é causado pela perda do
objeto primordial, nas primeiras experiências infantis
de satisfação. A demanda é, portanto, a própria cadeia
de significantes que se dirige ao Outro, como o lugar
dos significantes, o lugar do código.
A convicção freudiana de que os sintomas têm um
sentido, que pode ser decifrado como as demais
formações do inconsciente, é abordada por Lacan a
partir dos recursos da lingüística estrutural. Se o
sintoma é uma mensagem que pode ser decifrada é
porque mantém a latência significante que sustenta seu
sentido e sua significação. O sintoma é, assim, definido
como “o significante de um significado recalcado da
consciência do sujeito” (Lacan, 1953/1998, p. 282), um
sem-sentido, uma opacidade no discurso do sujeito, por
representar alguma irrupção de verdade.
Em “Função e campo da fala e da linguagem em
psicanálise”, Lacan (1953/1998) afirma que “O
sintoma se resolve por inteiro numa análise linguageira,
por ser ele mesmo estruturado como uma linguagem,
por ser a linguagem cuja fala deve ser libertada”
(Lacan, 1953/1998, p. 270). O sintoma é, tal como o
inconsciente, estruturado como uma linguagem, porque
participa da linguagem e de suas leis. É, também, fala
dirigida ao Outro, lugar de onde o sujeito recebe o
sentido, a significação de seu sintoma, ou seja, “sua
própria mensagem de forma invertida” (Lacan,
1953/1998, p. 299).
Em Freud, o sintoma nunca é simples; ele é sempre
sobredeterminado, e esse fenômeno, para Lacan, só é
concebível na estrutura da linguagem. A
sobredeterminação nada mais é do que a articulação
das cadeias significantes ao se decifrar o sintoma, isto
é, ao fazer deslizar e desdobrar os significantes
recalcados que a ele estão ligados. Nessa dimensão, o
processo de análise é o processo de deciframento da
articulação significante, que se dá no desdobramento e
no desenrolar das cadeias de associação de
significantes. A associação livre, regra de ouro da
psicanálise, faz-se pela via do significante, e não do
significado. Para se chegar ao significado, o que
importa é o lugar do significante em relação a um outro
significante.
A psicanálise, então, opera sobre o inconsciente,
que dá prevalência ao significante. O significado nada
mais é do que outro significante que, junto com o
primeiro, retroativamente, produz efeito de sentido.
É nos sonhos, nos lapsos do discurso, nas
distorções, nas lacunas e nas repetições do sujeito,
assim como em seus sintomas, que temos que ler o
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traço apagado do significante recalcado, que emerge na
linguagem particular que apreende o desejo
inconsciente e que abriga inadvertidamente um sentido
– o do conflito recalcado – determinando a maneira
pela qual o discurso do sujeito se organiza.
É na demanda endereçada ao Outro que circula o
desejo, escamoteado, escondido, disfarçado na enunciação
e nos intervalos do enunciado, nas pausas, nas
exclamações e reticências; em suma, é na modulação da
fala do sujeito que cabe avalizar a presença do desejo e a
verdade que ele oculta. Portanto, é nas entrelinhas que se
situa a verdade do inconsciente. A fala, ao ser libertada –
“fala plena” (Lacan, 1953/1998, p. 248), verdadeira –
deixa escapar, para além do vazio de seu dizer, o apelo do
sujeito à verdade, que já está inscrita em alguma parte no
inconsciente.
Pela psicanálise, o sintoma revela não a verdade da
doença, mas a verdade do sujeito do inconsciente, pois
busca apreender no sintoma o desejo inconsciente
indestrutível, do qual fala Freud (1900/1980) em “A
interpretação de sonhos”. Para Lacan, o registro da
verdade deve ser tomado ao pé da letra, isto é, “a
determinação simbólica, (...) a sobredeterminação,
deve ser considerada, antes de mais nada, um fato de
sintaxe” (Lacan, 1956/1998, p. 470), cujos efeitos se
exercem do texto para o sentido.
Freud, desde o começo, inclui o conceito de satisfação
pulsional vinculado ao sintoma. Lacan, porém, na primeira
época de seu ensino, prioriza a noção do inconsciente e do
sintoma estruturados como linguagem, deixando de lado a
referência à insatisfação contida no sintoma e localizando
a pulsão, o que não pode se dizer, fora do campo da
interpretação analítica. O sintoma mesmo é linguagem e,
pela interpretação, é possível alcançá-lo evocando suas
ressonâncias semânticas. O tratamento é, então, orientado
para libertar, pela via significante, a insistência repetitiva
que há no sintoma e a verdade que aí se oculta.
Mais adiante, Lacan comprova que o
franqueamento do recalcamento é estruturalmente
impossível e que o significado permanece discordante,
sem acesso à consciência. Nesse contexto, ocorre uma
mudança na concepção da emergência da verdade: da
verdade que pode ser apreendida totalmente na fala
plena, passa-se à meia-verdade, à impossibilidade de
dizer a verdade toda, assinalando a presença de algo do
significado que é resistente ao significante.
A DIMENSÃO DO REAL
Se, na década de 1950, Lacan situa o fenômeno da
insistência repetitiva no registro do simbólico, não deixa,
por outro lado, de desenvolver a dimensão do real a partir
do fenômeno da repetição, emsua característica de Zwang
– compulsão –, para além do princípio do prazer. No
seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise (Lacan, 1954-1955/1992), calcado emFreud e
na lingüística estrutural, afirma que a repetição está para
além do princípio do prazer, por seu caráter de insistência,
insistência repetitiva, “insistência significante” (Lacan,
1954-1955/1992, p. 259).Mas, por outro lado, ainda nesse
texto, afirma que o que se passa na repetição é a revelação
do real, “do real sem nenhuma mediação possível, do real
derradeiro, do objeto essencial que não é mais um objeto,
porém este algo diante do que todas as palavras estacame
todas as categorias fracassam, o objeto de angústia por
excelência” (Lacan, 1954-1955/1992, p. 209: grifo nosso).
A insistência repetitiva manifesta a presença de um
obstáculo fundamental, intransponível, que obriga o
sujeito a repetir a evidência dessa presença, desse
obstáculo. No começo, é porque há o obstáculo – que
já está lá antes que o sujeito o encontre – que se dá a
repetição, mas é por causa da repetição que se percebe
e se isola o obstáculo. O objeto encontrado na repetição
não é o que se busca, uma vez que este está perdido
desde sempre. A falta decorrente dessa perda origina o
desejo, engendrando, dessa forma, objetos
substitutivos. O “objeto essencial” é o objeto perdido,
que mais tarde será nomeado por Lacan “objeto causa
do desejo”.
No seminário A ética da psicanálise (Lacan,
1959-1960/1991), para dar conta de certas
ambigüidades e insuficiências, que resultam da ordem
significante, Lacan introduz o termo das Ding, a
“Coisa”, extraído do texto freudiano: “um objeto
concreto, positivo, particular” (Lacan, 1959-
1960/1991, p. 58), “o fora-do-significado” (Lacan,
1959-1960/1991, p. 71), “excluído no interior” (Lacan,
1959-1960/1991, p. 128). Segundo ele:
É esse objeto, das Ding, enquanto o Outro
absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar.
Reencontrá-lo no máximo como saudade. Não é
ele que reencontramos, mas suas coordenadas de
prazer; é nesse estado de ansiar por ele e de
esperá-lo que será buscada, em nome do
princípio do prazer, a tensão ótima abaixo da
qual não há mais nem percepção nem esforço
(Lacan, 1959-1960/1991, p. 69).
O que é encontrado é procurado nas vias do
significante, o que indica que a satisfação é encontrada nos
caminhos que já a proporcionaram. A função do princípio
do prazer é conduzir o sujeito de significante em
significante, com o objetivo de manter o mais baixo
possível o nível de tensão do aparelho psíquico.
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Das Ding, é “o que do real – entendam aqui um
real que não temos ainda que limitar, o real em sua
totalidade, tanto o real que é o do sujeito quanto o real
com o qual ele lida como lhe sendo exterior –, o que, do
real primordial, diremos, padece do significante”
(Lacan, 1959-1960/1991, p. 149). É em relação a esse
das Ding original, o real derradeiro da organização
psíquica, realidade hipotética que comanda e ordena,
que é feita a primeira orientação subjetiva em direção
ao objeto e a primeira escolha, que determinará a
escolha da neurose. Esse objeto instaura uma lei
invisível, em torno da qual gravitam as representações
inconscientes, mas não é ele que regula seus trajetos.
Na orientação do sujeito em direção ao objeto, as
representações (Vorstellungen) atraem-se umas às
outras, de acordo com as leis do princípio do prazer,
regulando o trajeto, o trilhamento do sujeito. Essas
representações modulam-se segundo as leis do
funcionamento da cadeia significante.
Para além do princípio do prazer, delineia-se das
Ding como aquilo que constitui a lei, lei particular,
estritamente ligada à estrutura do desejo, em que o
objeto do desejo é sempre mantido à distância,
originando uma falta, uma hiância no centro do desejo.
Essa hiância é literalmente contornada pelo desejo no
caminho de sua satisfação.
De acordo com Lacan, “o que há no nível de das
Ding desde o momento em que é revelado é o lugar dos
Triebe” (Lacan, 1959-1960/1991, p. 138). O princípio
de prazer, motivado pela deriva das pulsões, conduz ao
ponto mítico do objeto perdido – das Ding – ponto de
hiância, eleito, que diz respeito às zonas erógenas, ou
seja, à fonte das pulsões. Nessa trajetória, as pulsões,
devido à sua plasticidade, podem deslocar-se e
substituir-se umas às outras, comportando-se “como
uma rede, como vasos comunicantes” (Lacan, 1959-
1960/1991, p. 116). Há plasticidade, mas há também
limites. É o que diz Lacan (1959-1960/1991), seguindo
os passos de Freud:
Freud marca, no nível do que podemos
chamar de fonte dos Triebe, um ponto de
inserção, um ponto de limite, um ponto
irredutível. (...) Por outro lado, Freud mostranos
a abertura, que parece, à primeira vista,
quase sem limite, das substituições [entre
elas o sintoma] que podem ser feitas, na outra
extremidade, no nível do alvo (p. 119).
O sintoma é, então, concebido como “o retorno,
por via de substituição significante, do que se
encontra na ponta da pulsão como seu alvo [a
satisfação]. (...) Trata-se justamente de alvo e não,
propriamente falando, do objeto, embora (...) este
entre rapidamente em consideração” (Lacan, 1959-
1960/1991, p. 139).
No sintoma, assim como nas demais formações do
inconsciente, há uma satisfação de desejo, mas essa
satisfação é uma “satisfação às avessas” (Lacan, 1957-
1958/1999, p. 331) e, conforme Freud, uma “satisfação
real” (Freud, 1917/1980, p. 421), para além do
princípio do prazer e vinculada à pulsão de morte,
demonstrando a aporia do desejo.
No seminário sobre A transferência, Lacan (1960-
1961/1992) afirma:
O que a experiência analítica nos ensina em
primeiro lugar é que o homem é marcado, é
perturbado por tudo aquilo a que se chama
sintoma – na medida em que o sintoma é
aquilo que o liga aos seus desejos. Não
podemos definir-lhe o limite nem o lugar –
por satisfazer isso sempre, de alguma
maneira, e, o que é mais, sem prazer (p. 262-
263).
Enfim, o que a descoberta freudiana nos ensina a
ver nos sintomas, no tanto em que se ligam ao desejo, é
sua relação com o destino. O que o sujeito busca é o
que há para ser encontrado; e mais, se ele procura, é
porque existe algo a ser encontrado. A única coisa a ser
encontrada é, em última instância, o seu destino,
marcado pela autonomia e prevalência da pulsão de
morte.
No seminário sobre A angústia Lacan (1962-
1963/1997-1998) conclui:
O sintoma não está, como o acting-out,
pedindo a interpretação (...) o que
descobrimos no sintoma, em sua essência,
não é um apelo ao Outro, não é o que mostra
o Outro; o sintoma em sua natureza é gozo
(...) gozo encoberto sem dúvida (...) O
sintoma não precisa de vocês como o actingout,
ele se basta. É da ordem do que lhes
ensinei a distinguir do desejo, como sendo o
gozo, quer dizer, algo que vai em direção à
Coisa, tendo passado a barreira do Bem (...)
quer dizer, do princípio do prazer, e é por isto
que este gozo pode se traduzir por um Unlust,
(...) desprazer ( p. 134).
No âmago da experiência do desejo existe algo que
resta quando o desejo é satisfeito. No final do desejo,
final que é sempre o resultado de um engano, resta o
gozo, encarnado no sintoma e presentificado pela
angústia.
No final de sua obra, sobretudo nos seminários R.S.I.
(Lacan, 1974-1975) e Le sinthome (Lacan, 1975-
Sintoma 405
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 2, p. 399-405, mai./ago. 2006
1976/2005), Lacan define o sintoma como função de letra,
f(x), um signo isolado da cadeia significante, uma cifra de
gozo. O objeto a, resto de gozo inassimilável pela
articulação significante, é o centro, o caroço do “sintomaletra
de gozo”, articulador do inconsciente e do gozo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em Lacan, o sintoma é, inicialmente, enfatizado
em sua dimensão simbólica, significante: um nó de
significações susceptível de ser desfeito pela
interpretação. Contudo, a experiência clínica, desde
Freud, faz referência à persistência do sintoma mesmo
após sua interpretação, apontando para a limitação dos
efeitos produzidos pela mesma. Seguindo essa pista,
Lacan avançará no sentido de conceber que o sintoma
não é regido somente pela rede simbólica, pois algo
resta após o desvendamento do encadeamento
significante. A esse resto Lacan dará o nome de gozo,
passando a entender o sintoma não somente como uma
mensagem codificada, mas também como uma forma de
o sujeito organizar seu gozo. Por essa razão, mesmo
depois de ter seu sintoma decodificado pela
interpretação, o sujeito não renuncia a ele. Freud
demonstra que o neurótico, ainda que demande a cura,
não a quer, aferrando-se ao gozo de seu sintoma.
Na experiência analítica, não basta isolar os
significantes-mestres que definem o destino do sujeito; é
preciso também isolar os modos de gozo do sujeito em
relação ao Outro. Há um saber inconsciente, determinado
pelo significante recalcado, mas há tambémumsaber de si
como sujeito pulsional, determinado pelo gozo. Nesse
contexto, a psicanálise é uma práxis orientada para o
núcleo do real e o papel do analista é permitir que a pulsão
se presentifique na realidade do inconsciente. A
interpretação deve visar não tanto ao sentido, mas
principalmente à redução dos significantes-mestres a seu
não-senso, a seus modos de gozo.
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Lacan, J. (2005) Le séminaire livre XXIII: le sinthome. Paris:
Éditions du Seuil. (Original publicado em 1975-1976).
Recebido em 21/03/2006
Aceito em 15/05/2006
Endereço para correspondência: Maria das Graças Leite Villela Dias. Rua Inácio Rodrigues de Faria, 90/301, Bairro Vila
Marchetti, CEP 36307-228. São João del-Rei, MG. E-mail: gvillela@ufsj.edu.br
Maria das Graças Leite Villela Dias*
RESUMO. O artigo aborda a teoria do sintoma em Freud e a releitura efetuada por Lacan, na dimensão do simbólico – pelo viés do
“inconsciente estruturado como linguagem” – e na dimensão do real – pela vertente do “inconsciente pulsional”, apontando para as
duas dimensões do sintoma: o “sintoma-metáfora”, uma formação do inconsciente que se sustenta em uma satisfação de desejo e tem
um sentido recalcado, que pode ser decifrado; e, o “sintoma-letra de gozo”, que se distingue das demais formações do inconsciente na
medida em que a satisfação de desejo, nele envolvida, tem um caráter problemático e paradoxal: é uma “satisfação real”, “às avessas”,
para além do princípio do prazer e vinculada à pulsão demorte.
Palavras-chave: sintoma, sintoma-metáfora, sintoma-letra de gozo.
THE SYMPTOM: FROM FREUD TO LACAN
ABSTRACT. This article deals with both, the ‘theory of symptom’ in Freud, as well as, Lacan’s re-reading of it, in the dimension of
the symbolic – through the vein of the ‘unconscious, structured as language’ and, in the dimension of the real – from the point of view
of the ‘driving unconscious’. Thus, it points to two dimensions of the symptom: firstly, ‘the symptom-metaphor’, an unconscious
formation, supported by the satisfaction of a wish with a repressed sense, which can be deciphered; and secondly, ‘the enjoyment
letter-symptom’, different from the other unconscious formations, once the wish-fulfilment involved in it, has a problematic and
paradoxical feature: it is a ‘real satisfaction’, but ‘inside out’, beyond the pleasure principle and linked to the death instinct.
Key words: Symptom, symptom-metaphor, enjoyment letter-symptom.
EL SÍNTOMA: DE FREUD A LACAN
RESUMEN. Este artículo trata la teoría del síntoma en Freud y la relectura efectuada por Lacan, en la dimensión de lo simbólico –
bajo el prisma del “inconsciente estructurado como lenguaje” - y en la dimensión de lo real – desde el punto de vista del “inconsciente
pulsional”, señalando las dos dimensiones del síntoma: primeramente, el “síntoma metáfora”, una formación del inconsciente, apoyada
en una satisfacción de deseo con un sentido reprimido que puede descifrarse; y secundariamente, el “síntoma goce”, diferente de las
otras formaciones inconscientes, una vez que la satisfacción de deseo involucrada en él, tiene un rasgo problemático y paradójico: es
una “satisfacción real”, “al revés”, más allá del principio del placer y unida a la pulsión demuerte.
Palabras-clave: síntoma, síntoma metáfora, síntoma goce.
1 Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais-FAPEMIG.
* Psicanalista. Doutora. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei–UFSJ/MG.
Neste artigo abordamos a teoria do sintoma em Freud e a releitura efetuada por Lacan, a partir de
textos da década de 1950 e do início da década de 1960. A abordagem se dá, na dimensão do simbólico,
pelo viés do “inconsciente estruturado como linguagem” e, na dimensão do real, pela vertente do
“inconsciente pulsional”. Na dimensão do simbólico, o sintoma-mensagem se sustenta num sentido
recalcado, que pode ser decifrado como as demais formações do inconsciente. Porém, Lacan, no
desenrolar de sua elaboração, comprova que o franqueamento do recalcamento é estruturalmente
impossível e que o significado permanece discordante, sem acesso à consciência. No sintoma, assim como
nas demais formações do inconsciente, há umasatisfação de desejo, mas esta satisfação tem um
caráter problemático e paradoxal, uma vez que étambém uma “satisfação real” (Freud, 1917/1980, p.
400 Dias
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 2, p. 399-405, mai./ago. 2006
421), uma “satisfação às avessas” (Lacan, 1957-
1958/1999, p. 331), para além do princípio do prazer e
vinculada à pulsão de morte. Esta satisfação paradoxal
é o fundamento da concepção do núcleo real de gozo
impossível de ser simbolizado, situado no cerne do
sintoma.
A TEORIA DO SINTOMA EM FREUD
A psicanálise começou seu trabalho pelo estudo da neurose e dos sintomas. Sua trajetória, do sintoma ao
inconsciente, à pulsão e à sexualidade, nos ensina que as neuroses são expressão de conflitos entre o eu e as
pulsões que, por serem incompatíveis com a integridade ou com os padrões éticos do eu, são recalcadas, ou seja, são impedidas de se tornar conscientes, bem como são afastadas, de início, da possibilidade de satisfação. O recalcamento, no entanto, facilmente fracassa e a libido represada, insatisfeita, que foi repelida pela realidade, deve agora procurar outras saídas do inconsciente, outras vias de satisfação, seguindo por caminhos indiretos. Ela regride a fases anteriores do desenvolvimento infantil e a atitudes anteriores para
com os objetos – pontos de fixações infantis – e irrompe na consciência, obtendo satisfação. O
resultado é um sintoma e, conseqüentemente, em sua essência, uma satisfação sexual substitutiva para
desejos sexuais não realizados, ou seja, um substituto de algo que foi afastado pelo recalcamento, indicação
de um retorno do recalcado; uma satisfação substituta deformada, irreconhecível, uma vez que o sintoma não escapa inteiramente à censura, submetendo-se, assim, a modificações e deslocamentos.Os sintomas são ou uma satisfação de algum desejo sexual ou medidas para impedir tal satisfação e, via de regra, têm a natureza de conciliação, de formação de compromisso entre as duas forças que entraram em luta no conflito: a libido insatisfeita, que representa o recalcado, e a força repressora, que compartilhou de sua origem. É esse acordo entre as partes em luta que torna o sintoma tão resistente.
Em “Os caminhos da formação dos sintomas”, Freud (1917/1980) esclarece que “pelo caminho
indireto, via inconsciente e antigas fixações, a libido finalmente consegue achar sua saída até uma
satisfação real – embora seja uma satisfação extremamente restrita e que mal se reconhece como
tal” (p. 421-422, grifo nosso). Para romper o recalcamento, a libido encontra as fixações
necessárias nas experiências do início da vida sexual, que, por ocorrerem numa época de desenvolvimento incompleto – marcado pelo estado de desamparo e dependência absolutos –, são capazes de ter efeitos traumáticos. Conforme Freud, “de algum modo, o sintoma repete essa forma infantil de satisfação, deformada pela censura que surge no conflito, via de regra transformada em uma sensação de sofrimento e mesclada com elementos provenientes da causa precipitante da doença” (p. 427).
Destarte, o sintoma é concebido, de início, como a expressão do recalcado. O trauma é a base real do
sintoma e o real derradeiro é, em Freud, a castração. Porém, a partir dos dados da experiência clínica, Freud conclui que o trauma é, via de regra, suposto ou inferido, o que o leva ao abandono da teoria do trauma e à concepção da teoria da fantasia, em que o trauma é tido como parte da realidade psíquica do sujeito e fundamento da fantasia. O sintoma é, então, definido como a realização de uma fantasia de conteúdo sexual, ou seja, representa, na totalidade ou em parte, a atividade sexual do sujeito provinda das fontes daspulsões parciais, normais ou perversas.
Se o discurso psicanalítico pôde emergir, foi porque Freud soube ouvir o discurso do neurótico. Foi a partir do discurso da histérica que pôde demonstrar que o sintoma tem um sentido, um sentido inconsciente,
ou seja, o sintoma diz alguma coisa, mesmo que o sujeito nada saiba disso. E não somente diz, mas
também serve a um fim de satisfação, uma “satisfação real”, reconhecida pelo sujeito como um sofrimento. O sintoma é o lugar paradoxal onde o sujeito, sem que ele o saiba, tem a sua satisfação sexual e, também, o seu sofrimento. Essa satisfação real, reconhecida como sofrimento, é apontada por Lacan como a referência
freudiana, na teoria do sintoma, ao real traumático, inapreensível, que escapa à decifração do sintoma e
cujos indícios podemos encontrar na fantasia. Ainda no texto “Os caminhos da formação dos
sintomas” (Freud, 1917/1980), ao buscar resposta para a questão de como a libido encontra o caminho para chegar a esses pontos de fixação, Freud (1917/1980) assinala a importância assumida pela fantasia na
formação dos sintomas: Todos os objetos e tendências que a libido abandonou ainda não foram abandonados em todos os sentidos. Tais objetos e tendências, ou seus derivados, ainda são mantidos, com
alguma intensidade, nas fantasias. Assim, a libido necessita apenas retirar-se para as fantasias, a fim de encontrar aberto o caminho que conduz a todas as fixações recalcadas (p. 435-436).
Sintoma 401
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 2, p. 399-405, mai./ago. 2006
E conclui: “partindo daquilo que, agora, são
fantasias inconscientes, a libido movimenta-se para
trás, até às origens dessas fantasias no inconsciente –
aos seus próprios pontos de fixação” (Freud,
1917/1980, p. 436). A psicanálise nos mostra que,
pelos mecanismos da condensação e do deslocamento,
o sintoma tornou-se uma satisfação substituta de uma
série de fantasias e de recordações de experiências
traumáticas do início da vida sexual.
Nos anos 1920, com a introdução da segunda
tópica do aparelho psíquico e da noção de pulsão de
morte, Freud avança no sentido de demonstrar que,
para além do princípio do prazer, há um real de gozo
impossível de ser representado, demonstrando, assim, o
caráter problemático da realidade psíquica que se
expressa no sintoma.
Em “Inibição, sintoma e angústia” (1926/1980),
Freud apresenta o sintoma como “um sinal e um
substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu
em estado jacente; [o sintoma] é uma conseqüência do
processo de recalcamento” (Freud, 1926/1980, p. 112).
O eu – parte organizada do isso – demonstra sua
força pelo ato de recalcamento. Mas, por sua vez, a
impotência do eu se revela nesse mesmo ato, pois,
como conseqüência do processo de recalcamento, surge
um sintoma, através do qual a libido insatisfeita
encontra uma satisfação substituta. Segundo Freud, “O
processo mental que se transformou em um sintoma
devido ao recalcamento mantém agora sua existência
fora da organização do eu e independentemente dele”
(Freud, 1926/1980, p. 119), adquirindo, assim como os
seus derivados, o privilégio de extraterritorialidade.
O eu, devido à necessidade de unificação e síntese,
impede que os sintomas permaneçam isolados e busca
agregá-los e incorporá-los em sua organização, fazendo
uma adaptação ao sintoma e tirando proveito da
situação, o que resulta no que conhecemos como ganho
secundário proveniente da doença. De acordo com
Freud, “esta recuperação vem em ajuda do eu no seu
esforço para incorporar o sintoma, e aumenta a fixação
deste último” (Freud, 1926/1980, p. 122), garantindo
sua persistência.
O sintoma, derivado do recalcado, é, ao mesmo
tempo, “território estrangeiro” (Freud, 1933a/1980, p.
75) para o eu e representante do recalcado perante o eu.
É, também, a via indireta de satisfação pulsional, uma
satisfação substitutiva, deformada e irreconhecível,
sentida como sofrimento e geradora de desprazer e
angústia. Nessa situação, a angústia sentida pelo eu é o
sinal de desprazer que leva o eu a pôr-se em posição de
defesa, desencadeando o recalcamento e a formação de
sintomas.
No curso de sua investigação, Freud introduz a
relação altamente significativa entre a geração de
angústia e a formação de sintomas, verificando que os
dois processos se representam e substituem um ao
outro. A partir da análise da fobia de Hans, conclui que
a angústia, essência da fobia, provém não do processo
de recalcamento, como acreditava anteriormente2, mas
do próprio agente recalcador; ou seja, a angústia está
na origem e põe o recalcamento em movimento e,
conseqüentemente, põe a formação de sintomas em
movimento.
A angústia se manifesta sob a forma de “um medo
realístico, o medo de um perigo que era realmente
iminente ou que era julgado real” (Freud, 1926/1980,
p. 131). A angústia é a reação a esse perigo e o sintoma
é criado para evitar o surgimento do estado de angústia.
A formação de sintomas, dessa maneira, põe termo à
situação de perigo. Na conferência “Angústia e vida
pulsional”, Freud (1933b/1980) conclui: “Parece, com
efeito, que a geração da angústia é o que surgiu
primeiro, e a formação dos sintomas, o que veio depois,
como se os sintomas fossem criados a fim de evitar a
irrupção do estado de angústia” (Freud, 1933b/1980, p.
106). A angústia é, portanto, uma reação a uma
situação de perigo. A reação de angústia sinaliza a
presença de uma situação de perigo, e é para fugir a
essa situação de perigo que se criam sintomas. O
perigo, aquilo que é temido, é evidentemente a própria
energia pulsional.
Para Freud, a angústia é um afeto, “um estado especial
de desprazer com atos de descarga ao longo de trilhas
específicas” (Freud, 1926/1980, p. 156). O caráter
acentuado de desprazer tem seu aspecto próprio em função
das experiências traumáticas que reproduz e do decorrente
acúmulo de excitação que, por um lado, produz o caráter
específico do desprazer e, por outro, encontra satisfação
nos atos de descarga, por “trilhas específicas”, traçadas
pelos pontos de fixação e retenção das situações infantis de
perigo. A pulsão, sob uma influência automática ou, como
prefere dizer Freud, “sob a influência da compulsão à
repetição” (Freud, 1926/1980, p. 117), seguirá a mesma
trilha que o impulso mais antigo recalcado.
Em “O mal-estar na cultura”, Freud (1930/1980)
postula a autonomia e a prevalência da pulsão de
morte. Para além do princípio do prazer, aparece a
face opaca da pulsão de morte, lei para além de toda
lei. A pulsão de morte é, em última instância, a
responsável pela repetição, fazendo com que se
2 No artigo “Recalcamento” (Freud, 1915/1980), a angústia
é apontada por Freud como uma das vicissitudes do
recalcamento.
402 Dias
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 2, p. 399-405, mai./ago. 2006
retorne sempre a um mesmo lugar; lugar de sofrimento
e desprazer, o qual proporciona uma satisfação
paradoxal, para além do princípio do prazer, que faz o
sujeito gozar de seu mal-estar, traçando as vias por
onde circula. A necessidade de repetir a mesma coisa é
onde se situa o recurso de tudo aquilo que se manifesta
do inconsciente sob a forma de reprodução sintomática.
A DIMENSÃO DO SIMBÓLICO
O momento inaugural do ensinamento de Lacan
tem por base a primazia do simbólico, fundada na
fórmula do “inconsciente estruturado como
linguagem”, que privilegia o deciframento simbólico,
numa tentativa de dar conta do que é decifrável do
inconsciente na experiência analítica.
No início de sua elaboração, em seu retorno a
Freud, munido da lingüística estrutural, Lacan estende
a reescritura, em termos simbólicos, aos demais
conceitos da teoria freudiana (recalcamento, pulsão,
libido, trauma, fixação, regressão, fantasia, desejo,
objeto, falo, gozo...), operando uma significantização
dos mesmos. Os textos da década de 1950 são
marcados pela prevalência da ordem simbólica em todo
fenômeno analítico e em tudo que participa do campo
analítico.
A pulsão se estrutura em termos de linguagem e é
reduzida a uma cadeia significante. O que se pode dizer
da satisfação é sempre dito em termos simbólicos. O
trauma, ligado à cena primária, que opera no cerne da
descoberta do inconsciente, é retranscrito por Lacan
como significante, “significante em estado puro, que
não pode, de maneira alguma, articular-se nem se
resolver” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 477). A
regressão é o que ocorre quando esses significantes,
que perfilam na dimensão da demanda, são
reencontrados no discurso do sujeito. A fixação
demonstra a prevalência de um significante que serviu
ao sujeito para articular sua demanda em fases mais
antigas. A fantasia inconsciente é estruturada pelas
condições do significante, e os objetos da fantasia
fazem parte de uma bateria de termos substitutos,
fadados à equivalência.
Conforme Lacan, “O desejo só consegue
satisfação sob a condição de fazer uma renúncia
parcial (...) ele tem de se tornar demanda, ou seja,
desejo significado, significado pela existência e pela
intervenção do significante, ou seja, em parte, desejo
alienado” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 298). O desejo é
inapreensível e inarticulável, por não se inscrever no
registro do significante. Contudo, só podemos inferi-lo
na medida em que, necessariamente, se articula na
demanda. A demanda, por sua vez, é constituída pelos
significantes emitidos pelo sujeito e tem apenas um
significado: o desejo, que é causado pela perda do
objeto primordial, nas primeiras experiências infantis
de satisfação. A demanda é, portanto, a própria cadeia
de significantes que se dirige ao Outro, como o lugar
dos significantes, o lugar do código.
A convicção freudiana de que os sintomas têm um
sentido, que pode ser decifrado como as demais
formações do inconsciente, é abordada por Lacan a
partir dos recursos da lingüística estrutural. Se o
sintoma é uma mensagem que pode ser decifrada é
porque mantém a latência significante que sustenta seu
sentido e sua significação. O sintoma é, assim, definido
como “o significante de um significado recalcado da
consciência do sujeito” (Lacan, 1953/1998, p. 282), um
sem-sentido, uma opacidade no discurso do sujeito, por
representar alguma irrupção de verdade.
Em “Função e campo da fala e da linguagem em
psicanálise”, Lacan (1953/1998) afirma que “O
sintoma se resolve por inteiro numa análise linguageira,
por ser ele mesmo estruturado como uma linguagem,
por ser a linguagem cuja fala deve ser libertada”
(Lacan, 1953/1998, p. 270). O sintoma é, tal como o
inconsciente, estruturado como uma linguagem, porque
participa da linguagem e de suas leis. É, também, fala
dirigida ao Outro, lugar de onde o sujeito recebe o
sentido, a significação de seu sintoma, ou seja, “sua
própria mensagem de forma invertida” (Lacan,
1953/1998, p. 299).
Em Freud, o sintoma nunca é simples; ele é sempre
sobredeterminado, e esse fenômeno, para Lacan, só é
concebível na estrutura da linguagem. A
sobredeterminação nada mais é do que a articulação
das cadeias significantes ao se decifrar o sintoma, isto
é, ao fazer deslizar e desdobrar os significantes
recalcados que a ele estão ligados. Nessa dimensão, o
processo de análise é o processo de deciframento da
articulação significante, que se dá no desdobramento e
no desenrolar das cadeias de associação de
significantes. A associação livre, regra de ouro da
psicanálise, faz-se pela via do significante, e não do
significado. Para se chegar ao significado, o que
importa é o lugar do significante em relação a um outro
significante.
A psicanálise, então, opera sobre o inconsciente,
que dá prevalência ao significante. O significado nada
mais é do que outro significante que, junto com o
primeiro, retroativamente, produz efeito de sentido.
É nos sonhos, nos lapsos do discurso, nas
distorções, nas lacunas e nas repetições do sujeito,
assim como em seus sintomas, que temos que ler o
Sintoma 403
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 2, p. 399-405, mai./ago. 2006
traço apagado do significante recalcado, que emerge na
linguagem particular que apreende o desejo
inconsciente e que abriga inadvertidamente um sentido
– o do conflito recalcado – determinando a maneira
pela qual o discurso do sujeito se organiza.
É na demanda endereçada ao Outro que circula o
desejo, escamoteado, escondido, disfarçado na enunciação
e nos intervalos do enunciado, nas pausas, nas
exclamações e reticências; em suma, é na modulação da
fala do sujeito que cabe avalizar a presença do desejo e a
verdade que ele oculta. Portanto, é nas entrelinhas que se
situa a verdade do inconsciente. A fala, ao ser libertada –
“fala plena” (Lacan, 1953/1998, p. 248), verdadeira –
deixa escapar, para além do vazio de seu dizer, o apelo do
sujeito à verdade, que já está inscrita em alguma parte no
inconsciente.
Pela psicanálise, o sintoma revela não a verdade da
doença, mas a verdade do sujeito do inconsciente, pois
busca apreender no sintoma o desejo inconsciente
indestrutível, do qual fala Freud (1900/1980) em “A
interpretação de sonhos”. Para Lacan, o registro da
verdade deve ser tomado ao pé da letra, isto é, “a
determinação simbólica, (...) a sobredeterminação,
deve ser considerada, antes de mais nada, um fato de
sintaxe” (Lacan, 1956/1998, p. 470), cujos efeitos se
exercem do texto para o sentido.
Freud, desde o começo, inclui o conceito de satisfação
pulsional vinculado ao sintoma. Lacan, porém, na primeira
época de seu ensino, prioriza a noção do inconsciente e do
sintoma estruturados como linguagem, deixando de lado a
referência à insatisfação contida no sintoma e localizando
a pulsão, o que não pode se dizer, fora do campo da
interpretação analítica. O sintoma mesmo é linguagem e,
pela interpretação, é possível alcançá-lo evocando suas
ressonâncias semânticas. O tratamento é, então, orientado
para libertar, pela via significante, a insistência repetitiva
que há no sintoma e a verdade que aí se oculta.
Mais adiante, Lacan comprova que o
franqueamento do recalcamento é estruturalmente
impossível e que o significado permanece discordante,
sem acesso à consciência. Nesse contexto, ocorre uma
mudança na concepção da emergência da verdade: da
verdade que pode ser apreendida totalmente na fala
plena, passa-se à meia-verdade, à impossibilidade de
dizer a verdade toda, assinalando a presença de algo do
significado que é resistente ao significante.
A DIMENSÃO DO REAL
Se, na década de 1950, Lacan situa o fenômeno da
insistência repetitiva no registro do simbólico, não deixa,
por outro lado, de desenvolver a dimensão do real a partir
do fenômeno da repetição, emsua característica de Zwang
– compulsão –, para além do princípio do prazer. No
seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise (Lacan, 1954-1955/1992), calcado emFreud e
na lingüística estrutural, afirma que a repetição está para
além do princípio do prazer, por seu caráter de insistência,
insistência repetitiva, “insistência significante” (Lacan,
1954-1955/1992, p. 259).Mas, por outro lado, ainda nesse
texto, afirma que o que se passa na repetição é a revelação
do real, “do real sem nenhuma mediação possível, do real
derradeiro, do objeto essencial que não é mais um objeto,
porém este algo diante do que todas as palavras estacame
todas as categorias fracassam, o objeto de angústia por
excelência” (Lacan, 1954-1955/1992, p. 209: grifo nosso).
A insistência repetitiva manifesta a presença de um
obstáculo fundamental, intransponível, que obriga o
sujeito a repetir a evidência dessa presença, desse
obstáculo. No começo, é porque há o obstáculo – que
já está lá antes que o sujeito o encontre – que se dá a
repetição, mas é por causa da repetição que se percebe
e se isola o obstáculo. O objeto encontrado na repetição
não é o que se busca, uma vez que este está perdido
desde sempre. A falta decorrente dessa perda origina o
desejo, engendrando, dessa forma, objetos
substitutivos. O “objeto essencial” é o objeto perdido,
que mais tarde será nomeado por Lacan “objeto causa
do desejo”.
No seminário A ética da psicanálise (Lacan,
1959-1960/1991), para dar conta de certas
ambigüidades e insuficiências, que resultam da ordem
significante, Lacan introduz o termo das Ding, a
“Coisa”, extraído do texto freudiano: “um objeto
concreto, positivo, particular” (Lacan, 1959-
1960/1991, p. 58), “o fora-do-significado” (Lacan,
1959-1960/1991, p. 71), “excluído no interior” (Lacan,
1959-1960/1991, p. 128). Segundo ele:
É esse objeto, das Ding, enquanto o Outro
absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar.
Reencontrá-lo no máximo como saudade. Não é
ele que reencontramos, mas suas coordenadas de
prazer; é nesse estado de ansiar por ele e de
esperá-lo que será buscada, em nome do
princípio do prazer, a tensão ótima abaixo da
qual não há mais nem percepção nem esforço
(Lacan, 1959-1960/1991, p. 69).
O que é encontrado é procurado nas vias do
significante, o que indica que a satisfação é encontrada nos
caminhos que já a proporcionaram. A função do princípio
do prazer é conduzir o sujeito de significante em
significante, com o objetivo de manter o mais baixo
possível o nível de tensão do aparelho psíquico.
404 Dias
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 2, p. 399-405, mai./ago. 2006
Das Ding, é “o que do real – entendam aqui um
real que não temos ainda que limitar, o real em sua
totalidade, tanto o real que é o do sujeito quanto o real
com o qual ele lida como lhe sendo exterior –, o que, do
real primordial, diremos, padece do significante”
(Lacan, 1959-1960/1991, p. 149). É em relação a esse
das Ding original, o real derradeiro da organização
psíquica, realidade hipotética que comanda e ordena,
que é feita a primeira orientação subjetiva em direção
ao objeto e a primeira escolha, que determinará a
escolha da neurose. Esse objeto instaura uma lei
invisível, em torno da qual gravitam as representações
inconscientes, mas não é ele que regula seus trajetos.
Na orientação do sujeito em direção ao objeto, as
representações (Vorstellungen) atraem-se umas às
outras, de acordo com as leis do princípio do prazer,
regulando o trajeto, o trilhamento do sujeito. Essas
representações modulam-se segundo as leis do
funcionamento da cadeia significante.
Para além do princípio do prazer, delineia-se das
Ding como aquilo que constitui a lei, lei particular,
estritamente ligada à estrutura do desejo, em que o
objeto do desejo é sempre mantido à distância,
originando uma falta, uma hiância no centro do desejo.
Essa hiância é literalmente contornada pelo desejo no
caminho de sua satisfação.
De acordo com Lacan, “o que há no nível de das
Ding desde o momento em que é revelado é o lugar dos
Triebe” (Lacan, 1959-1960/1991, p. 138). O princípio
de prazer, motivado pela deriva das pulsões, conduz ao
ponto mítico do objeto perdido – das Ding – ponto de
hiância, eleito, que diz respeito às zonas erógenas, ou
seja, à fonte das pulsões. Nessa trajetória, as pulsões,
devido à sua plasticidade, podem deslocar-se e
substituir-se umas às outras, comportando-se “como
uma rede, como vasos comunicantes” (Lacan, 1959-
1960/1991, p. 116). Há plasticidade, mas há também
limites. É o que diz Lacan (1959-1960/1991), seguindo
os passos de Freud:
Freud marca, no nível do que podemos
chamar de fonte dos Triebe, um ponto de
inserção, um ponto de limite, um ponto
irredutível. (...) Por outro lado, Freud mostranos
a abertura, que parece, à primeira vista,
quase sem limite, das substituições [entre
elas o sintoma] que podem ser feitas, na outra
extremidade, no nível do alvo (p. 119).
O sintoma é, então, concebido como “o retorno,
por via de substituição significante, do que se
encontra na ponta da pulsão como seu alvo [a
satisfação]. (...) Trata-se justamente de alvo e não,
propriamente falando, do objeto, embora (...) este
entre rapidamente em consideração” (Lacan, 1959-
1960/1991, p. 139).
No sintoma, assim como nas demais formações do
inconsciente, há uma satisfação de desejo, mas essa
satisfação é uma “satisfação às avessas” (Lacan, 1957-
1958/1999, p. 331) e, conforme Freud, uma “satisfação
real” (Freud, 1917/1980, p. 421), para além do
princípio do prazer e vinculada à pulsão de morte,
demonstrando a aporia do desejo.
No seminário sobre A transferência, Lacan (1960-
1961/1992) afirma:
O que a experiência analítica nos ensina em
primeiro lugar é que o homem é marcado, é
perturbado por tudo aquilo a que se chama
sintoma – na medida em que o sintoma é
aquilo que o liga aos seus desejos. Não
podemos definir-lhe o limite nem o lugar –
por satisfazer isso sempre, de alguma
maneira, e, o que é mais, sem prazer (p. 262-
263).
Enfim, o que a descoberta freudiana nos ensina a
ver nos sintomas, no tanto em que se ligam ao desejo, é
sua relação com o destino. O que o sujeito busca é o
que há para ser encontrado; e mais, se ele procura, é
porque existe algo a ser encontrado. A única coisa a ser
encontrada é, em última instância, o seu destino,
marcado pela autonomia e prevalência da pulsão de
morte.
No seminário sobre A angústia Lacan (1962-
1963/1997-1998) conclui:
O sintoma não está, como o acting-out,
pedindo a interpretação (...) o que
descobrimos no sintoma, em sua essência,
não é um apelo ao Outro, não é o que mostra
o Outro; o sintoma em sua natureza é gozo
(...) gozo encoberto sem dúvida (...) O
sintoma não precisa de vocês como o actingout,
ele se basta. É da ordem do que lhes
ensinei a distinguir do desejo, como sendo o
gozo, quer dizer, algo que vai em direção à
Coisa, tendo passado a barreira do Bem (...)
quer dizer, do princípio do prazer, e é por isto
que este gozo pode se traduzir por um Unlust,
(...) desprazer ( p. 134).
No âmago da experiência do desejo existe algo que
resta quando o desejo é satisfeito. No final do desejo,
final que é sempre o resultado de um engano, resta o
gozo, encarnado no sintoma e presentificado pela
angústia.
No final de sua obra, sobretudo nos seminários R.S.I.
(Lacan, 1974-1975) e Le sinthome (Lacan, 1975-
Sintoma 405
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 2, p. 399-405, mai./ago. 2006
1976/2005), Lacan define o sintoma como função de letra,
f(x), um signo isolado da cadeia significante, uma cifra de
gozo. O objeto a, resto de gozo inassimilável pela
articulação significante, é o centro, o caroço do “sintomaletra
de gozo”, articulador do inconsciente e do gozo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em Lacan, o sintoma é, inicialmente, enfatizado
em sua dimensão simbólica, significante: um nó de
significações susceptível de ser desfeito pela
interpretação. Contudo, a experiência clínica, desde
Freud, faz referência à persistência do sintoma mesmo
após sua interpretação, apontando para a limitação dos
efeitos produzidos pela mesma. Seguindo essa pista,
Lacan avançará no sentido de conceber que o sintoma
não é regido somente pela rede simbólica, pois algo
resta após o desvendamento do encadeamento
significante. A esse resto Lacan dará o nome de gozo,
passando a entender o sintoma não somente como uma
mensagem codificada, mas também como uma forma de
o sujeito organizar seu gozo. Por essa razão, mesmo
depois de ter seu sintoma decodificado pela
interpretação, o sujeito não renuncia a ele. Freud
demonstra que o neurótico, ainda que demande a cura,
não a quer, aferrando-se ao gozo de seu sintoma.
Na experiência analítica, não basta isolar os
significantes-mestres que definem o destino do sujeito; é
preciso também isolar os modos de gozo do sujeito em
relação ao Outro. Há um saber inconsciente, determinado
pelo significante recalcado, mas há tambémumsaber de si
como sujeito pulsional, determinado pelo gozo. Nesse
contexto, a psicanálise é uma práxis orientada para o
núcleo do real e o papel do analista é permitir que a pulsão
se presentifique na realidade do inconsciente. A
interpretação deve visar não tanto ao sentido, mas
principalmente à redução dos significantes-mestres a seu
não-senso, a seus modos de gozo.
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Lacan, J. (2005) Le séminaire livre XXIII: le sinthome. Paris:
Éditions du Seuil. (Original publicado em 1975-1976).
Recebido em 21/03/2006
Aceito em 15/05/2006
Endereço para correspondência: Maria das Graças Leite Villela Dias. Rua Inácio Rodrigues de Faria, 90/301, Bairro Vila
Marchetti, CEP 36307-228. São João del-Rei, MG. E-mail: gvillela@ufsj.edu.br
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