Como nos tornamos paranóicos?"
A paranóia, como quadro clínico, parece ter desaparecido, não só das classificações internacionais como também dos trabalhos dos congressos de psiquiatria. Fala-se hoje de transtornos delirantes persistentes, uma nomenclatura vaga, que engloba as antigas paranóias, como as parafrenias, bem como outras manifestações delirantes sistematizadas. O que isso significa? Que não há mais paranóicos? Que a modernidade não é tão favorável a emergência de tais quadros? Ou será que não mais reconhecemos uma paranóia, subsumida agora aos transtornos de personalidade e aos transtornos bipolares? Será isso um progresso de nossa ciência?
Lacan partiu da paranóia para abordar o que poderiam ser as condições de possibilidade de tratamento para as psicoses. Retomou Freud e sua análise do Presidente Schreber para demonstrar, não um déficit como hoje se associa aos psicóticos, mas um funcionamento que devia à linguagem sua estrutura fundamental, tanto quanto as neuroses. Propôs operadores analíticos para abordar os fenômenos e a sintomatologia psicótica- Nome do Pai, castração, Édipo, foraclusão, Outro, objeto a, Real,Simbólico e Imaginário, e abriu uma via extraordinária para que insistíssemos, procurando formular uma escrita da diversidade das psicoses. Vários de seus alunos, dentre eles Charles Melman, continuaram trabalhando no caminho aberto e reencontraram no automatismo mental, na síndrome de Cotard, na síndrome de ilusão dos sósias (Capgras), nos falsos reconhecimentos delirantes (Frégoli), no transexualismo, na melancolia e também nas paranóias, a expressão dos efeitos surpreendentes e cruéis do significante.
A vinda do Dr. Melman ao Brasil em maio deste ano a Porto Alegre será mais uma oportunidade para ouvir as finas articulações que ele tem nos apresentado sobre o assunto nos últimos anos, em seus seminários na França e no Brasil, e que acompanhamos em alguns trabalhos na Oficina de Psicose do Tempo Freudiano, desde o ano de 2004, a partir de nossa publicação da série A clinica da psicose: Lacan e a Psiquiatria. Ali Melman aborda a paranóia, não só enquanto fato clínico individual mas sobretudo como uma resposta na estrutura à nossa condição de seres falantes, já que estamos fundados na imagem ao semelhante, comandados pelo gozo fálico e submetidos a um real da língua, que nos obriga a interpretar permanentemente. Ou seja, tudo de nossa constituição psíquica induz a uma certa paranóia: nos reconhecemos como outro, os outros falam em nós, estamos comandados por um gozo que nos foi prescrito à nossa revelia, e por sermos falantes estamos sujeitos a tudo interpretar, a dar sentido ao que quer que seja.
Seja para abordar a paranóia como um estado experimental, ou como um quadro clínico bem definido, Melman propõe uma fórmula: ‘a paranóia é que sobrevém quando a dimensão do Outro se encontra excluída’. Diz também que os “paranóicos são aqueles que chegaram a uma concepção da castração e que aquilo que neles se desenvolve como psicose é organizado por uma rejeição à castração, uma defesa contra ela”. Isso os coloca de forma particular no terreno das psicoses, distinguindo-se delas. Quer dizer, ali onde nos psicóticos o eu e o mundo se fragmentam, no paranóico faz resistência, faz Um. À falta de uma alteridade, de um Um como traço da diferença, corresponde um Um da unificação.
Essa rejeição sob a forma de um UM, indica que o Outro não está abolido ou pulverizado como nas psicoses esquizofrênicas, mas tem consistência, é presença real que podemos verificar nos arranjos delirantes. Esse Outro que faz Um comigo, na erotomonia; que quer me destruir ou que me priva de algo que poderia me fazer Um, único e especial frente ao qual todos deveriam prestar reverência, como ocorre nos delírios de reivindicação; ou esse Um que não é o escolhido pelo desejo de outro, como nos delírios de ciúme. Essas são algumas fórmulas linguageiras que nos aproximam de uma certa declinação dos delírios paranóicos.
Estaríamos na nossa modernidade mais propensos às paranóias, pelo fato de vivermos numa conjuntura social que induz à exclusão do Outro? Este talvez seja um dos argumentos centrais que Melman tem procurado ressaltar desde seu último livro, O homen sem gravidade. Este homem que habita um mundo cercado pela ciência que nos liberou de Deus e nos franqueou o comércio dos objetos. O questionamento que a ciência produziu de Deus e da ordem paterna, esvaziou o campo do Outro. Nessa seqüência, o passo seguinte foi tomar o vazio como excluído e entrarmos assim num terreno em que estão dadas algumas condições para a paranóia: a sensibilidade à palavra do outro, a certeza e a queixa contra o que é da ordem do contingente, pois justamente o que poderia temperar essa palavra, essa presença imperativa mediando um pacto simbólico está fora, rejeitado. É essa condição estrutural induzida pela ciência que Melman procura demonstrar, não para denunciá-la, pois não se trata de maldizer a ciência, mas para chamar a nós a responsabilidade de analistas, a tarefa de sustentar, mais ainda talvez, o único discurso em que a palavra é tomada como real e não como instrumento.
Em seu seminário de 1994-1995- Retorno a Schreber- Melman destaca a maneira como todo sujeito se suporta em algo, que tem função de ponto fixo- a imagem especular, o falo, a lei paterna- e nos remete ao jogo significante que Schreber estabelece com Deus procurando manter esse ponto fixo- Deus- à uma certa distância. Para Schreber Deus é vivo, é uma certeza, é Um. E quer gozar dele até ficar largado, quer esgotar suas forças, quer transformá-lo em mulher, quer paralisar seu pensamento. A saída para essa luta de vida e morte, para esse impasse entre ou eu ou Ele, é sua mortificação e emasculação, por uma vertente erotomaníaca: Deus me ama.
A abordagem que Schreber faz da Ordem do Mundo, da transmigração, das frases impostas, dos jogos lingüísticos, da influência do Dr. Flechsig, da dialética mortífera entre ou eu ou o outro, serve de porta de entrada para sua abordagem de questões cruciais para a cultura e particularmente para a psicanálise. O que é ensinar psicanálise? O que é a função da analista? Por que as relações conjugais tornaram-se jogos de artilharia pesada entre os parceiros? O que é um discurso correto? Por que prezamos tanto o traumatismo?
Vemos nesse seminário a germinação de posicionamentos que serão desdobrados em O homem sem gravidade quando Melman anuncia o surgimento de uma nova economia psíquica motivada pelas profundas mudanças em nossa cultura advindas do capitalismo globalizado e do domínio da ciência em nossas vidas. Tudo isso contribuindo para a queda dos pilares em que até então se organizou nossa vida psíquica: o respeito em relação a uma instância Outra, o objeto de satisfação como inalcançável e o sexual como o pouco de sentido mobilizado numa estrutura de sem-sentido da linguagem.
fonte:Eduardo de Carvalho Rocha
A paranóia, como quadro clínico, parece ter desaparecido, não só das classificações internacionais como também dos trabalhos dos congressos de psiquiatria. Fala-se hoje de transtornos delirantes persistentes, uma nomenclatura vaga, que engloba as antigas paranóias, como as parafrenias, bem como outras manifestações delirantes sistematizadas. O que isso significa? Que não há mais paranóicos? Que a modernidade não é tão favorável a emergência de tais quadros? Ou será que não mais reconhecemos uma paranóia, subsumida agora aos transtornos de personalidade e aos transtornos bipolares? Será isso um progresso de nossa ciência?
Lacan partiu da paranóia para abordar o que poderiam ser as condições de possibilidade de tratamento para as psicoses. Retomou Freud e sua análise do Presidente Schreber para demonstrar, não um déficit como hoje se associa aos psicóticos, mas um funcionamento que devia à linguagem sua estrutura fundamental, tanto quanto as neuroses. Propôs operadores analíticos para abordar os fenômenos e a sintomatologia psicótica- Nome do Pai, castração, Édipo, foraclusão, Outro, objeto a, Real,Simbólico e Imaginário, e abriu uma via extraordinária para que insistíssemos, procurando formular uma escrita da diversidade das psicoses. Vários de seus alunos, dentre eles Charles Melman, continuaram trabalhando no caminho aberto e reencontraram no automatismo mental, na síndrome de Cotard, na síndrome de ilusão dos sósias (Capgras), nos falsos reconhecimentos delirantes (Frégoli), no transexualismo, na melancolia e também nas paranóias, a expressão dos efeitos surpreendentes e cruéis do significante.
A vinda do Dr. Melman ao Brasil em maio deste ano a Porto Alegre será mais uma oportunidade para ouvir as finas articulações que ele tem nos apresentado sobre o assunto nos últimos anos, em seus seminários na França e no Brasil, e que acompanhamos em alguns trabalhos na Oficina de Psicose do Tempo Freudiano, desde o ano de 2004, a partir de nossa publicação da série A clinica da psicose: Lacan e a Psiquiatria. Ali Melman aborda a paranóia, não só enquanto fato clínico individual mas sobretudo como uma resposta na estrutura à nossa condição de seres falantes, já que estamos fundados na imagem ao semelhante, comandados pelo gozo fálico e submetidos a um real da língua, que nos obriga a interpretar permanentemente. Ou seja, tudo de nossa constituição psíquica induz a uma certa paranóia: nos reconhecemos como outro, os outros falam em nós, estamos comandados por um gozo que nos foi prescrito à nossa revelia, e por sermos falantes estamos sujeitos a tudo interpretar, a dar sentido ao que quer que seja.
Seja para abordar a paranóia como um estado experimental, ou como um quadro clínico bem definido, Melman propõe uma fórmula: ‘a paranóia é que sobrevém quando a dimensão do Outro se encontra excluída’. Diz também que os “paranóicos são aqueles que chegaram a uma concepção da castração e que aquilo que neles se desenvolve como psicose é organizado por uma rejeição à castração, uma defesa contra ela”. Isso os coloca de forma particular no terreno das psicoses, distinguindo-se delas. Quer dizer, ali onde nos psicóticos o eu e o mundo se fragmentam, no paranóico faz resistência, faz Um. À falta de uma alteridade, de um Um como traço da diferença, corresponde um Um da unificação.
Essa rejeição sob a forma de um UM, indica que o Outro não está abolido ou pulverizado como nas psicoses esquizofrênicas, mas tem consistência, é presença real que podemos verificar nos arranjos delirantes. Esse Outro que faz Um comigo, na erotomonia; que quer me destruir ou que me priva de algo que poderia me fazer Um, único e especial frente ao qual todos deveriam prestar reverência, como ocorre nos delírios de reivindicação; ou esse Um que não é o escolhido pelo desejo de outro, como nos delírios de ciúme. Essas são algumas fórmulas linguageiras que nos aproximam de uma certa declinação dos delírios paranóicos.
Estaríamos na nossa modernidade mais propensos às paranóias, pelo fato de vivermos numa conjuntura social que induz à exclusão do Outro? Este talvez seja um dos argumentos centrais que Melman tem procurado ressaltar desde seu último livro, O homen sem gravidade. Este homem que habita um mundo cercado pela ciência que nos liberou de Deus e nos franqueou o comércio dos objetos. O questionamento que a ciência produziu de Deus e da ordem paterna, esvaziou o campo do Outro. Nessa seqüência, o passo seguinte foi tomar o vazio como excluído e entrarmos assim num terreno em que estão dadas algumas condições para a paranóia: a sensibilidade à palavra do outro, a certeza e a queixa contra o que é da ordem do contingente, pois justamente o que poderia temperar essa palavra, essa presença imperativa mediando um pacto simbólico está fora, rejeitado. É essa condição estrutural induzida pela ciência que Melman procura demonstrar, não para denunciá-la, pois não se trata de maldizer a ciência, mas para chamar a nós a responsabilidade de analistas, a tarefa de sustentar, mais ainda talvez, o único discurso em que a palavra é tomada como real e não como instrumento.
Em seu seminário de 1994-1995- Retorno a Schreber- Melman destaca a maneira como todo sujeito se suporta em algo, que tem função de ponto fixo- a imagem especular, o falo, a lei paterna- e nos remete ao jogo significante que Schreber estabelece com Deus procurando manter esse ponto fixo- Deus- à uma certa distância. Para Schreber Deus é vivo, é uma certeza, é Um. E quer gozar dele até ficar largado, quer esgotar suas forças, quer transformá-lo em mulher, quer paralisar seu pensamento. A saída para essa luta de vida e morte, para esse impasse entre ou eu ou Ele, é sua mortificação e emasculação, por uma vertente erotomaníaca: Deus me ama.
A abordagem que Schreber faz da Ordem do Mundo, da transmigração, das frases impostas, dos jogos lingüísticos, da influência do Dr. Flechsig, da dialética mortífera entre ou eu ou o outro, serve de porta de entrada para sua abordagem de questões cruciais para a cultura e particularmente para a psicanálise. O que é ensinar psicanálise? O que é a função da analista? Por que as relações conjugais tornaram-se jogos de artilharia pesada entre os parceiros? O que é um discurso correto? Por que prezamos tanto o traumatismo?
Vemos nesse seminário a germinação de posicionamentos que serão desdobrados em O homem sem gravidade quando Melman anuncia o surgimento de uma nova economia psíquica motivada pelas profundas mudanças em nossa cultura advindas do capitalismo globalizado e do domínio da ciência em nossas vidas. Tudo isso contribuindo para a queda dos pilares em que até então se organizou nossa vida psíquica: o respeito em relação a uma instância Outra, o objeto de satisfação como inalcançável e o sexual como o pouco de sentido mobilizado numa estrutura de sem-sentido da linguagem.
fonte:Eduardo de Carvalho Rocha
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