quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

NEM NEUROSE, NEM ILUSÃO

NEM NEUROSE, NEM ILUSÃO: A LINGUAGEM DO AMOR E A SUA
OPOSIÇÃO AO CONHECIMENTO CIENTÍFICO1
THE LANGUAGE OF LOVE AND ITS OPPOSITION TO SCIENTIFIC KWONLEDGE
RESUMO
O artigo em questão resulta de uma leitura de Rubem Alves (1999) e Bruno Latour
(2004) acerca do discurso religioso. A partir de tais leituras, buscamos analisar como
se compreendeu o discurso religioso, nas visões de Marx, enquanto ilusão, e de
Freud, enquanto neurose. A religião, conforme Alves, no contexto de transformações
da sociedade moderna, foi sentenciada à morte. Tal sentença baseou-se numa
determinada atitude científica supostamente formulada sob uma filosofia herdeira do
Iluminismo, a qual pretendia eliminar da sociedade qualquer vestígio de
obscurantismo, que seria representado pela consciência falaciosa e ilusória da
religião. O pensamento científico, objetivo, haveria de suplantar o discurso religioso
definido pelo Marxismo e pela Psicanálise como falsa consciência, como patologia,
como enfermidade. Discutimos aqui a necessidade de repensar tais postulados a
partir da constatação de que vivemos um retorno ao misticismo, à busca por
experiências mágicas, o que tem revelado que a religião, como já disse o clássico
Émile Durkheim, é algo de permanente nas sociedades.
Palavras-chave: Religião; Atitude científica; Alienação.
Começamos este texto tomando emprestadas as palavras de Latour (2004)
por ocasião de uma conferência ministrada na Universidade da Califórnia, em Santa
Bárbara, no ano de 2001:
Não tenho nenhuma autoridade para falar a vocês sobre religião e
experiência, já que não sou pregador, nem teólogo, nem filósofo da
religião — nem mesmo uma pessoa particularmente piedosa.
Felizmente, religião pode não ter a ver com autoridade e força, mas
com experimentação, hesitação e fraqueza. Se é assim, então devo
1 O texto que segue resulta de algumas reflexões empreendidas durante o curso Religião e
Religiosidade, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, conduzido pelo Professor Orivaldo Lopes Júnior, em 2007.
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começar colocando-me numa posição da mais extrema fraqueza.
(2004, p.02).
Prosseguimos emendando que nossas limitações, no que diz respeito a um
entendimento aprofundado no assunto, não são capazes de travar totalmente a
capacidade de se manifestar interesse pelo tema religião. Assim, expomos, neste
texto, mesmo que de forma incipiente, alguns entendimentos acerca do que Alves
(1999) convencionou chamar ―linguagem do amor‖ ao discurso religioso e Latour
(2004) de ―fala amorosa‖. Tais entendimentos correm em paralelo com a
apresentação de como se compreendeu o discurso religioso, enquanto ilusão e
neurose.
Mas, antes disso, convém frisar que, como uma ―linguagem do amor‖, com
sua sustentação nos desejos e anseios humanos, na esperança, nas utopias e nos
ideais, esta linguagem tem se mostrado um discurso resistente. Talvez porque,
como diria Durkheim, este discurso é algo de permanente nas sociedades. Contudo,
a modernidade, aqui compreendida no seu sentido mais temporal que conceitual,
por muitas vezes, pelo Marxismo e pela Psicanálise, para citar apenas estes dois
campos de conhecimento, analisados por Alves, sentenciou a religião à morte. Mas
a morte não ocorreu. E como o referido autor aponta na sua obra O suspiro dos
Oprimidos (1999), o contrário se sucedeu: nos últimos anos, enxergamos um retorno
ao misticismo, à busca por experiências mágicas, à busca por essa linguagem do
amor.
O morto enterrado vivo
O anúncio da morte da religião, conforme Alves, assentava-se numa
determinada atitude científica supostamente formulada sob uma filosofia herdeira do
Iluminismo, a qual pretendia eliminar da sociedade qualquer vestígio de
obscurantismo, que seria representado pela consciência falaciosa e ilusória da
religião. Por trás desta atitude ―científica‖ há uma postura epistemológica, no que diz
respeito ao conhecimento científico, orientada pelos postulados abaixo:
1. O ideal de objetividade: o pensamento deveria ser um reflexo dos
dados sensíveis;
2. O ideal de objetividade corresponderia a um padrão de normalidade
psicossocial em termos de ajustamento;
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3. Os processos histórico-sociais seriam independentes do homem. Tais
processos determinariam a consciência. A estrutura material definiria a
consciência;
4. Imaginação não faz história.
Com base nos princípios acima, a religião foi sempre, a priori, definida pelo
Marxismo e pela Psicanálise, como falsa consciência, como patologia, como
enfermidade. O pensamento científico, objetivo, haveria de suplantar a imaginação.
Mas, como dito acima, a morte não ocorreu, o advento da ―nova terra‖ não ocorreu,
ou poderíamos dizer, ainda, as promessas da modernidade fracassaram. Ressurgiu,
então, a esperança em um novo céu. As esperanças depositadas por Marx na
superação da alienação, através da resolução dos problemas sociais gerados por
uma estrutura socioeconômica opressora, fracassaram. Marx depositou a fé num
futuro promissor. Noutra extremidade, a Bíblia, uma portadora do discurso religioso,
ao contrário, não previa (e não prevê) nenhuma possibilidade de ocorrer um evento
que possa redimir o homem aqui na terra, no plano histórico. Esta foi a esperança
marxista. Marx acreditava que quando fossem resolvidos os problemas materiais
que provocavam a alienação econômica e, conseqüentemente, a alienação da
consciência seria um problema resolvido.
O discurso religioso segue, então, destinado, ao que parece, muito mais a
transformar-se que a desaparecer. De dentro deste discurso resistente, emerge a
idéia de que os valores utópicos não são absurdos, mas sim a ―situação humana de
onde eles emergem‖ (ALVES, 1999, p.100).
O discurso religioso da alienação religiosa
Considerando aqui o conceito de alienação, para analisarmos de que forma a
religião aparece na oratória da modernidade, temos ainda a conotação
historicamente negativa atribuída à religião. Ela sempre é compreendida como falsa
consciência, neurose e ideologia (postura do marxismo e da psicanálise). Seria,
então, tarefa da ciência, eliminar essa consciência religiosa. A consciência científica
seria superior, e teria a capacidade de superar essa fase de infantilismo psíquico
representada pela religião. Alves, tentando resolver essa oposição entre ciência e
religião, afirma que o discurso científico é contemplativo – na medida em que requer
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dados observáveis. O conhecimento científico visa a ver e afirmar as leis ocultas do
que existe. A conseqüência disto foi que: ―a expansão das ciências provocou a
limitação dos discursos expressivos. Esta é a razão porque (...) a religião estava
condenada à extinção‖ (1999, p.157).
Contrariamente, o discurso religioso seria ação, que requer desejo, utopia,
ideal, esperança: ―o discurso utópico expressa sofrimentos, desejos, aspirações e
saudades. A ação visa a criar diferentes estruturas que ainda não existem‖ (p.157).
Contudo, além da conotação negativa, a consciência religiosa foi ainda acusada de
ser conservadora, enquanto a consciência científica seria crítica. A alienação
religiosa, neste caso, seria um obstáculo à superação da alienação real. A religião é,
assim, relegada ao campo dos epifenômenos.
Para Marx, a religião seria uma forma de ilusão que serviria como justificativa
ideológica e como amparo a um sistema de relações socioeconômico repressor e
desigual. A religião seria uma consciência invertida do mundo, o que a tornaria falsa
e ilusória. Imerso nela, o homem se encontra aprisionado, preso a correntes
(sociais) que o tornaria escravo. O discurso religioso cumpriria a função de encobrir
as correntes com flores, fazendo com que o homem esqueça as dores, não
enxergue as correntes e faça da doença sua própria cura. A religião, ópio do povo,
nesse sentido, reconciliaria o homem com o mundo que o torna oprimido. A crítica
deveria arrancar tais flores. E nem mesmo a crítica, por si só, transformaria
magicamente o mundo: ―A questão não é reinterpretar o mundo, mas transformá-lo‖
(MARX, 1964, apud ALVES, 1999, P.57).
De dentro da Psicanálise, uma conclusão semelhante, e igualmente negativa:
religião é ilusão, a mais pretensiosa delas (semelhança com o marxismo, embora a
compreensão se organize por outras vias): ―Ela é uma criação fantástica de uma
estrutura psicológica desarranjada‖ (1999, p.77). Para Freud, assim como para Marx,
a religião estava condenada à extinção, dada a progressiva substituição pelo
pensamento objetivo, científico.
Aqui a idéia de imaginação, que é uma faculdade inerente ao homem, posto
que os seres humanos têm a faculdade de imaginar, de produzir imagens, adquire
conotação negativa. Os homens são seres imaginativos e as imagens produzidas
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por eles estabelecem uma relação com o real e derivam de atos coletivos. Conforme
Castoriadis (2000, p.142), ―tudo o que se nos apresenta no mundo social-histórico,
está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico […]. Os atos reais, individuais
ou coletivos – trabalho, consumo, guerra, o amor, a natalidade‖ – resultam desta
faculdade humana. Na medida em que a imaginação é transformada simplesmente
numa fonte de ilusões e neurose, tudo que por ela se manifesta acaba sendo
compreendido como patologia emocional. Até mesmo a magia e a arte – fontes de
exteriorização dos desejos – passam a ser vistas como neuroses, expressões de
enfermidades.
Ainda com relação ao conceito de alienação, que é tema central da Filosofia
ocidental, Alves apresenta-nos ainda três sentidos distintos. O primeiro deles
localiza-se no discurso político-social. Ele é considerado dentro deste discurso como
―ato de abandono da vontade individual em favor de uma vontade coletiva instaurada
por meio de um contrato‖ (p.31); a isto se denominaria alienação. Neste caso, a
alienação representa uma ―realidade objetiva‖. Uma espécie de contrato social é
imposta pelos mais fortes sobre os fracos, o que faz com que toda ordem social
pressuponha certo grau de alienação. Esta é a análise marxista que indica a
alienação na sociedade capitalista. Resta a possibilidade de essa alienação ser
abolida através da inversão das forças.
O segundo sentido reside no discurso epistemológico: ―Alienado é o indivíduo
cujas idéias não constituem conhecimento efetivo do real, mas são antes
expressões de estados emocionais individuais e coletivos‖ (1999, p.33). Aqui a
Ciência salvadora entra em cena: sua tarefa é eliminar a alienação. A ideologia deve
ceder lugar ao conhecimento científico. Por fim, temos os discursos psicológicos,
existencialistas e teológicos. Neste caso, a alienação equivale ao caráter
―ameaçador da realidade externa, tanto de indivíduos quanto de estruturas‖ (1999,
p.33). Refere-se ao ―esfacelamento e a fragmentação da experiência humana,
dividida entre uma identidade reprimida e uma funcionalidade imposta.‖ (1999, p.33).
Tal conceito é sempre utilizado para qualificar os fenômenos de ordem
religiosa. A religião pareceria como expressão de uma alienação, como o ―suspiro
dos oprimidos‖. Para Alves, se este suspiro representa, em última instância, um
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confronto com o real, há nesta alienação ―o pressuposto da crítica e da
transformação‖ (p.34).
Alves chama atenção para o conceito feuerbachiano de alienação (bastante
diferente do que aparece em Marx), pois, ―as alienações são expressivas. Surgem
de condições reais de vida. São, portanto, fatos sociais como outros fatos sociais.‖
(p.48). De modo um tanto irônico e bastante ousado, o autor propõe:
Eu sugeriria que as alienações venham a existir quando os projetos
de realização de desejo, por parte do sujeito, defrontam com os
obstáculos e as proibições do real. Sob tais condições de repressão,
a única forma de sobrevivência que lhes resta é a transformação do
projeto de transformação e expressão num discurso simbólico em
que os desejos assumem a forma de entidades. (1999, p.48).
Citando Malinowski, Alves afirma que a magia está diretamente relacionada
com a cristalização simbólica do desejo e ainda com a manifestação da esperança.
A linguagem religiosa, mágica, seria a linguagem do amor, expressa pelo homem
comum. Por isto, é esta a linguagem que encontra eco nas aspirações do homem
oprimido. Afinal, onde seria possível encontrar o projeto de uma ordem nova a ser
construída, senão nas aspirações, mesmo que utópicas, do homem oprimido, no
sentido de superação das condições objetivas da vida?
Oposições entre a ciência e a linguagem do amor (do desejo, da esperança e
da utopia)
Alves utiliza a ―linguagem do amor‖ como metáfora para se referir à idéia do
desejo (pulsão por vida) e esperança contida na linguagem religiosa.
Ele se refere, várias vezes, a uma citação de Feuerbach:
A religião é o solene desvelar do homem, a revelação dos seus
pensamentos íntimos, a confissão pública dos seus segredos de
amor. Como forem os pensamentos e as disposições do homem
assim será o seu Deus; quanto valor tiver um homem, exatamente
isto e não mais, será o valor de seu Deus. (1999, p.37)
A consciência de Deus seria a própria autoconsciência e o conhecimento de
Deus que representaria conseqüentemente autoconhecimento. Deus seria a
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manifestação da máxima subjetividade do homem, abstraída de si mesmo: ―Este é o
mistério da religião: o homem projeta o seu ser na objetividade e então se
transforma a si mesmo num objeto em face desta imagem de si mesmo, assim
convertida― (ALVES, 1999, p.43).
Esta referência a Feuerbach parece ser de fundamental importância para
algumas idéias expressas pelo autor, com relação a uma desnecessária definição do
que seria Deus (posto que aprisionaria a idéia de Deus a um conceito). Em
entrevista concedida a Leandro Cardoso e Venceslau Borlina, intitulada Metáforas
da fé, Rubem Alves afirma, quando perguntado sobre quem é Deus: ―Não sei‖.
Todas as coisas do universo na realidade seriam fragmentos dele. Produzir uma
definição seria, então, aprisioná-lo numa gaiola de conceitos. Um Deus não poderia
ser pensado. Ou ainda: ―Tudo que o homem fala acerca de Deus, através da
linguagem religiosa, nada mais é que uma confissão de suas aspirações e projetos.
Deus é o meu ser em plena realização‖ (1999, p.46).
Tal posicionamento nos leva a refletir sobre uma assertiva de Latour (2004):
levar a religião a sério não significa produzir-lhe uma explicação social. Denúncias e
desmistificações não interessam e mesmo devem passar distantes da religião. Por
isso, Latour se propõe a pôr-se em sintonia com os diversos tipos de discursos
―geradores de verdades‖, que seriam condições de felicidade.
O discurso religioso seria aquele capaz de produzir tais estados e também
novos estados. Tal como uma fala de amor é capaz de aproximar o sujeito amado
para si, também a linguagem religiosa seria capaz de produzir uma aproximação, e
também um afastamento, o que se daria conforme a ressonância desta linguagem
para aquele que a ouve. Com uma fala de amor, os amantes poderiam estar
distantes; após a fala, poderiam mudar de lugar e podem chegar mais perto.
Latour usa este modelo de interpelação do amor para poder afirmar que a fala
religiosa, tal como a fala amorosa, tenta garantir que até os mais alheios e distantes
observadores podem novamente atentar-se. Seu modelo de análise serve-lhe para
apontar a existência do que ele chamou de uma comédia de erros contida na
tentativa de se opor religião à ciência. Este é o propósito de suas reflexões
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apresentadas numa conferência por ele realizada, publicada, na íntegra, pela
Revista de Antropologia Mana2. Para Latour (2004),
a religião, nessa tradição, tudo faz para redirecionar constantemente
a atenção, obstando sistematicamente à vontade de se afastar, de
ignorar, de se ficar indiferente ou blasé, entediado. A ciência,
inversamente, nada tem a ver com o visível, o direto, o imediato, o
tangível, o mundo vivido do senso comum e dos "fatos" robustos e
obstinados. Bem ao contrário, como diversas vezes mostrei, ela
constrói caminhos extraordinariamente longos, complicados,
mediados, indiretos e sofisticados, através de camadas
concatenadas de instrumentos, cálculos e modelos, para ter acesso
a mundos — como William James, insisto no plural — que são
invisíveis por serem demasiadamente pequenos, distantes,
poderosos, grandes, estranhos, surpreendentes, contra-intuitivos.
A religião, de tal forma, não tentaria nunca designar algo, mas falar a partir do
novo estado que ela produz por sua maneira de dizer, seus modos de discurso.
Referindo-se a uma tradicional fábula da corrida entre a lebre científica e a tartaruga
religiosa, Latour aponta que duas coisas são inteiramente irreais: a lebre e a
tartaruga. Isto porque a religião nem mesmo tenta correr para conhecer o além; a
religião
procura, sim, quebrar todos os hábitos de pensamento que dirigem
nossa atenção para o longínquo, o ausente, o sobremundo, a fim de
conduzi-la de volta ao encarnado, à presença renovada daquilo que
fora incompreendido e distorcido, mortal, daquilo do qual se diz ser
'o que foi, o que é, o que será', em direção àquelas palavras que
trazem a salvação. A ciência nada apreende de modo direto e
preciso; ela adquire lentamente sua precisão, sua validade, sua
condição de verdade, no longo, arriscado e doloroso desvio que
passa pelas mediações de experimentos — não de experiências —,
de laboratórios — não o senso comum —, de teorias — não a
visibilidade; e se ela é capaz de obter a verdade, é ao preço de
transformações espantosas que se dão na passagem de um meio
ao seguinte. (2004, p.09)
A oposição entre religião e ciência tradicionalmente definia a ciência como
apreensão do visível, enquanto a religião seria o campo do mistério, do distante, do
vago. Tal oposição produziu caricaturas: ―a crença é uma caricatura da religião,
exatamente como o conhecimento é uma caricatura da ciência‖ (204, p. 10).
2 Mana v.10 n.2 Rio de Janeiro out. 2004.
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Longe desse discurso que opôs ciência à religião, analisado por Latour (2004)
e anteriormente por Alves (1999), nos apoiamos nas reflexões de Latour, que
considera que ciência e religião são cadeias mediadoras de sentido que vão a
direções distintas. O discurso religioso seria, enquanto linguagem do amor, não no
sentido do Eros, mas da pulsão por vida, a ação. Esta seria constituída pelos
desejos, anseios, sonhos, utopias. Seria o campo em que se manifestam projetos de
esperança. Exatamente por isso, as reflexões de Alves (1999) nos levam a pensar
que talvez estivessem contidos nesta linguagem potenciais projetos revolucionários.
10
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. O suspiro dos oprimidos. São Paulo: Paulus, 1999. (Coleção
tempo de libertação).
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição imaginária da sociedade. 5 ed. (Tradução
de Guy Reynaud). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
LATOUR, Bruno. "Não congelarás a imagem", ou: como não desentender o
debate ciência-religião. Mana v.10 n.2 Rio de Janeiro out. 2004.

Freud e a religião - a neurose obsessiva universal da humanidade





Introdução

Vou expor aqui, junto com algumas considerações filosóficas sobre a existência de Deus, um pequeno resumo da obra "O futuro de uma ilusão", de Sigmund Freud, na qual ele se propõe a explicar, psicanaliticamente, a origem da religião.

Em primeiro lugar, gostaria de ressaltar que a origem "psicológica" da religião não diz nada sobre a existência (ou não existência) de Deus. Não é muito incomum encontrar pessoas citando essa teoria de Freud para "provar" ou "demonstrar" que Deus não existe, o que é um grosseiro erro de lógica.

Philip L. Quinn, em um artigo contido no livro "Philosophy of religion" (William Lane Craig), critica Alvin Plantinga por sua injusta e depreciativa avaliação da teoria de Freud sobre a origem da religião. Quinn afirma que a teoria exposta por Freud pode ser o mecanismo do qual Deus nos dotou para que pudéssemos reconhecer a Sua existência e buscar com Ele um relacionamento, e deixa o campo aberto para que futuras pesquisas sejam realizadas em cima dessa hipótese.

No geral, podemos ver essa teoria de Freud, se verdadeira, da seguinte perspectiva: se Deus não existe, então a teoria de Freud é uma explicação muito plausível de como se originou a crença religiosa e a idéia de Deus. Por outro lado, se Deus existe, esta teoria pode esclarecer o mecanismo do qual Ele nos dotou para pudéssemos reconhecer a sua existência e sentir a necessidade de estabelecer com Ele um relacionamento. (Apesar de que acho que teríamos aqui um problema com os calvinistas, mas eu mesmo não sou calvinista.)

Dito isso, vamos resumir alguns pontos importantes dessa magnífica obra de Freud, cuja leitura eu recomendo.


A origem da religião

Para Freud, a religião surgiu de uma necessidade de defesa contra as forças da natureza, como todas as outras realizações da civilização. No indivíduo, ela surge do desamparo. Esse desamparo é inicialmente o desamparo da criança, e posteriormente, o desamparo do adulto que a continua.

Vejamos a vida mental da criança: quando bebê, o indivíduo passa pela fase de escolha do objeto do tipo anaclítico. A sua libido é direcionada pelas necessidades narcísicas a objetos que asseguram a satisfação de suas necessidades. A mãe, que satisfaz a fome da criança, torna-se seu primeiro objeto amoroso e também sua primeira proteção contra os perigos do mundo externo - a primeira proteção contra a ansiedade.

Na função de proteção, a mãe é substituída posteriormente pelo pai mais forte, que retém essa posição pelo resto da infância. Mas a relação com o pai é uma relação ambivalente: o próprio pai é também um perigo para a criança, talvez por causa de sua relação com a mãe. Assim, a criança teme e admira o pai.

Quando o indivíduo cresce e descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra os poderes superiores (da morte, da natureza, etc), empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme e, não obstante, confia sua própria proteção.

Sendo assim, Freud afirma que "é a defesa contra o desamparo infantil que empresta suas feições características à reação do adulto ao desamparo que ele tem de reconhecer - reação que é, exatamente, a formação da religião."

Mais tarde ele diz: "Assim, a religião seria a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o pai."

Freud afirma, porém, que as religiões estão cheias das mais gritantes contradições e discordâncias com a realidade que conhecemos. Então, ele se pergunta: Sendo as religiões contraditórias, de onde vem a sua força? Onde reside a força interior das doutrinas religiosas, independente, como são, do reconhecimento da razão?

A isso ele responde dizendo que as ideías religiosas são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força desses desejos.

Uma ilusão, porém, é diferente de um erro. As ilusões não precisam ser necessariamente falsas, ou seja, irrealizáveis ou em contradição com a realidade. Ele cita como exemplo uma mulher que tem a ilusão de que um princípe encantado virá buscá-la, casar-se com ela e lhe dar filhos. Isso em si não está em contradição com a realidade, e nem é irrealizável, pois essas coisas já aconteceram algumas vezes. Então, ele afirma que o que é característico das ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos.

As idéias religiosas são ilusões porque, segundo Freud, seria realmente muito bom se existisse um Deus benevolente, que cuida de nós e que nos dá uma vida após a morte. Um Deus que fará justiça a todas as injustiças que há neste mundo, e que nos recompensará por todas as privações a que somos submetidos por causa da civilização. Na verdade, nós queremos acreditar que isso seja verdade. Essas crenças são ilusões pois derivam de desejos humanos, do nosso desejo de que as coisas realmente sejam assim.

Mas assim como uma criança não pode completar com sucesso o seu desenvolvimento para o estágio civilizado sem passar por uma neurose, a humanidade, de forma análoga, tombou em seu desenvolvimento através das eras.

Isso é, a neurose infantil é uma parte do desenvolvimento de qualquer indivíduo, assim como a neurose da humanidade. E assim como o indivíduo supera sua neurose infantil, a civilização irá superar a sua neurose, e "o afastamento da religião está fadado a ocorrer com a fatal inevitabilidade de um processo de crescimento."


Considerações finais

É interessante notar que a psicanálise e, mais especificamente, o Complexo de Édipo, que têm sido utilizados durante décadas como ferramentas para explicar a crença religiosa, podem ser utilizados também para explicar o ateísmo.

Freud afirma: "O crente está ligado aos ensinamentos da religião por certos vínculos afetivos. Contudo, indubitavelmente existem inumeráveis outras pessoas que não são crentes, no mesmo sentido." Isso é, a causa tanto da crença quanto da descrença são primariamente emocionais, e só secundariamente racionais.

Veja o artigo "The psychology of atheism", de Paul C. Vitz, no qual ele utiliza o conceito do Complexo de Édipo para explicar o ateísmo. (http://www.leaderu.com/truth/1truth12.html)

Freud quis deixar claro que não é psicanálise que chega a essas conclusões, mas que ela é apenas uma ferramenta utilizada que proporcionou a um pensador chegar a essas conclusões. Em suas palavras: "Se a aplicação do método psicanalítico torna possível encontrar um novo argumento contra as verdades da religião, tant pis para a religião, mas os defensores desta, com o mesmo direito, poderão fazer uso da psicanálise para dar valor integral à significação emocional das doutrinas religiosas."

Neurose obsessiva e religião: uma analogia possível

Neurose obsessiva e religião: uma analogia possível

Neste texto pretendo caracterizar a neurose obsessiva e sua possível relação com a religião, utilizando a teoria freudiana. Na neurose, o conflito básico existente é entre o eu e o isso, enquanto na psicose, é entre o eu e a realidade externa (Freud, 1924). O eu é a porção consciente, sofrendo pressões vindas do isso e do supereu, que pertencem ao inconsciente. Esse é o funcionamento básico de todas as pessoas. Porém, pode haver um desequilíbrio nessas forças, originando uma estrutura neurótica patológica ou psicótica. No funcionamento neurótico, existe a predominância da realidade externa (Freud 1924). O eu vive em constante conflito com o isso, em função das pulsões, principalmente a sexual. As neuroses são divididas em: neuroses narcísicas e neuroses transferenciais. As primeiras correspondem a um conflito entre o eu e o supereu, já as segundas provêm de um conflito entre o eu e o isso. As neuroses transferenciais são: fobia, histeria e neurose obsessiva. O sintoma, para o eu do neurótico obsessivo, tem um alto valor. Isso não em função de possíveis vantagens, mas porque traz uma satisfação narcísica única. A formação do sintoma favorece a ilusão de que os neuróticos seriam pessoas mais puras do que as outras, aumentando seu amor-próprio (Freud, 1927). Esse é o ganho secundário dessa doença. Na neurose obsessiva, durante a fase fálica, as pulsões sexuais são consideradas demasiadamente perigosas. Portanto, para fugir da tentação da masturbação, o eu recalca essa pulsão. Os atos compulsivos, que geralmente aparecem na fase da latência, funcionam como uma proteção contra isso. Além do recalcamento, ocorre uma regressão da fase fálica para a fase sádico-anal. Durante a latência, em função da regressão da libido, o supereu torna-se extremamente severo, e o eu, para obedecê-lo, desenvolve um alto senso de limpeza e inflexibilidade. A masturbação que é reprimida leva a uma aproximação gradual com a satisfação com atos obsessivos (Freud, 1927). A pulsão erótica, em função do recalque e da regressão, transforma-se em moções agressivas. Portanto, o que vem à consciência é um substituto diferente, deformado. A energia poupada na percepção da representação aparece através da pressão do supereu no eu. O supereu age como se a pulsão não tivesse sido recalcada. Então, o eu, por um lado tem um sentimento de culpa e de responsabilidade; mas, por outro, não sabe o que teria feito de errado. Em relação ao comportamento do neurótico obsessivo, isso é bastante específico, sendo, em muitos casos, considerado apenas como “manias”. A seguir um trecho de “Atos Obsessivos e Práticas Religiosas”, de Freud (1907), o qual explica de forma mais detalhada: Os cerimoniais neuróticos consistem em pequenas alterações em certos atos cotidianos, em pequenos acréscimos, restrições ou arranjos que devem ser sempre realizados numa mesma ordem, ou com variações regulares. Essas atividades, meras formalidades na aparência, afiguram-se destituídas de qualquer sentido. O próprio paciente não as julga diversamente, mas é incapaz de renunciar a elas, pois a qualquer afastamento do cerimonial manifesta-se uma intolerável ansiedade, que o obriga a retificar sua omissão. Tão triviais quanto os próprios atos cerimoniais são as ocasiões e as atividades ornamentadas, complicadas e sempre prolongadas pelo cerimonial - por exemplo, vestir e despir-se, o ato de deitar-se ou de satisfazer as necessidades fisiológicas. O cerimonial é sempre executado como se tivesse de obedecer a certas leis tácitas. Esses cerimoniais neuróticos podem ser comparados com ritos religiosos, havendo diversas semelhanças. Em ambos os casos, se o sujeito os negligencia, é tomado por um sentimento de culpa; qualquer interrupção é proibida e são realizados com muito detalhismo. Entretanto, também existem diferenças. Os rituais religiosos são sociais e iguais para um grupo de pessoas, enquanto os atos compulsivos são individuais e, na medida do possível, escondidos. Além disso, os cerimoniais religiosos tem um simbolismo por trás, enquanto os comportamentos do neurótico não apresentam, nem mesmo para ele, um significado consciente. Porém, os atos do neurótico possuem sim um sentido, só conhecido pelo inconsciente. Eles existem e devem ser seguidos em função de pulsões provenientes do isso (Freud, 1907). Na neurose obsessiva são utilizadas duas técnicas: o tornar não acontecido e o isolar. O tornar não acontecido está principalmente nos sintomas de dois tempos, que consistem em, com um segundo ato, suprimir o primeiro, como que por magia. Isso pode ser comparado com os pensamentos e atos dos neuróticos. O doente tem um determinado pensamento negativo (obsessão) e, com uma ação (compulsão), é como se aquele pensamento não tivesse acontecido. A outra técnica, o isolamento, consiste em fazer uma pausa motora após um acontecimento desagradável ou após algum ato que seja significativo para a neurose (Freud, 1927). Poderia se pensar esses dois comportamentos como análogos a certos costumes do catolicismo. Quando se confessa os pecados, ou seja, aquilo que nos provoca culpa, é talvez quase como tornar o ato não acontecido, já que se busca um alívio e o perdão de Deus. Ou será de nós mesmos? Será que não queremos ser “perdoados” por nosso próprio supereu? Já o isolamento pode ser comparado a quando se pensa algo negativo e se faz o sinal da cruz. Como se esse sinal diminuísse o poder daquele pensamento ou fato. São muitas as semelhanças entre a neurose obsessiva e a religião, me parecendo que o que mais diferencia a neurose da religião é o caráter coletivo que esta última tem, sendo assim completamente aceita e até estimulada socialmente. Então, não seria a religião (independente de suas variações), de certa forma, uma neurose obsessiva coletiva?
Referências:
FREUD, S. (1907) Atos obsessivos e práticas religiosas. Em: Obras completas.Imago: Rio de Janeiro, 1976.
_________(1924) Neurose e Psicose. Em: Obras completas. Imago: Rio de Janeiro, 1976.
_________(1924) Perda da Realidade na Neurose e na Psicose. Em: Obras completas. Imago: Rio de Janeiro, 1976.
_________(1927). Inibição, Sintoma e Angústia. Obras completas, Ed. Standard Brasileira. Imago: Rio de Janeiro, 1976.
por Franciane Souza Schmitz
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A NEUROSE RELIGIOSA EM NIETZSCHE

A NEUROSE RELIGIOSA EM NIETZSCHE: a psicologia da religião presente em Além do Bem e do Mal 


“Nada é mais terrível e covarde do que o homem que foge de seu próprio demônio” (O Coração das Trevas – Joseph Conrad).


No capítulo III de Além do Bem e do Mal, concernente a natureza religiosa, Nietzsche elabora uma crítica histórica sobre o despertar religioso nos homens de toda espécie, de todos os tempos em face de seu olho de águia e de seu faro psicofisiológico, liberto das amarras e “avaliações de fachada” de toda tradição filosófica dogmática desde Platão.
Nietzsche percebeu no despertar religioso do homem três fórmulas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual, cujo sacrifício consiste num ritual de catarse, ascetismo e limpeza de todos os sentimentos, impulsos e instintos que o “homine religiosi” imagina como “terreno” ou mundano, de algo que está no mundo e na representação de sua vontade, como se a sua vontade fosse um teatro onde entidades diversas atuassem como duendes tentadores. Esse sacrifício neurótico pode decorrer basicamente tanto de uma devoção, de uma prova de fé a fim de evidenciar o seu afastamento e o seu desprezo pelo mundo, como também de um arrependimento ou de uma falta cometida pelas ações intermediárias de tais duendes personificados. Por conta disso, o homem religioso procura redimir-se por essas provações de autocrueldade sob o sol de uma verdade a priori cuja influenza sedimentou-se em seu frágil espírito. Em função dessa neurose, ele se sente arrebatado por uma “volúpia” sobrenatural, uma espécie de alumbramento, arroubos d’alma que imediatamente se transformam em “penitência e negação da vontade e do mundo”, que podem ser interpretadas por uma “epilepsia mascarada” identificada como uma crise convulsiva de entidades psicológicas que o “doente” religioso imagina como potências estranhas independentes de sua estrutura fisiológica. Aqui, potências estranhas são afirmadas pela negação de outras potências estranhas fundadas respectivamente nas oposições de valor bem e mal – num sacrificante processo de racionalização. Ora, essa alma religiosa, esse pato-lógico amesquinhou-se na caricatura de uma “moral como atitude doentia”, no dizer de Nietzsche. O homem religioso, especialmente o cristão tornou-se a hóstia da “decadênce” se acovardando diante da natureza e da própria vida. Ele por si próprioo sendo seu bode expiatório.
Em torno de tal neurose, fundamentam-se inusitadamente a insensatez e a superstição somadas a um temor através do “pessimismo incurável” presente na filosofia de Schop-penhauer. Esse pessimismo incurável é uma aberração abortada de um idealismo enfermo, de um dedo em riste contra as gradações multicores do mundo e da natureza, vistos como um câncer. Diante deste temor, o homem sentiu-se obrigado a fazer uma interpretação religiosa do existir de forma pessimista. Esse artista superficial e medíocre, imerso num profundo desgosto, falsifica a vida no que ela tem de belo e vital enxergando mal em tudo; calunia o mundo lançando todo tipo de imprecação com seu dedo acusador - dele se afasta e se distancia numa “jeremiada” de latidos covardes, anulando a sua natureza vital que reflete a sua própria vida, fechando-se na igreja de sua alma vacilante à espera de um Messias de óculos para a sua redenção.
Portanto, é a partir da negação da vontade e do mundo, fruto de sua neurose autoflagelante, que o homem religioso imagina buscar a sua cura, sacrificando e reprimindo os seus instintos vitais, a sua própria “natureza” que poderia levá-lo acima do bem e do mal e suportasse todo tipo de sofrimento com altivez e demonstração de superioridade sem necessitar de um fantasma divinizado. Mas, sem se aperceber destes predicados psico-fisiológicos e mergulhando num “êxtase” cego ante a imagem distorcida da cruz, ele se imagina agraciado com as condecorações da “santidade”, recebida graças a uma categoria coisificada que os racionalistas deram nome de fé, que nada mais é do que um simples “sentimento de potência” produzido pelo homem no homem para o próprio homem.
Logo, Nietzsche percebeu que o fenômeno do santo foi fabulosamente interessante para toda a cadeia de gerações por causa da sua “aparência de milagre, de imediata sucessão de opostos de estados d’alma julgados moralmente opostos: aqui parecia palpável que um ‘homem mau’, se tornasse de repente um ‘santo’, um homem bom” (Aforismo 47, A Natureza Religiosa em Além do Bem e do Mal).
De fato, todas essas oposições morais de valores partiram da preconceituosa, da medíocre interpretação religiosa da existência, refletida no culto apaixonado e excessivo das “formas puras” de toda tradição filosófica-cristã sob o hocus pocus dominante da moral dogmática. Certamente, “uma estupidez até a santidade”, com a finalidade única de domar e impor regras para um rio de correntezas cheias de vicissitudes e turvações in natura que é o “animal homem”.
        Apesar de seu fenômeno neurótico, Nietzsche preconiza a religião como um meio de educação e cultivo de acordo com a tipologia do caráter humano. Com relação aos fortes, indivíduos independentes, espíritos livres predestinados ao comando, a religião servirá como mais um meio de vencer resistências, insubordinações em massa para a manutenção e prevenção do domínio desses espíritos livres. Para tanto, será utilizada como um laço que une dominadores e súditos – mas, em favor daqueles, a religião pode-se constituir numa espécie de detector psicológico de um modo que possa desvelar os complôs ocultos e intencionais daqueles súditos que pretenderem se desgarrar das correntes da obediência. Além disso, ela pode ser utilizada como uma pomba da paz ou justiça referente ao caos social, à sordidez da política e a todo tipo de governo ditatorial e corrupto; ela pode ainda ser usada como escada de orientação e oportunidade por aqueles dominadores que almejam dominar algum dia, passando de dominados a dominadores. Como se percebe, a religião como um meio, entre tantos meios torna-se uma expressão cultural, pois deixa de ter um caráter universalista e prepotente para atender apenas as vontades e as necessidades conforme a realidade e a tipologia peculiar de cada indivíduo, de cada classe, grupo ou povo.
Para os homens ordinários, esses “animais de rebanho”, a religião servirá como meio de proporcionar a mansidão do espírito e a compaixão entre seus iguais, compartilhada na vida cotidiana, pobre e monótona. A função da religião para o animal de rebanho é como água de pântano que mantém a clorofila verde desses pobres seres vegetais que se limitam apenas aos seus afazeres subservientes. Assim, a religião é um alucinógeno, um paraíso artificial que alivia o sofrimento do rebanho, mantendo o seu contentamento com a realidade prática e dolorosa. No dizer de Marx: “a religião é o ópio do povo”, dessa massa informe e inculta atolada na lama de sua fraqueza e de sua apatia. É em suma a conservação do instinto de rebanho. Até aqui, Nietzsche reconhece no budismo e principalmente no cristianismo o supra-sumo dos escravos, algo “tão digno de respeito como a sua arte de ensinar mesmo os mais humildes a se colocar, pela devoção, numa ilusória ordem superior de coisas, mantendo assim o contentamento com a ordem real, no interior da qual vivem tão duramente – dureza essa que é tão necessária” (Aforismo 61, A Natureza Religiosa em Além do Bem e do Mal).
O problema grave e inquietante começa quando as religiões deixam de ser meios de educação e cultivo e passam a atuar com uma autonomia presunçosa como fim último do homem e do mundo. Elas acreditam piamente que carregam a chave da verdade, que se acham no direito de tomar a vida e as dores dos homens, dando uma interpretação generalizada em função das suas tábuas de valores universais, sem respeitar épocas, culturas, indivíduos e povos diversos como se todos fossem iguais. Sendo elas mesmas os fins, o porta-voz da única “verdade absoluta”, essas religiões, principalmente o “cristianismo”, mantiveram “o tipo homem num degrau inferior”. O pior é que elas não só mantiveram o que deveria perecer, os tipos malogrados, enfermos, oprimidos e fracos, mas também destruíram e degeneraram aquele “mais elevado tipo de ser humano que um homem representa”, cujo sofrer foi superlativo e que, sem a muleta do cristianismo, saberia sofrer e superar suas mazelas. Todavia, o efeito terrível dessa muleta absurda na economia geral da humanidade mostrou sua forma destrutiva para os homens superiores.
Foi dessa forma que os “homens espirituais”, os sacerdotes do cristianismo trabalharam de fato na degradação da raça européia, invertendo todos os valores, convertendo todos os sentimentos e lançando o ódio sob a terra, tachando-a de “vale de lágrimas”. Esses cristãos falsificaram a imagem da vida e fizeram com que o homem europeu tirasse os olhos da realidade, da sua própria natureza para fixá-los numa “realidade superior” que estava nele mesmo. O cristianismo enfraqueceu o homem, e tornou-o um fraco, um aleijão em relação a uma entidade superior na qual se baseia todo moral. Como diz Nietzsche, o homem europeu foi transformado num “sublime aborto”, cuja referência maior dessa atrofia é Pascal e apresento como uma de suas vítimas o poeta Charles Baudelaire. Boa parte do pensamento nietzschiano é arremessado sobre essa “funesta presunção” do cristianismo europeu. De fato, os homens cristãos europeus não sacaram que a lei maior e primordial da natureza estava nela mesma, no seu devir; e que o seu processo seletivo era inevitável para todas as espécies e o homem não poderia estar fora e além desse processo. Com suas tábuas universais, “com sua igualdade perante Deus”, esses espíritos “puros”, esses filisteus da “verdade” guiaram a vida e os caminhos não só da Europa, mas também da América transformando-os num “santo” e medíocre estábulo para os animais do rebanho destilarem o seu “livre arbítrio” enlatado, a exemplo de Königsberg e Port Royal.
Certamente, Nietzsche desferiu com “toda a tensão do seu arco” a sua filosofia crítica contra essa soberania absurda do cristianismo que se tornou um fim e a medida de todos os seres e todas as coisas. Essa presunção do cristianismo, desejando ele mesmo ser o fim e não um meio entre outros meios – além de diminuir o homem e torná-lo um joguete em suas garras de Harpia, condenou à morte aqueles que riram de sua “verdade”, que o digam as cinzas daqueles que passaram pela “Santa Inquisição”, entre outras insanidades religiosas cometidas pela tirania cristã “in nomi dei”, na sua forma mais sutil de violência e tacanhice ao longo de toda História.

Neurose Obsessiva Compulsiva

Estudo Psicanalítico sobre a Neurose Obsessiva Compulsiva

Dentre as diversas e complexas manifestações neuróticas, sem dúvida
nenhuma a que nominamos de neurose obsessiva compulsiva, afigura-se como
a mais interessante e rica em conteúdos simbólicos. Porém, ao falarmos de
Conteúdos Simbólicos, talvez o termo seja muito fraco para expressar o que de
fato ocorre no núcleo dessa neurose, pois não estamos falando de uma
montagem simbólica comum, o indivíduo afetado por tal desequilíbrio age como
se o símbolo fosse a realidade, e não uma mera representação da mesma.
Modernamente a neurose obsessiva compulsiva é denominada pela psiquiatria
pelo Termo Técnico: Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC).
Porém, o enfoque psiquiátrico moderno diverge da abordagem psicanalítica
tanto na etiologia de tal neurose como no seu tratamento.
Nesse estudo, no entanto, não iremos tratar das diferenças, e sim das
similitudes e complementações que ambas podem oferecer no tratamento
dessa incômoda e persistente neurose.
Em minha experiência profissional, bem como na pesquisa da Literatura
Psicanalítica, pude observar e alistar particularidades normativas que sempre
estão presentes no comportamento neurótico compulsivo obsessivo.
O neurótico tem consciência da absurdidade de alguns de seus pensamentos,
por isso uma dolorosa dissociação se estabelece no ego, e a pessoa afetada
fica atormentada pelas repetições ideativas.
Frente a esse fato, podemos definir as obsessões ideativas, como
intensificações de pensamento ego-distônicos, recursivos e intrusivos, que leva
o paciente a ser pensado pelos seus muitos pensamentos, gerando uma
ansiedade atormentadora.
Objetivando aliviar a ansiedade causada pelas obsessões, o neurótico recorre
a ações ritualizadas, essas por sua vez são chamadas de Compulsões.
Os atos compulsivos mais comuns podem ser reduzidos a cinco categorias
primárias: rituais envolvendo a verificação; rituais envolvendo a limpeza;
pensamentos obsessivos sem compulsões; lentidão obsessiva e rituais mistos.
No tratamento analítico, o terapeuta não deve se apressar em acabar com o
sintoma, pois como gratificação secundária, os sintomas obsessivos
compulsivos podem estar impedindo uma desintegração psicótica no neurótico,
o doente se agarra a seus sintomas estranhos para garantir seu equilíbrio
egóico.
O analista deve estar interessado em descobrir a função inconsciente do
sintoma, e a sua configuração compensatória no mundo intrapsíquico do
afetado, desvendando pouco a pouco, em sua psicobiografia, como foi levado a
montar reativamente certo tipo de sintoma.
Esse processo lento e gradativo mostra-se fundamental para a compreensão
da organização simbólica do paciente, possibilitando a perlaboração dos
conteúdos analisados, eliminando não só os sintomas, mas sim o núcleo de
ansiedade básica atrás do fenômeno.
O Comportamento Obsessivo Compulsivo
Descreverei agora alguns dos sintomas que aparecem com mais freqüência
nessa neurose: lavar as mãos demoradamente inúmeras vezes durante o dia
(alguns pacientes são levados a levantar-se durante a noite para fazê-lo);
tomar longos e repetidos banhos por não se sentir limpo; passar a maior parte
do tempo limpando as coisas; preocupar-se fanaticamente com germes e
contaminações; verificar repetidamente se portas e janelas foram fechadas; dar
valor excessivo a números ou a contagens (é como se quisessem ficar livres do
tempo, porém, estranhamente, é a sua cronometragem que os prendem);
pensamentos catastróficos (algo de ruim que pode acontecer a qualquer
momento); simetria neurótica; pensamentos ligados a castigo e morte, etc...
De forma coerciva, essas pessoas são vítimas de suas compulsões; mesmo
que racionalmente não queiram praticar suas esquisitices, são devastadas por
uma enorme ansiedade que, por fim, as leva a ceder ao ritual neurótico.
Uma outra peculiaridade marcante é a busca pela perfeição, tanto
intrapsiquicamente como extrapsiquicamente. Sua exigência maior é encontrar
aquilo que é perfeito, mesmo que racionalmente admita que tal exigência é
absurda e frustrante.
O desequilíbrio gera uma acentuada ambivalência relacional, são capazes de
ruminar interminavelmente uma pequena atitude, desgastando e fadigando
qualquer pessoa de seu convívio.
Por causa do conflito interno, tudo que fazem requer muito esforço, podem
criar uma tempestade num copo dágua na realização de qualquer atividade
corriqueira, por mais simples que pareça.
Os pensamentos intrusivos se avolumam de tal forma na mente neurotizada,
que é muito comum ficarem presos por uma cadeia interminável de
pensamentos, que por vezes paralisam totalmente ações práticas, fazendo com
que a dúvida seja a regra geral do comportamento compulsivo obsessivo. São
fracos em tomar decisões, não sabendo como agir frente a escolhas banais do
cotidiano.
Embora tudo isso se suceda ao neurótico obsessivo compulsivo, muitos deles
conseguem levar uma vida como qualquer outro, são normalmente inteligentes
e, portanto, capazes plenamente de estudar e trabalhar.
Sua capacidade psíquica não é totalmente prejudicada, e por terem
consciência de seus atos estranhos, conseguem disfarçá-los no ambiente
social.
É notório que as compulsões são exageradas quando a pessoa encontra-se
em casa, por isso, ao mesmo tempo que sua casa é um símbolo de proteção
uterina, é também o palco de suas maiores angústias e fraquezas neuróticas.
Para que o processo analítico tenha bom êxito, o terapeuta precisa perceber
em profundidade em que a dinâmica familiar influencia o paciente, pois muitas
vezes o sintoma obsessivo é fomentado por uma organização familiar
neurótica.
Quase sempre, para que o paciente tenha uma melhora significativa, o
ambiente familiar deve ser readaptado às novas exigências do processo, sendo
um meio facilitador e não um obstáculo intransponível.
Reparação Neurótica
Para a Psicanálise, a neurose obsessiva compulsiva tem como origem um
conflito psíquico infantil e uma fixação da libido no estágio anal de maturação.
Como já enfocado parcialmente, tal neurose manifesta-se através de ritos
conjuratórios de tipo religioso, sintomas obsedantes e uma ruminação mental
permanente, que dá origem a intermináveis dúvidas e escrúpulos que acabam
por inibir o pensamento e a ação.
No estudo sobre o Homem dos Ratos, Freud descobriu que é o erotismo anal
que domina a organização sexual do neurótico obsessivo, por isso, para ele, a
obsessão deveria ser sempre relacionada a uma regressão sexual ao estágio
anal, tendo como sustentação inconsciente um forte sentimento de ódio
primitivo.
Para Freud, o ódio surge psiquicamente antes do amor, pois esse sentimento
tão prezado ao conjunto das relações humanas, foi criado exatamente para nos
proteger do fluxo livre de nossa agressividade primitiva, daí elaboramos uma
consciência moral.
Freud viu nos sintomas obsessivos um trabalho defensivo que visa,
ocultamente, transformar a representação forte da experiência infantil, numa
representação enfraquecida e controlável, desligada por meio desse
estratagema de sua verdadeira e dolorosa fonte.
É lógico que esse desligamento não tem totalmente bom êxito, pois a aliança
desarmônica entre o estado afetivo e a idéia associada acaba por criar um
caráter absurdo e irracional próprio da neurose obsessiva compulsiva. Nessa
neurose, os sintomas são ego-distônicos, causando danos terríveis ao
portador.
Frente a esse fato, Freud revelou que uma das características marcantes do
desequilíbrio é a sua vinculação estrutural com o sentimento de culpa. Sobre
isso ele escreveu: Aquele que sofre de compulsões e de interdições se
comporta como se estivesse sob o império de uma consciência de culpa, a cujo
respeito, aliás, nada sabe; sob o jugo, portanto, de uma consciência de culpa
inconsciente, como nos sentimos forçados a dizer, por mais que essas palavras
resistam a se combinar.
Examinando a religião, Freud chegou a perceber semelhanças
desconcertantes entre os atos compulsivos e as práticas religiosas, que ao seu
entender visavam essencialmente a mesma coisa: afastar o sentimento de
culpa por uma reparação compensatória ritualística. Tanto no religioso como no
obsessivo, a fórmula principal é o deslocamento psíquico (semelhante ao que
acontece no sonho), pelo qual os detalhes triviais da atividade ritual se tornam
a coisa mais importante, uma vez que se expulsou à força o conteúdo
verdadeiramente significativo.
Em sua famosa tese da Concordância Essencial, Freud descreve: Podemos
conceber a neurose obsessiva como a contra partida patológica da formação
religiosa, a caracterizar a neurose como uma religiosidade individual e a
religião como uma neurose obsessiva universal.
Um Caso de Neurose Obsessiva Compulsiva
Quando José Roberto resolveu me procurar, acerca de dois anos atrás,
contava nessa época com 37 anos. Trazia em sua bagagem existencial muito
sofrimento e angústia, e uma certa descrença prévia que dizia que a
psicanálise não poderia ajudá-lo em seu desconforto.
Era solteiro e morava com a mãe, junto com sua irmã mais velha e seu
cunhado. Seu pai havia morrido há seis anos atrás, fato que acabou por
agravar e intensificar os sintomas obsessivos compulsivos, culminando em sua
internação na ala psiquiátrica do Hospital das Clínicas, onde permaneceu por
quatro meses.
Mesmo antes da morte do pai, José Roberto foi procurar ajuda médica para
seus estranhos sintomas, e há 10 anos atrás foi diagnosticado como portador
do Transtorno Obsessivo Compulsivo. A partir daí diversos medicamentos
foram tentados (Clomipramina-Anafranil; Fluoxetina-Prozac; Sertranil-Zoloft,
entre outros), infelizmente os sintomas persistiram e acabaram por se
solidificarem, levando o paciente cada vez mais a um isolamento social.
Quando o pai ainda era vivo, embora já sentisse a ação da obsessão
compulsiva, conseguia controlá-la. Trabalhava como protético no consultório do
pai, embora tenha admitido durante o tratamento que não gostava da ocupação
profissional.
Com a morte do pai, José Roberto abandonou o serviço e confinou-se em sua
casa, o que veio a agravar e intensificar os sintomas obsessivos compulsivos.
Ficava preso por horas no banheiro e, ao sair, o ritual continuava levando, por
exemplo, o infeliz a demorar 40 minutos ou mais para colocar uma simples
cueca, pois um pensamento recursivo lhe suscitava a dúvida se a peça íntima
fora colocada do lado certo.
Tinha uma preocupação exagerada a tudo que se referia à religião, pois lhe
vinha à mente a idéia de que se não prestasse atenção em coisas sagradas
seria seriamente castigado por Deus.
Em seu quarto havia uma Bíblia dada pela sua mãe, que era foco de muitos de
seus rituais. Tinha uma preocupação absurda em verificar se a janela do seu
quarto estava bem fechada, pois o vento poderia derrubar a Bíblia e danificá-la,
o que configuraria um enorme desrespeito de sua parte, passível de um terrível
castigo divino.
Outra área que lhe causava forte sentimento de culpa, era a sexual. O paciente
tinha uma forte fixação fetichista, colecionando diversas calcinhas e sutiãs
rendados. Mais do que isso, também tinha tendência ao travestismo, pois
gostava de dormir e se olhar no espelho com as roupas íntimas femininas.
As poucas vezes que conseguia sair de casa ia ao shopping, e lá seu martírio
aumentava, pois admitia que ao ver uma bela mulher, não sabia se o que lhe
chamava mais atenção era o seu corpo ou suas peças íntimas. Embora
realçasse na fala as peças íntimas, toda vestimenta da mulher lhe excitava,
bem como detalhes (unhas grandes e pintadas de vermelho; o batom
exuberante; o salto alto que sustentava belos pés, etc...), ao ponto de dizer
com uma certa angústia nas sessões de análise, que não sabia se queria uma
bela mulher ou se preferia ser em suas fantasias eróticas a bela mulher.
Conscientemente se recriminava terrivelmente por tais ideações, e reiterava
repetidas vezes que não era um homossexual, e sim homem.
No contato social José Roberto era simpático e quase sempre muito calmo.
Conseguia disfarçar quase sempre seus sintomas incomuns. É lógico que
pessoas mais observadoras notavam algo de estranho em seu comportamento,
muitas vezes expondo-o.
Um belo exemplo disso foi narrado pelo próprio paciente em uma sessão.
Alguns anos atrás o paciente era sócio de um clube, e como era obrigado a
conviver com várias pessoas, sua preocupação de esconder seu
comportamento estranho era muito grande.
Uma certa vez, ao entrar no toalete para tomar banho após as atividades
esportivas, começou a ser enredado pelo ritual obsessivo, coisa que foi
percebida por alguns colegas que automaticamente começaram a ridicularizálo.
Ele ficou com muita raiva de seus colegas. Três dias após o ocorrido ele voltou
ao toalete, como estava sozinho tomou logo o seu banho e foi dormir na casa
de um colega de infância. Ao chegar na casa do colega lembrou que havia
deixado sobre a pia do toalete o frasco vazio do condicionador usado no
banho.
Um pensamento persistente dizia que deveria voltar ao lugar para jogar o
frasco no lixo, pois o mesmo poderia cair no chão e provocar um terrível
incêndio. Inicialmente tentou ignorar o pensamento, porém a ansiedade tornouse
sufocante, e viu-se obrigado a retornar ao clube de madrugada. Só teve um
alívio quando um segurança do local percebendo sua perturbação, apaziguou-o
dizendo que ele mesmo cuidaria de jogar o tal frasco no lixo.
Na sessão de análise, pude interpretar tal ocorrência aparentemente sem
sentido e absurda, como um belo disfarce para sua agressividade interna, que
ao mesmo tempo lhe despertava um terrível sentimento de culpa. A raiva que
sentiu ao ser ridicularizado pelos colegas foi reprimida. Ele projetara num
inofensivo frasco vazio de condicionador seus fortes impulsos agressivos. O
incêndio, na verdade, em suas fantasias internas, não seria causado pela
substância química (o frasco estava vazio), mas sim pelo seu forte impulso de
agressividade; estaria dessa forma vingado.
Como não podia suportar o sentimento de culpa pela intenção criminosa
inconsciente, tentava reparar dramaticamente seu desejo inconsciente,
obrigando-se por um contra-desejo consciente a ir até o clube e livrar-se do
frasco de condicionador vazio. Essa interessante inversão era usada
freqüentemente por esse paciente.
Usando esse mesmo princípio de decifração, seu zelo excessivo pela Bíblia,
ocultava um sentimento nada sagrado. José Roberto, na verdade, não era um
indivíduo religioso. Sua mãe no passado pertencia a uma seita: Testemunhas
de Jeová. O paciente quando criança ia sempre nos cultos e atividades da
citada seita, porém nunca teve um envolvimento profundo com a religião de
sua mãe. Com o tempo, a própria mãe abandonou a sua fé antiga, estando
atualmente mais envolvida com práticas ligadas ao espiritismo. A referida
religião era, na verdade, praticada mais enquanto o pai estava vivo, embora o
mesmo fosse totalmente apático em referência à religião da esposa.
Por isso podemos concluir, que a religião era simbolicamente a representação
de sua dependência materna, de onde o pai estava totalmente excluído. Com a
morte do pai, estranhamente o paciente passa a ter preocupações religiosas
excessivas, o que tentava ocultar a idéia de que agora o caminho estava livre
para voltar a ter a relação incestuosa com a mãe, e ter a mãe só para si, sem a
presença do castrador. Porém seu medo desmedido de ser punido por Deus,
ou ser castigado por algum pecado contra o sagrado, era na verdade o forte
sentimento de culpa que advinha de suas fantasias homicidas contra a figura
do pai.
A Bíblia é a Palavra de Deus, ou seja, a Lei do Pai, que proíbe terrivelmente o
incesto. O que o paciente gostaria de fazer inconscientemente ao Livro
Sagrado não era protegê-lo, e sim aviltá-lo, profaná-lo. Destruindo o sagrado, o
paciente estaria livre para concretizar seus anseios incestuosos edipianos.
Pude também perceber no decorrer da terapia, que suas fantasias sexuais
eram fantasias internas de incorporação e de introjeção, pois ao se travestir de
mulher, tinha sua mãe permanentemente junto de seu corpo.
Durante todo o tratamento o paciente fez considerável progresso. Interrompeu
gradativamente seu isolamento uterino, fez um curso profissionalizante e
voltou a trabalhar. Com um distanciamento da figura materna, os sintomas
diminuíram cerca de 70%. Recentemente conseguiu passar no vestibular de
uma prestigiada universidade, depois de abandonar os estudos acadêmicos
por doze anos.
Está muito contente e confiante, pois seu quadro é de estabilidade, mesmo
tendo por livre iniciativa abandonado a ajuda medicamentosa.


creditos:
Por Marcos Oliveira