sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Sigmund Freud - O Valor da Vida

Sigmund Freud - O Valor da Vida

A entrevista que reproduzo abaixo é, supostamente, a última dada por Sigmund Freud. Foi concedida em 1926 ao jornalista estudinedense George Viereck. Apesar de esta entrevista ter sido realizada em 1926 e Freud ter morrido 13 anos depois, não há relatos de outras entrevistas concedidas por Freud após 1926.

Em 1923, Freud foi diagnosticado com câncer na boca. Em 1926, já usava uma mandíbula mecânica e sentia dificuldade para falar. Isso talvez explique o fato de ele ter continuado a produzir material escrito (como "O Mal-Estar na Civilização", por exemplo), mas evitar falar. É possível também que esta seja a última entrevista que se conheça... Ou mesmo que esta não seja sua última entrevista, conforme se divulga. O que, na verdade, pouco importa.

O interessante é que este material foi considerado perdido por décadas, até que o boletim da Sigmund Freud Haus publicou uma versão condensada em 1976. O texto integral não fez muito sucesso na época, e pode ser lido no volume Psychoanalysis and The Future, uma edição especial do Journal of Psychology (New York, 1957).

A tradução para o português foi realizada por Paulo Cézar Souza.

O VALOR DA VIDA
Por George Viereck
Setenta anos ensinaram-me a aceitar a vida com serena humildade.
Quem fala é o professor Sigmund Freud, o grande explorador da alma. O cenário da nossa conversa foi uma casa de verão no Semmering, uma montanha nos Alpes austríacos.
Eu havia visto o pai da psicanálise pela última vez em sua casa modesta na capital austríaca. Os poucos anos entre minha última visita e a atual multiplicaram as rugas na sua fronte. Intensificaram a sua palidez de sábio. Sua face estava tensa, como se sentisse dor. Sua mente estava alerta, seu espírito firme, sua cortesia impecável como sempre, mas um ligeiro impedimento da fala me perturbou.
Parece que um tumor maligno no maxilar superior necessitou ser operado. Desde então Freud usa uma prótese, para ele uma causa de constante irritação.
S. Freud: Detesto o meu maxilar mecânico, porque a luta com o aparelho me consome tanta energia preciosa. Mas prefiro ele a maxilar nenhum. Ainda prefiro a existência à extinção.
Talvez os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos que carregamos.
Freud se recusa a admitir que o destino lhe reserva algo especial.
- Por quê – disse calmamente - deveria eu esperar um tratamento especial? A velhice, com sua agruras chega para todos. Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, mais de setenta anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas – a companhia de minha mulher, meus filhos, o pôr do sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?
George Sylvester Viereck: O senhor teve a fama, disse que Sua obra influi na literatura de cada país. O homem olha a vida e a si mesmo com outros olhos, por causa do senhor. E recentemente, no seu septuagésimo aniversário, o mundo se uniu para homenageá-lo – com exceção da sua própria Universidade.
S. Freud: Se a Universidade de Viena me demonstrasse reconhecimento, eu ficaria embaraçado. Não há razão em aceitar a mim e a minha obra porque tenho setenta anos. Eu não atribuo importância insensata aos decimais.
A fama chega apenas quando morremos, e francamente, o que vem depois não me interessa. Não aspiro à glória póstuma. Minha modéstia não e virtude.
George Sylvester Viereck: Não significa nada o fato de que o seu nome vai viver?
S. Freud: Absolutamente nada, mesmo que ele viva, o que não e certo. Estou bem mais preocupado com o destino de meus filhos. Espero que suas vidas não venham a ser difíceis. Não posso ajudá-los muito. A guerra praticamente liquidou com minhas posses, o que havia poupado durante a vida. Mas posso me dar por satisfeito. O trabalho é minha fortuna.
Estávamos subindo e descendo uma pequena trilha no jardim da casa. Freud acariciou ternamente um arbusto que florescia.
S. Freud: Estou muito mais interessado neste botão do que no que possa me acontecer depois que estiver morto.
George Sylvester Viereck: Então o senhor é, afinal, um profundo pessimista?
S. Freud: Não, não sou. Não permito que nenhuma reflexão filosófica estrague a minha fruição das coisas simples da vida.
George Sylvester Viereck: O senhor acredita na persistência da personalidade após a morte, de alguma forma que seja?
S. Freud: Não penso nisso. Tudo o que vive perece. Por que deveria o homem construir uma exceção?
George Sylvester Viereck: Gostaria de retornar em alguma forma, de ser resgatado do pó? O senhor não tem, em outras palavras, desejo de imortalidade?
S. Freud: Sinceramente não. Se a gente reconhece os motivos egoístas por trás de conduta humana, não tem o mínimo desejo de voltar a vida, movendo-se num círculo, seria ainda a mesma.
Além disso, mesmo se o eterno retorno das coisas, para usar a expressão de Nietzsche, nos dotasse novamente do nosso invólucro carnal, para que serviria, sem memória? Não haveria elo entre passado e futuro.
Pelo que me toca estou perfeitamente satisfeito em saber que o eterno aborrecimento de viver finalmente passará. Nossa vida é necessariamente uma série de compromissos, uma luta interminável entre o ego e seu ambiente. O desejo de prolongar a vida excessivamente me parece absurdo.
George Sylvester Viereck: Bernard Shaw sustenta que vivemos muito pouco, disse eu. Ele acha que o homem pode prolongar a vida se assim desejar, levando sua vontade a atuar sobre as forças da evolução. Ele crê que a humanidade pode reaver a longevidade dos patriarcas.
- É possível, respondeu Freud, que a morte em si não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer.
Assim como amor e ódio por uma pessoa habitam em nosso peito ao mesmo tempo, assim também toda a vida conjuga o desejo de manter-se e o desejo da própria destruição.
Do mesmo modo com um pequeno elástico esticado tende a assumir a forma original, assim também toda a matéria viva, consciente ou inconscientemente, busca readquirir a completa, a absoluta inércia da existência inorgânica. O impulso de vida e o impulso de morte habitam lado a lado dentro de nós.
A Morte é a companheira do Amor. Juntos eles regem o mundo. Isto é o que diz o meu livro: Além do Princípio do Prazer.
No começo, a psicanálise supôs que o Amor tinha toda a importância. Agora sabemos que a Morte é igualmente importante.
Biologicamente, todo ser vivo, não importa quão intensamente a vida queime dentro dele, anseia pelo Nirvana, pela cessação da "febre chamada viver", anseia pelo seio de Abraão. O desejo pode ser encoberto por digressões. Não obstante, o objetivo derradeiro da vida é a sua própria extinção.
Viereck: Isto é a filosofia da autodestruição. Ela justifica o auto-extermínio. Levaria logicamente ao suicídio universal imaginado por Eduard von Hartamann.
S.Freud: A humanidade não escolhe o suicídio porque a lei do seu ser desaprova a via direta para o seu fim. A vida tem que completar o seu ciclo de existência. Em todo ser normal, a pulsão de vida é forte o bastante para contrabalançar a pulsão de morte, embora no final resulte mais forte.
Podemos entreter a fantasia de que a Morte nos vem por nossa própria vontade. Seria mais possível que pudéssemos vencer a Morte, não fosse por seu aliado dentro de nós.
Neste sentido acrescentou Freud com um sorriso, pode ser justificado dizer que toda a morte é suicídio disfarçado.
Estava ficando frio no jardim.
Prosseguimos a conversa no gabinete.
Vi uma pilha de manuscritos sobre a mesa, com a caligrafia clara de Freud.
George Sylvester Viereck: Em que o senhor está trabalhando?
S. Freud: Estou escrevendo uma defesa da análise leiga, da psicanálise praticada por leigos. Os doutores querem tornar a análise ilegal para os não médicos. A História, essa velha plagiadora, repete-se após cada descoberta. Os doutores combatem cada nova verdade no começo. Depois procuram monopoliza-la.
George Sylvester Viereck: O senhor teve muito apoio dos leigos?
S. Freud: Alguns dos meus melhores discípulos são leigos.
George Sylvester Viereck: O senhor está praticando muito psicanálise?
S. Freud: Certamente. Neste momento estou trabalhando num caso muito difícil, tentando desatar os conflitos psíquicos de um interessante novo paciente.
Minha filha também é psicanalista, como você vê...
Nesse ponto apareceu Miss Anna Freud acompanhada por seu paciente, um garoto de onze anos, de feições inconfundivelmente anglo-saxonicas.
George Sylvester Viereck: O senhor já analisou a si mesmo?
S. Freud: Certamente. O psicanalista deve constantemente analisar a si mesmo. Analisando a nós mesmos, ficamos mais capacitados a analisar os outros.
O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. Os outros descarregam seus pecados sobre ele. Ele deve praticar sua arte à perfeição para desvencilhar-se do fardo jogado sobre ele.
George Sylvester Viereck: Minha impressão, observei, é de que a psicanálise desperta em todos que a praticam o espírito da caridade cristão. Nada existe na vida humana que a psicanálise não possa nos fazer compreender. "Tout comprec'est tout pardonner".
Pelo contrário! – bravejou Freud, suas feições assumindo a severidade de um profeta hebreu. Compreender tudo não é perdoar tudo. A análise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também o que podemos evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância com o mal não e de maneira alguma um corolário do conhecimento.
Compreendi subitamente porque Freud havia litigado com os seguidores que o haviam abandonado, por que ele não perdoa a sua dissensão do caminho reto da ortodoxia psicanalítica. Seu senso do que é direito é herança dos seus ancestrais. Una herança de que ele se orgulha como se orgulha de sua raça.
Minha língua, ele me explicou, é o alemão. Minha cultura, minha realização é alemã. Eu me considero um intelectual alemão, até perceber o crescimento do preconceito anti-semita na Alemanha e na Áustria. Desde então prefiro me considerar judeu.
Fiquei algo desapontado com esta observação.
Parecia-me que o espírito de Freud deveria habitar nas alturas, além de qualquer preconceito de raças que ele deveria ser imune a qualquer rancor pessoal. No entanto, precisamente a sua indignação, a sua honesta ira, tornava o mais atraente como ser humano. Aquiles seria intolerável, não fosse por seu calcanhar!
Viereck: Fico contente, Herr Professor, de que também o senhor tenha seus complexos, de que também o senhor demonstre que é um mortal!

S. Freud: Nossos complexos são a fonte de nossa fraqueza, mas com freqüência, são também a fonte de nossa força.

Viereck: Imagino quais seriam os meus complexos!

S. Freud: Uma análise séria dura ao menos um ano. Pode durar mesmo dois ou três anos. Você está dedicando muitos anos de sua vida à “caça aos leões”. Você procurou sempre as pessoas de destaque para a sua geração: Roosevelt, o Imperador, Hindenburg, Briand, Foch, Joffre, Georg Bernard Shaw...

Viereck: É parte do meu trabalho.

S. Freud: Mas é também sua preferência. O grande homem é um símbolo. A sua busca é a busca do seu coração. Você está procurando o grande homem para tomar o lugar do seu pai. É parte do seu “complexo do pai”.

(Neguei veementemente a afirmação de Freud. No entanto, refletindo sobre isso, parece-me que pode haver uma verdade, ainda não suspeitada por mim, em sua sugestão casual. Pode ser o mesmo impulso que me levou a ele. Gostaria, observei após um momento, de poder ficar aqui o bastante para vislumbrar o meu coração através dos seus olhos. Talvez, como a Medusa, eu morresse de pavor ao ver minha própria imagem! Entretanto, receio ser muito informando sobre a psicanálise. Eu freqüentemente anteciparia, ou tentaria antecipar suas intenções).

S. Freud: A inteligência num paciente não é um empecilho. Pelo contrário, às vezes facilita o trabalho.

(Neste ponto o mestre da psicanálise diverge de muitos dos seus seguidores, que não gostam de excessiva segurança do paciente sob o seu escrutínio).

Viereck: Por vezes imagino se não seríamos mais felizes se soubéssemos menos dos processos que dão forma a nossos pensamentos e emoções. A psicanálise rouba a vida do seu último encanto, ao relacionar cada sentimento ao seu original grupo de complexos. Não nos tornamos mais alegres descobrindo que nós todos abrigamos o criminoso e o animal.

S. Freud: Que objeção pode haver contra os animais? Eu prefiro a companhia dos animais à companhia humana.

Viereck: Por quê?

S. Freud: Porque são tão mais simples. Não sofrem de uma personalidade dividida, da desintegração do ego, que resulta da tentativa do homem de adaptar-se a padrões de civilização demasiado elevados para o seu mecanismo intelectual e psíquico. O selvagem, como o animal, é cruel, mas não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança do homem contra a sociedade, pelas restrições que ela impõe. As mais desagradáveis características do homem são geradas por esse ajustamento precário a uma civilização complicada. É o resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura. Muito mais desagradáveis são as emoções simples e diretas de um cão, ao balançar a cauda, ou ao latir expressando seu desprazer. As emoções do cão (acrescentou Freud pensativamente) lembram-nos os heróis da Antigüidade. Talvez seja essa a razão por que inconscientemente damos aos nossos cães nomes de heróis com Aquiles e Heitor.

Viereck: Meu cachorro é um doberman Pinscher chamado Ajax.

S. Freud: (sorrindo) Fico contente de que não possa ler. Ele certamente seria um membro menos querido da casa, se pudesse latir sua opinião sobre os traumas psíquicos e o complexo de Édipo!

Viereck: Mesmo o senhor, Professor, sonha a existência complexa demais. No entanto, parece-me que o senhor seja em parte responsável pelas complexidades da civilização moderna. Antes que o senhor inventasse a psicanálise, não sabíamos que nossa personalidade é dominada por uma hoste beligerante de complexos muito questionáveis. A psicanálise torna a vida um quebra-cabeças complicado.

S. Freud: De maneira alguma. A psicanálise torna a vida mais simples. Adquirimos uma nova síntese depois da análise. A psicanálise reordena um emaranhado de impulsos dispersos, procura enrolá-los em torno do seu carretel. Ou. modificando a metáfora, ela fornece o fio que conduz a pessoa fora do labirinto do seu inconsciente.

Viereck: Ao menos na superfície, porém, a vida humana nunca foi mais complexa. A cada dia alguma nova idéia proposta pelo senhor ou por seus discípulos torna o problema da condução humana mais intrigante e mais contraditório.

S. Freud: A psicanálise pelo menos, jamais fecha a porta a uma nova verdade.

Viereck: Alguns dos seus discípulos, mais ortodoxos do que o senhor, se apegam a cada pronunciamento que sai da sua boca.

S. Freud: A vida muda. A psicanálise também muda. Estamos apenas no começo de uma nova ciência.

Viereck: A estrutura científica que o senhor ergueu me parece ser muito elaborada. Seus fundamentos – a teoria do “deslocamento”, da “sexualidade infantil”, do “simbolismo dos sonhos”, etc... – parecem permanentes.

S. Freud: Eu repito, porém, que nós estamos apenas no início. Eu sou apenas um iniciador. Consegui desencavar monumentos soterrados nos substratos da mente. Mas ali onde eu descobri alguns templos, outros poderão descobrir continentes.

Viereck: O senhor ainda coloca a ênfase sobretudo no sexo?

S. Freud: Respondo com as palavras do seu próprio poeta, Walt Whitman: “Mas tudo faltaria, se faltasse o sexo” (“Yet all were lacking, if sex were lacking”). Entretanto, já lhe expliquei que agora coloco ênfase quase igual naquilo que está “além” do prazer – a morte, a negociação da vida. Este desejo explica por que alguns homens amam a dor – como um passo para o aniquilamento!Explica por que os poetas agradecem a

Whatever gods there be,
That no life lives forever
And even the weariest river
Winds somewhere safe to sea.

(“Quaisquer deuses que existam/Que a vida nenhuma viva para sempre/Que os mortos jamais se levantem /e também o rio mais cansado/Deságüe tranqüilo no mar”).

Viereck: Shaw, como o senhor, não deseja viver para sempre, mas à diferença do senhor, ele considera o sexo desinteressante.

S. Freud: (sorrindo) Shaw não compreende o sexo. Ele não tem a mais remota concepção do amor. Não há um verdadeiro caso amoroso em nenhuma de suas peças. Ele faz brincadeira do amor de Júlio César – talvez a maior paixão da História. Deliberadamente, talvez maliciosamente, ele despe Cleópatra de toda grandeza, reduzindo-a a uma insignificante garota. A razão para a estranha atitude de Shaw diante do amor, para a sua negação do móvel de todas as coisas humanas, que tira de suas peças o apelo universal, apesar do seu enorme alcance intelectual, é inerente à sua psicologia. Em um de seus prefácios, ele mesmo enfatiza o traço ascético do seu temperamento. Eu posso ter errado em muitas coisas, mas estou certo de que não errei ao enfatizar a importância do instinto sexual. Por ser tão forte, ele se choca sempre com as convenções e salvaguardas da civilização. A humanidade, em uma espécie de autodefesa, procura negar sua importância. Se você arranhar um russo, diz o provérbio, aparece o tártaro sob a pele. Analise qualquer emoção humana, não importa quão distante esteja da esfera da sexualidade e você certamente encontrará esse impulso primordial, ao qual a própria vida deve a perpetuação.

Viereck: O senhor, sem dúvidas, foi bem sucedido em transmitir esse ponto de vista aos escritores modernos. A psicanálise deu novas intensidades à literatura.

S. Freud: Também recebeu muito da literatura e da filosofia. Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas. É surpreendente até que ponto a sua intuição prenuncia as novas descobertas. Ninguém se apercebeu mais profundamente dos motivos duais da conduta humana, da insistência do princípio do prazer em predominar indefinidamente. O Zaratustra E diz: “A dor grita: Vai! Mas o prazer quer eternidade Pura, profundamente eternidade”. A psicanálise, pode ser menos amplamente discutida na Áustria e na Alemanha do que nos Estados Unidos, a sua influência na literatura é imensa, porém, Thomas Mann e Hugo von Hafmannsthak muito devem a nós. Schnitzler percorre uma via que é, em larga medida, paralela ao meu próprio desenvolvimento. Ele expressa poeticamente o que eu tento comunicar cientificamente. Mas o Dr. Schnitzler não é apenas um poeta, é também um cientista.

Vieireck: O senhor não é apenas um cientista, mas também um poeta. A literatura americana está impregnada da psicanálise. Hupert Hughes Harvrey O’Higgins e outros se fazem de seus intérpretes. É quase impossível abrir um novo romance sem encontrar referência à psicanálise. Entre os dramaturgos, Eugene O’Neill e Sydney Howard têm profunda dívida para com o senhor. “A The Silver Cord”, por exemplo, é simplesmente uma dramatização do complexo de Édipo.

S. Freud: Eu sei e apresento o cumprimento que há nessa constatação. Mas tenho receio da minha popularidade nos Estados Unidos. O interesse americano pela psicanálise não se aprofunda. A popularização leva à aceitação superficial sem estudo sério. As pessoas apenas repetem as frases que aprendem no teatro ou na imprensa. Pensam compreender algo da psicanálise porque brincam com seu jargão! Eu prefiro a ocupação intensa com a psicanálise, tal como ocorre nos centros europeus. A América foi o primeiro país a reconhecer-me oficialmente. A “Clark University” concedeu-me um diploma honorário quando eu ainda era ignorado na Europa. Entretanto, a América fez poucas contribuições originais à psicanálise. Os americanos são julgadores inteligentes, raramente pensadores criativos. Os médicos nos Estados Unidos e ocasionalmente também na Europa, procuram monopolizar para si a psicanálise. Mas seria um perigo para a psicanálise deixá-la exclusivamente nas mãos dos médicos, pois uma formação estritamente médica é, com freqüência, um empecilho para o psicanalista É sempre um empecilho, quando certas concepções científicas tradicionais ficam arraigadas no cérebro estudioso.

(Freud tem que dizer a verdade a qualquer preço! Ele não pode obrigar a si mesmo a agradar a América, onde está a maioria de seus admiradores. Apesar da sua intransigente integridade, Freud é a urbanidade em pessoa. Ele ouve pacientemente cada intervenção, não procurando jamais intimidar o entrevistador. Raro é o visitante que deixa sua presença sem algum presente, algum sinal de hospitalidade! Havia escurecido. Era tempo de eu tomar o trem de volta à cidade que uma vez abrigara o esplendor imperial dos Hasburgos. Acompanhada da esposa e da filha, Freud desceu os degraus que levavam do seu refúgio na montanha à rua, para me ver partir. Ele me pareceu cansado e triste, ao dar o seu adeus).

S. Freud: Não me faça parecer um pessimista (disse ele após o aperto de mão). Eu não tenho desprezo pelo mundo. Expressar desdém pelo mundo é apenas outra forma de cortejá-lo, de ganhar audiência e aplauso. Não, eu não sou um pessimista, não, enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores! Não sou infeliz – ao menos não mais infeliz que os outros.

(O apito de meu trem soou na noite. O automóvel me conduzia rapidamente para a estação. Aos poucos o vulto ligeiramente curvado e a cabeça grisalha de Sigmund Freud desapareceram na distância).

Comentário "Duas Notas" e reflexões sobre o crack... Debates psicanaliticos

Compartilho com vocês algo que escrevi no contexto da pós-graduação em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes, e com a ajuda de meu esposo e melhor interlocutor, Luís Fernando. Trata-se de um comentário ao texto lacaniano "Duas Notas sobre a Criança", que pode ser lido na íntegra aqui: http://acpsicanalise.org.br/index.php?option=com_content&view=a...
O primeiro comentário que Lacan faz neste texto, que resume o que é primordial considerar no atendimento à criança, é que o sintoma da criança responde ao que há de sintomático na estrutura familiar. A criança carrega consigo uma série de desejos inconscientes dos pais, de ideiais e projeções que, inevitavelmente, serão frustrados. Pais psiquicamente saudáveis saberão, em algum grau, que embora esses seus desejos sejam constituintes da criança e lhe dêem vida, ela não irá satisfazê-los, sob pena de adoecer.
Lembremos que sintoma não é doença. Na medicina, sintoma “significa algo que não vai bem, algo de anormal e bizarro, uma alteração de função e alerta de doença”. A psicanálise nos ensina que o sintoma é o representante da verdade. E Lacan frisa que esta verdade que o sintoma encobre é a do casal, dos adultos que criam esta criança. É aí que está a doença, no mundo dos adultos – a criança, que tem uma estrutura egóica mais frágil, carrega o sintoma que encobre a doença localizada alhures.
Conclusão lógica: os pacientes em tratamento deverão ser os adultos, não a criança. A transformação familiar possibilitada pela análise tem o poder de fazer desaparecer o sintoma da criança – os adultos, mais amadurecidos psicologicamente, com mais acesso à linguagem, têm maior abertura à intervenção terapêutica, têm mais condições de acessar tais verdades. Isto é mais difícil de acontecer quando o sintoma que toma a criança corresponde à subjetividade da mãe, quando ela é submetida ao papel de corresponder às fantasias da mãe e não é reconhecida como um sujeito com desejo próprio. A ausência real do pai pode facilitar esta tomada da criança pela mãe, mas Lacan deixa claro que é em termos de função paterna que a mediação deve acontecer, ou seja, que o pai deve estar presente no discurso da mãe mediando esta relação de modo que o filho possa realizar o objeto a, o objeto de desejo da mãe e, ao mesmo tempo, concretizar seus próprios desejos, correspondendo e também se libertando dos desejos dos pais. A função paterna garante a relação terciária em contraposição à dual, que é uma relação sem saída, de submissão da criança aos desígnios da mãe.
Quando o sintoma é somático, Lacan afirma que o desconhecimento da verdade perturbadora é garantido ao máximo, pois não há questionamento quando o que acomete o filho não é uma dor emocional, mas um órgão, uma disfunção fisiológica. Na nossa cultura, não nos vemos responsáveis pelo que se passa no nosso corpo, é como se ele nos fosse alheio e independente, restando ao médico cuidar e restaurar. Diante da criança doente, que não sara, todos se sentem vítimas.
Na segunda nota, Lacan aponta algo muito importante: a função que sustenta e mantem a família conjugal é a transmissão de uma constituição subjetiva do sujeito através de um desejo parental. A subjetividade humana se constitui pela referência constante ao pai e à mãe, ou a quem possa cumprir tais funções - e esta é uma função que, ao contrário da sobrevivência biológica, só pode ser garantida na família, nas suas diversas formações. A função materna, que fala de cuidados e interesses particularizados, de inclusive demandar à criança que realize a presença do objeto a; e a função paterna, de encarnação da Lei e de inserção na cultura, na civilização.
No atendimento a adolescentes usuários de drogas, questiono-me constantemente acerca deste uso enquanto sintoma familiar. Esta leitura das Duas Notas, entretanto, me suscita uma reflexão deste tema de forma mais ampliada; arrisco aqui, portanto, uma análise que chamarei de social da questão do uso de drogas por adolescentes.
Interessa-me particularmente pensar a respeito do crack, uma vez que, seguindo a reflexão lacaniana, ele ocupa uma função como a de um sintoma somático, aquele que garante maximamente o desconhecimento da verdade geradora de sofrimento. O crack é uma droga que as famílias, a mídia, os usuários concordam que “domina” quem a usa. De fato, seu grande poder de dependência faz com que o usuário tenha seu repertório de vida rapidamente restrito à obtenção e uso, mas isto não significa que não haja subjetividade mesmo aí onde reina o entorpecimento.
Será que podemos pensar que o adolescente usuário de crack é o elo mais frágil da sociedade que é quem na verdade está adoecida? Pensemos a função materna e paterna nem termos de estruturas sociais. Penso que que cumpre o lugar da função materna sejam, por exemplo, os serviços de saúde e de assistência social. Será que estes serviços conseguem dar uma atenção amorosa e particularizada ao adolescente que os procuram, e depois o permite romper com as suas expectativas afirmando seus próprios desejos? Em minha prática, não percebo que a saúde, a assistência social ou a educação consigam desenvolver programas na perspectiva do próprio adolescente, de modo que ele possa se sentir acolhido. As ações voltadas a este público parecem sempre ter em conta a visão do adulto sobre a adolescência, sendo marcadas por seus preconceitos e equívocos de comunicação. O atendimento ao adolescente usuário de drogas, por exemplo, costuma ter o foco do fim do uso e a tal valorização da vida. Que serviço tem condições de acolher este comportamento como uma comunicação e se por a escutar o jovem verdadeiramente despido de pressupostos para depois propor intervenções e aceitar que ele as cumpra - ou não? Entendo que esta seria uma função primordial, calcada na função materna, destes serviços, que lhes dariam a possibilidade de dar um lugar para o adolescente em sofrimento.
As estruturas judiciais estão no papel da função paterna na sociedade, o Conselho Tutelar, os centro de socioeducação. Mas também estes só podem ser eficazes se puderem desenvolver uma relação amorosa com o adolescente que gere o sentimento de que obedecer é melhor que não obedecer. Para que a função paterna seja exercida, o filho precisa se sentir querido pelo pai e admirá-lo, ou a Lei que ele introduz se torna algo a ser combatido. As experiências exitosas de socioeducação são as que conseguem, muito além de punir, apoiar o adolescente a fazer parte de uma comunidade, e aprender que abrir mão de algumas vantagens em nome da coletividade é bom. De toda forma, estas experiências exitosas são a minoria, porque a ideologia de individualismo e da felicidade a qualquer custo marcam mais.
A adolescência tem sido a moratória de vida em que os desejos dos adultos são depositados. O status de sujeito que tudo pode realizar (pela maturidade de seu corpo e psiquismo), mas não tem os compromissos do mundo adulto, é invejado e desejado pelos próprios adultos. Entretanto, a partir do momento em que o adolescente decifra o desejo recalcado dos adultos e o realiza, ele é repreendido, excluído. Talvez neste dilema esteja a chave para uma abordagem mais honesta do problema. Entretanto, há um arcabouço ideológico bastante conciso para que a sociedade - adultos e adolescentes - continuem a declarar guerra ao crack e a não refletir a respeito. Cultivar a ideia de que o crack é um ente autônomo ("combater as drogas") compactua com o não querer saber sobre o desejo de quem decide usá-lo. Propagar o plano de que o tratamento para o dependente de crack começa pelo isolamento compactua com a desresponsabilização de todos pelo uso - inclusive do próprio usuário. Apoiar as intervenções religiosas (como é o senso comum e como inclusive alguns governantes tem feito) dá a entender que não há resolução humana para o problema.
Advogo aqui que a solução para o problema do crack passa por repensar as estruturas sociais que recebem o usuário (escola, fórum, saúde etc) de modo que elas possam cumprir suas funções tendo em vista as necessidades do adolescente. Que estes sujeitos possam ser reconhecidos como cidadãos com direito a políticas públicas específicas e atenciosas. E me parece muito apropriado que os ensinamentos da Psicanálise inspirem estas políticas.


Bibliografia

CALIGARIS. A adolescência. Publifolha. São Paulo, 2000.
CECHINNATO. Psicanálise dos pais In: Pulsional Revista de Psicanálise, anos XIV/XV, nos 152/153, 42-69
FERREIRA e PIMENTA. O sintoma na medicina e na psicanálise - notas preliminares. In: Revista Med Minas Gerais, 2003:13(3) p221-8.
LACAN. Duas notas sobre a criança. In: Ornicar? n 36, 1986.
 
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Aquisição da Linguagem ... debates psicanaliticos


 
Em 1500 Pero Vaz de Caminha escreve assim, falando sobre o descobrimento do Brasil, uma escritura que declara oficialmente (certidão de nascimento do Brasil) as terras brasileiras."Easy segujmos nosso caminho per este mar delomgo ataa terça feira doitauas de páscoa que foram xxj dias dabril que topamos alguus synaaes de tera seemdo da dita jlha segundo os pilotos deziam obra de bjc lx ou lxx legoas. os quaaes hera muita camtidade deruas compridas a que os mareantes chama botelho e asy Outras aque tambem chama Rabo dasno.Eaaquarta feira segujmte póla manhãã topamos aves aque chama fura buchos. e neeste dia aoras de bespera ouuemos vista de terá primeiramente dhuu gramde monte muy alto. e Redomdo e doutras serras mais baixas ao sul dele e de terra chãã com grandes aruoredos ao qual monte alto ocapatam pos nome o monte pascoal" (Bagno, 2008, p 165) Entendo que há mudança na linguagem, senão estaríamos ainda saindo do grunhido. Pensando na ontogenia que segue o mesmo percurso da filogenia, como bem disse Freud, então a linguagem transgride. Contudo como a linguagem do infante transgride e se estrutura em uma outra forma que não a do enunciado? Bom temos que entender que este infante é inserido na linguagem do significante, caso contrario teriamos que aceitar que isto é natural e não cultural. Então produzir cadeia significante é prática do humano e anterior ao vivente (aquele que vivencia). Concordo com Mitrá quando diz que o universo da comunicação é dividido. Contudo o babuíno também tem linguagem corporal, pois ao "arreganhar" os dentes para seu semelhante também passa uma mensagem, mas isto é enunciado. O que difere o humano dos outros animais é a enunciação e aí o humano deixa de ser animal e passa a sujeito da enunciação, ou deixa de ser vivente e passa a experiente. Quando uma mulher entra no consultório vestida de forma erotizada e toda de preto e ao ser perguntada sobre a forma de se vestir e de chegar, ela responde que “não sabe”, mas teve vontade de colocar aquela roupa. Entendo que há uma linguagem, contudo esta linguagem sai do enunciado e passa a enunciação quando busca ser escutada e insiste para isto. Então a demanda de escuta ou de trabalho na práxis do analista, procura quem escuta e fale deste lugar de enunciação. Neste ponto deixa de ser dia-logo e passa a com-versa, ou seja, não são mais dois saberes (dia-logo) e sim um só saber (com-versa) o saber deste que fala e o analista interpreta. Mas pra que linguagem corporal? Se o humano sabe falar e isto é bem mais prático e eficiente para a enunciação, como para o enunciado. Algumas pessoas dizem que a linguagem corporal é o corpo falando (“o corpo fala”). Fala sim, mas é pela boca e não por expressão corporal. Quero perguntar a Mitrá se falar, no sentido mesmo da palavra, é verbalizar ou produzir palavras? De vivente a experiente, de pessoa que produz enunciado a sujeito da enunciação, como pruduzir uma forma, não falo aqui do conteúdo ou a singularidade da cadeia e sim da mesma forma de linguagem que se repete nos sujeitos. Entendo que há significantes que são ofertados (holding-winnicott), e que alguns sejam aceitos e então transmitidos e produzem a linha familiar e então talvez aí sejam inseridos os viventes e mostrem a possibilidade de mostrar e esconder ao mesmo tempo (carta roubada). Então aí o sujeito é produzido e produz ao mesmo tempo, ou seja, é instituído e passa a instituir esta forma de linguagem. Contudo para este sujeito que agora ascende a ordem do significante, antes não existia esta linguagem. Se pensarmos no partilhado a linguagem do significante e sua forma é anterior ao sujeito, mas como se antes não havia sujeito, então é anterior só ao vivente. Contudo a linguagem significante é paralela em evento ao surgimento do sujeito do privado, pois um forma o outro. São distintos, mas um não existe sem o outro. Como venho expressando, neste texto, um infante é então iniciado na forma da linguagem inconsciente a partir de um significante ofertado - “a partir deste outro primordial, que através de seu desejo, o "insere" em uma cadeia discursiva...” (Josué) Então deve haver significantes, vindo do outro, que a partir destes significantes este sujeito vai construindo sua cadeia que chamo de conteúdo singular. Chegamos agora a prática analítica. Há um inconsciente estruturado como linguagem, então qual a intencionalidade do analisando ao falar para o analista? Quando a mensagem tem intenção de ser decifrada? Entendo que é quando este sujeito encontra um alguém que escuta esta linguagem que insiste. Esta demanda simbólica deste um que interpreta a mensagem de um grande Outro (Outrão). Quando esta mensagem tem endereçamento, pois a medida que este interpreta o desejo vai sendo apresentado e representado. Um desejo que alivia, pois desejo é demanda de algo e falar alivia a tensão, mesmo que seja falando sem falar ou falando desta sujeição pelo significante.
 
cred Comentário de Paulo César Pacheco 
 
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Temas em debate I castração

Neste dia, tentei articular a categoria de análise - castraçao - de Freud com o conceito de Ideologia, em Marilena Chauí;
Em síntese: a castraçao pode ser entendida como "contorno e borda da pulsão" em que a sublimação dos instintos seria uma das modalidades de defesa contra as pulsões. Segundo Freud, a humanidade progrediu com o sacrifício dos instintos, ou seja, a sublimaçao dos instintos operou o desenvolvimento da cultura. O preço que pagamos pela civilização é uma perda da felicidade pela intensificação do sentimento de culpa. Toda neurose oculta sentimentos inconscientes de culpa que fortificam os sintomas usados como punição.
Sobre o conceito: a funçao da Ideologia seria a de alienar o sujeito da existência das divisões sociais como divisões de classes.
À guisa de conclusão: Da mesma maneira que o "sintoma aliena o sujeito da castração", a ideologia aliena o homem da exploraçao.

Discussão no GE, 31/05/10, sobre ÉTICA

Pedrinho Guareschi (2009) explicita que a Ética resulta das práticas e das relações sociais e se constitui numa crítica à moral dominante. Aponta que se for consolidada a partir da lógica dialética analética poderemos contribuir para a transformação das relações sociais de produção dos bens materiais e imateriais. Continuo me perguntando sobre a relação deste conceito com o do "divã ético" discutido no ano passado pelo Josué Cruz. Guareschi afirma que a ética se constrói a partir do discurso. Cruz (2009) pontua que o processo analíto se dá a partir do discurso, pois alí quem fala não sabe do que fala. Conclui que esse processo dá existência ao inconsciente, despertando o analisante do sono acordado. Neste sentido, dá para concordar com Guareschi de que "fora da comunicação não há salvação"... e finalizar com Cruz: o analisante precisa "falar daquilo que diz respeito a um saber não sabido". Daí sua provocação: "No divã se conversa! Mas trata-se de uma conversa específica, pautada numa ética, sustentada no (e pelo) divã. Divã ético!


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Sobre o rigor - texto do Psicanálise e/ou...

Sobre o rigor - texto do Psicanálise e/ou...

Segundo Antônio Quinet, em seu livro As 4+1 condições da análise, foi a partir de um texto escrito por MoustaphaSaphouan e alguns colaboradores que os princípios de funcionamento do passe foram votados e adotados em 1969 pela Assembleia Geral da Escola Freudiana de Paris. E o referido texto estava sustentado nos princípios apresentados por Lacan em sua Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola.  Apresento Saphouan desta maneira afim de lhe dar crédito, pois meus apontamentos tomam como principal apoio dois textos desse autor. O primeiro, datado de 1988, é o livro A transferência e o desejo do analista. O segundo, de 2007, é o artigo Sobre a distinção lacaniana entre a psicanálise terapêutica e a psicanálise didática, publico no livro Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão, nos seminários.
                Conforme Saphouan apresenta em seu artigo, nos textos publicados no Anuário da escola Freudiana de Paris, Lacan definia a sua concepção do funcionamento de sua escola. E nesses textos Lacan estabeleceu uma diferença entre a psicanálise didática “pura” e a psicanálise terapêutica, qualificada de “aplicada”. E essa diferença sustenta-se no argumento de que a psicanálise didática recusa qualquer relaxamento de seu rigor, ao qual a psicanálise terapêutica convidaria.
                Saphouan relata uma lembrança que remonta a década de 1960. Ao receber um pedido de análise por parte de um jovem médico, em função do que escutara, perguntou-se se não se trataria de uma melancolia incubada. Consultou Lacan a respeito, e teve como resposta o seguinte: “é o tipo de demanda que não devemos hesitar em aceitar”. Tal resposta confirma, segundo Saphouan, a posição lacaniana frente à condição terapêutica da psicanálise, que acarreta responsabilidades a serem assumidas pelo psicanalista. Mas de que se trataria o rigor ao qual Lacan se refere a respeito da análise didática?     
                É nesse contexto que recorremos à primeira referência a Saphouan. A respeito da incerteza reinante a respeito do fim da análise, ele cita Lacan, em seu artigo Do sujeito enfim em questão: “não seria melhor conceber a psicanálise didática como a forma perfeita na qual se esclareceria a natureza da psicanálise simplesmente: ao fazer-lhe uma restrição? Essa é a inversão que antes de nós não veio à cabeça de ninguém. Contudo ela parece impor-se. Pois, se a psicanálise tem um campo específico, a produção terapêutica justifica aí curtos-circuitos, até mesmo comedimentos; mas se existe um caso para proibir qualquer redução semelhante, deve ser o da psicanálise didática”.Saphouan faz questão de esclarecer. “Entendamos: a ‘inversão’ não repousa numa virtude ou pureza própria à psicanálise didática. Trata-se, antes, de uma regra metodológica, que consiste em suspender a preocupação terapêutica”.
                Seria então a suspensão da preocupação terapêutica o rigor ao qual a análise didática não poderia relaxar. Seguindo Saphouan, a questão não reside no fato de que aqueles que vêm a análise afim de se tornarem analistas sejam feitos de um metal diferente daqueles que recorrem a análise afim de se curar. A questão é que tanto uma demanda quanto a outra revelam-se subordinadas a outro fim, que pode ser descrito como uma possibilidade para o sujeito ver o que há no fundo de sua angústia. E é do movimento dessa experiência que a análise didática não deve se desviar em relação à preocupação terapêutica.
                Lacan chega a afirmar que alguém mal inspirado poderia suspeitar que a formação do analista é o que a psicanálise teria de mais defensável a apresentar.Quinet nos lembra que, para Freud, toda psicanálise é terapêutica. E que com Freud aprendemos que a própria análise do analista é a condição para o exercício da psicanálise. Já para Lacan, ainda com Quinet, toda análise é didática quando levada a seu término, pois ela produz um analista. Isso porque o processo analítico pode conduzir o sujeito a um ponto em que de analisante ele vira analista.
                Retomemos a questão do rigor. Saphouan afirma existirem dois tipos de análise. Um tipo que se dirige ao eu, que comporta uma série de noções, tais como: parte sadia do eu, aliança terapêutica, fim de análise como identificação com o analista. E outro tipo que se dirige ao sujeito do desejo inconsciente. Saphouan considera rigorosa aquela análise que “procede de uma justa apreciação do desejo ou da fantasia inconsciente e da dinâmica que ele põe em ação: angústia, defesa, acting out, etc”.
                Baseando-se no contraste de ter feito supervisão tanto com Lacan quanto com vários outros colegas, Saphouan relata qual a concepção de Lacan da formação ou da transmissão da psicanálise em geral. Lacan não procurava ensinar como conduzir uma análise. Ele deixava com que cada um agisse o melhor que pudesse, de maneira que cada um tinha a incumbência de averiguar se estava suficientemente preparado, ou se o acúmulo de indícios, tais como: contratransferências, intervenções que visam atenuar a culpa, o levavam a perceber que já era hora de retomar a sua análise. De forma que, para Lacan: “formar um analista era, acima de tudo, dar todas as oportunidades para que algo da ordem do analista se realizasse”.
                O curioso é que, embora todos concordem que o analista deve levar sua análise até o fim, ninguém, antes de Lacan se preocupou em esclarecer de se trata esse fim. E mesmo Lacan, com todo seu esforço, fracassou nessa tentativa. O dispositivo oferecido por Lacan para ter notícias a respeito desse fim, o passe, foi um fracasso. Quem diz isso é Saphouan, o mesmo que escreveu os princípios de funcionamento do passe em 1969. Contudo, isso não aponta para um equívoco de Lacan, que inutilizaria essa experiência acumulada. O que se impõe é que a questão do fim de análise deve ser reconsiderada, “sobretudo se admitirmos a parcela de desconhecido que há em toda escolha, bem como em toda decisão – exceto nos casos em que a presença da fantasia é maciça”.