domingo, 15 de julho de 2012

O laço possivel sobre a transferencia na clinica paranoica

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
TULÍOLA ALMEIDA DE SOUZA LIMA
O laço possível: considerações sobre a transferência na clínica da paranoia
Belo Horizonte
2011
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TULÍOLA ALMEIDA DE SOUZA LIMA
O laço possível: considerações sobre a transferência na clínica da paranoia
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em Psicologia
Área de concentração: Estudos Psicanalíticos
Orientador: Prof. Dr. Antônio Márcio Ribeiro Teixeira
Belo Horizonte
2011
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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
150 Lima, Tulíola Almeida de Souza
L732l O laço possível [manuscrito] : considerações sobre a
2011 transferência na clínica da paranoia / Tulíola Almeida de
Souza Lima. -2011.
110 f.
Orientador : Antônio Márcio Ribeiro Teixeira.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
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1. Psicologia - Teses. 2. Psicanálise - Teses 3. Psicoses - Teses 4. Paranoia - Teses .5. Psicoses – Teses. 6. Saúde mental – Teses. I. Teixeira, Antônio Márcio Ribeiro. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III.Título
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Agradecimentos
Agradeço ao meu mestre e orientador Antônio Teixeira pelas indicações preciosas ao longo da elaboração deste trabalho, assim como pelos ensinamentos em psicanálise e psicopatologia ao longo de nosso percurso durante a minha graduação.
Agradeço aos participantes da banca de qualificação, Mauro Cordeiro de Andrade, Ilka Ferrari, Cleyton de Andrade pelas contribuições; e especialmente à Ângela Vorcaro, quem me incentivou nesta empreitada desde a sua ideia mais inicial.
À professora Márcia Rosa, pelas interlocuções tão proveitosas, especialmente durante o estágio docente.
Aos colegas da FAFICH e amigos que acompanharam as discussões durante o processo de escrita.
À Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais, pelo período em que me concedeu a bolsa de mestrado.
Ao Frederico Feu pela acolhida tão valiosa destes últimos anos, decisiva para a execução desse passo.
À amiga Priscila pela presença e conversas confortadoras.
Aos colegas de estudos vinculados ao Mater Dei/FEDEPSY, pelas reuniões tão frutíferas.
Aos colegas da Clínica Social de Psicanálise e Psiquiatria, pelo apoio.
Agradeço à paciente “Cláudia”, que sem saber me pôs a trabalho durante os atendimentos e depois deles.
À Andrea, Luiz, Diego, Marcela e Raisa pelo acolhimento durante meu exílio ao final do processo.
Aos meus pais.
E, finalmente, ao Pablo e ao Ian, pelo apoio e convívio diário, repleto de alegrias.
... Não me faltaram incentivos para chegar até aqui!
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RESUMO
Esta dissertação tem o objetivo de expor alguns princípios para a clínica psicanalítica da paranoia, notadamente no que se refere ao manejo da transferência. Começamos apresentando um caso clínico acompanhado em um ambulatório de psiquiatria, cujo diagnóstico de paranoia foi delimitado com alguma certeza, mas seu manejo exigiu esclarecimentos sobre o funcionamento da estrutura psíquica em questão. Por isso o primeiro capítulo é destinado à explicitação da manifestação clínica da paranoia, com a utilização da teoria estabelecida por Freud e por Lacan sobre a mesma. Em seguida analisamos o fenômeno da transferência, delimitando primeiramente como ela ocorre na neurose, e depois suas particularidades na psicose paranoica. A partir da bibliografia sobre esse tema, utilizando também alguns fragmentos sobre a postura do analista em tais tratamentos, traçamos as possibilidades de manejo, no qual o analista responde à estrutura tentando se esquivar de uma posição que sirva para incrementar o delírio do paciente. O manejo consiste em permitir a manutenção do vínculo, sem que o analista passe a representar um Outro que vise o sujeito. Observamos a inflação do imaginário decorrente de um surto e atribuímos sua condição de ocorrência a uma falta no simbólico. A intenção de alguém que passa a perseguir o sujeito, ou ainda amá-lo e procurá-lo por isso, é entendida como uma encarnação da exigência de gozo do Outro, do qual o sujeito paranoico passa a ser o objeto. É o que caracteriza a irrupção do real, levando por vezes o paciente à procura de tratamento. Estabelecemos assim que um objetivo deste é a retificação do Outro, de modo que o sujeito passe a lidar com uma nova referência simbólica que contribua para sua identificação nesta relação. A hipótese que nos conduz ao terceiro capítulo passa por essa localização do sujeito perante o Outro, o que permite uma forma de estabilização e possivelmente uma inserção no laço social. Observamos que as saídas guiadas pelo imaginário nem sempre permitem uma solução duradoura para os sujeitos. É por isso que o tratamento funciona como uma ferramenta para esta descompensação, ao se mostrar como um espaço de endereçamento do sujeito para suas soluções particulares, às vezes mais ou menos estáveis, dependendo de cada caso. A teoria lacaniana é o nosso referencial, que utilizamos não só como parâmetro para o presente trabalho, mas também como guia para o atendimento realizado no ambulatório. A bibliografia utilizada vai além das referências clássicas da psicanálise, passando por autores de orientação lacaniana que têm experiência clínica com a paranoia – campo em que encontramos vários trabalhos publicados. Ao final da dissertação abordamos o modo de tratamento da psicose referenciado por uma instituição de saúde mental, cujo modelo tem se consolidado atualmente, comparando este funcionamento com a instauração de uma nova figura do Outro que dê espaço para a solução de cada sujeito paranoico. A aposta que fazemos é a de o tratamento psicanalítico da psicose, com adequado manejo da transferência, permitir alguma estabilização para um determinado sujeito.
Palavras-chave: Psicanálise; Clínica da psicose; Paranoia; Manejo da Transferência; Saúde Mental.
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ABSTRACT
This dissertation aims to expose certain principles for clinical psychoanalysis of paranoia, specifically regarding the maneuver of transference. We begin presenting a clinical case followed in a psychiatric ambulatory, whose paranoia diagnosis was drawn with some certainty, but whose maneuver required clarification regarding the functioning of the psychic structure in question. Therefore, the first chapter explicits paranoia‟s clinical manifestation, using Freud‟s and Lacan‟s theories on the subject. Afterwards, we analyze the phenomenon of transference, establishing how it occurs in neurosis and its particularities in paranoiac psychosis. Using the bibliography on this theme and also some fragments on the analyst‟s position in such treatments, we trace the maneuver possibilities, in which the analyst answers the structure trying to avoid a position that serves to increment the patient‟s delirium. The maneuver consists in keep the link without letting the analyst become the representation of an Other who aims at the subject. We observe the inflation of the imaginary as result of a surge and we attribute its condition of occurrence to a lack in the symbolical. The intention of someone who starts to follow the subject, or to love him/her and to search for him/her, is understood as an incarnation of the Other‟s demand for enjoyment, of which the paranoid subject becomes the object. That is what characterizes the eruption of the real, sometimes leading the patients to look for treatment. We establish that one of its aims is to rectify the Other in a way that the subject starts do deal with a new symbolical reference, contributing to his/her identification in this relation. The hypothesis that takes us to the third chapter passes by this localization of the subject in front of the Other, which allows a form of stabilization and possibly an insertion in the social bonds. We observe that the turnouts guided by the imaginary not always allow a long lasting solution for the subjects. That is why the treatment functions as a tool for this decompensation by showing itself as a space for the subject to address his/her particular solutions, sometimes more or less stable, depending on each case. Lacanian theory is our reference, which we use not only as a parameter for the present work, but also as a guide for the treatment realized at the ambulatory. The bibliography used goes beyond psychoanalysis‟ classic references, passing by authors of lacanian orientation who have clinical experience with paranoia - a field in which we found many published works. In the end of the dissertation, we approach the mode of treatment of psychosis referenced by a mental health institution, whose model has consolidated itself presently, comparing its functioning with the introduction of a new figure of the Other that gives space for the solution of each paranoiac subject. The bid we make is that the psychoanalytical treatment of psychosis, with adequate transference maneuver, allows some stabilization for a determined subject.
Key-words: Psychoanalysis; psychosis clinic; paranoia; transference maneuver; mental health.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO, 8
Capítulo 1. A manifestação clínica da paranoia, 12
1.1. Fragmento do caso de Cláudia, 12
1.1.1. História Clínica, 12
1.1.2. A inflação do imaginário, 14
1.1.3. Manejo clínico, 16
1.2. A paranoia para Freud, 18
1.2.1. Comentário sobre o caso Schreber, 20
1.2.2. Outras indicações de Freud sobre a paranoia, 27
1.3. As formulações de Lacan sobre a psicose paranoica, 31
1.3.1. O caso Aimée, 33
1.3.2. As formulações sobre a psicose no começo do ensino de Lacan, 35
1.3.3. Formulações posteriores de Lacan sobre a psicose paranoica, 40
Capítulo 2. O fenômeno da transferência e a resposta do analista ao mesmo, 43
2.1. A transferência neurótica, 44
2.2. A transferência psicótica – paranoica, 51
2.3 A resposta do analista à transferência paranoica: modos de manejo, 58
Capítulo 3. As soluções paranoicas e a direção do tratamento, 75
3.1. A homossexualidade paranoica diagnosticada por Freud - uma solução especulativa, 76
3.2. Sobre o investimento libidinal e natureza do laço, 80
3.3. O fator libidinal e a localização do ideal pela transferência, 85
3.4. Algumas hipóteses sobre a estabilização na psicose, 87
3.4.1. Comentário sobre a função do sinthoma, 90
3.4.2. O tratamento do gozo na paranoia, 91
3.5. O tratamento e a oferta de um Outro retificado, 94
3.5.1. A instituição como outro Outro, 96
3.5.2. Para além do objetivo clínico, 100
Considerações finais, 104
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Referências bibliográficas, 106
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INTRODUÇÃO
Na obra de Freud podemos recolher momentos diversos nos quais ele menciona a paranóia, mesmo que haja somente um grande trabalho, sistematizado, a esse respeito: a análise do caso Schreber, realizada a partir das memórias que este escreveu e publicou. No entanto, já em alguns rascunhos e cartas enviados a Fliess, antes mesmo de publicar a Interpretação dos Sonhos - obra inaugural da psicanálise - Freud deteve-se sobre o tema da paranoia, tentando encontrar uma explicação para a formação dos sintomas nesta doença.
Mesmo tendo se debruçado sobre os sintomas paranoicos, Freud manteve-se descrente ao longo de sua produção quanto ao sucesso do tratamento pela psicanálise nesses casos, com exceção de alguns raros momentos em que ele mencionou a hipótese de uma adequação da técnica à referida nosologia, conforme veremos. Mas sua postura, de modo geral, se exprimia pelas dificuldades colocadas pelos distúrbios narcísicos psicóticos, os quais “só podem ser decifrados por observadores formados no estudo analítico das neuroses de transferência (...). Primeiro será necessário que se forme uma geração de psiquiatras que tenha passado pela escola da psicanálise como ciência preparatória” (Freud, 1916-17a/1996, p.424). Nessa época o autor admitia que poucos psicanalistas tinham contato com quadros psiquiátricos, apesar do interesse que esses mesmos indicavam enquanto espaço de interseção entre a psiquiatria e a psicanálise. De todo modo, era um período em que as condições até então estabelecidas permitiam somente um olhar sobre “o muro narcísico” – explicitamente um bloqueio para a técnica.
Seguindo a constatação de a paranoia ser um campo de convite à interseção mencionada, nos baseamos ainda em Freud, que explicitou a necessidade de contribuição de um campo ao outro: “a psicanálise relaciona-se com a psiquiatria aproximadamente como a histologia se relaciona com a anatomia: uma estuda as formas externas dos órgãos, a outra estuda sua estruturação em tecidos e células” (Freud, 1916-17b/1996, p.262).
A indicação de uma apreensão do fenômeno paranoico a partir do que se sabe sobre as neuroses de transferência representa para nós uma indicação não só para a clínica, mas também para a metodologia desta pesquisa: trata-se de sabermos como a transferência se desenvolve, partindo justamente da neurose, para então nos voltarmos sobre sua especificidade na paranoia e por consequência às condições de seu manejo. Este é de fato o eixo do nosso trabalho.
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Esta dissertação parte da análise de um caso de paranoia atendido em um ambulatório de psiquiatria, o qual levantava questões a respeito do manejo da transferência estabelecida, bem como sobre as condições de estabilização para a paciente. A partir do esforço de realização desta prática a pesquisa sobre a paranoia foi sendo mais bem delimitada, até definir-se como um roteiro para a escrita do presente trabalho.
Assim, no primeiro capítulo será apresentado o caso de tal paciente, cujo diagnóstico de paranoia foi feito devido ao fato de ela apresentar um delírio persecutório consideravelmente sistematizado. Em um segundo momento, vamos tratar das considerações de maior importância de Freud a respeito desta neurose narcísica, com o intuito de averiguar a manifestação clínica do quadro e o quê dessas elaborações pode nos ser útil na clínica atual. Ao longo dessa discussão retomaremos o caso de Schreber, que contribuiu para que Freud desenvolvesse sua teoria sobre a psicose e o funcionamento do eu - instância psíquica que se mostra particularmente alterada na nosologia em questão.
Posteriormente, a partir do caso apresentado, tentaremos percorrer parte da obra de Lacan a respeito do mecanismo psíquico da psicose, pois na nossa prática consideramos fundamental investigar o que leva o paciente a produzir os sintomas psicóticos, dado este que delimita parte da condução do tratamento.
Em relação aos trabalhos de Lacan sobre a psicose paranoica, abordamos em primeiro lugar o caso apresentado pelo autor na sua tese de doutorado, conhecido como Aimée. Utilizamo-nos dessa tese em parte porque não negligenciamos a influência que a psicanálise e a psiquiatria têm uma sobre a outra, ainda que priorizemos a situação clínica - na qual o sujeito procura um atendimento -, a despeito das diferenças de tratamento que cada uma dessas duas áreas pode propor.
A esse respeito, o próprio Freud afirmou que a psiquiatria tornou-se “o primeiro campo a que a psicanálise foi aplicada e desse modo permaneceu desde então” (Freud, 1924a/1996, p.228). A articulação entre ambas foi evocada novamente pelo autor ao argumentar sobre a importância do estudo psicanalítico das neuroses para se compreender a psicose, sendo a psicanálise, deste modo, “destinada a tornar possível uma psiquiatria científica do futuro, que não precisará contentar-se com a descrição de quadros clínicos curiosos” (p.229). Consideramos que um estudo sobre as psicoses pode ser beneficiado se percorrermos parte do conteúdo da psiquiatria, para depois continuarmos na nossa investigação a respeito do manejo clínico com a paranoia de acordo com a bibliografia psicanalítica, especificamente.
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Outro aspecto priorizado, quando nos localizamos nessa interface, refere-se aos sintomas e ao modo como nos posicionamos diante dos mesmos, uma vez guiados pela psicanálise. Assim, se em um viés psiquiátrico há necessidade de suprimir os sintomas, entre os quais a manifestação delirante, por exemplo, que acaba sendo rapidamente combatida com fármacos; na psicanálise, por outro lado, temos provas bastantes para considerar tal formação delirante uma formulação de alto valor subjetivo, que por isso deve ser escutada e considerada como uma indicação do próprio sujeito a respeito da sua patologia, devendo ser priorizada na condução do tratamento.
Afinal, se o analista se posiciona, em muitas situações do atendimento com o psicótico, como um secretário - alguém que vai acompanhar suas produções e intervir minimamente sobre aquilo que o sujeito lhe traz - resta-lhe observar aonde irá conduzir uma primeira significação delirante, que não raramente possui ligação com o ponto onde às vezes o sujeito se posiciona mais estavelmente após um desenvolvimento do delírio. Esta posição de testemunho será retomada a aprofundada especialmente no segundo capítulo desta dissertação.
Neste percurso poderemos vislumbrar o que levou Freud a afirmar a impossibilidade do tratamento psicanalítico para a psicose, e ainda o que Lacan elaborou a respeito desta prática. A partir daí iremos explicitar o que nos motiva a tentar oferecer este tipo de tratamento, apesar de alguns problemas cruciais enfrentados no mesmo, dentre os quais o manejo da transferência em casos de paranoia, o qual será abordado com ênfase também no segundo capítulo. Nele iremos focalizar, portanto, o tema da transferência, elucidando em que medida ela se especifica nos casos em questão. Além disso, será necessário tratar da erotomania e do risco da passagem ao ato, a fim de delimitar o modo como o paranoico se insere na relação com o outro.
Mesmo que Freud e Lacan sejam os grandes teóricos que nos iluminam nesta prática com pacientes psicóticos, sentimos necessidade de recorrer à obra de outros psicanalistas, dessa mesma orientação, que escreveram a respeito de casos atendidos por eles. Desses trabalhos é possível avançar na teorização sobre o tema a partir de casos mais recentes, de pacientes efetivamente tratados pela psicanálise. Destacaremos especialmente a contribuição de dois autores: Alfredo Zenoni e Colette Soler, que produziram trabalhos que dizem respeito notadamente à postura do psicanalista diante de pacientes psicóticos e aos riscos que ela implica - de o analista tornar-se uma figura do delírio desenvolvido, ou ainda o risco de ele influenciar uma piora de um quadro já desencadeado.
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O propósito desta dissertação é contribuir para esclarecer a posição do psicanalista no tratamento clínico de pacientes paranoicos, notadamente no que se refere ao manejo da transferência nesses casos. Por isso tentaremos, no terceiro e último capítulo, responder à questão da possibilidade de o tratamento psicanalítico propiciar uma estabilização de pacientes paranoicos, caso seja criada neste tratamento uma nova referência simbólica para o sujeito. Embora a clínica envolva particularidades de cada caso, sendo que em cada um ficam questões ora mais claras, ora mais difíceis de serem relacionadas à teoria que temos construída, consideramos ser possível delimitar alguns princípios gerais de conduta, dos quais não podemos nos afastar na prática, apesar do lugar específico em que nos coloca cada um nos atendimentos.
Apesar das ressalvas de Freud sobre a eficácia do tratamento, a orientação de Lacan nos permite atualmente desenvolver uma clínica psicanalítica da psicose paranoica, munidos de vários parâmetros para lidarmos com esta estrutura. Tal como afirmado por Laurent (1989), os analistas agora já assumiram os riscos de atender alguém com uma psicose já desencadeada, apesar de ainda representar uma surpresa situações em que pacientes acompanhados por longo tempo de repente indiquem uma descompensação que revela uma psicose até então não percebida. As dificuldades apresentadas pela psicose são localizadas através do modo como o paciente se coloca em relação ao analista, de modo que a transferência mesma desenvolvida permite a realização do diagnóstico. A questão fundamental é, no entanto, como lidar com a mesma.
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Capítulo 1: A manifestação clínica da paranoia
O relato de caso que vamos apresentar é de interesse particular nesta dissertação, já que toda nossa discussão subsequente sobre o tema pesquisado originou-se das questões levantadas por ele, principalmente a respeito do manejo da transferência na paranoia. Embora, neste sentido específico, o caso não tenha passado por impasses, ele não deixou de nos intrigar a respeito das possibilidades de estabilização da paciente, além da função que tinha para ela toda a elaboração delirante desenvolvida também ao longo do atendimento e antes dele.
1.1. Fragmento do caso de Cláudia
A paciente designada aqui como Cláudia foi atendida em um ambulatório de psiquiatria em Belo Horizonte durante um estágio curricular do curso de psicologia, sendo a sua construção final resultado do mesmo estágio - o qual foi realizado com a supervisão de Antônio Teixeira.
Uma ressalva a ser feita é que as frases e palavras entre aspas apresentadas a seguir referem-se à fala de Cláudia, recuperadas muitas vezes através da nossa memória, e outras tantas de um diário estudantil fabricado no período do atendimento.
1.1.1. História clínica
Cláudia chegou ao atendimento ambulatorial através do encaminhamento de uma estagiária de psicologia do Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que a atendera primeiramente e notara os elementos delirantes de seu discurso persecutório. Naquele momento, estava claro para tal estagiária que a psicoterapia disponível no mesmo serviço não seria suficiente para tratar o caso.
Comigo, no Ambulatório, Cláudia se apresentou logorreica, persecutória, ansiosa, contando-me apressadamente o que estava ocorrendo em sua vida. Desde o ano 2000 uma mulher, a esposa de um primo seu, estava a “perseguindo” – segundo o termo utilizado por ela própria. Este casal morava no exterior há vários anos. A mando dessa mulher já haviam invadido sua casa, roubado seu computador, e Cláudia estava recebendo ligações telefônicas insistentes, das quais ela anotava os números e horários, para rastrear e tentar depois descobrir quem havia ligado. Sua interpretação desses telefonemas lhe indicava que estavam
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querendo “arrombá-la”, por serem 150 números diferentes. Foi curioso o fato de ela me falar de uma pressão logo após, na primeira entrevista, eu lhe perguntar se já havia sofrido de depressão; ela respondeu então que sofria, naquela época, de “uma pressão, mesmo” (sic.). Este uso da palavra parece ter tido um caráter neológico, com uma significação já afetada pelas construções delirantes.
Notamos neste ponto que a significação do suposto arrombamento estava em suspenso; no entanto, Cláudia tinha a certeza de estar concernida a uma outra pessoa, responsável pelas atitudes voltadas contra ela. O momento da interpretação delirante indica, neste caso como em outros, uma vertente da significação retida em um ponto que não deixa dúvidas para o sujeito. Teremos oportunidade de retomar esta condição posteriormente.
A paciente queixou-se de as pessoas a apontarem e de frequentemente receber xingamentos nas conversas virtuais, pela internet. Mencionou que estavam a chamando de puta - sobre este dado, não foi possível saber se era uma alucinação ou uma interpretação delirante. De todo modo, esta queixa não foi explicitada novamente nos encontros subsequentes. Desempregada, dizia que já havia sido aprovada em concursos diversos, mas que nunca a chamaram, pelo mesmo motivo dessa perseguição contra ela, por quererem mal a ela.
Com o decorrer dos atendimentos, fui percebendo as principais características de sua fala. A sua posição de vítima era com frequência anunciada pelos seguintes termos: não sabia por que, com tantas mulheres no mundo, aquela mulher teve que se voltar justamente contra ela. Cláudia deduzia que talvez fosse por inveja, apesar de “não ter nada pra causar inveja”. O conteúdo do delírio não deixava de ser plausível, já que o principal ponto era a perseguição da esposa de seu primo, que seria fundamentada no ciúme da mesma com relação à Cláudia. Ela afirmava ser uma pessoa muito boa, que sempre queria bem a qualquer ser humano.
Quando passava por alguma situação desagradável em sua vida cotidiana, como ter seu computador estragado, ver o modo enigmático como seu celular ligava ou desligava subitamente, falar com alguém que a atendia em uma loja, etc., Cláudia conseguia juntar os dados e descobrir que a pessoa que a desagradou era parente da perseguidora ou tinha alguma forma de contato com a mesma. Ela encontrava semelhanças pelo sobrenome, pelo jeito de a pessoa falar; e sabia que a família daquela morava perto de sua casa, o que fazia com que Cláudia sempre se encontrasse com “aquela gente”. Uma vez disse-me que “às vezes tenta não pensar nessas coisas, mas as evidências confirmam” o que ela já suspeitava.
Outro indício claro de uma relação pautada no imaginário é o fato de Cláudia associar que quando seu primo e sua “ex-esposa” - como ela passou a afirmar em um dado momento -
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estavam com algum problema, tal mulher se voltava contra ela, aqui no Brasil. Quanto à forma do delírio, este se mostrou sistematizado desde o início do atendimento, com as tentativas de explicação racional sobre o que ela passou a sofrer.
Sobre o início dos sintomas foi possível precisar pouco. A perseguição começou após um dia em que Cláudia telefonou para seu primo, “para matar as saudades” (sic.), pois não se falavam há anos. Este telefonema foi sugerido por um tio dela, quem inclusive passou-lhe o número de contato. Mas, ao telefonar, seu primo não estava e quem atendeu então foi a esposa dele, que conversou de modo estranho com Cláudia, segundo seu julgamento: “Pelo jeito que ela falou, já sabia que queria alguma coisa comigo”. Essa mulher teria ficado com ciúmes de Cláudia, e por isso começado a persegui-la, como dissemos. Se algo ficou estranho para ela, a partir de então, a iniciativa da perseguidora, porém, não a enganava.
Um dado de sua história que talvez possa auxiliar a localizar o desencadeamento é que, de acordo com os termos utilizados por Cláudia, com o nascimento do filho caçula seu casamento acabou. Durante o atendimento ela vivia ainda com o marido, mas começara a procurar um serviço judiciário a fim de fazer o divórcio, pois não conviviam bem há 14 anos – tempo que coincide com o nascimento do filho citado.
Após um certo período, Cláudia passou a dizer-me que o que ela queria, mesmo, era viver com seu primo, a quem se referia apaixonadamente. Eles não tinham, no entanto, muito contato, além de conversas esporádicas virtuais ou por telefone. Até o momento em que a acompanhei, ela esperava que ele “aparecesse”, que se separasse definitivamente da esposa, que voltasse ao Brasil e novamente a procurasse. Ela sabia que ele gostava dela, senão ele não a teria procurado, vindo ao Brasil visitá-la certa vez, e tratá-la do modo como o fazia. Notemos que o amor pelo primo parece ter começado depois da iniciativa dele mesmo em procurá-la; a tal ponto que este sentimento foi sendo tratado progressivamente nos encontros que tínhamos. Cláudia passou a responder a ele de acordo com o sinal que ele lhe emitiu.
1.1.2. A inflação do imaginário
A dificuldade deste caso refere-se à consistência do delírio desenvolvido. O diagnóstico de paranoia foi estabelecido a partir disso, já que Cláudia estava nesta posição de ser interessante para os outros. Como em outros tipos de psicose, admitimos que algo se impôs à paciente sem ser simbolizado, retornando nesta forma de produção.
A teorização feita por Jacques Lacan acerca da psicose nos auxilia a perceber o que esteve em questão no caso. Em uma passagem do seu seminário dedicado às psicoses, o autor
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ressaltou que no momento do desencadeamento há algo da ordem de um elemento emocional e uma crise vital nas relações externas, e que o delírio deve ser concebido como um fenômeno elementar, no sentido de que ele caracteriza a estrutura psicótica (Lacan, 1955-56/1985b). O delírio persecutório de Cláudia ilustra que há, sobretudo, uma tentativa constante de atribuir significação ao que é vivido por ela; e indica, ao mesmo tempo, o grau máximo de sua perturbação imaginária.
Sobre a perseguidora, é fato que Cláudia não fala, em sua profusão verbal, de como ela é. Esta mulher que a persegue aparece em seu relato como desprovida de subjetividade, e cumpre somente a função indicada – de querer algo de ruim para Cláudia. O seu delírio possibilita perceber como a ordem simbólica ficou afetada em sua constituição. Assim, por mais inflado que tenha se tornado seu imaginário, é a partir dos efeitos de linguagem que confirmamos seu diagnóstico estrutural.
No referido seminário Lacan se referiu ao conhecimento, enquanto paranoico, dada a sua proximidade estrutural com o modo de pensamento encontrado na paranoia. Conforme acrescentado por Teixeira (2007), na paranoia é evidente o fenômeno do transitivismo, no qual “o sujeito atribui ao outro, assim como ao mundo que o cerca, os mesmos sentimentos que ele vivencia” (p. 128). No delírio produzido por Cláudia vemos como a dimensão imaginária aparece sem nenhuma forma de contenção ou regulação, e por isso, enquanto sujeito, “se exaure na decifração indefinida dos signos que a ele se revelam em seu espasmo interpretativo” (Teixeira, 2007, p. 132).
Passemos a tratar da inocência alegada por Cláudia em diversos momentos de seu discurso. A inocência paranoica é um sintoma recorrente nesta nosologia. Isso se correlaciona ao fato de que o sujeito paranoico localiza o gozo no lugar do Outro, o que, nas palavras de Colette Soler (2007) “significa, ao mesmo tempo, localizá-lo nesse lugar e nomeá-lo, dizer o que ele é” (p. 59). Ao acompanhar o raciocínio de Lacan, quando este formulou que a foraclusão do Nome-do-Pai implica na rejeição da regulação fálica e concomitantemente da castração do gozo que ela supõe, podemos nos perguntar como o sujeito psicótico lida com esse gozo desregulado. O paranoico inocente é aquele que se recusa a responder pelo gozo, e, portanto, o elabora como perseguição, imputando-o ao campo do Outro. Isso que no discurso de Cláudia a caracteriza como uma espécie de vítima indica como é próprio da paranoia transferir para o campo do Outro tudo o que é reprovável.
É devido a esta relação com o Outro que encontramos na paranoia o delírio persecutório e a erotomania. A certeza delirante de ser amado por alguém se relaciona ao fato de o sujeito tentar elaborar sua relação com o arcabouço significante a partir do momento em
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que sua vivência passou a ter uma significação particular. Na erotomania é frequente a posição do objeto almejado se encontrar a certa distância, como se não ela dependesse da presença real do mesmo. Esta condição caracteriza uma solução assintótica, pela qual, no caso de Cláudia, o objeto de amor se encontrava a uma distância que ela não podia percorrer. Isso se assemelha ao que Lacan (1932/1987) afirmou em sua tese sobre a “desproporção com o alcance real da aventura” (p.224) vivenciada também por Aimée, como veremos mais adiante. Admitimos que este adiamento a um futuro a ser alcançado remete à possibilidade de o sujeito se estabilizar, posto que com isso ele mantém certa organização de sua realidade.
Neste ponto, podemos passar ao manejo clínico operado no atendimento de Cláudia no ambulatório.
1.1.3. Manejo clínico
A prática realizada no estágio no ambulatório articulava a psiquiatria à psicanálise. Uma das formulações que nos guiava é aquela de que o delírio deve ser julgado como um fator de organização, e, para tanto, deve-se deixar o paciente falar - para ser possível inclusive a análise de sua estrutura. Porém, diante de um paciente delirante, acabamos por intervir com a medicação, quando necessário. No caso de Cláudia, foram prescritos, no primeiro momento, 2,5 mg de Trifluoperazina – um antipsicótico – combinado com 2,5 mg de Fenergan – que age como sedativo. Apesar da resistência da paciente de começar a fazer uso da medicação, depois de algumas semanas de tratamento passou a usá-la. Com cerca de três meses, por ter passado a ficar mais tranquila, menos ansiosa, foi retirado o Fenergan. Logo depois passou a usar 2 mg de Trifluoperazina, o qual manteve em uso durante o período todo do atendimento – até se completarem os dezenove meses sob nosso acompanhamento. Durante um determinado período Cláudia não usou a medicação, mas frequentava os atendimentos e se mostrava estável; isso nos fez pensar, na época, na hipótese de não lhe ser necessário usar a medicação por muito tempo.
O analista que atende o sujeito psicótico, após o desencadeamento deste, acaba sendo chamado a suprir o vazio trazido à tona como consequência da foraclusão. Dada a relação do paranoico com o Outro, o analista corre o risco de ocupar, portanto, o lugar do Outro que sabe sobre o sujeito e goza dele. Trata-se, nesses casos, de como manejar a transferência para evitar tal posição. Por isso Soler (1989) afirma que “a erotomania mortífera não é inevitável no tratamento dos psicóticos” (p. 9). Ou seja, ao prescindir de assumir a posição citada, o
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analista passaria a agir como outro Outro. No segundo capítulo desta dissertação teremos oportunidade de detalhar esta proposição da autora.
Essa postura foi almejada e de certo modo assumida no tratamento com Cláudia, de modo que foi possível estabelecer com ela uma relação de confiança – termo com o qual ela mesma se exprimiu, após certo tempo. Em alguns momentos foi possível introduzir a dúvida sobre seus relatos, na tentativa de distanciar um pouco o gozo que por vezes a invadia.
A estabilização, no caso de Cláudia, parece não ter sido de todo frágil. Ela continuou em atendimento, no qual procurei escutá-la em suas elaborações, que ficaram menos persecutórias. O objetivo nosso era que ela encontrasse seus meios de lidar com as figuras perseguidoras, de modo que seu convívio social fosse mais suportável.
Ao todo este atendimento durou um ano e sete meses. Frequentemente ela relatava novas ações originadas da sua rival, mas ao final parecia não deixar de realizar suas atividades diárias, apesar disso. O que passou a ficar cada vez mais claro foi seu sentimento para com o primo, que passou a ser definido como amor, sustentando sua esperança de que ele viesse a seu encontro novamente. Ela parecia esperar, apesar de algum modo já satisfeita, o dia em que poderiam ficar juntos afinal, como se este fato fosse certo e necessitasse somente de tempo para acontecer concretamente.
Uma conclusão momentânea sobre o caso nos permite afirmar que Cláudia parece ter adoecido silenciosamente, já que procurou ajuda profissional para seu sofrimento anos depois da data em que ela localizava o início da perseguição. Durante este tempo ela acabou ficando isolada – já que saiu do emprego e começou a não se sentir mais à vontade aonde ia, tampouco mantendo uma boa relação com o esposo. Digamos que se manteve basicamente no cuidado com os filhos.
À luz da explicação freudiana sobre a paranoia, notamos como o tratamento coincidiu com o momento em que ela passou a encontrar explicações sobre o que estava lhe ocorrendo. Ele pôde ser bem sucedido, portanto, por conjugar as elaborações racionais com a tentativa de investir novamente os objetos de seu mundo, tentativa esta não mantida mais de maneira discreta, mas urgindo por um suporte.
Passemos agora a algumas das formulações freudianas sobre a paranoia, para definirmos com mais cuidado a manifestação clínica desses casos, notadamente acentuada no modo de se exprimir e tratar a linguagem.
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1.2. A paranoia para Freud
Uma pessoa que tenha desenvolvido uma psicose e apresente delírios mais ou menos organizados, ou alucinações que tipicamente são vozes que lhe falam na terceira pessoa, muitas vezes julgando algum aspecto do seu comportamento, pode ser classificada como paranoica. Pelo menos esses são os sinais mais indicativos e que já na época de Freud eram considerados no âmbito da psiquiatria para se realizar esse diagnóstico. Vamos nos ater neste trabalho às características destacadas por Freud em seus escritos a respeito da paranoia, as quais ele isolou a partir dos casos que conheceu.
Apesar de ter se concentrado sobre o tratamento das neuroses, ele desenvolveu uma teoria a respeito do mecanismo psíquico que foi sempre sendo retomada e reelaborada, na medida em que a clínica lhe mostrava novas evidências. Assim, ao fazer uma explicitação desse desenvolvimento teórico, Freud mencionou a importância de ter distinguido dois tipos de libido, uma objetal e outra narcísica, para explicar os processos da vida mental, tanto os normais quanto os anormais (Freud, 1924a /1996). No texto intitulado “Uma breve descrição da psicanálise”, ele afirmou o seguinte:
Uma distinção grosseira logo se fez entre o que é conhecido por „neuroses de transferência‟ e os distúrbios narcísicos. As primeiras (histeria e neurose obsessiva) constituem os objetos propriamente ditos do tratamento psicanalítico, ao passo que as outras, as neuroses narcísicas, embora possam deveras ser examinadas com o auxílio da análise, oferecem dificuldades fundamentais à influência terapêutica (p.227-228).
Deixemos para retomar essas dificuldades fundamentais em outro momento, para nos atermos aqui às características da paranoia, uma “neurose narcísica”, que afinal levariam a tais dificuldades.
Muito tempo antes Freud já havia começado a delimitar o recalque em casos de paranoia; haveria nele uma peculiaridade, caracterizando o modo de defesa desta patologia. No escrito de 1895 que levou o nome de Rascunho H ele considerou que o indivíduo projeta o conteúdo de uma idéia incompatível com seu eu para o exterior, o mundo externo, ao invés de formular este conteúdo como uma autocensura. A defesa consistiria no abuso desse mecanismo da projeção, que seria normal em qualquer pessoa, mas que poderia ser rejeitada ao ser algo que vem de fora. A paciente mencionada por Freud (1895/1996) como exemplo dessa situação teria se poupado da censura de ser “uma mulher depravada”, e teria assim passado a “ouvir essa mesma censura, agora proveniente de fora” (p. 255). Destaca-se portanto o caráter da alucinação, hostil ao eu, fato que Freud interpretava como outra
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condição para a defesa. Ficava claro já neste momento como em uma situação de desenvolvimento do delírio paranoico o eu passa a ouvir julgamentos dirigidos à pessoa, o que reflete, por outro lado, o fato de ele estar sempre sendo olhado pelo outro, tomando a si mesmo como referência constante nas suas interpretações delirantes.
Ao listar exemplos dos diferentes tipos de delírio descritos na psicopatologia, Freud (1895/1996) afirmou que em todos eles há uma ideia delirante prevalente – em seus termos: sustentada com grande quantidade de energia – enquanto, por outro lado, uma ideia intolerável é rechaçada do eu. Ele concluiu, no mesmo escrito, em uma passagem muitas vezes mencionada na literatura sobre a psicose, o seguinte: que os delirantes “amam seus delírios como amam a si mesmos” (p. 257). Essa afirmação nos faz pensar na importância subjetiva que o delírio tem para o sujeito psicótico, uma vez que é a partir dele que uma construção a respeito do significado de seu mundo é elaborada. Quando analisamos casos específicos de paranoia, fica destacado o modo como para cada um o delírio funciona como uma espécie de arranjo para uma ideia que, antes do surto, era difícil para o sujeito assimilar.
Freud voltou ao tema do delírio em outros trabalhos, quando se esforçava por diferenciar a neurose e a psicose, e o considerou como um remendo, metaforizando deste modo a função de o delírio reconstituir a relação do eu com o mundo externo, assim atribuindo ao sujeito um lugar específico nesse convívio. O quadro clínico da psicose demonstra as tentativas de cura feitas pelo próprio sujeito, na medida em que ele tenta reconstruir o mundo que se arruinou com a sua doença. Para Freud (1924b/1996), esse remendo entraria precisamente no lugar em que uma fenda se abriu na relação do indivíduo com o mundo, o que para nós funciona como uma advertência de como considerar esta produção no atendimento, dada sua importância enquanto uma estruturação precisamente onde houve uma ruptura.
Tanto em quadros de neurose quanto de psicose Freud reconheceu o fracasso dos modos de defesa, sendo o eu do sujeito a instância que deixa revelar este fracasso. O conflito que surge entre alguém e o mundo externo pode levar a dois destinos: um, em que o eu sofre por abdicar de uma ação que lhe traria prazer, devido a uma exigência da realidade; outro, em que a realidade é recusada, em benefício do eu. No desfecho de cada uma dessas situações estariam em ação forças opostas, cuja intensidade determinaria qual lado seria o prevalente. Além disso, seria possível, para lidar com o conflito e assim “evitar uma ruptura em qualquer direção”, que o eu se deformasse, “submetendo-se a usurpações em sua própria unidade e até mesmo, talvez, efetuando uma clivagem ou divisão de si próprio” (Freud, 1924b /1996, p.170).
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De fato, o diagnóstico freudiano diferencial a respeito da neurose ou da psicose poderia ser entendido neste efeito da relação do sujeito com a realidade; mesmo que haja o conflito, é preciso ver como cada um responde a ele, mantendo ou não sua integridade identificadora, adaptando-se mais ou menos a uma exigência feita pelo mundo externo. Para Freud, no entanto, o próprio ego seria responsável por se permanecer fiel a tal exigência, ou se deixar ser levado por uma exigência pulsional, sendo desta forma arrastado para longe da realidade. O autor destacou o interesse não só pela característica da perda da realidade, mas mais ainda por aquilo que vem substituí-la (Freud, 1924c /1996). As distinções das respostas dos indivíduos se baseiam, nesse raciocínio, na localização topográfica do conflito inicial que levaria à doença.
Nas primeiras tentativas de diferenciar os tipos de neurose Freud havia assumido, em seus rascunhos, que o determinante neste ponto é a forma como retorna aquilo que foi recalcado, e que o caráter específico de cada uma se deve ao modo como se realiza o recalque. Outras diferenças podem ser notadas, ainda, através das formações dos sintomas. Ele chegou a considerar a desconfiança demonstrada pelo paranoico em relação às pessoas de seu convívio como um sintoma primário desta nosologia (Freud, 1896a/1996). Assim, o paciente se recusaria a crer na autocensura, e atribuiria a responsabilidade de todo o desprazer sentido a essas pessoas – o que se aproxima da fórmula freudiana da projeção estabelecida posteriormente, quando escreveu seu grande caso de paranoia.
Sobre as formas de retorno de ideias e afetos recalcados, encontrados nas alucinações auditivas, Freud considerou que seriam vozes com a função da censura ao próprio sujeito; embora surjam distorcidas, sob formas de ameaça ou até mesmo indefinidas, elas representam frases com um significado inicialmente obscuro para aquele que as ouve.
Não é incomum encontrarmos paranoicos que localizam dizeres ofensivos dirigidos a si, por parte de outras pessoas, enquanto ao mesmo tempo afirmam possuírem somente boas intenções, distintamente. É curioso notar como são encontrados os sinais mais variados desta postura alheia, a partir do que é escutado, de um detalhe do comportamento e de pequenos indícios que alimentam a interpretação delirante, corroborando algo que o paranoico já desconfiava antes de uma determinada manifestação desse tipo.
1.2.1. Comentário sobre o caso Schreber
Passemos agora a uma breve exposição sobre o caso de Daniel Paul Schreber, cuja psicose extremamente grave foi bem analisada na teoria psicanalítica, a começar pelo próprio
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Freud. Algo impressionante sobre o caso foi a capacidade de Schreber escrever suas memórias, intituladas Memórias de um doente dos nervos, durante o período em que esteve internado em uma das clínicas psiquiátricas alemãs pelas quais passou. Com essa produção ele pôde organizar várias de suas ideias sobre o novo mundo em que passou a viver. Descreveremos, apesar das informações que possuímos pelas Memórias... e por outros autores a respeito de sua biografia, somente o que for necessário para analisarmos os sintomas que se desenvolveram em seu caso. Fica indicada, de todo modo, a leitura de seu livro, para uma exposição mais detalhada e viva sobre a sua doença nervosa.
Schreber vivia com a sua esposa, tinha um cargo importante em um tribunal de Leipzig, na Alemanha, e havia sido indicado para um cargo superior ao que ocupava: Juiz Presidente da Corte de Apelação, em Dresden. Marilene Carone (1995), tradutora para o português e organizadora da edição das Memórias publicadas no Brasil, afirma que “o posto era excepcionalmente elevado para sua idade (51 anos), e a nomeação era irreversível: por ser determinação direta do rei, era um cargo que não podia sequer ser solicitado e sua recusa implicaria em delito de lesa-majestade” (p. 13). Na carreira de Schreber o referido posto, que era vitalício, representava o ponto máximo ao qual ele poderia chegar.
Após ter saído a sua nomeação, mas ainda antes de assumir o proeminente cargo, ele começou a se sentir muito pressionado pela responsabilidade que se aproximava. Um episódio que ocorreu antes mesmo da doença se desenvolver foi uma ideia a respeito de como “deveria ser realmente bom ser uma mulher se submetendo ao coito” (Schreber, 1903/1995, p.54) – ideia que lhe passou quando estava em um estado entre o sono e a vigília, mas a qual considerou depois ter sido produzida por influências exteriores ao seu próprio ser. Assim, passados cerca de quarenta dias dessa nomeação, ele precisou ser internado, por sintomas nervosos – tais como insônia e estafa intelectual - estando neste momento desenvolvendo também ideias delirantes de perseguição e de estranhamento quanto ao seu corpo.
Ao todo se passaram nove anos até que Schreber tivesse sua alta hospitalar. O seu quadro, tendo apresentado delírios com temas absurdos, ao final estabilizou-se em torno da questão da emasculação, alucinações diversas e alterações intensas da consciência do eu. Ele foi diagnosticado como um quadro misto entre a paranoia e a esquizofrenia, devido a esta combinação de sintomas. Mas este diagnóstico assim mesmo nos permite problematizar o lugar destinado ao médico que o acompanhou, permitindo-nos também vislumbrar algumas das suas manifestações clínicas e a dificuldade do manejo.
Quem se destacou como principal perseguidor no delírio de Schreber foi o seu médico, Dr. Flechsig, que já havia tratado do paciente em sua primeira crise nervosa, anos
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antes da ocorrida no período citado. O livro começa com uma carta redigida a Flechsig, na qual Schreber (1903/1995) se justifica por citar seu nome tantas vezes ao longo do trabalho. Acompanhando suas palavras, podemos vislumbrar o peso que esta referência adquiriu:
Não tenho dúvida de que seu nome desempenha um papel essencial na gênese das circunstâncias a que me refiro, na medida em que certos nervos extraídos de seu sistema nervoso se transformaram em „almas provadas‟ (...); nesta qualidade adquiriram um poder sobrenatural, em conseqüência do qual vêm exercendo há anos uma influência nociva sobre mim e até hoje ainda a exercem (p.25).
Embora este médico tenha sido eleito desde o começo da doença nervosa como o responsável pelo mal estar de Schreber, até o momento prestes a sair da instituição psiquiátrica ele era ainda reconhecido por sua “influência nociva”, e citado pelas vozes (alucinações auditivas) que o acompanharam durante toda a enfermidade.
Conforme destacado por Mahjoub (1985), quando lemos a carta e os relatos observamos que Schreber parte de uma certeza: Flechsig tinha um interesse científico por ele, do qual ele era objeto; era Flechsig, por sua vez, quem se dirigia a Schreber. De saída o livro nos revela esse lugar ocupado pelo médico e cientista, que se voltava justamente para Schreber nas suas pesquisas. Lembremos que Flechsig, médico e professor, tinha sua clínica vinculada a uma instituição de ensino.
Toda uma explicação mirabolante foi desenvolvida, através da qual Schreber atribuiu uma origem sobrenatural para a influência dos nervos de Flechsig sobre os seus próprios. Após uma sistematização maior do delírio, ele afirmou que o médico manteve tais relações nervosas com um intuito terapêutico; e que graças ao interesse científico do mesmo a relação acabou durando muito tempo, até ficar estranha (Schreber, 1903/1995) – o que significa ter adquirido um poder sobrenatural acentuado, de acordo com a lógica do delírio.
Muitas páginas foram escritas detalhando as intenções que o médico tinha a seu respeito, mas é particularmente importante o seu poder de influenciar o corpo de Schreber nocivamente. Na análise de Freud, ele destacou o risco de o corpo do paciente ser entregue a uma pessoa específica, ser tornado um corpo feminino, e assim ser submetido a abusos sexuais; podendo ainda ser cometido o assassinato de alma pelo mesmo doutor. A definição desta poderia ter sido descrita no livro, não fosse a censura na época da publicação ter impedido de constar tal passagem na versão final. Este elemento do delírio permanece para nós como algo enigmático da construção de Schreber.
Ainda sobre a relação entre ele e o médico, Freud (1911/1996) afirmou que o paciente tomou uma atitude feminina em relação a Flechsig, atitude que havia sido indicada como um
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desejo de Schreber no momento em que pensou sobre ser uma mulher no momento do coito; com isso, teria sido em função dessa “manifestação de libido homossexual” (p. 52) que a doença teria se manifestado, com o intuito de defender o eu de Schreber.
O delírio desenvolveu-se pelo tema da perseguição, cuja figura foi encarnada primeira por Flechsig, depois por várias de suas subdivisões, sendo relacionada enfim a Deus, em outros momentos. Por fim pareceu estabilizar-se no ponto em que o paciente definiu sua missão: deveria ser transformado em mulher – processo denominado por ele como emasculação – para ser fecundado por Deus e gerar uma nova raça de homens, devolvendo ao mundo o estado de beatitude perdido. Neste ponto, a transformação em mulher é concebida como algo condizente com a Ordem do Mundo; mas seus fins de redenção da humanidade só seriam alcançados se ocorresse com Schreber, dada a sua distinção entre os homens e por isso sua relação diferenciada com Deus. Nota-se que o final do delírio condiz com uma idéia desenvolvida antes da eclosão da doença, aspecto sobre o qual retornaremos quando analisarmos as contribuições de Lacan sobre o caso.
Nos relatórios médicos anexados na edição recente do livro encontramos passagens sobre a reivindicação de Schreber quanto ao seu nome e cargo adquirido e registros de que o paciente passou a gritar pela janela de seu quarto, alguns dias após aceitar a emasculação, declarando seu nome (Carone, 1995). Fica evidente a dificuldade de assumir sua identidade diante da nomeação recebida. Acrescentamos, portanto, com o auxílio de Guerra (2007), que o desencadeamento se relacionou a esta espécie de quebra da identificação, que não era uma identificação qualquer. A nomeação para o cargo de presidente acabou abalando algo daquilo que o sustentava subjetivamente, sendo uma das condições para que o desencadeamento ocorresse na gravidade com que de fato ocorreu.
Além do delírio, são descritas inúmeras alucinações auditivas, visuais e cenestésicas. Schreber relatou a presença de seres minúsculos e pássaros miraculados que lhe falavam uma série de injúrias, na forma de frases decoradas e destituídas de sentido mesmo para esses que as pronunciavam. Caracterizavam-se também por se interromperem no meio de uma expressão verbal, antes de a frase completar seu sentido; ou começarem quando houvesse sons que rimavam com o que diziam. As vozes desses pássaros eram profundamente afetadas pela assonância das palavras. Outras vozes não bem localizadas comentavam sobre os pensamentos, o funcionamento de seu corpo, e várias de suas atitudes.
A leitura dessas alucinações causa impacto ao leitor, uma vez que são detalhadas e muito intensas, demonstrando todo o mal estar ao qual Schreber ficou submetido. Consta em uma passagem do livro que elas se repetiram milhares de vezes, durante anos; e que muitas
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vezes ele sentia os órgãos apodrecendo ou sendo destituídos de suas funções. A esses fenômenos juntavam-se interpretações delirantes, como a de que qualquer outra pessoa submetida a essa influência malévola teria sucumbido, mas, no seu caso, Schreber podia sobreviver por causa de milagres diversos que Deus operava sobre seu corpo.
Freud destacou o papel ambíguo de Deus para Schreber, sendo ora aquele que lhe provocava tanto mal, ora aquele que se interessava por ele para procriar. Para o autor, não seria possível tentar explicar de maneira correta o caso desse doente se desconsiderássemos as peculiaridades de sua concepção sobre Deus, pela qual havia “essa mistura de reverência e rebeldia em sua atitude para com Ele” (Freud, 1911/1996, p.38). Nessa relação, algo que nos chama a atenção é a exigência de Deus para que Schreber não parasse de pensar, pois se isso acontecesse ele seria tomado por um ser idiota. Para impedir isso, se exaurir em um sistema de pensamento forçado. A interferência sentida pelos nervos de Deus - ou de Flechsig, dependendo do momento do delírio - provocava nele o fato de ter que “pensar ininterruptamente” (Schreber, 1903/1995, p. 69), além de demonstrar o querer saber, o tempo todo, sobre o que ele estava pensando. Este ponto é um dos testemunhos fornecidos sobre o modo de compreensão do paranoico quanto àquele com quem se relaciona: ele representa não só o centro do interesse alheio, como é provocado pelo outro a responder a tamanho interesse.
Outro trecho que nos chama a atenção é a afirmação de sua crença a respeito de Flechsig ter tido as mesmas visões que ele teve, no momento em que foi internado em sua clínica, além de ter escutado também as vozes que dirigiam insultos a ele. Este aspecto reflete a confusão estabelecida entre o médico e o próprio Schreber, relação esta acentuada e ainda mais comprometida durante a crise psicótica, caracterizando o transitivismo em que vivia.
Embora tenha desenvolvido muitos sintomas psicóticos, Schreber conseguiu adaptar-se ao novo mundo: reservava para si os momentos de contemplação de seu busto feminino no espelho, posto que seria gradativamente transformado na mulher de Deus. Mas mesmo assim tentava retornar à sua vida, tendo afinal conseguido alta da instituição psiquiátrica e direito a administrar seus bens, embora não tenha retomado sua função de juiz. Nos relatórios médicos anexados em seu livro foi relatada a sua aparente lucidez e capacidade de conversa e comportamento público adequado, após a internação, e ressaltadas sua inteligência e personalidade agradável, bem como sua capacidade para desempenhar satisfatoriamente um cotidiano, apesar de manter seu sistema delirante - ainda que de modo discreto.
Outro aspecto interessante da solução delirante adotada por Schreber é o processo de transformação em mulher ser algo que levaria décadas ou séculos para ser concluído, sendo improvável que algum contemporâneo seu estivesse ainda vivo para testemunhá-lo.
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Percebemos, assim, como o próprio Schreber, a partir do que Freud qualificava como “senso de realidade”, colocou como solução do conflito um acontecimento destinado a ocorrer em um futuro longínquo, contentando-se, assim, com “uma realização de desejo assintótica” (Freud, 1911/1996, p.57).
Notamos também a importância que a escrita e publicação do livro sobre sua doença tiveram para o próprio sujeito. Relatando sua experiência poderia deixar um legado que contribuísse para o estudo das religiões, revelando a verdade sobre a relação de Deus com o mundo; e esperava que a ciência pudesse se beneficiar do estudo de seu corpo, dada sua capacidade de suportar os milagres e efeitos da ação divina (Schreber, 1903/1995). Assim, esta escrita parece ter lhe ajudado a construir um sentido para sua realidade, propiciando-lhe uma nova referência sobre si em seu meio: o livro contribuiu para delimitar seu papel no mundo; e, para o ponto de vista dos leitores, o caso ficou marcado pela excentricidade e estrutura do seu sistema delirante, mas também pela lógica demonstrada em um conteúdo vasto e aparentemente absurdo.
Para o propósito desta dissertação, devemos reter fundamentalmente o modo como se deu a relação entre o paciente e seu médico ao longo do desenvolvimento do delírio. Schreber (1903/1995) afirmou que procurou a clínica do Professor Flechsig, juntamente com sua esposa, por depositarem nele total confiança, uma vez que tiveram êxito em um primeiro tratamento.
Contudo, em um determinado momento o interesse em tratá-lo significou para Schreber uma manifestação clara da intenção abusiva por parte do médico. No livro encontramos o momento de virada desta condição do médico: após uma noite em que teve inúmeras poluções - ocasião particularmente decisiva para o seu colapso mental, como Schreber mesmo constatou - começaram os sinais de que Flechsig não tinha uma intenção boa a seu respeito; passou a haver então uma conexão entre os nervos de ambos, de modo que, mesmo à distância, Flechsig começou a falar com os nervos de Schreber. Pressupomos que as conversas entre ambos sobre o mal-estar de Schreber, assim como a insistência do médico em continuar o tratamento, apesar das crises, forneceram elementos para o delírio do paciente; até mesmo diante de um termo médico que mostrasse para ele um significado incerto. Por isso o caso é particularmente ilustrativo sobre o risco de o médico tornar-se a figura persecutória – condição difícil com a qual temos que lidar durante o atendimento de paranoicos.
O estudo do caso nos permite perceber uma relação direta entre a ideia referente à condição de ser uma mulher se submetendo à relação sexual, a noite em que teve as poluções
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e o temor decorrente da intenção de Flechsig. Tal ideia ocorreu a Schreber como um pensamento impensável; por isso sua conclusão de que sua mente estava ficando alterada. A partir dessa articulação feita pelo paciente aprendemos como é comum na paranoia a atribuição da intenção malévola ao semelhante com quem o sujeito se relaciona.
Se antes da análise desse caso Freud já havia sugerido explicações a respeito do mecanismo da paranoia, a partir dele tentou corroborar algumas ideias – a respeito do homossexualismo recalcado, por exemplo – e começou também a esclarecer a necessidade de teorizar a respeito do funcionamento do eu no psiquismo em geral. O caso lhe mostrou como pode coexistir a estrutura delirante, por um lado, com a personalidade reconstruída, já que Schreber permaneceu capaz de satisfazer “as exigências da vida cotidiana” (Freud, 1911/1996, p.25), apesar de alguns distúrbios, notadamente no que se refere à sua sexualidade.
Neste trabalho Freud sugeriu uma fórmula que diz respeito à relação entre o sujeito e o perseguidor: este seria uma pessoa que no passado tinha desempenhado papel de importância afetiva, na vida do paciente, mas que no momento da doença acaba sendo o ponto para onde convergem os fios do delírio, com a característica persecutória; ou então seria um representante, um substituto de alguém que foi muito próximo do doente. Freud concluiu que o delírio paranoico serviria para justificar a mudança da atitude do sujeito com a pessoa em questão, já que esta havia sido amada em um primeiro momento. “A intensidade da emoção é projetada sob a forma de poder externo, enquanto sua qualidade é transformada em seu oposto” (Freud, 1911/1996, p.50). Essa é de fato uma manifestação recorrente nos casos descritos, mostrando-se como uma característica típica esta alternância afetiva, que no momento de instabilidade delirante pode conduzir ao outro extremo, e levar da perseguição à erotomania.
Ainda no que se refere ao sentimento de Schreber para com Flechsig, Freud interpretou o sentimento amistoso manifestado antes do agravamento da doença como um processo de transferência, através do qual um investimento afetivo dirigido no passado a outra pessoa se deslocaria então para o médico – por sua vez indiferente a esta atualização do investimento libidinal.
É curioso que neste ponto Freud tenha explicitado a capacidade de um movimento transferencial por parte do doente dirigido ao médico. O fenômeno da transferência não é senão esta mesma atribuição, a partir da qual, no tratamento da neurose, o paciente passa a amar o analista e a confiar nele, como uma revivescência infantil, dirigindo seu amor antigo a um personagem atual. A despeito da atribuição desse fenômeno no caso de Schreber, o que
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encontramos é a afirmação categórica de Freud (1911/1996), no começo do mesmo trabalho, sobre a impossibilidade de tratamento psicanalítico com paranoicos:
A investigação analítica da paranóia apresenta dificuldades para médicos que, como eu, não estão ligados a instituições públicas. Não podemos aceitar pacientes que sofram desta enfermidade, ou, de qualquer modo, mantê-los por longo tempo, visto não podermos oferecer tratamento a menos que haja alguma perspectiva de sucesso terapêutico (p.21).
Nesta passagem encontramos resumida a postura de Freud quanto ao tipo do tratamento: pela psicanálise, tal como ele a praticava em seu consultório, não havia perspectiva de melhora dos sintomas agudos da doença.
O caso permitiu a Freud destacar a relevância do “complexo paterno”, que ele julgou como um elemento dominante do mesmo: em sua especulação sobre a infância de Schreber, afirmou que provavelmente havia um sentimento erótico dirigido ao pai, como em qualquer criança, que foi depois dirigido ao irmão, e por fim passou, como um processo de transferência, ao médico. As interpretações delirantes envolvendo o sol coincidiam com a simbolização dada ao astro por povos primitivos (assunto que também passava por sua mente no período de análise das Memórias); influenciado por essa constatação Freud o considerou como um substituto do pai. Deste modo, ao se dirigir novamente para o pai, Schreber pôde alcançar uma estabilização de seu conflito (Freud, 1911/1996).
Este tipo de informação nos é relevante, pois foi voltando à fase de constituição do narcisismo, ao desenvolvimento infantil da libido, que Freud tentou responder à questão da constituição subjetiva paranoica. Desde o período de sua correspondência com Fliess ele havia notado a relação existente entre os temas: “as relações especiais do auto-erotismo com o „ego‟ original projetariam viva luz sobre a natureza dessa neurose [a paranoia]” (Freud, 1996/1899, p.331). Esta luz só foi lançada a partir da análise do caso Schreber, e complementada depois com a elaboração do artigo sobre o narcisismo.
O trabalho publicado em 1911 acentua a particularidade da relação do paranoico com o seu mundo decorrente de seu interesse libidinal. De fato, quando formos abordar as condições do tratamento da paranoia, no próximo capítulo, veremos que os detalhes deste investimento são justamente o determinante da relação entre o paciente e o médico ou analista que o acompanha.
1.2.2. Outras indicações de Freud sobre a paranoia
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O principal conflito na paranoia, para Freud, é um desejo homossexual que não pode se manifestar, pois esta ideia seria rejeitada veementemente pelo sujeito, e assim levaria à deformação de seu eu no desenvolvimento de uma crise. Como ele mesmo afirmou, tais pacientes se esforçam por evitar esse tipo de sexualização de seus laços sociais – sendo a paranoia, portanto, considerada um modo de defesa “par excellence” (Freud, 1896/1996, p.279), dada a sua capacidade de rechaçar para longe do eu uma ideia desagradável. Parece ser, além disso, uma doença típica da fase adulta. Mas, ao tentar explicar sua etiologia, a hipótese que Freud (1911/1996) adotou foi a de que a disposição à paranoia poderia ser localizada entre o estádio do auto-erotismo e do narcisismo. Como o eu se mostra tão alterado nesta patologia, passemos então a considerar o que foi elaborado sobre sua constituição, de acordo com o que foi observado no caso clássico de Schreber.
A libido na paranoia vincula-se intensamente ao eu, fazendo com que esse se engrandeça – isto caracteriza o retorno ao estádio do narcisismo, ou seja, à condição na qual o próprio eu da pessoa é tomado como objeto sexual (Freud, 1911/1996). O fato de um distúrbio da libido alterar o investimento do eu é tido como uma característica pulsional nas psicoses. As formas particulares que elas assumem relacionam-se com o desenvolvimento tanto do investimento libidinal quanto da formação do eu. Deste modo, no caso da paranoia evidencia-se um interesse pelo mundo externo, pelo qual as percepções de detalhes cotidianos os fazem ser encaixados no delírio do sujeito, através de toda uma capacidade de explicação para tais acontecimentos. Esta relação do paranoico com o mundo pode ser pensada como uma perda de seu interesse libidinal pelo mesmo, já que ele passa a referenciar tudo o que vivencia a si mesmo.
Foi a partir desta constatação que Freud (1914/1996) concluiu que os pacientes, nesse estado, não podem ser curados pelos esforços da psicanálise, pois “tornam-se inacessíveis à influência” da mesma (p. 82): tendo retirado o interesse do mundo externo, os objetos e pessoas não são substituídos por outros na fantasia, como o seria em casos de neurose. A substituição ocorre, ao contrário, através do delírio, onde há tentativa de recuperação do mundo do doente.
Apesar disso, o principal modo de abordar o narcisismo não deixa de ser a análise dos sintomas psicóticos, e foi dessa análise que o autor concluiu que uma libido que investe os objetos é distinta da libido que investe o eu. Uma variação quantitativa ocorre entre ambas, de modo que quanto mais uma é investida, mais a outra fica retraída. A megalomania, por sua vez, demonstra como há um represamento da libido dirigida ao eu. Esse raciocínio conduz a uma indicação clínica importante:
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A diferença entre as afecções parafrênicas e as neuroses de transferência parece-me estar na circunstância de que, nas primeiras, a libido liberada pela frustração não permanece ligada a objetos na fantasia, mas se retira para o eu. A megalomania corresponderia, por conseguinte, ao domínio psíquico dessa última quantidade de libido, e seria assim a contrapartida da introversão para as fantasias que é encontrada nas neuroses de transferência (Freud, 1914/1996, p. 93).
Embora tenhamos deixado reservado para a discussão do segundo capítulo a questão da especificidade da transferência na paranóia, julgamos necessário deixar registrada aqui a formulação do próprio Freud, por ser próxima do que nos conduz atualmente na clínica. O fato de a fantasia desempenhar um importante papel na posição do neurótico faz com que o tratamento psicanalítico possa ser conduzido de uma determinada maneira – o que representa, ao mesmo tempo, uma certa segurança para o psicanalista em relação ao efeitos de seu ato. A fantasia nos indica, portanto, um modo de articulação entre o simbólico e a libido. Porém, na psicose, a relação com o objeto a, que seria o objeto causa do desejo, não é mediada pela fantasia, o que altera todo o estatuto da realidade compartilhada socialmente, bem como a constituição de sua economia psíquica. O psicótico tem, por isso, uma relação como de contiguidade com esse objeto.
Na passagem citada fica clara a noção de Freud sobre uma frustração insuportável que leva o psicótico a manifestar o seu transtorno. O que Schreber rechaçou foi o seu impulso homossexual dirigido especificamente ao médico, Flechsig; pois havia uma posição simétrica com relação ao mesmo. Esta ideia não era compatível com a sua personalidade, tendo sido necessário, portanto, que ele construísse uma nova para si, transformando-se na mulher de Deus.
Esta característica reflete o afastamento do eu da realidade, indicando o caráter fragmentário do mesmo. Em relação às neuroses narcísicas, a fuga do eu para longe da realidade pode ser pensada como a fuga do eu da consciência (Freire, 2004), ficando em seu lugar como que vários “eu”. Schreber, tendo separado suas vivências, portando-se com certa lucidez durante o relacionamento com os outros, apesar de ter assumindo seu processo de emasculação, nos mostra como essa fragmentação do eu ocorre na psicose.
É comum encontrarmos nos textos freudianos a justificativa para o delírio persecutório como a defesa contra o homossexualismo vinculado ao desenvolvimento do ego. Em uma carta destinada a Ferenczi, enviada enquanto Freud (1910/1994) escrevia o trabalho sobre o caso Schreber, ele articulou a seguinte sequência para a ocorrência do recalque: primeiro dar-se-ia a fixação da libido, sucedida pelo recalque propriamente dito; depois o retorno do recalcado, cujo rompimento ocorreria no mesmo ponto em que ocorreu a fixação
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anteriormente. Esta hipótese foi levantada a título da correção de um erro sobre como ele havia concebido a paranoia antes. Trata-se, aqui, de um esforço do autor para distinguir o mecanismo do recalque com o do rompimento, que é o retorno de tal conteúdo: “O mecanismo do rompimento depende da fase de desenvolvimento do Eu e o mecanismo do recalque depende da fase libidinal” (carta de 06 de dezembro de 1910, p.301).
Um trabalho de Freud a respeito de uma paciente paranoica – com delírio persecutório manifestado claramente – foi escrito apresentando uma particularidade em seu delírio: a figura central demonstrou ser uma pessoa do sexo oposto, o homem com quem a paciente havia se envolvido sexualmente. Esta condição foi o que levou o autor a qualificar o caso como contrário à sua teoria sobre a paranoia (Freud, 1915/1996). Se a predisposição à paranoia refere-se a um impulso homossexual inadmissível, como entender esse caso? A suposição desenvolvida articula a noção universal ao desenvolvimento do delírio: primeiramente o alvo deste era uma mulher, mas em seguida passou ao homem, o que “é inusitado na paranóia; em geral, verificamos que a vítima da perseguição permanece fixada nas mesmas pessoas e, portanto, no mesmo sexo ao qual pertenciam seus objetos amorosos” (Freud, 1915/1996, p. 279) anteriores ao surgimento do delírio. A moça parecia defender-se do envolvimento heterossexual, ao julgar que o próprio amante queria lhe fazer mal.
Neste caso, Freud acrescentou que a paciente havia uma ligação intensa com a sua mãe, e que ao tentar se desfazer desse vínculo, começando o relacionamento citado, ela teria manifestado o delírio – fato que exaltou uma disposição que já era latente. O que podemos ressaltar desse caso, cujo relato é sucinto, é que o formato e o desenvolvimento de um delírio não seguem jamais uma padronização, por mais que a teoria se esforce por analisar suas ocorrências mais comuns. Para cada paciente, em sua história pessoal, há contingências que fazem o delírio se desenvolver de uma forma ou de outra, cabendo ao clínico acolhê-lo de modo a respeitar a função individual que ele assume.
Ao assumirmos que o eu é a parte do psiquismo que precisou ser modificada devido à influência do mundo externo, assumimos também que ele tem a função de sintetizar as ações do indivíduo, tentando dar uniformidade às mesmas – mesmo que esteja, por outro lado, a serviço de uma satisfação pulsional que é exigida por outras instâncias psíquicas. Deste modo, quando o psicanalista se coloca à frente de um paranoico, em um atendimento, é de se supor que tal posição assuma certo risco, dada a constituição do sujeito. É por isso que tentamos delimitar, como ressalva clínica, a condição de o paciente paranoico poder desviar um vínculo amoroso, ligado a uma pessoa específica, e assim modificar a sua concepção em relação a esta pessoa - objeto de um investimento. O resultado pode ser que “a pessoa, a
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quem [o paciente] muito amava, se torna um perseguidor, contra quem o paciente dirige uma agressividade frequentemente perigosa” (Freud, 1923/1996, p. 56).
Com Freud podemos conceber vários dos mecanismos em jogo na paranóia. Vimos que para ele a dificuldade fundamental do tratamento psicanalítico das psicoses refere-se ao fato de o sujeito estar imerso em seu narcisismo, ficando deste modo inacessível à transferência, emperrando o seu manejo. O problema que se coloca no contexto do tratamento é devido ao fato de o delírio representar o grau de comprometimento da realidade, estando esta profundamente alterada na relação do sujeito à mesma.
Quando nos debruçamos sobre as formulações de Freud sobre a paranoia e sua explicação para o fenômeno psíquico baseada na teoria da libido, consideramo-los importantes para a delimitação de nosso campo clínico, já que o lugar que iremos ocupar para o sujeito durante o tratamento será afetado por este modo de investimento. A noção de narcisismo, através da qual ele desenvolveu a hipótese de o sujeito regredir a um estádio ainda anterior a este, no momento de eclosão da doença, é fundamental para entendermos a relação do sujeito com a realidade que o cerca. A relação narcísica, portanto, não estrutura somente a relação do eu com o outro, mas também a relação do eu com o mundo mesmo dos objetos. Os investimentos e projeções feitos pelo eu estão na base do comportamento do sujeito nesta interação. Além da evidência clínica, à qual já aludimos, se notarmos o fato de que Freud (1914/1996) pôde desenvolver seu trabalho completo sobre o narcisismo três anos após o estudo sobre o livro de Schreber, novamente confirmamos como os mecanismos presentes na paranoia estão ligados à estrutura narcísica do sujeito, cuja teorização foi propiciada a partir desse primeiro estudo.
Esse ponto nos leva ao problema específico que esta dissertação tenta esclarecer: qual a posição do psicanalista, no manejo da transferência com pacientes paranoicos, para que ele não seja percebido como um perseguidor – podendo, assim, disponibilizar um tratamento desta espécie? Antes de continuarmos nesta direção mais específica, tomemos ainda os avanços efetuados por Jacques Lacan na concepção que temos a respeito da paranoia, em sua manifestação clínica.
1.3. As formulações de Lacan sobre a psicose paranoica
Antes de tratarmos da obra de Lacan convém esclarecermos nosso interesse a respeito de sua tese de doutorado, publicada em 1932, antes mesmo de ele tornar-se psicanalista. A tese representa um marco na sua formação: nela tratou da psicose paranoica e expôs o
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conhecido caso Aimée, sendo assim conduzido à concepção da psicanálise sobre a dimensão inconsciente nas manifestações psicopatológicas. A importância da solução particular encontrada por um determinado paciente, bem como o estudo exaustivo de sua história e seu tipo clínico, foram destacados por Lacan naquele momento pelo valor metodológico que um caso pode conferir a um estudo neste campo. O que ele considerava como a personalidade do sujeito era justamente este caráter individual, do qual a psicose não podia ser dissociada.
No referido trabalho temos várias formulações do âmbito da psicopatologia, visto que Lacan estava ainda escrevendo enquanto psiquiatra. Mesmo que estivesse usando já alguns dos conceitos psicanalíticos, Lacan estava ainda distante dos acréscimos que daria à teoria freudiana. Aqui nos interessa, sobretudo, aproveitar a formação médica de Lacan para citarmos alguns sintomas da paranoia descritos por ele, visto que tal descrição contribui para nos orientar na prática.
Lacan (1932/1987) se deteve longamente sobre as manifestações fenomênicas da paranoia, bem como dos demais quadros clínicos psiquiátricos descritos até então. Sobre o delírio, ele afirmou que este se relaciona a um distúrbio das condutas elevadas do doente: seus juízos, comportamento social e atitudes mentais. O delírio significaria para o sujeito uma nova forma de simbolizar sua vivência social, mesmo quando ele progride em direções diversas, com a riqueza de elementos observada pela psicopatologia clássica. Mas após o desenvolvimento da teoria lacaniana sobre a psicose, podemos afirmar seguramente que tais manifestações são úteis para fins diagnósticos, porém insuficientes para o tratamento, já que não dizem respeito às causas de tais sintomas.
A psicanálise já parecia ser para Lacan a indicação terapêutica mais adequada para lidar com a psicose, fosse antes ou depois da manifestação desta. Isso justifica seu tom de lamento pelo fato de não ter tratado Aimée segundo a psicanálise, o que para ele representou um limite para o seu trabalho com a paciente. Em sua tese ele o mencionou, com a ressalva de que os psicanalistas se encontravam extremamente prudentes diante de quadros psicóticos confirmados:
A técnica psicanalítica conveniente para estes casos ainda não está, segundo o testemunho dos mestres, madura. Aí está o problema mais atual da psicanálise e é preciso esperar que ela encontre suas soluções. Pois uma estagnação dos resultados técnicos no seu alcance atual acarretaria logo o desaparecimento da doutrina (Lacan, 1932/1987, p.282).
Encontramos nesta passagem a preocupação de se estabelecer um modo de abordar a psicose sob o tratamento psicanalítico, o que viria a ser desdobrado por Lacan ao longo do seu ensino e a partir do legado de Freud. O narcisismo, por exemplo, com sua contribuição
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para a economia psíquica, já indicava um modo de esclarecimento da psicose a partir do estudo da neurose, mas permanecia ainda como uma fronteira “mítica e desconhecida no seu interior” (Lacan, 1932/1987, p.330).
1.3.1. O caso Aimée
Aimée, paciente acompanhada por Lacan após ser detida por um atentado cometido, havia vivido bem em Paris; casou-se, teve um filho, e passara a viver sozinha na cidade, onde havia conseguido um emprego, longe da família. Começou a desenvolver um delírio erotômano ligado ao Príncipe de Gales, de acordo com o qual escrevia cartas para ele; mas elas nunca chegavam ao seu destino, sendo assim devolvidas a ela. Esta paixão durou algum tempo e consumiu parte dos seus investimentos.
Em meios às produções delirantes, ocorreu porém que ela passou a ver fotos e notícias de uma famosa atriz parisiense da época, sobre quem ouvia rumores frequentes, quem acabou sendo escolhida como sua perseguidora, no delírio. Aimée foi levada a agredir a atriz, em uma noite em que esta se apresentaria no teatro. Com esta ocorrência foi detida e encaminhada para uma avaliação pela perícia psiquiátrica.
Tinha aptidão para escrita, na qual vários de seus temas delirantes eram abordados. Uma passagem interessante de um de seus romances cita como Aimée (também o nome de uma personagem do mesmo) era forçada a “escutar as confidências impudicas e levianas da serva Orancie. Realmente o mal está em torno dela, mas não nela” (Lacan, 1932/1987, p. 186), localização esta extremamente característica em casos de paranoia, como indicado ao longo do presente trabalho.
Lacan analisa o caso exaustivamente, apresentando várias de suas características que serão intencionalmente omitidas aqui. Mas convém destacar a importância clínica da passagem ao ato de Aimée, já que esta é uma evidência da proximidade entre o sujeito psicótico e o outro com quem ele se relaciona. Ao atacar a atriz, a paciente havia se dirigido a algo referente à concepção sobre si mesma. Nas palavras de Quinet (2006), relendo o caso a partir das elaborações posteriores feitas por Lacan ao mesmo, o paranoico “encontra no Outro o Ideal que gostaria de ser (...) daí o sujeito, no ato homicida, atacar a si mesmo no Outro” (p.165). O ataque denuncia esta marca de uma idealização não mediada – discussão que iremos continuar no segundo capítulo. No caso específico de Aimée, houve a consequência indicada por Lacan como um modo de autopunição, que funcionou como efeito terapêutico para ela.
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Em relação aos sintomas da psicose, a paciente apresentava o delírio bem sistematizado, um egocentrismo e vários desenvolvimentos lógicos oriundos de suas interpretações delirantes. Lacan observou como os temas delirantes relacionavam-se diretamente à afetividade da doente, o que indicava sua pouca adaptabilidade a situações sociais. Assim, o delírio poderia ser considerado “o equivalente intencional de uma pulsão agressiva insuficientemente socializada” (Lacan, 1932/1987, p.342).
As ideias delirantes de perseguição se articulavam a ameaças frequentemente projetadas para o futuro, embora fossem algumas vezes marcadas por uma certa iminência. Em consonância com Freud, Lacan observou também que o perseguidor principal, tal como a perseguidora de Aimée, é sempre do mesmo sexo do delirante, podendo representar a pessoa mais próxima afetivamente com quem ele se mantém ou manteve-se vinculado.
A natureza do delírio foi definida segundo seus critérios mais notados clinicamente: ele tinha acentuada clareza significativa, funcionando como uma atividade interpretativa do inconsciente; quando investigado sobre seu início e origem na história do sujeito, ele evidenciava uma imprecisão lógica, por ser difícil apreender como e quando ele passou a encadear suas intuições – difícil para o próprio delirante e para o médico que viesse a escutá-lo. Um terceiro traço característico do delírio referia-se ao valor de realidade que suas concepções adquiriam para o delirante. Além disso, como as outras funções psíquicas permanecem preservadas, o delírio paranoico demonstra um aspecto verossímil, o que se aproxima da característica de ser compreensível – concepção clássica da psicopatologia que não deixa de ser problemática, por presumir uma relação especular entre o doente e o médico.
Como o objeto da tese de Lacan era a relação entre a personalidade e o delírio paranoico, ao longo do trabalho o autor foi delimitando as tendências gerais na constituição da personalidade, mas que se mostram exteriorizadas ao máximo no delírio. Tais tendências, latentes e preexistentes à paranoia desencadeada, poderiam ser em parte especificadas por uma técnica como a da psicanálise, aplicada ao estudo de um sujeito. As conclusões da tese revelam uma preocupação de Lacan (1932/1987) com a possibilidade de tratamento para a psicose:
Os fracassos do tratamento possuem, para a disposição à psicose, um valor diagnóstico igual e superior às suas revelações intencionais. Somente o estudo dessas resistências e desses fracassos poderá fornecer as bases da nova técnica psicanalítica, da qual esperamos, no que diz respeito à psicose, uma psicoterapia dirigida (p.357).
Se por um lado as concepções psicanalíticas lançavam luz sobre os modos de transferência e investimento de libido do indivíduo sobre os objetos externos, por outro a
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dificuldade em lidar com pacientes psicóticos representava para Lacan um ponto sobre o qual poderia começar a desenvolver suas ideias, retomando as teorizações freudianas mas acrescentando seu olhar às mesmas; inclusive para embasar o que chamou naquele momento de uma “nova técnica psicanalítica”, necessária para alcançar um benefício no tratamento da psicose.
1.3.2. As formulações sobre a psicose no começo do ensino de Lacan
Quando pensamos a respeito do que leva um sujeito a um surto psicótico, é preciso considerar ao mesmo tempo a situação de sua vida que lhe precipitou neste novo estado e sua estruturação psíquica. A constatação da estrutura psicótica é estabelecida por retroação, através da qual inferimos um modo como o sujeito aprendeu a lidar com certas situações sociais.
Admitimos, portanto, que na psicose houve uma falha na inscrição do que Lacan nomeia por Nome-do-Pai, impedindo que uma substituição ao nível da metáfora ocorresse. No primeiro momento da subjetivação, como para qualquer sujeito, havia uma correspondência de seu ser ao desejo da mãe. Em um segundo tempo, porém, deveria ter acontecido uma interdição na relação da criança com a mãe, quando o pai passaria a representar aquele que possui o falo, cuja referência causaria o deslocamento do lugar do sujeito, anteriormente ligado à mãe. Os efeitos desta interdição incidiriam na organização de uma lógica do inconsciente, na qual o significante do Nome-do-Pai passaria a funcionar como fundador de uma organização determinada da cadeia significante, com a significação fálica servindo como parâmetro para os diferentes modos de relação do sujeito. Para a criança esta localização referente ao falo lhe permite construir, pelo imaginário, suas primeiras identificações.
Aqui, convém fazermos uma pequena consideração a respeito do período no qual Lacan abordou a psicose, dedicando-lhe um ano inteiro de seminário. Na época, ele havia constatado um modo confuso de se lidar com a psicose – e na prática clínica em geral - no qual se percebiam várias deturpações da teoria de Freud. Fez-se necessário, portanto, um esclarecimento a respeito da importância da linguagem na estruturação psíquica; e também a distinção dos três registros que compõem a vida psíquica, que são o simbólico, o imaginário e o real. Essas distinções são indispensáveis para guiar a postura do analista em sua prática, o que fez com que Lacan insistisse muito em sua necessidade. A psicose, cuja relação com o significante é tão particular, foi a estrutura privilegiada para ele demonstrar seu peso – e não
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foi por pouco que ao longo do referido seminário vários trechos das memórias de Schreber foram retomados, já que a gravidade deste caso relaciona-se diretamente à proliferação de seus sintomas, nos mais diversos níveis de sua vida. Havia que se destacar, naquele momento, a sutileza do modo de conceber tais sintomas, e ainda mais como agir com os mesmos.
O seminário sobre as psicoses tem por mérito, no conjunto da obra de Lacan, a sistematização sobre a característica e função do significante para o homem, contribuindo para o que se definiu posteriormente como o momento em que Lacan priorizava o significante, o registro simbólico, e por consequência a fórmula do inconsciente enquanto estrutura de linguagem. É justamente a respeito desta determinação simbólica que é preciso partir para se compreender a psicose. Em relação a isto, Miller (1985) destaca o ponto de vista lacaniano que introduz a questão do sujeito na psicose, tratando-a de outro modo que não em termos de déficit e de dissociação.
De fato, foi o caso de Schreber e sua leitura feita por Freud que serviram como base para a elaboração de Lacan sobre a psicose naquele momento. O delírio de Schreber, cuja estrutura evidencia a sua relação com significantes específicos, serviu como paradigma para o estudo psicanalítico da psicose, além de ter permitido a teorização sobre o funcionamento inconsciente baseado na estrutura mesma do significante.
Uma crise psicótica revela a quebra do sujeito com a organização de linguagem que ele possuía antes. Não raro é um significante – palavra ou expressão – específico se destacar, rompendo com a atribuição de sentido costumeira e exigindo a partir daí uma nova produção de saber. Ao longo da nossa discussão sobre a teorização psicanalítica da paranoia poderemos demonstrar como o desencadeamento revela, na verdade, o rompimento da ligação que havia entre os três registros – imaginário, simbólico e real – para um determinado sujeito.
Consideramos a psicose como a estrutura na qual não houve a incidência do Nome-do-Pai. Embora não seja esta a causa da psicose, ela é, no entanto, sua condição: falta simbólica que repercute nas manifestações no imaginário e no real. O significante primordial foi rejeitado, foracluído. Este termo é encontrado no texto de Freud sobre Schreber, referente ao mecanismo intitulado como Verwerfung - modo de defesa distinto do recalque e para o qual Lacan (1955-56/1985b) sugere a tradução de foraclusão, “mecanismo fundamental na base da paranóia” (p.174). A foraclusão significa que o sujeito é o efeito deste significante que não adveio em sua estruturação. Ela é a condição estrutural que permite a ocorrência de um surto, dependendo das experiências de um determinado sujeito.
O desencadeamento no caso de Schreber permite-nos afirmar que ele viveu relativamente bem até o momento em que foi nomeado para ocupar o cargo de presidente do
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Tribunal. Este momento representou um apelo originado no campo do Outro, a alteridade simbólica, sob a forma de um significante que não poderia ser acolhido pelo sujeito, já que em sua constituição não houve uma inscrição que lhe permitiria situar-se diante desta designação. A entrada na psicose revela-se como uma intensificação do imaginário, em que as situações vividas vão sendo significadas, re-significadas, em um trabalho incessante pelo qual o sujeito tenta construir um sentido para seu mundo. As interpretações e formações delirantes tiveram como função reorganizar um mundo que se desfez quando tal apelo foi dirigido a Schreber. Ele passou a sofrer alucinações e intuições delirantes de todo tipo, sofrendo imposições durante anos, até que tivesse conseguido achar um sentido satisfatório para seu destino, e assim estabilizar-se temporariamente enquanto a mulher de Deus.
De maneira geral, admitimos que o desencadeamento de uma crise psicótica é relativo a uma injunção. Valendo-nos da leitura de Lacan feita por Calligaris (1989), afirmamos que quando algo se impõe ao sujeito como uma referência à função paterna, o surto acaba por ocorrer se a situação não o permite encontrar uma referência para sua resposta. Por isso o primeiro momento do surto mostra-se como uma perplexidade do sujeito diante de um determinado fato. “„Referir-se a uma função paterna‟ para nós quer dizer isso: organizar-se como sujeito e obter significação de sujeito em relação a uma amarragem fixa, central, que organizaria seu saber” (p. 35).
Voltando-nos para as manifestações imaginárias, vejamos como se constitui o eu em casos não patológicos, segundo Lacan, antes de especificarmos o que se distingue na paranoia. O eu pode ser entendido como um objeto que cumpre uma função psíquica exclusivamente imaginária. De fato, há nele duas dimensões, uma que é ser função, outra ser um símbolo. Para Lacan esta ambiguidade intrínseca ao eu relaciona-se à sua intervenção, para o sujeito, enquanto um símbolo. O que se passa nos primórdios da construção psíquica, que evidencia a importância do registro imaginário no ser humano?
Para explicá-lo, Lacan (1949/1998) nomeou o estádio do espelho, no qual o ser ainda marcado pela imaturidade orgânica - por nascer ainda sem coordenação de seus movimentos e ainda menos com condições de apreensão de sua imagem – reconhece na imagem que vê do outro, no espelho, uma forma bem definida da qual pode supor, por antecipação, equivaler à sua própria imagem. Neste momento é fundamental a presença de outra pessoa que, com seu olhar de confirmação, contribui para esta definição, esta miragem. Então, o sujeito, ainda com a imagem de seu corpo em pedaços, pode a partir do outro se definir como um ser inteiro: é neste campo alheio que ele concebe sua imagem, especularmente. Este momento marca o
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desenvolvimento, pois a partir daí pode-se começar a identificar-se com aquilo que é designado, por parte do outro, a respeito do sujeito.
Esta captura imaginária, este fascínio que todo indivíduo sente pela imagem de seu semelhante, embora seja constitutiva é, no entanto, ameaçadora. Neste registro se encontra também o que é da ordem da agressividade, já que o objeto que pode fornecer esta completude é considerado como algo que deva pertencer ao sujeito. Em outras palavras, aquilo que o outro tem, que provoca o desejo, passa a ser imaginado pelo sujeito enquanto algo que lhe pertence. É por esta confusão entre o que é do sujeito e o que é do outro, em um domínio não distinguido em si, que a relação imaginária se torna insustentável. É preciso, para que a condição do homem se exerça tal como esperado em nossa cultura, que um fator de outra ordem intervenha nesta relação, interditando-a, definindo assim os seus limites.
O eu se constitui a partir do imaginário, mas ao mesmo tempo porta uma face radicalmente distinta dele. Sendo a partir do ponto de vista do outro que o sujeito pode enfocar seu reflexo, instaura-se nele esta dimensão de ser um outro para ele mesmo, com um estranhamento pelo seu próprio ser. O eu imaginário é, portanto, uma ilusão sobre a qual se depositam as identificações do indivíduo, compondo uma série de camadas criadas especularmente. No entanto, o eu é também o elemento indispensável para que haja a inserção da realidade simbólica na realidade psíquica. Por isso Lacan (1954-55/1985a) atribuiu ao eu o ponto de conjunção entre o discurso comum e sua realidade psicológica; ele está preso ao discurso do inconsciente, preso aos símbolos, mesmo em seu estatuto de imagem. Um registro está ligado ao outro nesta organização.
Se esta constituição imaginária é indispensável para a subjetividade, ela requer no entanto que uma ordenação incida sobre ela, fazendo-a ser sentida como falsificável. Por isso se torna imprescindível distinguir o outro, grafado com minúscula, representando o objeto com o qual o eu se identifica, do Outro, grafado com maiúscula, que representa a ordem simbólica que intervém no eixo imaginário. O eixo que corta o imaginário, indo do Outro ao Sujeito do inconsciente, é o muro da linguagem, cujas regras determinam a relação do indivíduo com os outros.
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Esquema L (Lacan, 1954-55/1985a, p.142)
Este corte, pressuposto na experiência dos neuróticos, está ausente nos casos de psicose, fazendo com que o psicótico seja aquele que adere a este imaginário, crendo nele sem deixar-se abalar por aquela incerteza e instabilidade que mencionamos acima como uma das características de tal registro. O esquema L serve para indicar o modo como a fala se dirige ao Outro e para distinguir o estatuto do mesmo - e para que a prática psicanalítica seja bem fundamentada, menos sujeita às confusões oriundas da intenção que subjaz na fala de um determinado sujeito.
Assim, não só nos casos de psicose, mas em qualquer atendimento, cabe ao analista diferenciar o local onde o sujeito o coloca, para agir em acordo com a organização de sua estrutura. A análise se efetua nesta fronteira entre os registros, mas nela separamos o valor do imaginário, uma vez que ele não está subordinado à ordem simbólica nas experiências psicóticas.
O esquema L representa o cruzamento dos registros imaginário (a-a‟) e simbólico (S-A), permitindo-nos ainda aproximar o sujeito do inconsciente com a dimensão do real, já que nele as pulsões se mostram de certo modo independentes de uma regulação simbólica. Esse esquema quaternário ilustra a realidade psíquica, já que concebemos a experiência subjetiva como uma relação complexa entre o sujeito e diferentes objetos.
O estádio do espelho, uma vez concluído, permite ao sujeito viver de maneira dialética a relação entre o eu (inconsciente) e os semelhantes; como vimos, a identificação com estes o lançará em um ciúme fundamental, pelo qual se problematizam as relações sociais em geral. Observamos, seguindo a teorização lacaniana, que a alienação característica da paranoia se localiza justamente nesta passagem do eu especular para o eu social, o que pode ser comprovado com as interpretações que os sujeitos paranoicos desenvolvem em sua vida cotidiana.
O caso Schreber, bem como o de Cláudia, nos ensinam bem, a este propósito, como as interações com os semelhantes provocam inúmeras indagações no sujeito, de modo que ele
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passa a questionar sobre o sentido das suas vivências. Não importa, para nossos objetivos de levantamento clínico, nem mesmo qual é exatamente este sentido, tampouco se ele é deduzido por intuições ou alucinações ou interpretações delirantes; mas o importante é que o sujeito torna-se sempre visado pelo Outro: qualquer que seja sua intenção, o paranoico sabe que ela lhe concerne. Esta forma de loucura se manifesta amplamente neste nível de atribuição de sentido, de onde deduzimos que alguma falha da mediação com a realidade ocorreu, provocando esse deslizamento sem fim do imaginário.
Embora tenha apresentado o esquema L no seminário sobre o eu na técnica psicanalítica, Lacan (1955-56/1985b) o retomou no seminário sobre as psicoses, para destacar a diferença entre a relação do neurótico e a do psicótico com o Outro. No caso da psicose esta figura não incidiu de modo a separar a instância do eu e a do ideal do eu, passando a funcionar como um outro que funciona para o sujeito como “puramente imaginário, o outro diminuído e decaído com o qual não pode ter outras relações que não as de frustração – esse outro o nega, literalmente o mata. Esse outro é o que há de mais radical na alienação imaginária” (p.238). A maneira paranoica de lidar com o outro, com o semelhante, assim como o estatuto de seu Outro, é o problema com o qual nos deparamos no tratamento psicanalítico – por isso será necessário aprofundar este ponto no próximo capítulo desta dissertação, tratando especificamente da posição do analista no atendimento com paranoicos.
Na psicanálise só podemos nos basear no discurso concreto, na fala que o indivíduo nos dirige. Mesmo que consigamos visualizar algumas mudanças no registro imaginário, sua fala é o meio por excelência com o qual podemos lidar para conduzir o tratamento. E na linguagem do psicótico notamos como a dialética não funciona, como sua convicção determina sua compreensão daquilo que o cerca e também, indiretamente, suas ações. Este é um ponto no qual o clínico que o acompanha pode tentar intervir eventualmente ao ouvir suas elaborações delirantes - como veremos no próximo capítulo.
Por ora, vamos ressaltar mais alguns aspectos desta estruturação imaginária, que nos são úteis para um diagnóstico clínico. Afinal, dentro do campo das psicoses, se é verdadeira a distinção entre a esquizofrenia e a paranoia, podemos afirmar, com Lacan (1955-56/1985b), que a última “está sempre em relação com a alienação imaginária do eu” (p.311), contrariamente à primeira.
1.3.3. Formulações posteriores de Lacan sobre a psicose paranoica
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Vimos, com o esquema L, que a figura do outro – imaginário – e do Outro – simbólico – tendem a fundir-se em um só eixo, já que não há a regulação simbólica que teria sido garantida pela incidência do significante do Nome-do-Pai. Nós nos guiamos pelo princípio de que toda forma de relação dual é inútil na teoria e ineficiente na prática; ou seja, que devemos observar, na situação clínica, a importância do eixo do terceiro na relação. Ele implica em uma mediação implícita entre os dois indivíduos que se encontram presentes. Mas é um problema quando nossas intervenções são apreendidas pelo sujeito como vindas de um semelhante, que pode estar lhe querendo algo. A questão é a sutileza de nossa ação, principalmente diante de uma produção delirante intensa, para que ela seja reconhecida em seu devido lugar.
Uma indicação teórica decisiva de Lacan (1957-58/1998) para a abordagem clínica da psicose encontra-se em uma nota acrescentada ao texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, no período de elaboração topológica do autor sobre objeto a. Ele afirmou aí que somente a extração do objeto a, que passa a existir no Outro e não mais no sujeito, é o elemento capaz de ordenar a realidade desse último.
Ligada a essa observação está a definição da paranoia como a manifestação patológica da localização do gozo no campo do Outro, feita na apresentação da tradução do livro de Schreber para o francês (Lacan, 1966/2003). O campo da realidade passa a ser concebido como uma articulação entre o significante e gozo, condicionada no entanto à passagem pela castração. O modo como o sujeito lida com os objetos depende desta operação. Teremos oportunidade de desdobrar esta constatação no decorrer da discussão.
Essa “nova abordagem da psicose” (Maleval, 2002), segundo a qual relacionamos a função do Nome-do-Pai com o objeto a, “produz um giro decisivo: o esquema do desencadeamento significante se verá suplantado cada vez mais pelo da não-localização do gozo. (...) quando Lacan introduziu a noção de „sujeito do gozo‟ para caracterizar o psicótico” (p.104) em 1966. Esta espécie de definição dupla do sujeito, uma ligada ao sujeito do significante, preso à cadeia significante, outra ao sujeito do gozo, passa a ser então correlacionada ao objeto a.
Se Schreber identificou o gozo no lugar do Outro, tentou reconstruir sua realidade respondendo a essa certeza. Tal como sugerido por Miller (1985), esta imputação ao gozo no campo do Outro é o que problematiza a transferência na paranoia. Segundo o autor, a experiência de Schreber permite-nos refletir sobre este problema, já que
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A relação de Schreber com o Outro reproduz no real a relação do analista com o analisante. Efetivamente o delírio de Schreber implica que o gozo seja colocado no campo do Outro de maneira totalmente explícita. Isto é realizar a fórmula que supõe a transferência (p.24).
Este gozo consistente, que pode se mostrar tanto pela erotomania quanto pela perseguição, é um dado da estrutura com a qual estamos lidando. É por isso que Quinet (2006) afirma que “a personalização do Outro é o que caracteriza a imaginarização do Real do gozo do Outro” (p. 123). Esta concepção será mais bem explorada no terceiro capítulo, a respeito das tentativas de estabilização na paranoia.
O problema que temos para considerar, então, que nos guia neste trabalho, pode ser assim definido: sabendo do lugar em que o psicanalista – ou outro profissional responsável por um acompanhamento clínico – é colocado, pelo modo da estruturação paranoica, como responder a ele, sem que nos encaixemos nas formulações delirantes, não encarnando, assim, a posição do Outro perseguidor que o visa constantemente?
A partir dos casos clínicos apresentados temos elementos suficientes para realizar um diagnóstico de psicose paranoica. Como o psicótico não situa o Outro como interditado, marcado por uma falta, a clínica com a psicose baseia-se nessa dificuldade. Nosso próximo passo é abordar o problema da transferência, a fim de situarmos sua especificidade na paranoia, o que nos exige uma postura diferenciada se a compararmos com a transferência neurótica.
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Capítulo 2: O fenômeno da transferência e a resposta do analista ao mesmo
A constatação óbvia de que a clínica psicanalítica só é possível quando se instaura a transferência conduz à dificuldade inerente à condição do tratamento da psicose, dada a especificidade da transferência desenvolvida nesta estrutura. É devido à condição mesma do inconsciente nesse caso que o próprio Freud julgava improvável que o tratamento pudesse ter êxito, como vimos no primeiro capítulo desta dissertação. Para tratarmos desta especificidade vamos partir da condição estrutural psicótica, passando dos fenômenos clínicos descritos para a condição que os incita - o que requer ainda considerar a importância do diagnóstico estrutural para que se trace a direção do tratamento.
Com isso retomamos a indicação de Lacan (1957-58/1998) feita em seu texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, no qual a foraclusão do Nome-do-Pai - entendida como a ausência de uma inscrição significante que poderia estabelecer uma ordem e uma referência ao objeto privilegiado que é o falo - é apresentada como a condição para que diante de uma dada contingência de sua vida o psicótico venha a desencadear sua psicose. Partindo desta formulação de Lacan nos guiamos para tentar localizar o motivo do desencadeamento da psicose, em cada caso, para termos condições de exercer um acompanhamento de modo satisfatório ou com a intenção de êxito terapêutico que lhe é subjacente.
É preciso enfatizar que essa ideia demonstra a descontinuidade que há entre a estrutura neurótica e a psicótica, sendo que em cada uma o fenômeno da transferência adquire um contorno peculiar. Por isso destacamos aqui nossa escolha pelo tipo de psicose denominado paranoia, uma vez que partimos de um caso clínico com este diagnóstico, o qual levantou o problema a respeito do manejo de sua transferência. Outra justificativa para essa escolha é o fato de encontramos na paranoia, com frequência, um delírio relativamente estável, que pode manter-se para o sujeito mesmo quando ele não está em crise e servir-lhe como um sistema de pensamento que o acompanha em sua vida.
Veremos que o tratamento psicanalítico com paranoicos enfrenta algumas dificuldades típicas, das quais não podemos nos esquecer quando decidimos acompanhá-los. Nosso esforço será o de estabelecer algumas dessas condições gerais encontradas na clínica, a respeito da natureza da transferência, mantendo assim a possibilidade de transmissão desses princípios. Antes disso, contudo, iremos esboçar a condição da transferência na neurose, de modo a podermos contrapor o fenômeno nas duas estruturas.
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2.1. A Transferência Neurótica
No momento de formulação de sua segunda tópica, Freud mencionou que todas as neuroses transferenciais – que podemos entender como a estrutura neurótica e suas variações segundo os tipos clínicos – apresentam ao analista o conflito existente entre o eu e o isso, devido a uma exigência do supereu e da realidade (Freud, 1923/1996) feita ao indivíduo. O eu precisa encontrar uma solução de compromisso que atenda às exigências do lado pulsional e às da normatização psíquica, e ainda encontrar um modo adequado de satisfação. Isso o conduz ao estado neurótico, em que um sintoma representa ao mesmo tempo um modo de satisfação e inflige sofrimento, de onde incita a busca de tratamento.
Toda a formulação freudiana a respeito do conteúdo recalcado e de seu retorno à consciência contribuiu para a teorização de sua experiência clínica: deste modo, o modelo do sintoma neurótico seria, por excelência, aquele que condiz com o tratamento pela palavra no dispositivo criado por Freud, com o uso do divã e o convite à associação livre.
Em relação à transferência, Freud a concebeu como um tipo de repetição inconsciente, através da qual o sujeito se relaciona com o médico ou analista conforme o modo antigo e consolidado de relacionamento com seus próximos. Ela se assemelha a um movimento, cuja relação com a confiança no saber do médico é precipitada pelo dispositivo mesmo. Em seu artigo sobre o amor transferencial, o autor destacou como na neurose há esta repetição de reações anteriores, até mesmo ligadas à infância, havendo por isso a capacidade de amar o médico e efetuar o tratamento (Freud, 1915b/1996). Apesar do risco de se prestar a esta transferência, devido à possibilidade de um paciente vir a se apaixonar pelo analista, Freud tratou dessa dificuldade como algo realmente sério, que deve ser enfrentado a partir do manejo dessa força psíquica, utilizando-a em benefício do próprio paciente. Tudo se passa como se o paciente exigisse amor - do analista como de qualquer outro com quem se relacionaria; mas espera-se que ele deixe de atuar deste modo para falar sobre as recordações que lhe trazem seus afetos, ao invés de atuar sob a influência dos mesmos, trazendo assim à tona material inconsciente para ser tratado.
Observa-se, deste modo, que mesmo na neurose lidamos com uma dificuldade de manejo da transferência. A questão é saber em qual lugar o psicanalista é colocado pelo paciente, para responder a ele adequadamente – digamos, não responder deste mesmo lugar. A função do psicanalista é justamente desviar-se deste lugar em que a repetição neurótica o localiza segundo uma das séries psíquicas do paciente.
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Freud (1915b/1996), em sua recomendação técnica, enfatizou que a paixão do analisante pelo analista, quando porventura ocorre, é algo “induzido pela situação analítica, e não deve ser atribuído aos encantos de sua própria pessoa” (p.178), ou seja, às características do analista. Esta situação é uma fase necessária de se atravessar no tratamento, é uma consequência inevitável do mesmo; deve ser manejada para ao mesmo tempo se verificar a possibilidade de continuar o tratamento e por outro lado procurar a superação da resistência, que levaria somente à repetição por parte do paciente. No mesmo artigo sobre técnica Freud se perguntou sobre como uma capacidade de neurose se liga a uma necessidade de amor tão obstinada – problema este que nos remete diretamente ao modo de relação do sujeito neurótico com o Outro.
No tratamento analítico o neurótico coloca-se na posição daquele que ama, por considerar o analista como aquele que tem algo a mais, que sabe mais a respeito de seu sofrimento inconsciente. Se a transferência é algo que põe em causa o amor, podemos, em um primeiro momento, defini-la como algo semelhante a este sentimento. Seguindo as formulações de Lacan sobre a transferência e sobre o comportamento daquele que ama, consideramos que amar é oferecer aquilo que não se tem, ao mesmo tempo em que só se pode amar quando se considera faltoso de algo que será buscado no outro. O fenômeno da transferência, nesta dimensão próxima do amor ao saber que se atribui ao analista, indica que o paciente pode buscar, no tratamento, a resposta ao amor que ele forja, supondo o quê o analista quer e tentando responder à pergunta ligada a sua própria estrutura - que refere-se ao lugar que ocupa, o sujeito mesmo, em sua vida.
No seminário sobre a transferência, Lacan (1960-61/1992) referiu-se justamente a esta instauração da relação analítica, denominando este algo a mais como um objeto precioso, agalma, imaginado no analista pelo sujeito. Naquele contexto foi utilizada a metáfora da paixão de Alcibíades por Sócrates, a quem o primeiro considerou como um portador do referido objeto – alusão a algo que Sócrates possuiria em seu interior, como uma qualidade altamente subjetiva. De maneira semelhante à posição de Alcibíades no diálogo sobre o amor, em relação a Sócrates, na análise o sujeito coloca-se como não sabendo o que se passa consigo, demandando ao analista que este responda com o seu saber.
A relação deste fenômeno com a estrutura de cada sujeito é intrínseca: este movimento de busca de saber no Outro só pode existir se o sujeito constituiu-se como sujeito barrado, dividido, tendo simbolizado a castração e entrado deste modo em um pacto simbólico que lhe dá um parâmetro para o convívio social. Por isso Lacan (1955-56/1985b)
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afirmou que “é pela aceitação da castração que o sujeito deve pagar um preço tão pesado quanto esse remanejamento de toda a realidade” (p.350).
Quando abordamos o esquema L, no capítulo passado, vimos como a posição do sujeito se determina uma vez que há incidência do lugar da lei, lugar simbólico, regulando assim a relação imaginária que é também constitutiva, mas em si sem regulação. A estrutura neurótica, portanto, faz com que o sujeito responda de uma determinada maneira, atribuindo saber ao Outro, inclusive na análise, sendo ele mesmo o sujeito que duvida e hesita sempre em procurar encontrar a resposta sobre seu funcionamento inconsciente. Devido a esta constituição Freud pôde, em sua época, atribuí-la como possibilidade de engajamento ao tratamento: somente a neurose desenvolveria esta transferência ao analista, podendo ser beneficiada pela psicanálise.
Com Lacan, no entanto, podemos avançar um pouco mais neste assunto e pensar no fenômeno da transferência a partir da referência ao significante que organiza a estrutura, a saber, o Nome-do-Pai. A questão do pai, na transferência, importa-nos justamente por representar a incidência da castração no sujeito: significa que o sujeito passou por uma operação em que se extraiu algo de seu gozo, que pode ser regulado, uma vez subtraído. Este resto de gozo é o objeto que funciona como a causa do desejo, o objeto para sempre perdido e ainda assim sempre procurado, evocado desde as formulações de Freud e confirmado na experiência clínica. Tal objeto, chamado por Lacan como pequeno a, passa a habitar o campo do Outro, não mais existindo do lado do sujeito mesmo. Esta é a extração do objeto evocada por Lacan (1957-58/1998) na Questão preliminar..., que funciona, portanto, como enquadramento da realidade para o sujeito neurótico ou normal.
Assim, a incidência do pai simbólico instaura consigo a referência ao falo, cuja importância significante destaca-se no modo de relacionamento do sujeito com os outros. O falo, quando concebido como um significante, é justamente a referência de que algo falta no campo do Outro. Para Lacan (1960-61/1992), é isto que faz dele um significante privilegiado, por indicar o significante que falta: “o falo é um objeto privilegiado no campo do Outro, um objeto que vem em dedução do estatuto do Outro como tal” (p.219). Disto depreendemos que o Outro poderia se tornar completo se pudesse ser articulado a este significante faltoso, o que, apesar de impossível, não deixa de ser almejado pelo neurótico, que se esforça por tentar negar esta incompletude.
A função assumida pelo falo, portanto, é a de ser a raiz desta falta no Outro, falta subjacente ao desejo do Outro, sempre enigmático para o sujeito. Na transferência neurótica o sujeito tenta responder à questão fundamental encarnada pela postura do analista, que é O que
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queres? – sendo por isso convidado a assumir seu próprio desejo, o que requer uma superação do recalque e um longo trabalho de elaboração sobre suas questões inconscientes.
Com a oferta de silêncio por parte do analista, convidando ao paciente para que fale tudo que lhe vier à cabeça, esse último coloca-se à procura de sua própria verdade, sobre sua identidade e sobre seu desejo. Segundo Miller (2002), essa busca se passa no limite da palavra do analisante, que encontra o analista como um ouvinte fundamental, no lugar simbólico que pode decidir sobre a significação daquilo que diz. Contudo, é preciso antes incentivar o desdobramento da palavra do analisante; deste procedimento o autor extrai o princípio constitutivo da transferência, que seria, nesse sentido, uma “promessa de significação” (p.78).
Trata-se, na análise, da manifestação do desejo do sujeito, que tem como condição absoluta sua referência ao objeto a. É por isso que a consequência da castração tem relação com o problema do amor e seus impasses, pois o único modo de o sujeito responder à demanda do Outro é, segundo Lacan (1960-61/1992), “rebaixando-o – fazendo deste Outro o objeto de seu desejo” (p.219). A função que o falo adquire na economia psíquica do sujeito é situar o objeto a, atribuindo a ele a função de objeto do desejo. Relacionado a esta função do objeto a, o falo é o elemento que permite situar os objetos; até mesmo os da fantasia, colocando-os em uma série específica para cada indivíduo. A referência eterna ao objeto a existe porque na origem da relação do sujeito com o objeto do desejo está a função fálica. A partir disso é que se espera, no tratamento, restituir o lugar do desejo.
Outro modo de articular o significante fálico - que é um significante que falta à cadeia discursiva - no caso da neurose é pensá-lo como uma função que se encontra fora do sistema da linguagem, podendo ser extraída somente por dedução. Apesar de estar fora, ele é o responsável por estabelecer as regras do jogo, o modo como a própria linguagem será organizada. Segundo Camargo (2008), este significante “está relacionado com o real visado na extração, já que esse real implica, necessariamente, um modo específico de organização do simbólico e do imaginário” (p.73). Sabemos que na neurose pré-existe esta função de organização da linguagem, o que permite estabelecer uma relação estável entre significante e significado, trazendo implicações diretas para a posição do analista na clínica da neurose.
Pensando na relação com o objeto na transferência, de modo simples, podemos considerá-lo como dentro do Outro; mas não se trata de uma relação direta de continente e conteúdo, o que nos permite afirmar, baseando-nos em Miller (1997), que “o objeto a está dentro do Outro em seu êxtimo, no mais íntimo/exterior” (p.284). Nesse vínculo, o objeto a é
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considerado como uma objeção ao campo do significante, ao mesmo tempo em que, como resto, é um produto do Outro.
A neurose revela que o objeto a só pode ser encontrado através do outro, semelhante, mas pelo que falta no Outro, simbólico. Nesta estrutura só há encontro indireto com o objeto a. No caso da psicose, veremos mais adiante a noção da não extração de tal objeto, para detalhar sobre qual aspecto da clínica com psicóticos pode ser discutida tal formulação.
A situação analítica se baseia, assim, nesta demanda que um sujeito faz ao analista, a qual escamoteia o que é referente ao desejo e ao mesmo tempo coloca o analista como aquele que sabe sobre o sujeito, que é capaz de interpretar seu inconsciente. Este se mostra na transferência enquanto discurso do Outro, que o sujeito acabou por introjetar em seu psiquismo, constituindo seu desejo como o desejo do Outro. O analista, encarnado neste lugar do Outro – referência simbólica fundamental para o sujeito – procura deixar vago este lugar em que ele é colocado, para responder a partir de seu desejo, enquanto desejo do analista - que é o que permitirá o pacto da análise. A princípio, independentemente de sua subjetividade, o analista de orientação lacaniana responde por esta função, a partir da qual espera que surja o próprio desejo do paciente.
Apesar de a instauração da transferência sugerir que há algo da particularidade da pessoa do analista que a permitiu surgir, podemos entender que o que se coloca em jogo é mais um significante relacionado ao analista do que, propriamente falando, sua pessoa. Por isso, quando retoma os textos de Freud e Lacan sobre a transferência, Miller (2002) afirma que há um lugar na economia psíquica que o analista passa a ocupar: o analista, enquanto significante, faz parte da economia citada, sendo imprescindível à teoria da psicanálise admitir que o analista é uma formação do inconsciente.
Segundo Lacan (1963-64/1988), do mesmo modo que ocorre essa atribuição de saber ao Outro se mostra o que está em jogo nesta relação, interna, entre o desejo do homem e o desejo do Outro:
O desejo é o eixo, o pivô, o cabo, o martelo, graças ao qual se aplica o elemento-força, a inércia, que há por trás do que se formula primeiro, no discurso do paciente, como demanda, isto é, a transferência. O eixo, o ponto comum desse duplo machado, é o desejo do analista, que eu designo aqui como uma função essencial. (...) É precisamente um ponto que só é articulável pela relação do desejo ao desejo (p.222).
Podemos conceber, seguindo essa formulação, que para que surja o chamado amor de transferência é necessária uma afirmação do laço que passa a existir então entre o desejo do analista e o desejo do paciente. Mas - convém insistirmos sobre este ponto - o sujeito só entra
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neste jogo por ser estruturado como sujeito do desejo. O efeito do amor, que surge com a instauração da transferência, revela ainda a implicação do narcisismo de cada indivíduo; pois, como sabemos desde Freud, todo amor relaciona-se com esta espécie de função psíquica, segundo a qual amar não deixa de ser querer ser amado, essencialmente.
Quando Lacan definiu a transferência, ele afirmou que nela o sujeito está submetido ao desejo do analista, mas deseja enganá-lo dessa sujeição: e o faz a partir de seu cumprimento ao pacto analítico, passando-se assim como alguém digno de ser amado. Querer ser amado pelo analista é o efeito que Lacan (1963-64/1988) designou como tentativa de tapeação. Esta é a condição que se repete na transferência, na presença atual do indivíduo, indispensável para que haja o tratamento; ela não é, em sua natureza, a sombra de algo que foi vivido no passado, simplesmente, mas revela em si mesma o modo de relacionamento com o Outro. Esta relação simbólica entre o sujeito e o Outro é o que é designado pela transferência, cujo movimento vai, portanto, da falta subjetiva ao Outro - conforme explicitado também por Zenoni (2000).
A partir da estrutura da transferência neurótica fica estabelecida a maneira como o psicanalista poderá intervir nesses casos. Se pensarmos na eficácia da interpretação, que é uma das suas ferramentas disponíveis, iremos admiti-la como correlativa à efetivação do recalque em relação a um determinado paciente. É nesse sentido que Soler (2007) afirma sobre a possibilidade de interpretação quando se cumpre a condição da presença de uma dupla suposição: de saber inconsciente e do seu sujeito. Deste modo, sendo a transferência uma relação específica com o saber, no qual está implicado justamente este saber suposto no inconsciente, evidencia-se a afinidade entre aquele que interpreta e a sua aptidão para ser amado. Assim, segundo a autora, “na psicanálise, a relação significante de interpretação condiciona a relação libidinal de objeto” (p.49), no sentido de ambas conduzirem ao mesmo investimento no analista enquanto objeto. Veremos mais adiante, porém, que esta condição é invertida na clínica da paranoia, onde testemunhamos um sujeito extremamente hábil em interpretar os signos que vêm do Outro; ou seja, não é deste que parte a interpretação, mas sim do sujeito, respaldado em sua convicção delirante e em sua lógica própria.
A transferência neurótica demonstra como se dá a estruturação do inconsciente nesses casos. O fenômeno revela a realidade sexual, que é a realidade do inconsciente, sendo uma de suas provas a situação de paixão amorosa que por vezes se manifesta na clínica, conforme mencionamos anteriormente. Este aspecto da realidade sexual é o que, na teoria lacaniana, exige que o significante passe a regulamentar o funcionamento psíquico, sendo necessária esta tentativa de mediação simbólica para lidar com o registro do real. A função que Lacan
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(1963-64/1988) atribuiu ao objeto a indica um esforço para que exista uma “afinidade dos enigmas da sexualidade com o jogo do significante” (p.144). Sobre este ponto podemos retomar brevemente as elaborações a respeito da topologia, para discutirmos sobre a relação do objeto a com o desejo, o que tem como consequência esclarecimentos a respeito da situação clínica.
As figuras topológicas utilizadas por Lacan ao longo de seu ensino permitem conceber a libido – termo utilizado por Freud para designar a energia do psiquismo - como um ponto de junção entre campos distintos. Em sua releitura de Lacan, Granon-Lafont (1990) sugere que a libido pode inscrever-se na transferência: “para o sujeito desejante, é a partir desse ponto onde ele deseja, que a conotação de realidade é dada a perceber” (p.84). Deste modo, é possível que o desejo do analista possa operar, significando que o analista mesmo, enquanto sujeito, passou pelo corte que separa o objeto a de seu ser, ou seja, o corte que assinalou o desejo a partir do destacamento deste objeto. A autora afirma, então, que a transferência se baseia neste ponto, o do objeto a, no qual o analista é colocado.
Aproximando a noção freudiana do investimento libidinal no médico ou analista com a função do analista indicada por Lacan, podemos definir sua instauração de acordo com os três registros da experiência psíquica, tal como explicitado por Figueiredo (1997):
Pela via do imaginário, é a imagem ou traço do objeto; pela via do simbólico, os significantes que designam o objeto, o que retorna à primeira idéia de Freud da transferência como deslocamento de uma representação para outra (...); pela via do real, é a dimensão da falta, do não comparecimento do objeto, que remete ao objeto perdido. Esta inclusão nas „séries psíquicas‟ se inscreve na economia libidinal do sujeito estando, portanto, submetida às intempéries do amor-ódio de transferência (p.147).
A ambivalência de sentimentos, conforme designada por Freud, exige o manejo por parte do analista para tentar superar as resistências ligadas à mesma. Por outro lado, a direção do tratamento na neurose tem relação com esta delimitação do objeto a como base da posição do analista, para dali se situar a fantasia e, por consequência, o corte que ela opera entre o sujeito e o objeto (Granon-Lafont, 1990), possibilitando que o desejo do sujeito possa ser re-situado por ele mesmo. Nas palavras desta autora,
O objeto a fica como um ponto de articulação entre fantasia, pulsão e „paixões do ser‟ (o amor, o ódio ou a ignorância). Excluído da imagem especular, ele constitui nada menos que um furo na organização do Eu, ele permite uma nodulação com alguma coisa do Outro, com alguma coisa do exterior (p.101).
Neste ponto estabelecemos, portanto, qual a incidência na clínica da relação do sujeito com o objeto a. Se o paciente infere no analista a existência de um objeto que se relaciona
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com seu objeto de desejo, significa que o analista é chamado a encarnar um ponto de idealização. De fato, é o analista no lugar de objeto, assim colocado por seu próprio discurso, que pode sustentar a transferência enquanto suposição de saber. Todavia, ele precisa sair deste lugar idealizado para operar a partir do desejo do analista definido por Lacan; paradoxalmente, pela via da transferência, ele deve isolar o a e colocá-lo na maior distância possível do ponto ideal (Lacan, 1963-64/1988). O analista, mantendo sua função através do desejo do analista, não se identifica com a posição de Outro que lhe é atribuída pelo paciente na situação clínica, em si.
Afinal, a análise da transferência conduz à constatação de que não há um sujeito suposto saber, de fato; e a postura favorável a esta destituição futura é o que permite que o analista se atenha à individualidade de cada paciente. Lembremos, aqui, que a transferência pode ser considerada como um fenômeno universal, mas que será justamente o seu manejo, em cada caso, que fará desta operação algo singular em cada tratamento.
Por isso evocamos a prudência que se faz necessária também no tratamento da neurose, no entanto com a condição de que um erro de manobra, aqui, tal como mencionado por Broca (1985a), acarretará provavelmente em “consequências menos graves” (p.129), se comparadas à psicose. A dificuldade do manejo na neurose relaciona-se à resposta que o analista procura dar a partir de um lugar outro que não aquele de onde é esperado pelo paciente.
2.2. A transferência psicótica – paranoica
Vimos que a transferência neurótica pressupõe o vínculo libidinal com o Outro. Na psicose, porém, o próprio delírio é responsável por produzir uma elaboração do sujeito quanto à sua realidade, sua relação com o Outro, após o surto. Pode ser que um psicótico resolva sozinho os enigmas que lhe aparecem, enquanto o neurótico dificilmente pode se desvincular do Outro. Assim, a dificuldade que encontramos na prática se refere à possibilidade de o psicótico se inserir e, mais ainda, se beneficiar do tratamento psicanalítico, já que os efeitos da foraclusão do Nome-do-Pai repercutem também nos relacionamentos do sujeito.
O problema da transferência na psicose é decorrente da não extração do objeto a por parte do sujeito, o que significa que em sua experiência a substância libidinal não foi transferida ao campo do Outro (Zenoni, 2000). Tendo mantido em si tal objeto, o sujeito vive como se fosse ele mesmo a causa do interesse do Outro. Na transferência psicótica trata-se,
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portanto, desta inversão libidinal, na qual o sujeito possui algo que interessa ao analista, àquele que ocupa o lugar do Outro.
Podemos acrescentar, nesse mesmo sentido, a constatação de Figueiredo (1997) segundo a qual “a castração é o elemento conceitual que faz a diferença” (p.152) no momento do diagnóstico e sua decorrente condução do tratamento. O problema é esta resposta dada pelo sujeito a uma constituição prévia à situação da análise; mesmo fora do tratamento o que prevalece é esta relação, em que o saber está do lado do sujeito. Isso é o que determina o modo de laço psicótico e representa a especificidade da estrutura da transferência psicótica, revelando esta inversão do lugar do objeto e por isso problematizando o lugar do analista.
O privilégio que damos aqui à paranoia deve-se ao fato de que nela notamos “uma presença evidente da transferência”, conforme designado por Zenoni (2007, p.6). Esse diagnóstico baseia-se nos diferentes modos de retorno no real que encontramos nos quadros psicóticos. Além disso, parece-nos plausível considerar a clínica da paranoia como a que recebeu maior destaque na elaboração sobre a clínica das psicoses, servindo como parâmetro para se definir a estrutura psicótica para Lacan. Pelo que vimos no primeiro capítulo quanto aos aspectos frequentemente encontrados nos paranoicos, inclusive no caso de Cláudia, esse tipo de psicose demonstra ser mais acessível à transferência do que outros - noção destacada também por Louis Sciara (2005).
Devido a essas constatações, consideramos que, ao contrário do que Freud (1912/1996) havia afirmado sobre a inaptidão da paranoia, uma neurose narcísica, de desenvolver a transferência com o analista, reconhecemos que ela de fato se desenvolve. Embora o vetor desta transferência dirija-se do Outro simbólico ao sujeito do gozo real, ela ainda assim é considerada uma transferência.
Do mesmo modo, a partir das formulações de Lacan (1966/2003) sobre a erotomania mortificante, podemos pensar nesta particularidade da situação em que o sujeito responde ao amor que o Outro lhe apresenta, em sua certeza delirante. A erotomania indica a inversão mencionada dos lugares dos dois sujeitos envolvidos na análise e reitera a hipótese da foraclusão do Nome-do-Pai enquanto determinante da estrutura. O analista pode passar a ser visto como possuidor de uma vontade de gozo que diz respeito ao paciente, e por isso ele corre o risco de ser tomado como perseguidor desse último. Isso ocorre porque o lugar oferecido ao analista por um paciente psicótico é o mesmo lugar em que Schreber localizou seu médico, Flechsig: o lugar de quem sabe, e por isso goza do paciente; lugar que facilmente se converte no do perseguidor.
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Como bem advertido por Soler (1989), se o analista se instala nesse lugar a referida erotomania mortificante acaba por advir. Éric Laurent (1983), por sua vez, indica-nos que é neste aspecto que se concentra a particularidade da transferência delirante, que passa a ser não apenas uma resistência ao tratamento, mas sim um obstáculo ao mesmo. Ainda assim importa-nos verificar em que medida tal situação é evitável no tratamento psicanalítico da paranoia.
A própria transferência pode precipitar a psicose e desencadear um delírio, com essa possibilidade de o analista ser localizado no lugar do perseguidor. Freud (1911/1996) teve o primeiro insight a respeito da particularidade do fenômeno vivido pelo psicótico, propondo, quanto ao caso Schreber especificamente, de que o quê foi abolido no interior do aparelho psíquico “retorna desde fora” (p.78), na forma da alucinação. Considerando esta fórmula conhecida, Lacan (1955-56/1985b) a retomou, mas reformulou-a do seguinte modo: o objeto que foi foracluído no simbólico retorna no real, de onde entendemos a manifestação delirante do psicótico como este retorno no real - provocado, por vezes, pela análise. Afinal, o psicótico tem que lidar com a certeza de que o analista sabe, dado o estatuto que o Outro adquire em sua vida; o sujeito sabe, portanto, que este Outro sabe sobre ele. O risco do tratamento psicanalítico nesses casos relaciona-se a este lugar de onisciência que o psicanalista pode vir a ocupar; não há suposição de saber, somente, mas certeza quanto ao mesmo.
Consideremos, agora, o motivo que pode levar um paranoico a procurar um tratamento psicanalítico. É comum que esta procura sirva para ele como mais um modo de elaborar um saber sobre si. No entanto, como sua estrutura nem sempre lhe garante uma referência simbólica estável, sua busca pelo saber toma a forma de uma errância, a qual pode ocorrer tanto ao nível intelectual quanto ao nível motor. Nesse sentido, Calligaris (1989) nos lembra que um psicótico que não está em crise pode buscar na psicanálise “uma rede lateral de saber” (p.20), e assim entenderíamos a sua demanda ao analista como um acompanhamento para que ele percorra esta etapa de seu caminho. A dificuldade reside no fato de caber ao sujeito mesmo a sustentação de um saber, ou a sua construção, trabalho muitas vezes baseado em uma jornada por direções variadas.
Por outro lado, se o paciente procura o tratamento enquanto vivencia uma situação de crise, é possível que queira buscar no analista uma escuta que colabore para a constituição de um delírio. Sabemos que o estado em que ele se encontra de estranhamento quanto aos sinais que percebe, quando se desencadeia uma crise, passa por um momento de vazio enigmático que não raro é sucedido por um excesso interpretativo, pelo qual tenta novamente atribuir
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significado ao seu mundo. De todo modo, diante de cada novo paciente mantém-se a importância de o psicanalista avaliar esta demanda; e, sendo a psicose a estrutura constatada, tentar calcular o risco de o sujeito se engajar na análise. Esta representa para ele afrontar-se com aquilo que o ato de falar traz em si, que é algo próximo à experiência de uma falta. Já as primeiras entrevistas têm este papel de permitir o estabelecimento do pacto, de onde poderá abrir-se o espaço para a consolidação da transferência.
Embora a relação com o saber seja peculiar, quando comparado com a neurose, o paranoico é levado a estruturá-lo e mantê-lo, mesmo que não seja pelo modo organizado pela função paterna, simbólica, mas sim por uma injunção que lhe vem do real. Nesta perspectiva, o tratamento poderia se apoiar na possibilidade da criação de algo novo pelo sujeito, uma espécie de nova referência, que às vezes é beneficiada secundariamente pela produção delirante em si.
Borie (2008), psicanalista que relatou recentemente um atendimento, observa, a respeito de Françoise, que o tratamento “supõe antes de tudo que o sujeito esteja à busca de um menos suscetível de alojar seu „excesso de ser‟, coisa que a paciente diz com suma justeza - „Tenho matéria demais no corpo‟” (p.19). No caso, especificamente, esta era uma das questões que ela tinha intenção de resolver.
É possível, dependendo da resposta dada ao analista a esse pedido - implícito ou explícito - de acompanhamento de um psicótico, que se provoque uma crise, caso esta busca pelo saber revele-se como uma oportunidade de elaboração de alguma questão inconsciente. Este tipo de imperativo de formulação pode ser vivido como uma injunção à referência ao Nome-do-Pai, o que justifica o alerta de Lacan (1955-56/1985b) no contexto de seu seminário, para a produção de uma psicose decorrente do atendimento de uma pré-psicose.
Se o analista considera que o caso em questão se trata de uma neurose, e dirige o tratamento como tal, há o risco efetivo de se demandar do paciente uma resposta que só poderia ser significada através de uma referência fálica. Lembremo-nos de que o falo, enquanto elemento privilegiado de referência ao pai, a qual se instaura somente com a elaboração da castração e em decorrência da realização do complexo de Édipo, é o símbolo que marca a imposição do significante no inconsciente, de modo a estabelecer uma dissimetria entre ele e o que ele pode significar para um determinado sujeito. Por ser, este complexo, a via para uma realização subjetiva, a sua ausência acaba sendo um risco no tratamento da psicose: a palavra do analista pode então ser tomada como algo que vem do real, sem uma mediação simbólica, levando à desestruturação do sujeito.
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Este problema nos remete portanto à posição do analista no tratamento, determinada pela estrutura do paciente e, logo, pelo tipo de transferência que ele desenvolve. Esta posição possível do analista no lugar de Um pai que retorna no real, no sentido de um significante não simbolizado, é considerada por Calligaris (1989) “um lugar estratégico importante” (p. 80), pois a constituição do delírio ou da metáfora delirante dependeria das possibilidades de o sujeito lidar com este lugar.
Em relação à paranoia, propriamente falando, a transferência parece estar organizada em torno desta exigência que é feita ao nível do real; faz-se necessário, para o analista, administrar esta posição em que é colocado para que o tratamento seja de fato possível, inclusive se o resultado esperado for o de uma elaboração delirante mínima que sirva como suporte para as elaborações posteriores do paciente, que o organizariam.
O problema envolve o estatuto do Outro, que acaba sendo tomado como outro, semelhante, com a predominância do eixo imaginário não regulado pelo simbólico. É a partir deste ponto de vista que podemos compreender o seguinte comentário de Lacan (1955-56/1985b): “para o psicótico uma relação amorosa é possível abolindo-o como sujeito, enquanto ela admite uma heterogeneidade radical do Outro. Mas esse amor é também um amor morto” (p.287). Se, por um lado, esta disposição imaginária pode facilitar a adesão do paranoico ao tratamento, facilitando até mesmo a relação transferencial, por outro podemos admitir a fragilidade desta relação. É certo que há possibilidade de se estabelecer um vínculo relativamente estável com o paciente – no caso de Cláudia, por exemplo, ela chegou a dizer, passado mais de um ano de atendimento, que ela confiava na psicóloga, podendo por isso falar de certos assuntos; mas é esta disposição baseada no imaginário que ao mesmo tempo remete-nos à dificuldade clínica do manejo.
A questão envolve como ocupar o lugar do outro, sem basear-se no registro especular, tampouco sem passar por um Outro absoluto; pois a concepção paranoica daquele que ocupa o lugar da alteridade é uma posição tomada sem dialética. Enfatizamos, assim, que se o analista encarna o Outro real, que é aquele que goza do sujeito, ele pode se tornar ou o perseguidor ou aquele que quer o sujeito para ele - que é o modo como se estabelece a erotomania mortificante à qual o sujeito sucumbe. Em ambos os casos observamos a alteração brusca do sentimento de amor para o de ódio, os quais tendem a não viabilizar mais o tratamento, e que são descritos por seu caráter radical na manifestação dos sentimentos dos delirantes.
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O problema pode ser pensado a partir dos conceitos estabelecidos por Lacan em uma etapa tardia de seu ensino, notadamente a partir da categorização do gozo e a localização do objeto a. Eric Laurent (1989) abordou a especificidade clínica a partir desta teorização:
A dificuldade da psicose reside em que o analista se põe do lado do objeto a, ou seja, do lado em que habitualmente se coloca o analista, e ocupando esse lugar do objeto a produz a divisão subjetiva. (...) Inversamente, o sujeito psicótico é quem se coloca na posição do que sabe, nunca é o Outro quem sabe para o psicótico, é ele quem pode enunciar um saber desconhecido para o Outro (p.32).
Esta posição do saber relaciona-se à convicção delirante, apresentada pelo paranoico em função da resposta que seu próprio delírio interpretativo lhe oferece. O analista pode presenciar uma virada do quadro e ser visto como aquele que sabe - isto indica nada mais que a confusão imaginária, especular, que se sobrepõe nos modos de relação do paranoico com as outras pessoas. O fato de não se operar com a interpretação na clínica da paranoia relaciona-se a este mesmo aspecto: o sujeito já decifra por si os significados que lhe concernem, sendo dispensável que o analista acrescente mais sentidos para quem já os encontra em demasia.
No contexto da clínica psicanalítica consideramos o objeto a como o resto, dejeto do simbólico, que se encontra nesta posição a partir da incidência normativa, como vimos anteriormente. Podemos lembrar, de passagem, que o objeto a na teoria lacaniana pode ser também o objeto causa do desejo, mas que funciona assim para o sujeito neurótico. O fato de o psicótico não localizar tal objeto no Outro – ao contrário, ele vive como o portador, em pessoa, de tal objeto – faz com que o estatuto deste Outro se circunscreva em um eixo no qual se baseia a rivalidade. O objeto, então, vivido como um excesso, é “um objeto que longe de fundar um laço social, o ataca, [e] deixa pouco espaço para o psicanalista” (Soler, 1989, p.20). Tal como no caso de Schreber, que nos ensina como o sujeito pode ter certeza do fato de o interesse do Outro estar voltado para ele, como atribuído ao seu médico ou a Deus; esse interesse revela-se ora como modo de satisfação, ora como perseguição, sendo a estrutura destas manifestações análogas quanto ao sentido do vetor da transferência, pois em ambas o sujeito é tomado como objeto de gozo do Outro. Contudo, isto não é considerado mais como um motivo para se deixar de tentar acompanhar o paranoico através da psicanálise.
Podemos pensar na transferência que vem do Outro, direcionada ao sujeito, mesmo que ele não esteja produzindo uma atividade delirante. Assim, Zenoni (2007) nos lembra que essa transferência pode se manifestar de modo fenomênico e perceptível para o clínico como um gesto da parte do sujeito, como algo que se aparenta a uma iniciativa tomada por ele mesmo. Localizamos aqui o risco da passagem ao ato, que pode no fundo ser motivada por
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uma resposta do sujeito a uma iniciativa, evidente para ele, que o Outro teria tido anteriormente a seu respeito. Uma declaração de amor do sujeito para alguém pode estar motivada pela certeza que ele tem de ser amado, reciprocamente. Zenoni afirma, sobre isto, que a transferência erotomaníaca pode se mostrar por passagens ao ato, mesmo que sejam discretas, e não só por interpretações delirantes mais extravagantes. Ressaltamos, no entanto, que este tipo de resposta do sujeito pode às vezes ser estranha para ele mesmo, sendo necessário averiguar em cada situação como ela ocorre e em que medida é assimilada ou compreendida pelo paciente em questão.
Na clínica da psicose a frequência das passagens ao ato é notável. A dificuldade mesma da inserção social dos chamados popularmente de loucos se relaciona com esta motivação e ações dirigidas às pessoas de seu círculo. O problema é decorrente da estruturação subjetiva nesses casos, nos quais, como vimos, a localização do gozo é feita no campo do Outro. Assim, a lógica da passagem ao ato obedece à posição subjetiva do sujeito em relação ao Outro, e é entendida como um modo de lidar com o gozo. Nos casos de paranoia desencadeados, as passagens ao ato são ainda mais plausíveis em função da atividade delirante desenvolvida, cuja certeza a respeito do querer do Outro precipita o sujeito à ação. Pensamos, portanto, na passagem ao ato em casos de psicose como um modo de resposta em que o sujeito tenta lidar com o Outro.
O problema é que se, por um lado, esse ato favorece alguma estabilização, do ponto de vista do sujeito que o comete, por outro lado ele geralmente envolve violência, agressividade, até a possibilidade de configuração de um crime. A esse respeito, podemos extrair elementos teóricos para discuti-lo, tal como proposto por Guerra (2007): com a passagem ao ato aprendemos que “há um excesso a ser subtraído na economia psíquica do psicótico. Esse excesso que não caiu sob a forma de objeto a invade e exige a construção de uma barreira, sua extração real ou simbólica, ou ao menos sua localização” (p.49). Uma passagem ao ato parece localizar tal objeto, circunscrevendo-o concretamente; desta limitação mesmo o ato conduziria a efeitos de apaziguamento, tal como demonstrado no caso de Aimée, no capítulo anterior.
Em um estudo sobre a relação entre a passagem ao ato e o conceito de objeto a realizado por Campos, a autora percorreu a literatura psicanalítica sobre o tema e acrescentou sua experiência de trabalho com psicóticos infratores (Campos, 2009). Em seu percurso ela concluiu que o Outro do psicótico muitas vezes adquire proporções ameaçadoras e desconcertantes, que acabam provocando no sujeito uma solução radical, na qual se trata de tentar extrair o objeto do campo do Outro a partir do ato. Nessa resposta, é possível observar
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que o sujeito se identifica com o objeto – visto que ele porta o objeto causa do desejo alheio – e tenta separar-se do Outro, a um alto custo.
No que se refere ao manejo da transferência paranoica, o problema da passagem ao ato pode ser pensado por dois vieses. O primeiro, já indicado, envolve a direção do tratamento em que o caso é considerado como uma neurose, mas a estrutura psicótica faz com que a localização do analista, enquanto Outro, seja feita de um modo inassimilável pelo paciente, representando uma injunção ao mesmo. Diante desta situação, a passagem ao ato ocorre como um modo de agir orientado pela invasão real, em função de uma certa carência simbólica inerente ao sujeito. Existe o risco, portanto, de que esta resposta seja provocada por uma ação do próprio analista.
O segundo viés refere-se a uma situação em que a produção delirante em si mesma pode levar ao ato; como quando Aimée atacou a atriz parisiense após uma longa elaboração sobre o que a mesma lhe fazia, decidindo-se por tentar frear a má intenção que tal atriz teria contra a própria Aimée. Neste caso, não houve um tratamento que pudesse ser aproximado da psicanálise durante a produção delirante, mas somente depois do ato e do julgamento e condenação decorrente é que a paciente pôde falar dos seus motivos para o ataque efetivo.
Esses vieses nos remetem a uma possível atuação por parte do analista, no sentido de que ele tente contribuir para o paciente encontrar um modo de lidar com o gozo a partir das suas elaborações, e que não seja através de um ato desse tipo; principalmente devido à sua ausência de sustentação no laço social. Aliás, espera-se que no tratamento psicanalítico uma manobra possa ser efetivada com vistas a conter também a interpretação que, na paranoia, costuma dar-se infinitamente, em sintonia com a deslocalização do gozo e o aumento do risco de uma passagem ao ato.
2.3. A resposta do analista à transferência paranoica: modos de manejo
A questão que se coloca sobre o modo de enlaçamento possível do paranoico com o analista nos leva a refletir sobre o modo de este último manejar a transferência específica observada nesses casos. Sendo o laço transferencial, em si, pertencente ao registro simbólico, ele não deixa de apresentar, porém, outra vertente mais ligada ao imaginário – registro este que, na paranoia, encontra-se geralmente mais acentuado que em pacientes neuróticos. No laço do paranoico com o analista predominam os efeitos mais ligados ao imaginário e ao real.
Na teorização de Lacan os registros manifestam-se destacados entre si na ocasião de um surto, sendo necessária uma reconstrução do sujeito para que sua realidade volte a fazer
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sentido para ele; para que o real, o imaginário e o simbólico apresentem-se relacionados, encadeados, sem que o funcionamento de um deles esteja muito acentuado em relação aos demais. Na clínica, embora o analista possa ser tomado como um semelhante, seu propósito é manter-se em uma posição simbólica que possa servir como referência estável para cada um de seus pacientes. É necessário, portanto, que ele se esforce por se constituir como alguém que representa a referência a um terceiro termo, que é o da ordem simbólica, passando a constituir um novo ponto de endereçamento para as articulações do sujeito.
Antes de avançarmos, é bom retomarmos um ponto importante do que já foi dito, a respeito da questão preliminar que Lacan considerou como o ponto de partida para refletir sobre como pode a transferência paranoica ser manejada. Trata-se da indicação de falha da metáfora paterna no surto psicótico, que deixou vago o lugar do significante que representaria a lei ou a ordem simbólica. A partir do caso paradigmático do Presidente Schreber, vimos no primeiro capítulo que a transferência de Schreber para com Flechsig revelou o desencadeamento da doença. Com a publicação de suas Memórias notamos também como Schreber (1903/1995) construiu para si uma solução que o permitiu relacionar-se novamente com as pessoas, tornando-se A Mulher de Deus - com estatuto de exclusividade máxima comparando com aquilo que existia no mundo até então - e assim encontrando para si um lugar novo e possível de ser ocupado na ordem das coisas.
Apesar disso, em relação a um tratamento e o manejo transferencial que este implica, o caso mais nos adverte sobre a posição do médico ou analista, que no caso de Schreber pode ser considerado pelos relatos que temos de seus tratamentos nas clínicas de sua época, apesar de serem tentativas de tratamento pela medicina formal, sem qualquer menção ao que estava sendo construído pela psicanálise nos primórdios do século XX. Cabe a nós aqui, portanto, com o auxílio do que foi visto e relatado sobre a clínica da paranoia devidamente atendida pelo viés psicanalítico, refletir sobre quais seriam as manobras possíveis de serem tomadas para se evitar a encarnação do psicanalista como alguém com vontade de gozo a respeito do paciente, tal como ocorreu com Flechsig. Afinal, a transferência desenvolvida por pacientes paranoicos revela o modo segundo o qual a função paterna retorna como real, e não em uma posição simbólica.
Como vimos, esta dificuldade é inata à estrutura e tipo com o qual estamos lidando, já que para o paranoico o real retorna ao sujeito, desvelando-lhe a verdade sobre seu ser. É nessa situação que o psicanalista pode tentar acompanhar o sujeito, situação em que, segundo Miller,
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O analista é especialmente solicitado no nível da terapêutica. Em que consiste essa terapia? Em convencer o sujeito de que o real mente, de que o real que lhe fala e lhe diz a verdade, até ele mente. Não se deve crer nele, não se deve escutá-lo. A terapia consiste essencialmente em ensinar um método, truques, para manter a verdade à distância (Miller, 2008).
Veremos em seguida, com mais detalhes, de quê se trata esse modo de agir com o intuito de se manter a verdade à distância, através das contribuições de autores que se engajaram na clínica da psicose e a confrontaram com a teorização de Lacan, por vezes corroborando-a, por outras acrescentando algo a ela a partir da construção de um caso clínico específico.
O ponto comum entre os autores consultados na nossa pesquisa bibliográfica refere-se ao conceito de foraclusão do Nome-do-Pai. Parte-se deste dado estrutural para tentar apreender as soluções desenvolvidas por cada caso, no sentido de elas servirem como suplências a esse significante foracluído. Parece um consenso na literatura sobre a clínica da paranoia que ela deva se orientar, portanto, para esta construção de suplências, que têm como efeito a moderação do gozo. Assim, se nos voltarmos para uma retomada das formulações de Lacan ao longo de seu ensino, podemos acrescentar aos efeitos de linguagem destacados em um primeiro momento esta vivência de um gozo não localizado – como efeito típico de retorno no real – desenvolvido teoricamente em um segundo momento. As manobras visam, então, esta possibilidade de limitação do gozo e uma produção delirante suficiente, que sirva para o paranoico restituir seu laço com os outros.
Uma autora que se destacou em fazer avançar os esclarecimentos da teoria lacaniana no que se refere a esta necessidade de orientação do gozo na clínica da paranoia foi Colette Soler, psicanalista francesa formada pelo próprio Lacan. Tal orientação, no entanto, depende do manejo da transferência, que é um problema que se coloca para além do querer do analista, pois é determinado também pelo lugar que este ocupa no fenômeno em questão. Nas formulações de Soler (1989) podemos distinguir três lugares possíveis para o analista do psicótico: ele pode simplesmente ocupar o lugar do testemunho, daquele que escuta e se dispõe a compartilhar as elaborações feitas pelo sujeito; ele pode encarnar o Outro do gozo, tal como o médico de Schreber funcionou em seu caso; e há ainda a possibilidade de sustentar o lugar relacionado a um significante ideal, destinado ao paranoico mesmo, ao reconhecer-se como o ser que poderia garantir a ordem ligada a uma designação significante. Vejamos com mais cuidado, no entanto, em que implicam estas posições na clínica.
A primeira delas refere-se à indicação feita por Lacan, em seu seminário sobre as psicoses, que consiste em ouvir as produções delirantes do chamado alienado, agindo como
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seu secretário (Lacan, 1955-56/1985b). Esta postura pode ser considerada, de fato, como uma das primeiras posições tomadas na psicanálise a respeito da importância de ouvir a fala psicótica; mesmo que, dependendo do caso, não faça sentido aparente, é importante o clínico saber que ela se refere à vivência do sujeito e o auxilia a encontrar um sentido para si mesmo. Podemos aproximá-la ainda da afirmação freudiana do delírio como tentativa de cura, como modo de reconstrução da realidade alterada do delirante. Daí considerá-la em toda a sua importância como possibilidade de alguma organização subjetiva.
Porém, há um risco que se corre nessa situação: intencionar colocar-se no lugar daquele que compreende, conforme explicitado por determinada corrente da psicopatologia, criticada por Lacan no Seminário citado. A compreensão remete o clínico a posicionar-se em nível de igualdade com o paciente, como se pudesse se colocar em seu lugar para assim entender o que ele lhe conta. O problema é justamente o fato de esta colocação provocar a instauração de uma relação dual, baseada no imaginário, com todos os problemas decorrentes do transitivismo - conforme visto no primeiro capítulo deste trabalho a respeito da preponderância do registro imaginário na psicose. A transferência representa a instauração de uma relação por si dessimétrica, e em nenhum caso convém que se alimente esta referência especular, que é, porém, constitutiva do psiquismo. A lição que se tira a respeito desta escuta atenta, na função de um secretário, de uma testemunha daquilo que afeta o sujeito, é que não é necessário compreendê-lo para ouvi-lo.
Mas digamos que isto seja, no entanto, o mínimo que se possa fazer no tratamento. Por isso Lacan (1955-56/1985b) utilizou a expressão de “nos contentarmos aparentemente” (p.235) com a ocupação desta função. Se, por um lado, essa aparente passividade permite que o paciente diga o que quiser, tendo espaço inclusive para construções dificilmente aceitas no campo social, por outro lado, dependendo da circunstância, essa postura revela-se insuficiente.
A este respeito, Maleval (2002) afirma que quando se instala a transferência erotomaníaca é necessário uma intervenção do psicanalista que tente limitar a interpretação, e seu intuito seria justamente pôr limites nesse gozo “não submetido à regulação fálica” (p.431). Ocorre que, por mais discreto que o psicanalista tente se mostrar, sabemos que o paranoico, por excelência, ocupa o lugar do decifrador de condutas, podendo interpretar cada pequeno gesto que para o psicanalista não tem em si nenhuma significação. É nesse sentido que podemos conceber a posição de testemunho também sob o aspecto da não interpretação, de se evitar um enunciado que indique uma ambiguidade, o que incitaria o sujeito a trabalhar ainda mais para conseguir entender o que aquele signo quer dizer.
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Notemos ainda que não se trata, aqui, de um pensamento obsessivo, em que o deslocamento da cadeia se dá indefinidamente, no qual o corte teria função primordial por decidir o sentido e fazer o sujeito deslocar-se de sua posição. No caso da neurose este deslocamento está ligado a uma ordenação simbólica específica, e é no registro simbólico mesmo que esse sintoma se desenvolve. Na paranoia, porém, a decifração dos sinais está ligada a algo do real que retorna ao sujeito, impondo a ele a busca por uma significação. No primeiro caso o sujeito está alienado simbolicamente; mas, na psicose, o pensamento que o acomete é considerado como exterior ao sujeito.
Qualquer que seja a intervenção do psicanalista no tratamento deve-se levar em conta que não se tem garantias de como o paciente irá considerá-la; talvez a fala do psicanalista seja tomada, conforme mencionado por Calligaris (1989), no registro real – semelhante a uma alucinação – e não com referência à lei simbólica, que poderia servir como um apoio para o deslocamento do sentido do sintoma, no qual à saída de um outro iria advir, sem deixar o sujeito diante de uma perplexidade.
Apesar da aparente simplicidade da posição de secretário, ressaltamos, no entanto, sua importância justamente quanto aos efeitos terapêuticos que esta mediação proporciona. Em casos de psicóticos que escrevem, e muito, levando tais escritos ao analista, o papel deste não será somente o de receber tais produções. Éric Laurent (1995) se refere a esta constatação para acrescentar “a função iminente do secretário, que é expedir as cartas” (p.190): ele não somente funcionará como um destinatário, mas também como um distribuidor, em uma espécie de facilitação para a dispersão da produção psicótica. O efeito terapêutico fica claro quando tratamos estas produções – ligadas ao delírio – como imposições sofridas pelo sujeito. Podemos pensar nesta expedição como uma forma de moderação do gozo.
Se considerarmos o percurso de Soler e Maleval sobre a posição de testemunho do psicanalista, podemos afirmar que suas intervenções, visando o manejo da transferência, podem ter como parâmetros ora o silêncio e a escuta ora a orientação do gozo, tentando limitá-lo a partir do que o próprio paciente já tiver construído. Por isso Soler (1989) admite que a posição do secretário pode parecer fácil por um lado, mas por outro, não: “porque uma testemunha é um sujeito ao qual se supõe não saber, não gozar, e apresentar portanto um vazio no qual o sujeito poderá colocar seu testemunho” (p.10). Esta oferta de um espaço vazio para que se elabore o saber do próprio sujeito é o que nos permite considerar o trabalho analítico com paranoicos como psicanálise em sentido estrito; a questão é o analista conseguir manter em suspenso qualquer aspecto que seja de seu próprio desejo quando estiver assumindo esta função, de modo similar ao que se passa também diante da neurose.
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Para Maleval (2002), por sua vez, “ainda que o psicótico possua em geral um saber constituído, se constata que se sente empuxado, paradoxalmente, a buscar testemunhos de suas certezas. Quando estas o fazem sofrer, uma demanda de tratamento pode ter sua origem na busca de uma escuta aprovadora” (p.410). É claro que não se pode confundir esta espécie de cumplicidade para com o paciente com um incentivo à elaboração delirante. A prudência recomendada nos acompanhamentos de paranoicos, desde os primórdios da psicanálise, refere-se a não ter expectativa de que o paciente assuma determinada tarefa ou função social sem desestabilizar-se novamente. Ao contrário, tal recomendação é feita com o objetivo de se evitar que o psicanalista incentive qualquer decisão desse tipo, mantendo-se somente como suporte para aquilo que o sujeito, por si, consiga assumir – muitas vezes em condições de avaliar por ele mesmo os riscos que podem lhe trazer uma determinada empreitada.
A seguinte passagem do trabalho de Maleval (2002) sobre clínica com psicóticos relaciona-se a esta posição: para ele, a clínica inspirada na teoria lacaniana “aposta nas capacidades do sujeito para construir uma suplência (...). Esta aposta, o analista há de sustentá-la ajustando sua ação em função da posição ética de objeto a, ou seja, não querendo nada pra seu paciente. Nem sequer, ocasionalmente, impedir-lhe de delirar” (p.415-6).
De fato, tanto o tratamento psicanalítico da psicose quanto o da neurose perpassa esta lógica de um esvaziamento para que o sujeito – o do inconsciente – possa se apresentar. É nesse mesmo sentido que podemos considerar a indicação de Laurent (1995) sobre o secretário do alienado, que é também aquele que introduz o sujeito, tal como fez Freud, além de ser aquele que toma notas sobre a produção observada: o ato do psicanalista pode pretender “introduzir o sujeito no texto psicótico e a ordenar, a partir daí, a produção que irá manifestar-se no tempo” (p.185).
A segunda posição do analista de psicóticos destacada por Soler (1989) refere-se à localização do gozo no lado do próprio analista – tido como Outro para o paranoico, já que é um parceiro de suas elaborações espontâneas. Neste momento encontramos elevado ao máximo o risco de o psicanalista ser considerado como o perseguidor do paciente. A este excesso originário do real, o psicanalista só pode responder com a tentativa de fazer-se uma referência simbólica, ou seja, tentar conter algo do real a partir do simbólico. Mesmo que o perseguidor no delírio não se concentre no analista, mas se volte contra outra pessoa e acabe ganhando proporções exacerbadas, podemos localizar, na manobra da transferência, o que a autora denomina de retificação do Outro. É bem observado que nessa retificação há, mais uma vez, uma inversão daquilo que se passa com a neurose: enquanto nesta objetiva-se uma retificação do sujeito, permitindo-o alterar sua posição subjetiva; na paranoia (poderíamos
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generalizá-la para outras psicoses) a retificação deve ser feita ao nível do Outro. Isto porque notamos que este sujeito se considera inocente, mas ao mesmo tempo capaz de identificar no Outro as faltas deste.
Veremos, posteriormente, que a solução encontrada por ele muitas vezes passa por uma afirmação de si em um lugar ideal, que possa enfim satisfazer a falha identificada, desde que seja ele quem a repare. O traço megalomaníaco observado em mais de um caso relaciona-se com esta posição exclusiva do paranoico que determina um dever seu para com o Outro. Schreber torna-se para nós um paradigma dessa afirmação, já que pôde se transformar na mulher que faltava a Deus para que se criasse uma nova raça da espécie humana.
Uma vez retificado, durante o tratamento, este Outro passa a ser visto como uma nova referência simbólica, apta a diminuir a invasão do real vivida pelo paciente; uma consequência seria, portanto, a criação de um Outro incompleto, diante do qual o paranoico poderia se aproximar da cadeia discursiva convencional, e, assim, não basear-se só em sua certeza sobre a natureza da alteridade que o cerca. Mesmo que este efeito não seja necessariamente duradouro, consideramos que qualquer apaziguamento que se consiga em um dado momento, para um paciente, sirva para reafirmamos a possibilidade terapêutica da psicanálise para sujeitos paranoicos.
Figueiredo (1997) é uma das autoras que considera a importância deste efeito, elevando-o ao estatuto de uma meta: “fazer vacilar a certeza em direção a uma suposição possível é o ponto sobre o qual o analista deve trabalhar na análise do psicótico” (p.148). Deste ponto de vista fica ressaltada a condição do psicótico como aquele que sofre mais da certeza do que da dúvida, o que consiste em outra diferença entre as estruturas da neurose e da psicose.
Na falta da metáfora paterna na estruturação do paranoico, a retificação do Outro - do analista - pretende introduzir nele, para compensar tal falta, justamente uma regulação que teria sido alcançada com o Nome-do-Pai operante. Seria como se este novo Outro pudesse suprimir as ausências simbólicas constitutivas. A retificação possibilita, portanto, um saber que possa operar sobre o real, e assim tentar suprimir a ausência da falta subjetiva.
No terceiro e último capítulo desta dissertação iremos retomar a retificação do Outro na paranoia, articulando-a com a função que uma instituição de saúde mental pode ter para um determinado paciente. Mas afirmamos, como conclusão parcial referente aos estudos sobre casos atendidos pelo viés da teoria psicanalítica, que esta é a forma mais eficaz de manejo da transferência na clínica.
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Enfatizamos aqui que o pressuposto estrutural da teoria lacaniana é necessário como uma constatação lógica, possível de fazer clinicamente somente de maneira retroativa. A importância que se faz do diagnóstico de paranoia, portanto, implica em que localizemos, na história de cada sujeito, as evidências de que a regulação simbólica não ocorreu no momento de sua estruturação. Após um desencadeamento ou manifestação de criações típicas da psicose podemos fazer um diagnóstico - necessário, por sua vez, para nos orientar na prática.
O terceiro lugar possível para o analista do psicótico, segundo Soler, relaciona-se à sua colocação enquanto um significante ideal. Funcionando neste lugar, o analista é tido como uma referência segura para o paciente, e é por este motivo que alguns autores, como Maleval, (2002), o consideram como um dos lugares mais propícios para que se efetive um tratamento em casos de psicose. Esta posição permite um endereçamento do sujeito ao analista que pode ser comparado com a demanda do neurótico ao analista enquanto suposto saber, já que como Ideal funciona como um pólo para que possa ocorrer uma identificação simbólica. A semelhança do tratamento, em ambos os casos, se dá por esta tentativa de elaboração pela via do simbólico. Além disso, podemos pensar que um único elemento, um só significante ligado ao analista e que sirva de referência para o paciente, pode funcionar como um modo de incidir sobre o real, sobre o gozo que afeta esse paciente. Dependendo da explicitação desse elemento, em cada caso, o analista pode se utilizar dele, secundariamente – ou seja, no sentido em que o próprio paciente o revelou primeiramente – para tentar obter efeitos de moderação do gozo.
A fenomenologia da transferência indica que o analista é investido a partir de um significante, qualquer que seja, sendo a partir daí colocado no lugar do Ideal do eu. Conforme discutido em relação à transferência neurótica, o paciente estabelece uma relação com o analista, colocado no lugar mencionado, de onde se vê digno de ser amado. Com a transferência, o significante único – colocado em lugar de exceção e por isso denominado Um – passa a funcionar a serviço do amor, representando este ideal da unificação, em que dois seres são tomados como complementares entre si. Antônio Quinet (2006) referiu-se a este ponto, comparando o tratamento da neurose com o da paranoia: a operação analítica consistiria em levar o sujeito a dissipar essa miragem proporcionada pelo Um, segundo a qual “se acredita constituir com um parceiro. É a essa miragem do Um que está atrelado o paranoico” (p.93). Para o autor, o paranoico adere fortemente a esse Um, sendo a partir daí que ele entra em relação com os outros.
Este é um outro modo de dizer que na paranoia o sujeito nega a inexistência da proporção entre os sexos, segundo a qual a diferença entre eles não é devidamente explicitada
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pela linguagem; o que resta do sexual, não assimilado pela linguagem, relaciona-se ao ponto de real que causa angústia em qualquer estrutura. No caso do paranoico,trata-se de um modo de relação em que a distância entre o fato e sua representação não existe, permitindo essa aderência maciça a Um significante, determinado particularmente em cada caso.
O problema dessa identificação é justamente a ausência de uma mediação simbólica que pudesse dar um parâmetro para sua oscilação. Esta retenção faz com que o sujeito experimente os significantes como ligados diretamente a esse Um, na relação com o real insuportável. Esse mecanismo fica claro para nós quando observamos, em um delírio sistematizado, como determinado significante escolhido pelo paciente serve como pólo orientador para suas interpretações, tanto as feitas antes de seu estabelecimento, como as subsequentes ao mesmo. É por isso que podemos pensar no registro simbólico do paranoico como um Outro demasiadamente consistente, que serve como um receptor de gozo.
Na produção delirante clássica da paranoia tanto o parceiro da erotomania como o da perseguição – parceiro colocado no lugar do amor ou do ódio – é confundido com o sujeito mesmo, já que seu duplo imaginário condensa ao mesmo tempo o Ideal do eu, que teria ficado no lugar de uma referência no registro simbólico. Conforme indicado, assumimos que o Outro não se diferenciou enquanto registro simbólico, deixando o Outro que goza imiscuído ao outro semelhante, em uma espécie de imersão do real no imaginário. Com isso reafirmamos a importância de se evitar agir enquanto semelhante do paciente, para que se desvie desta relação de proximidade que levaria a uma relação delirante com consequências nefastas.
O analista no lugar do ideal, na paranoia, deve estar consciente deste lugar em que costuma ser colocado, para tentar se manter como um ponto de endereçamento para o sujeito a partir do qual este possa se organizar para enfrentar as demais relações que estabelece, fora do tratamento. Podemos generalizar sobre esse aspecto o modo de presença do analista que acompanha o psicótico em um saber que este mesmo adquire, inclusive para ser relacionado a uma regulação diante das situações que lhe provoquem angústia. Esta pode ser considerada uma distinção da posição ética do analista, tal como explicitado no caso de Françoise, mencionado anteriormente, atendida por Jacques Borie (2008). Após ter passado por vários tratamentos psiquiátricos, ela lhe diz: “Você não me diz o que fazer e, no entanto, me sinto orientada” (p.19). O analista funciona, assim, como um indicador da própria posição do sujeito, aceitando que ele crie e encontre formas de agir que o apaziguem.
Deste modo, se nos atermos ao exemplo de Schreber, comentado por Lacan (1957-58/1998), cujo final do processo psicótico foi ilustrado pelo conhecido esquema I, podemos
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pensar na função do analista, colocado em posição de ideal, como o ponto capaz de sustentar a invenção do sujeito. Este ponto do esquema pode ser entendido como aquele que supre o buraco simbólico causado pela foraclusão do Nome-do-Pai. O analista, oscilando entre a posição de testemunho e a do significante ideal, conforme indicado por Soler (1989), permitiria, assim, ajudar a estruturar a solução de um determinado psicótico que estivesse em análise.
Esquema I (Lacan, 1957-58/1998, p.578)
Esse esquema é o resultado da análise de Lacan (1957-58/1998) sobre o caso Schreber, e representa uma formalização da solução encontrada pelo último. Os eixos indicam como o delírio permitiu um efeito de estabilização na medida em que uma hipérbole pôde ser construída, conformando a diretriz assintótica do delírio. O gráfico indica “o vínculo tornado sensível, na dupla assíntota que une o eu delirante ao outro divino”, além da referida “divergência imaginária no espaço e no tempo com a convergência ideal de sua conjunção” (p.578). Conforme já destacado no capítulo anterior, a promessa de emasculação de Schreber foi se adiando, até o infinito, o que não é sem relação com a sua miragem delirante. Nesse mesmo sentido Lacan nos indicou a ausência de mediação entre o sujeito e a fantasia desenvolvida, já que a postergação ocorreu concretamente.
Para Diogo (2008), a curva assintótica mostrada no esquema nos ensina como a localização feita por Schreber, adiada como foi, implicava em uma distância com relação ao objeto a – não extraído – o que permitiu ao mesmo tempo algum efeito de apaziguamento para ele.
Esta postergação foi comentada também por Laurent (1989) e relacionada à infinidade do ser devido à desarticulação da cadeia. Para Schreber um significante não estava vinculado a outro, vínculo que poderia representá-lo no intervalo entre ambos; por isso a concretização
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da imagem do ser tendia à dispersão infinita, tal qual o caráter da linguagem experimentada por ele a partir do surto psicótico.
Outro ponto a ser destacado é o furo equivalente à foraclusão do Nome-do-Pai: se do lado simbólico vemos representado o P0, no imaginário há Φ0, ou seja, a eliminação da referência ao significante fálico. A linha que gira ao redor deste mostra a consequência da definição da imagem da criatura, enquanto a mulher escolhida por Deus: ao redor dessa imagem escapam por um lado o gozo narcísico e por outro a identificação ideal. Aqui a hipérbole representa a ideia de que a não operação da metáfora paterna pode ser compensada pela metáfora delirante, ao mesmo tempo em que é demonstrada a torção da vivência psicótica, uma vez que a realidade não foi enquadrada devido à foraclusão do significante primordial.
Se nos deparamos aqui com o que foi o momento da solução particular de Schreber, isto se deve ao fato de ele ter organizado um modo de lidar com os diferentes registros da sua experiência. No centro do esquema temos, portanto, a criatura real, cuja espessura deixa o sujeito entre o referido gozo narcísico - obtido com a contemplação de sua imagem – e a alienação de sua fala. Desta última chegamos novamente ao ponto em que o Ideal do eu assumiu o lugar do Outro.
A interpretação deste esquema lacaniano nos permite utilizá-lo para pensar na posição do analista durante o tratamento do paranoico. Broca (1985b) indicou, a esse respeito, que “se os dois eixos „se endereça a nós‟ e „ama sua mulher‟ são conservados, o dispositivo analítico vem a este lugar para manter uma função de endereço” (p.7). Assim, a partir da intenção de que o tratamento permita um novo endereçamento do sujeito, ele irá tentar se adequar a sua estrutura. De maneira semelhante ao que se passa na transferência neurótica, nesse momento o sujeito poderia localizar no ponto Ideal, ao qual ele se endereça, também o ponto de onde ele pode amar-se a si mesmo. Visando a uma estabilização, a resposta do analista seria baseada em uma espécie de qualificação da mesma, considerando as particularidades da estrutura.
Em um outro trabalho, Broca (1985a) propôs considerarmos a instauração da transferência na paranoia a partir de dois momentos precisos: no primeiro, chamado de “fase de paranoização da transferência” (p.129), o analista estaria colocado no lugar do sujeito dividido que produziria significantes mestres com o intuito de definir métodos de abordagem para o tratamento do sujeito - por sua vez colocado na posição de objeto a enunciador de um saber. O segundo momento representaria a inversão da primeira posição, quando poderia se desenvolver uma psicose passional – nas palavras do autor – ou o processo que ele
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denominou de “erotomania de transferência”, pela qual ele afirmou ser, a erotomania, a modalidade de amor típica da psicose. Não deixa de ser, nesse sentido, um tipo de laço, de um amor correlato ao endereçamento entre o sujeito e o Outro.
Uma vez ocorrida essa viragem, de sujeito barrado ao lugar de objeto, Broca sugere ser esse o momento em que o analista pode exercer a função de condensador de gozo. Assim, o que permitiria ao psicótico a mudança de lugar seria justamente “o desenvolvimento da metáfora delirante, (...) fazendo-o passar pelo deslizamento metonímico da cadeia significante em S/” (p.130). O que nos interessa particularmente nesta hipótese é o fato de ela sugerir a constituição de uma espécie de interdição que visaria uma distância entre o sujeito e o objeto a não extraído, mas ainda assim importante de ser localizado à distância do sujeito para que se chegue ao almejado temperamento do gozo.
Kaufmant (1985) relatou o caso de uma paciente cujo delírio constituiu-se de dois diferentes tempos ao longo do tratamento: o primeiro girava ao redor de um significante determinado, que funcionava como referência de localização subjetiva; o segundo mostrou-se como um momento de queda do analista, do lugar do S (sujeito) inicial para “uma posição de semblant do objeto (a), não verdadeiramente separável” (p.25), contudo. O autor constatou que os efeitos de apaziguamento obtidos com o tratamento, com a diminuição do delírio e do gozo, ocorreram devido à localização do saber do analista enquanto furado, parcial. A aparência que o analista logrou manter permitiu a constituição de um lugar de endereçamento para a paciente, como um novo espaço de articulação simbólica.
Embora a localização do analista enquanto objeto a, no tratamento psicanalítico, seja um efeito relacionado à própria transferência, devemos admitir que esta posição discursiva merece ser mais estudada em relação à especificidade da transferência na paranoia - o que não será, no entanto, realizado neste trabalho. Todavia, podemos cogitar que a transferência psicótica, justamente por não se basear em uma repetição, pode se beneficiar do dispositivo analítico para chegar a uma nova estabilização. Neste caso, tal como sugerido por Laurent (1983), o analista passaria a ocupar um lugar que se assemelhasse ao do objeto, ao redor do qual o ser do sujeito poderia se organizar, compondo uma aposta do analista no tratamento de um sujeito psicótico.
O tratamento psicanalítico da paranoia requer que o psicanalista não esteja apto somente a ouvir o delírio, mas também tente manejar a transferência. Embora ele esteja orientado para assumir a posição do Outro, em cada situação será necessário avaliar por onde passará esse manejo. Soler (1989) afirmou, sobre isso, que
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Em todos os casos, por mais diversas que sejam suas manobras, jamais poderão apontar a outra coisa do que a diferir a iminência do encontro fatídico e aniquilante do sujeito, mediante a interposição de uma elaboração simbólica no caso da perseguição, ou mediante o atraso da realização no caso da erotomania (p.51).
Devido à constatação da natureza do Outro do sujeito paranoico, admitimos que a transferência a ser tratada nesses casos é a que se direciona do psicanalista ao sujeito. O modo de manejo primordial é abster-se de demonstrar qualquer intenção ou vontade a respeito do paciente, de modo a não encarnar um Outro maciço. Tal como destacado por Zenoni (2007), trata-se de esvaziar esta figura, ao invés de torná-la presente, para que a transferência que se estabelecer não aponte para o querer do Outro em relação ao sujeito. Podemos afirmar que o psicanalista se coloca como alguém de quem o paranoico se servirá, do modo como lhe convier em cada momento e em cada caso.
Outro princípio que podemos destacar para a clínica psicanalítica com paranoicos refere-se ao cuidado com a palavra, no sentido de se evitar uma ambiguidade nos enunciados. Conforme discutido anteriormente, sabemos que a relação do sujeito com os outros se baseia em um aspecto especular exacerbado, que o leva a uma desconfiança permanente. É por isso que convém evitar uma fala que demonstre compreensão do que o paciente apresenta, como se o psicanalista tivesse um saber para além daquilo enunciado; e ainda evitar uma interpretação, uma marcação de um lapso – o que costuma ser feito na clínica da neurose – para não se tentar revelar para o sujeito uma verdade a seu respeito, como se tal verdade não estivesse nele. O tratamento poderia ser assim conduzido a uma possibilidade de confiança do sujeito com aquele que o recebe, seja em um consultório particular ou em uma instituição de saúde mental.
Esse cuidado faz-se necessário ainda mais diretamente quando um determinado paciente passa por uma crise, na qual o delírio evidencia a proliferação de sentido que é própria ao registro imaginário mesmo. Para qualquer sujeito inserido na linguagem fica sempre implícita esta margem de mal entendido, ou de algo a mais que a palavra indica de modo indireto; o problema, no caso da psicose, é a reação do sujeito não regulada pelo simbólico, na qual a perplexidade pode acabar sendo um resultado vivenciado de maneira ainda mais difícil. Se há algo de uma significação enigmática iminente em qualquer fala, na transferência paranoica isto deve ser considerado ainda mais atentamente. Segundo Zenoni (2007), “o manejo da transferência implica, por consequência, uma orientação da prática que relativiza fortemente a crença nas virtudes terapêuticas de „se exprimir‟ e de „colocar em palavras‟. Porque a palavra é também vetor de gozo” (p.15). Assim, reconhecemos no ato de
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falar uma dimensão ligada ao simbólico e outra ligada ao real, de onde admitimos essa relação com o gozo.
Nessa passagem do autor fica explícita a advertência de que falar sobre um assunto pode ser, às vezes, mais fonte de sofrimento do que possibilidade de elaboração psíquica sobre o mesmo. É claro que esta advertência se particulariza para cada caso, mas na paranoia é possível que o risco de uma elaboração induzida por um tratamento psicanalítico seja ainda mais grave que uma ideia delirante anterior. Lembremos da ressalva feita por Lacan (1955-56/1985b) e retomada por Soler (1989) sobre a psicanálise de psicóticos, que carregaria em si a possibilidade de desencadeamento, graças a esse vetor de gozo inerente à fala, para qualquer sujeito.
A experiência clínica nos permite admitir, também de acordo com Zenoni (2007), a necessidade de “uma certa disciplina da palavra” (p.16), segundo a qual é preciso dosar, em cada caso, como permanecer em silêncio – com o objetivo de permitir a expressão livre do sujeito – e quando dizer algo com o mínino de significado. A atitude de silêncio ou de uma escuta acentuada às vezes mostra-se insuficiente. Mas a proposta a se considerar de maneira geral seria tentar diminuir a distância entre o enunciado e a enunciação – apesar de tal distância ser inerente à linguagem – de modo a manter o mais neutro possível seus próprios significantes emitidos. Uma dificuldade da direção do tratamento da paranoia reside aí, o que não o inviabiliza, contudo.
O modo de presença do psicanalista diante de sujeitos paranoicos envolve, portanto, o testemunho, considerando o paciente em toda sua dimensão de sujeito; evitar sua colocação no lugar de objeto do Outro, o que o deixaria como resíduo não articulado ao desejo desse Outro; e por consequência evitar a encarnação de uma figura que sabe sobre o sujeito em questão. Para cada paciente, trata-se de se colocar como um instrumento do qual ele possa fazer uso do modo como necessitar. Por outro lado, podemos delimitar algumas estratégias para que a intervenção mais ativa desse terapeuta se refira a uma diminuição do risco de passagem ao ato, caso as conclusões às quais o paciente chega o aproximem demais de um incômodo que venha do real. Como a passagem ao ato não tem endereçamento, ela é em si uma resposta real. Por isso o corte para que a interpretação delirante não se desenvolva demais intenciona uma delimitação do gozo, para que ele possa ser nomeado de outro modo e não precipite o sujeito nesse tipo de ato. Não será possível anular o gozo, mas talvez ele possa ser tratado simbolicamente com o auxílio do tratamento.
Esse aspecto pode ficar mais claro se tomarmos como exemplo uma passagem do tratamento de uma mulher paranoica atendida por Carlos Garcia (2008). Ela ia ao seu
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consultório para falar de amor, tema que se ligava a toda uma elaboração delirante, na qual o rapaz amado fazia parte da família. Na ocasião do surto ela passou a atribuir a paternidade de seu filho a este rapaz, o que levou inclusive a um afastamento da família da paciente. O autor relatou, então, uma intervenção que fez quando a paciente insistia em sair pelo mundo à procura do rapaz:
Quando tive a oportunidade de intervir frente a sua insistência (...) lhe disse: „Que X te ame não quer dizer que você tenha que voltar a vê-lo‟. Surpreendida, me respondeu: „Não sei por que confio em você. Depois de tudo que me fizeram... Você me propõe não vê-lo, não buscá-lo, mas é algo que se me impõe. Necessito vê-lo, estar com ele. Por que não vou fazê-lo? Por que você me o disse? Me diz que uma coisa não traz forçosamente a outra. É a primeira vez que escuto que o amor não implica encontro‟ (p.33).
O tratamento psicanalítico deste caso contribuiu para que a paciente desenvolvesse uma outra relação com o amor, o que era para ela causa de um enorme enigma. A consequência foi esta constatação de que tal sentimento não exigia, necessariamente, um encontro. É claro que a intervenção relatada compõe uma especificidade do caso, e que ela só pôde ocorrer porque havia alguma transferência instalada. Sua precisão consiste justamente em não se inserir em um embate imaginário, no qual poderia ser discutido o fato de ela ser amada mesmo ou não; mas, ao contrário, o analista apontou para uma outra dimensão, fazendo uma espécie de retificação no nível do simbólico. Sua fala colocou-se como um modo de abalar a certeza delirante, por um lado, ao fazer uma redução do sentido que o amor tinha para ela, mas sem impedir que a paciente mesma encontrasse um modo próprio de falar ou agir diante da situação. Garcia operou um deslocamento quanto ao significado do amor, mas sem sugerir um outro significado. Tal intervenção operou como um ponto de basta - feito, porém, de modo a contribuir para a elaboração do saber sobre o amor, que era o que essa paciente buscava no tratamento.
Atualmente, apesar de termos na literatura psicanalítica diversos relatos sobre pacientes paranoicos atendidos em consultórios particulares, sabemos que há outros modelos de tratamento oferecidos por instituições de saúde mental. Nelas encontramos psicanalistas de orientação lacaniana que se esforçam por repensar a teoria a partir destes novos dispositivos, nos quais o paciente é tratado por uma equipe composta por vários profissionais – como médicos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, psicólogos – a partir de um planejamento referente à sua demanda e necessidade. Apesar da adaptação do tratamento a este modelo, em nada se renuncia aos aprendizados apresentados pela vertente da clínica psicanalítica da psicose. Em relação à paranoia, que nos interessa aqui particularmente, consideramos que o simples fato de o paciente ser tratado por vários profissionais representa um aspecto que
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incide diretamente sobre a transferência que ele estabelece: ela passa a ser direcionada não só a um terapeuta específico, mas à equipe da instituição como um todo. Assim, dado o risco de o paranoico se situar como objeto de gozo do Outro, ficamos já advertidos da importância de um certo afrouxamento do seu vínculo, seguramente mais fácil de ser obtido quando há referência à equipe.
Em relação a esta experiência do tratamento institucional, Zenoni (2007) a considera como uma regulação desse grande Outro para cada sujeito psicótico tratado, a partir da qual se “pode operar, essencialmente, segundo duas modalidades: por uma regulação e por uma pluralização do Outro” (p.19). Nesse sentido, a pluralização é uma possibilidade de tratar a transferência, já que lidamos com sua dificuldade estrutural por esta inversão que a faz ir do Outro ao sujeito. Com ela a própria potencialidade persecutória ou erotômana pode ser diminuída. O trabalho em equipe demonstra ser um modo extremamente eficiente de se tratar casos de paranoia, já que favorece a diluição dessa dimensão do Outro, para quem o paranoico se encontra concernido.
Mas, seja no contexto de um consultório, seja em uma instituição, o afrouxamento do Outro pode ser obtido não só através de uma intervenção verbal. É possível que o próprio período entre uma sessão e outra, por exemplo, caso se aumente o intervalo entre elas, funcione com esse propósito; seria uma tentativa de afastar – mesmo que concretamente – o psicanalista, para evitar que ele seja tomado como invasivo. Esta medida da distância necessária entre o sujeito e aquele que representa o seu grande Outro é, evidentemente, algo que só pode ser calculado em cada caso e de acordo com o momento pelo qual ele estiver passando. Podemos considerar, então, que um dos desafios do analista ao longo do tratamento é justamente “manter a transferência” (Broca, 1985a), visto que seu lugar é problematizado.
Pelo que foi apresentado, até aqui, a conclusão a que chegamos sobre esta transferência que vem do Outro é sua decorrência da foraclusão do Nome-do-Pai, a qual deixa este Outro simbólico invasivo, e às vezes persecutório, como destacado na paranoia. Nesses termos da teoria de Lacan, poderíamos pensar na posição do psicanalista, na transferência paranoica, como uma espécie de Ideal do eu exterior, já que o interior não teria sido bem constituído. A função do psicanalista, enquanto este novo aporte simbólico, seria então uma prótese para o quê não se tornou bem operativo. Esta posição se aproxima daquela do puro significante, também escrito como S1. O objetivo do tratamento pode ser definido, portanto, como uma delimitação desta marca externa, à qual o sujeito pode se endereçar de um modo novo e particular, obtendo efeitos de apaziguamento. É este efeito de
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apaziguamento – ou limitação da dimensão do gozo – que caracteriza o período de estabilização.
Vimos que, mesmo que seja através da produção delirante, cada sujeito pode construir para si um significante de seu delírio que funcione como Ideal e polarize suas conclusões. Veremos ainda, no terceiro capítulo deste trabalho, que a partir dessa construção o sujeito se torna capaz de restaurar seus laços sociais – o que, de modo mais ampliado, pode ser considerado também como um dos objetivos do tratamento. A nova transferência possível de ser criada através dele, chamada por Zenoni (2007) como “transferência anerótica”, representa um laço desprovido de ensejo de gozo, laço este no qual “os vetores, simbólico e imaginário, são colocados em jogo sem estarem polarizados pelo real do sujeito” (p.19). Deste modo, afirmamos que o delírio, enquanto tentativa de cura, revela a correspondência entre a falta simbólica e a invenção muitas vezes baseada no imaginário nos casos de psicose. É a esta solução, que funciona como suplência, portanto, que devemos dar atenção em cada caso clínico. Mesmo que a identificação com o ideal se dê através de uma prótese imaginária, deverá ser observado o uso que o sujeito faz desta solução.
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Capítulo 3: As soluções paranoicas e a direção do tratamento
No percurso da nossa pesquisa a respeito das formulações freudianas e lacanianas da paranoia constatamos o modo como a psicanálise a considera e nos esforçamos para delimitar parte dos princípios que se relacionam ao tratamento clínico da mesma. O princípio mais fundamental que nos guia consiste em dar ouvidos às produções do paranoico, independentemente da sua adequação a uma razão compartilhada - e considerada, sob determinado aspecto, como normal. Temos sustentado até aqui que na psicose a fala do sujeito evidencia uma relação particular com a linguagem, cuja estrutura provém de uma produção de significantes que escapa ao sujeito, de modo que os mesmos mostram-se como exteriores. Disso deduzimos toda a importância do conhecimento sobre os sintomas produzidos pela psicose, conforme abordado no começo desta dissertação.
Apesar de nossa ênfase ter sido sobre o chamado primeiro ensino de Lacan, dada sua eficiência para pensar sobre a crise psicótica e as manifestações da paranoia, não negligenciamos, no entanto, a elaboração de Lacan a partir de 1976, de acordo com a ressalva feita por Laurent (1989): tal elaboração “produz uma nova orientação que permite repensar formas de estabilização nas psicoses, dado que em 1956 não tinha mais do que a estabilização delirante” (p.17-8). Mais adiante iremos tratá-la especificamente.
Vimos, no segundo capítulo, os modos de resposta do analista diante dos quadros de paranoia. A questão que iremos enfatizar agora se refere à posição que ele pode assumir com o intuito de contribuir para uma inserção do sujeito no laço – como operar uma espécie de referência simbólica, articulando assim os demais registros para um determinado sujeito e com isso alcançando um modo de estabilização.
Deste modo, neste capítulo retomaremos parte da bibliografia a respeito das possibilidades de estabilização na paranoia, tentando articulá-las com o manejo da transferência. Apostamos que, dependendo da condução do tratamento em casos de paranoia, é possível chegar a um modo de apaziguamento do sofrimento do sujeito relativamente duradouro. Faremos referência à teorização de Lacan sobre o sinthoma que articula os três registros da experiência subjetiva, com o auxílio das publicações de psicanalistas que atendem psicóticos servindo-se dessas construções mais tardias do ensino de Lacan.
Veremos também que a acolhida de pacientes paranoicos nos serviços públicos de saúde mental pode se beneficiar das formulações da psicanálise sobre as chances de estabilização. Antes, contudo, voltaremos a algumas formulações de Freud sobre a
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estruturação na paranoia, para enfatizarmos o modo como o imaginário se organiza e de que modo ele pode servir para uma solução ser encontrada pelo próprio sujeito.
3.1. A homossexualidade paranoica diagnosticada por Freud – uma solução especulativa
Uma questão que ainda resta para ser tratada é o papel da chamada homossexualidade nos casos de paranoia – hipótese freudiana sabidamente falsa, mas que, no entanto, nos permite refletir sobre a organização desse tipo clínico. Lacan a articulou especificamente na experiência relatada por Schreber, considerando-a como parte fundamental de sustentação do delírio no ponto em que este serviu para estabilizar o sujeito por algum tempo - o que iremos tratar adiante. Veremos também sob qual aspecto Freud considerou esta homossexualidade, no sentido de ela ter sido inclusive o meio de constatação da organização libidinal na neurose narcísica, o que por consequência acarretaria a dificuldade primordial de ser beneficiado pelo tratamento psicanalítico. Em seguida poderemos discutir, deste modo, em que consiste a solução do sujeito ligada a este tema, e em que medida isto se relaciona ao nosso problema central, que é o manejo da transferência em casos de paranoia.
Enquanto formulava sua teoria, no que concerne ao narcisismo e ao modo de distribuição da libido durante o desenvolvimento de um indivíduo, Freud mais de uma vez admitiu a importância de se estudar a psicose – notadamente os quadros que conhecemos hoje como paranoia e esquizofrenia – para compreender como o ego funciona, já que nos referidos quadros a sua função fica distorcida e patologicamente acentuada. Na sua conferência sobre a teoria da libido e o narcisismo encontramos a indicação da existência de uma libido do ego – dirigida a ele e o investindo, como objeto – em contraposição a um segundo tipo de libido, em que a energia se volta para os objetos externos; isso representava a chave para “resolver o enigma daquilo que se denomina neuroses narcísicas” (Freud, 1916-17a/1996, p.421). Enigma, bem entendido, pelo fato de um quadro de neurose narcísica não aderir ao tratamento segundo os moldes desenvolvidos até então, contrariamente ao que era observado em relação à neurose. Nesse momento Freud explicita a possibilidade de uma libido objetal se transformar em libido do ego, permitindo-nos assim entender o modo de relação com os objetos, inclusive o médico ou analista com o qual porventura um paciente se encontra.
Freud considerou de extrema importância, em relação ao caso de Schreber, a sua recusa aos sentimentos ligados à ideia de uma homossexualidade latente, conforme discutido no primeiro capítulo desta dissertação. Os sentimentos persecutórios desenvolvidos pelo paciente teriam sido uma reação à possibilidade de contato homossexual com seu médico, Dr.
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Flechsig. Era esta a hipótese freudiana em 1911. Mas, pelo que o caso nos apresenta, atemo-nos ao modo de evolução do delírio, que pode ser entendido segundo a seguinte lógica – e aqui não dispensamos a leitura posterior de Lacan sobre a análise feita por Freud: em seguida à ideia de ser belo, como uma mulher no momento do coito, Schreber passou pelo momento de maior crise, quando as alucinações verbais muitas vezes eram termos pejorativos – como o termo que significava prostituta, em alemão; depois passou a localizar em Deus a figura persecutória, sendo que Ele teria escolhido Schreber como a Sua Mulher, aquela que seria capaz de gerar uma nova raça de homens.
Se em um primeiro momento esta escolha foi inadmissível, dada a seriedade e importância social do próprio Schreber, haja vista sua formação enquanto jurista e o status que adquiriu antes do momento do surto; em um segundo, porém, após árduo trabalho de elaboração, ele passou a admitir que ser a Mulher de Deus era um tanto razoável, pois não se tratava de uma mulher qualquer, tampouco de um objetivo – o de Deus – sem importância. Em outros termos, esta conclusão à qual ele chegou, com o desenvolvimento do delírio, mostrou-se como o ponto em que ele podia encontrar seu lugar no campo social, podendo seguir sua missão ao mesmo tempo em que convivia com alguns afazeres de antes da doença.
Schreber conseguiu retomar parte deles, mantendo os vínculos familiares, e também teve êxito quanto ao apelo feito judicialmente para tirar a interdição sobre si. Assim, apesar de a sua prática de contemplação no espelho, pautada nos sinais da futura emasculação, ter funcionado como um aporte da sua relação com o Outro divino, ela foi mantida como algo privado, não compartilhado socialmente. Sabemos que houve um agravamento da sua doença posteriormente, dadas as contingências familiares; quando morreu, Schreber estava novamente internado, por causa de outra crise. Ou seja, a solução não perdurou nem o conteve nessa identificação.
É por isso que consideramos o delírio como “uma tentativa sempre parcial” (Laurent, 1989, p.26): se ela permite alguma solução, não deixa, porém, de evitar que algo ligado ao real sempre retorne. Veremos mais adiante que este é o ponto que nos permite problematizar a inserção do paranoico em um discurso.
Portanto, foi a partir da importância desse elemento aparentemente homossexual no caso que Lacan (1957-58/1998) pôde considerar tal homossexualidade como um sintoma articulado ao processo mesmo da paranoia de Schreber. E não uma causa determinante da mesma, como outras análises feitas sobre ele pareciam sugerir. Freud, por sua vez, enfatizou este mesmo elemento devido ao seu interesse de analisar a transformação sofrida pelo ego
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delirante; e nesse aspecto a homossexualidade serviu como hipótese para explicar a ideia de grandeza ligada ao delírio.
Quando Lacan (1955-56/1985b) mencionou, no seminário sobre as psicoses, a constituição do imaginário fora da regulação simbólica, problematizou justamente como o sujeito pode lidar com o significante que faltou, interferindo na função do pai:
Suponhamos que essa situação comporte precisamente para o sujeito a impossibilidade de assumir a realização do significante pai ao nível simbólico. O que lhe resta? Resta-lhe a imagem a que se reduz a função paterna. É uma imagem que não se inscreve em nenhuma dialética triangular, mas cuja função de modelo, de alienação especular, dá ainda assim ao sujeito um ponto de enganchamento, e lhe permite apreender-se no plano imaginário (p.233).
Essa formulação nos auxilia bastante na compreensão do mecanismo de identificação em casos de psicose, que podem se sustentar baseados no imaginário, dependendo das contingências vividas por cada um. A solução que o sujeito irá buscar ao longo de sua vida poderá passar por esse tipo de recurso, segundo o qual personagens específicos serão escolhidos como parâmetros para ele próprio.
Concluímos, diante disso, que o fato de ser considerado como a Mulher de Deus, a mulher que faltava no mundo até que Schreber pudesse ser encontrado, esteve intrinsecamente ligado ao modo de relação do sujeito com os outros ao seu redor, pois ele ficou capturado pela solução imaginária. Assim, ele conseguiu estabilizar-se parcialmente, uma vez tendo formalizado essa encarnação de seu ideal, de onde poderia relacionar-se, mesmo que fosse através de uma relação de objeto delirante. A suplência à significação fálica feita pela significação delirante consiste nisso.
Contudo, mesmo que uma solução desse tipo se estabeleça para um sujeito paranoico qualquer, presumimos que seu modo de estabilização será mais facilmente consolidado dependendo da aceitação das outras pessoas que convivem com ele. Muitas vezes soluções não muito bizarras, ou que podem ser endereçadas de um modo específico, parecem facilitar a relação social do psicótico. No caso de Schreber mesmo, a partir da mudança do seu status de objeto do Outro – quando finalmente pôde assumir ser a mulher de Deus – sua relação, assim resolvida com o seu grande Outro, permitiu que ele reassumisse parte de suas antigas funções civis. A definição desse empuxo-à-mulher, efeito encontrado em diversos casos de psicose e batizado por esse nome na teoria lacaniana, possibilitou alguma organização do laço com os outros. Soler (2007) afirmou, sobre isso, que
Schreber tornou-se o Um, ou melhor, a Uma a quem é permitido gozar sem limites. Como dizer mais claramente que a mulher-Schreber substitui a função do pai? Na falta da exceção paterna, que, fundando o universal da castração, teria feito Schreber entrar na categoria da
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castração para todos, a lógica da estrutura não deixa ao sujeito outra alternativa senão encarnar a exceção (p.49).
O efeito sobre a sexualidade do sujeito paranoico é consequência direta da foraclusão do Nome-do-Pai. Assim, as relações do sexo, da escolha sexual e da identidade sexual do sujeito estariam referenciadas todas pelo elemento que não operou nessa estrutura. Deste modo, o efeito de empuxo-à-mulher não deixa de indicar um modo de gozo, apesar de não designar a escolha objetal. Por isso podemos pensar, de acordo com Soler (2007), novamente, que a expressão cunhada por Lacan refere-se àquilo que Freud chamava a homossexualidade do paranoico, mas prioriza corrigir a ambiguidade dessa tese. Sendo o paranoico impelido a ser mulher – efeito decorrente da falta de referência fálica, insistimos – não há, no entanto, atribuição de qual objeto sexual ele irá escolher, seja homem ou mulher.
Apesar dessa constatação até aqui generalizável para a paranoia, o problema clínico que se apresenta envolve o modo como cada um se baseará nesse empuxo. Pois este indica o novo modo que o sujeito obtém de satisfazer a pulsão; ele indica a relação do paranoico com a ordem de seu mundo, já que para ele há sempre algo que falta nesta ordem, o que implica em ele assumir como suprimir esta falta. No caso de Schreber, ainda houve modo de convivência com a esposa, apesar do desígnio que lhe tinha sido feito na esfera delirante.
Voltando à formulação de Freud (1916-17a/1996), sabemos que ele denominava de libido a energia que o ego utiliza para investir os objetos de seus desejos sexuais. A partir desse direcionamento ele podia abordar a neurose de transferência, cuja manifestação revelava-lhe a nitidez da diferenciação entre a libido e outras formas secundárias de energia, que podiam ser chamadas de interesse na conservação de si mesmo em um indivíduo. Nesse mesmo período a noção de narcisismo era usada para designar o modo de distribuição da libido, o que nos permite afirmar que o fator da concentração libidinal no próprio ego foi o que mais se destacou na análise freudiana sobre a psicose, determinando por isso sua designação de neuroses narcísicas para os tipos de psicose.
O narcisismo na teoria freudiana é uma etapa pela qual todos os indivíduos passam, na qual o investimento libidinal volta-se para o próprio indivíduo. Ela é anterior à incidência do complexo de Édipo, e portanto à operação da castração, da qual se origina a escolha de objeto para cada um. A escolha de objeto homossexual era considerada pelo autor como mais próxima do narcisismo do que a escolha heterossexual; isso justificaria o modo de regressão facilitado em direção ao narcisismo, caso o sujeito precisasse “repelir um impulso homossexual indesejavelmente forte” (p.427) em um dado momento de sua vida.
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Esse aspecto da teoria de Freud se esclarece se tomamos como referência a leitura de Freymann (2007) sobre a identificação. Ele a considera como a evolução de toda relação de objeto: “a maneira de sair de uma relação de objeto – objeto que é o especular e não um objeto a ou um objeto parcial – é, de uma maneira geral, passar pela identificação” (p.63). Deste modo, podemos considerar os temas da identificação e do narcisismo como extremamente próximos, já que se referem a ações psíquicas pelas quais um ego se constitui. Tais ações são decorrentes da relação com os objetos e, por consequência, da escolha feita sobre quais traços dos mesmos o sujeito irá desconsiderar, ou por outro lado assimilar como seus.
O tema da conexão entre a paranoia e a homossexualidade foi retomado por Freud em um trabalho que tratava dos mecanismos neuróticos envolvidos no ciúme. Nele o autor mencionou dois casos de paranoicos, a partir dos quais considerava ter descoberto algo novo. Nesse ponto notamos como a investigação analítica conjuga o tratamento e a investigação teórica, propriamente, que se mostram como elementos indissociáveis. Faz-se evidente também o esforço de se utilizar os termos estabelecidos para a neurose, os quais se fazem parâmetro para a assimilação da psicose.
Assim, enquanto abordava os fatores qualitativos e quantitativos daquilo que foi apresentado pelos pacientes, Freud (1922/1996) acabou por concluir que “à medida que nosso conhecimento cresce, somos cada vez mais impelidos a trazer o ponto de vista econômico para o primeiro plano” (p.243). Esta constatação, a nosso ver, permite uma articulação direta com a indicação da teorização de Lacan a respeito do gozo. Este, como algo que se manifesta no real, de modo a não ser delimitado durante um surto paranoico, impõe o desafio que a experiência da psicose apresenta, em relação à sua localização e ao modo de lidar com o mesmo. Para o sujeito, encontra-se aí o ponto de sofrimento, por ser visado por um Outro de forma alguma neutro quanto ao seu interesse. Para o analista, coloca-se a questão do manejo da transferência, com o objetivo de incidir justamente sobre isso que Freud denominou como o fator econômico.
3.2. Sobre o investimento libidinal e natureza do laço
A identificação se articula diretamente com o investimento libidinal. Não por acaso o tema da idealização foi abordado como uma das vertentes acentuadas no fenômeno do amor, no trabalho de Freud sobre a psicologia das massas, no qual o capítulo sobre o estado de amor vem justamente após o que trata sobre a identificação. De fato, desde os primeiros textos da
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psicanálise vemos menções sobre a capacidade de julgamento do estatuto de um objeto, ou até mesmo a condição de censura sobre os próprios atos, serem associadas à normalidade psíquica. Nesse texto, Freud (1921/1996), para analisar os efeitos da idealização sobre o psiquismo, abordou a supervalorização sexual de um determinado objeto, através da qual o amante não mais admite seus defeitos, mas ao contrário passa a ser completamente exaltado, sem espaço para que se dê qualquer crítica com relação ao primeiro. O autor concluiu, então, que a idealização é esta tendência que falsifica o julgamento; para ele era como se o objeto amado exercesse influência negativa sobre o ideal do ego, no sentido de retirar-lhe suas funções para que haja uma espécie de submissão do sujeito ao objeto. Esta situação poderia “ser inteiramente resumida numa fórmula: o objeto foi colocado no lugar do ideal do ego” (Freud, 1921/1996, p.123). O que convém retermos sobre isso, por enquanto, é essa análise já indicada por Freud do modo de assimilação do objeto que repercute não só no comportamento libidinal do indivíduo mas, mais do que isso, serve como modelo de onde o mesmo julgará as suas relações com outrem.
Podemos assim nos sustentar nessa obra para admitir, tal como Diogo (2008), que há duas modalidades de laço social em Freud: uma que passa pela identificação e outra que se confunde com o próprio investimento do objeto. Mais adiante veremos como cada modalidade se organiza.
Observando os diferentes momentos em que Freud teorizou sobre o narcisismo, no que diz respeito às manifestações do ego em quadros de paranoia, podemos afirmar que esta operação narcísica incidiria sobre o aparelho psíquico de modo complexo, sendo a ação responsável pela megalomania, tal como a encontrada no caso de Schreber. Não temos a pretensão de esclarecer esta relação, que poderia ser investigada individualmente; mas notamos que foi nesse aspecto que Freud se focou para tentar esclarecer a doença.
Todavia, convém fazermos um alerta a respeito dessa ênfase freudiana, na relação da suposta organização homossexual e a projeção feita pelo paranoico dos seus sentimentos, imputando-os aos outros. Quando Lacan realizou sua releitura sobre este ponto, parece ter visado, conforme explicitado por Laurent (1989), “propor uma abordagem das psicoses que permitisse descartar o conceito central utilizado pelos analistas nesta época: o conceito de projeção” (p.11). Deste modo, a teorização lacaniana do fenômeno psicótico em questão referiu-se mais à consideração do modo de resposta do sujeito ao que ele vivencia do que à utilização de um conceito que privilegia o recurso ao registro imaginário – e o problema é este privilégio ocorrer não só por parte do paranoico mas também por parte dos psicanalistas que se ocupavam do mesmo tema. Trata-se, na psicose, de uma resposta que se apresenta em
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sua crueza real, quando o sujeito se vê desnorteado sobre qual lugar ocupar na sua relação com o Outro. Neste momento de sua vida ele não responde, portanto, com projeções, mas com algo ligado ao real e manifesto nos moldes que conhecemos serem os dos fenômenos elementares da psicose.
O que nos interessa, sobretudo, na discussão de Freud a respeito do investimento de libido que um determinado sujeito faz sobre os objetos com os quais se relaciona, refere-se ao que consideramos ser o fator libidinal envolvido em um laço social. Quando, em um momento posterior de sua obra, Freud (1925/1996) afirmou que “uma precondição para o estabelecimento do teste de realidade consiste em que objetos, que outrora trouxeram satisfação real, tenham sido perdidos” (p.268), adquirimos condições para pensar na questão do laço social a partir da divisão do sujeito. Se é essa distribuição que determina o estatuto da realidade do sujeito, convém investigarmos qual a sua consequência para o tratamento: pois da localização do gozo dependerá o restabelecimento da realidade para um paranoico após um surto. Aqui consideraremos o laço social, conforme mencionado por Quinet (2006), como “uma estrutura discursiva da dominação do gozo” (p.30).
De acordo com a teorização sobre os discursos, enquanto modalidades de laço social, consideramos que no caso da psicose o sujeito, cuja incidência do Nome-do-Pai não ocorreu no nível do simbólico, não se insere nessas formas discursivas – estruturadas, por sua vez, com relação ao referido significante. Na clínica da paranoia iremos nos manter atentos, portanto, às soluções encontradas pelo sujeito que não passem por tal normatização. Esta indicação, aparentemente simples, adquire para nós todo seu valor quanto à resposta singular que implica.
Pensemos como pode se dar o laço do paranoico, que pode justamente ser determinado por um significante escolhido, ao qual ele se adere firmemente para designar-se a si mesmo. A consequência direta dessa postura é a rigidez do laço - que se assemelha a um modo de identificação com o ideal sem mediação, como se estivesse baseada principalmente no imaginário. Por isso notamos a facilidade que o paranoico tem de encarnar o lugar da exceção e da liderança; ele muitas vezes se mostra persuasivo em seus argumentos, destacando-se como aquele que sabe o que é melhor para um determinado grupo e sobre um determinado contexto.
Somos assim conduzidos à sugestão feita por Freud (1921/1996), em seu estudo sobre as formações coletivas, de que “a essência de um grupo reside nos laços libidinais que nele existem” (p.107). Para o laço que une os indivíduos de um grupo poder existir é necessário um movimento de investimento libidinal na figura de um líder – que por sua vez representa
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um ideal ou uma causa maior. A condição, para tanto, é a inibição do investimento quanto ao seu objetivo eminentemente sexual; somente esta inibição permite a união coletiva, já que o desejo individual é egoísta e manteria cada um agindo somente em interesse próprio. Ou seja, para que não haja rivalidade entre os membros, a natureza do laço no sentido do semelhante ou no do líder seria a mesma; ambas seriam orientadas para um mesmo sentido. Na conjetura freudiana basta um traço de identificação com o líder para que o comportamento da massa se adéque ao ideal coletivo, em detrimento dos interesses individuais mais particulares. O sentimento de pertencimento a um grupo produz uma diminuição do narcisismo, levando a um aumento da preocupação com os demais membros – o que permitiu Freud afirmar que esse laço, designado comumente como o amor aos próximos, é um fator civilizador. Desta forma ocorre uma produção de sentimento coletivo, semelhante a uma identificação entre o indivíduo e o grupo.
No mesmo trabalho há considerações a respeito da identificação que são relevantes para o nosso tema. Em relação à identificação ao pai, Freud (1921/1996) localizou dois processos distintos: um consiste em tomar o pai como sujeito, o que conduziria à identificação com o mesmo – ele seria o modelo para uma aspiração do indivíduo; o segundo tipo consiste em tomar o pai como objeto, que seria assimilado pelo ego do indivíduo, como uma característica que este gostaria de possuir. Embora a distinção na metapsicologia tenha sido difícil de ser feita pelo próprio Freud, o que importa destacar nesse processo identificatório é a característica psíquica de quem o realiza, pois a identificação pode se basear em apenas um traço do modelo.
É curioso pensar na importância que adquire tal traço, tratado de fato como um significante. A operação nesse caso consiste em substituir o ideal do ego de um indivíduo pelo ideal do ego designado pelo grupo, facilmente encarnado no líder; por isso a escolha deste pode ser beneficiada por essa abertura identificatória, pela qual inúmeros indivíduos aproximam o ideal do ego do próprio ego, podendo investir o primeiro como se estivesse investindo o segundo. Nessas circunstâncias, o líder precisaria
Apenas possuir as qualidades típicas dos indivíduos interessados sob uma forma pura, clara e particularmente acentuada, necessitando somente fornecer uma impressão de maior força e de mais liberdade de libido. (...) Os outros membros do grupo, cujo ideal do ego, salvo isso, não se haveria corporificado em sua pessoa sem alguma correção, são então arrastados com os demais por „sugestão‟, isto é, por meio da identificação (Freud, 1921/1996, p.139).
O estatuto de exceção parece destinar-se somente ao líder, e não aos demais membros do grupo, que precisariam considerar-se iguais mediante o ideal coletivo. Talvez não seja
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ousado considerar esta relação como uma possibilidade de vinculação entre neuróticos e paranoicos, dada a aptidão de uns para manter sua libido inibida, com fins à manutenção de uma relação social duradoura, e de outros, na facilidade de se destacar de uma padronização para indicar o que falta ou sobra, equivocadamente, na sociedade em questão. Não é por acaso que encontramos manifestado frequentemente, em casos de paranoia, a reivindicação e envolvimento em litígios, através do que o sujeito busca um atestado do Outro sobre sua posição de vítima ou de tratamento inadequado dirigido a ele mesmo.
De acordo com o que vimos nas passagens clínicas anteriores, muitas vezes um paranoico incita este reconhecimento do Outro quanto o saber que ele possui sobre uma determinada causa, com a particularidade de não abrir mão facilmente sobre seu ponto de vista. Enquanto uma figura ideal, ele localiza os problemas de suas relações nos outros com quem convive – onde podemos vislumbrar um modo subjetivo de posição no campo social. Ele passa a ser o ponto de exceção para o qual os interesses alheios convergem.
Mas se constatamos nesse modo de vínculo uma facilidade para o sujeito, nem por isso temos como indicá-la, tampouco procurar por ela nas situações da clínica da paranoia. Trata-se de uma chance de combinação, dependendo das contingências não só da vida de um indivíduo como de um determinado grupo. Nesse caso o vínculo seria uma adaptação utópica, no sentido de favorecer mais a adequação de uma coletividade a um líder com tais características, do que um esforço de relação desse Um da exceção, encarnado pelo sujeito paranoico, com os demais. É o que justifica a afirmação de Laurent (1995), sobre a capacidade do psicótico de “coletivizar por suas certezas” (p.184). De todo modo, essa seria a possibilidade de uma estabilização na psicose através de uma relação de algum modo compartilhada.
Se o paranoico define um significante que sirva como seu referente ideal, isto pode lhe servir como modo de retenção do gozo. Quinet (2006), nesse sentido, afirma que tal significante, um S1, poderia significantizar o gozo, possibilitando ao sujeito “as tentativas de estabelecimento de laços sociais, pois é a sua maneira de representar-se no significante como um sujeito” (p.61). Esse modo de tratamento do gozo pelo simbólico é uma das metas do tratamento: uma vez estabelecida uma transferência, e em condições de seu manejo, o psicanalista poderia justamente servir como o ouvinte dessa elaboração – testemunhado as dificuldades nos vínculos do sujeito, que tendem a ser, contudo, fragilizados em sua vida.
A relação do sujeito com seus objetos depende, como vimos, da sua estruturação psíquica e decorrente organização da sua realidade. Quer dizer que o significante do pai funciona como parâmetro, nitidamente em casos de neurose, para que a organização subjetiva
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ocorra a partir da forma do Ideal do eu – ou seja, vinculada a um significante específico de onde cada indivíduo pode se contemplar em relação aos outros. Na neurose, é sabido que o tratamento se baseia nessa condição, pela qual pode se instaurar o discurso do analista – sendo este colocado como um objeto que pode sustentar um saber a respeito do paciente.
3.3. O fator libidinal e a localização do ideal pela transferência
Se passarmos para as considerações feitas por Lacan (1960-61/1992) em seu seminário sobre a transferência neurótica, no que diz respeito à incidência do ideal no fenômeno clínico, veremos como nesse percurso o autor abordou a noção do narcisismo em Freud, para concluir que “o Ideal do eu é também o ponto axial dessa espécie de identificação cuja incidência seria fundamental na produção do fenômeno da transferência” (p.335-6). Esta, enquanto investimento libidinal feito na pessoa do analista, é assim organizada devido à introjeção prévia do que Lacan chamou, nesse contexto, de Ideal do eu.
Embora uma escolha de objeto por parte do sujeito possa funcionar como ponto de estabilização para sua experiência subjetiva, já que assim ele adquire uma medida concreta para sua vivência, qualquer solução baseada no imaginário tem o inconveniente de poder se diluir facilmente. Não só em casos de psicose, mas também na estrutura neurótica, constatamos que identificações - ou outro tipo de resposta subjetiva - sustentadas pelo imaginário, pela aderência a algo que faz par para o sujeito, não se sustenta por si, já que este registro não possui uma contenção. No caso da clínica psicanalítica da paranoia um desafio consiste justamente em podermos auxiliar o sujeito para que ele mesmo consiga dosar a distância com que se relaciona em uma dada solução imaginária, que é, contudo, inevitável nos seus laços.
Uma parte da nossa experiência clínica com paranoicos está baseada na fixação que esses quadros exibem no nível do imaginário. Toda a discussão que fizemos acima com relação à ênfase freudiana do fator homossexual na paranoia corrobora a hipótese dessa fixação. Em termos mais lacanianos admitimos, porém, que um dos modos de identificação do sujeito, para além da sua primeira identificação com o objeto primordial, encarnado na mãe, baseia-se justamente na assimilação psíquica do traço unário. Este termo, utilizado pelo próprio Freud (1921/1996) para tratar da identificação, refere-se ao einziger Zug, e funciona no psiquismo como referência a um único traço, indicando a interiorização de um signo.
Este traço define a referência original ao Outro, no momento mesmo em que o sujeito está se constituindo com relação ao seu semelhante; ele incide pontualmente na relação
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narcísica de um indivíduo, através do reconhecimento de algo que se exclui dela. Este ponto marca o limite da identificação imaginária, “onde nenhum dos dois poderá subsistir junto com o outro. O Outro, é preciso realmente que ele seja reconhecido além dessa relação, mesmo recíproca, de exclusão (...). É preciso que ele seja invocado como aquilo que dele próprio ele não conhece” (Lacan, 1955-56/1985b, p.341). Como a aceitação desta alteridade representa ao mesmo tempo uma admissão à perda de gozo - uma vez vivenciado plenamente, nos primórdios do psiquismo – podemos concluir que, para termos condições de construir laços, quaisquer tipos de seres falantes que sejamos, é necessário que tenhamos um certo modo de lidar com o fator libidinal que nos concerne mais intimamente.
Em acréscimo à análise de Freud sobre a identificação dos membros de um grupo ao líder, Lacan (1960-61/1992) afirmou que deste laço apreendemos uma das formas de identificação propostas por Freud, na qual se destaca precisamente a função do traço unário. Este passa a ser considerado então como o fundamento em torno do qual se constituirá o Ideal do eu. Ele se relaciona com o desejo, na medida em que este se constitui da relação do sujeito com o Outro – ou seja, no campo do significante. É o Outro que determina essa função do traço, conduzindo à idealização enquanto modo de identificação de um sujeito. Para Lacan,
Este ponto, grande I, do traço único, este signo do assentimento do Outro, da escolha de amor sobre a qual o sujeito pode operar, está ali em algum lugar e se regula na continuação do jogo do espelho. Basta que o sujeito vá coincidir ali em sua relação com o Outro para que este pequeno signo, este einziger Zug, esteja à sua disposição” (p.344).
Quando Lacan (1963-64/1988) se debruçou sobre os conceitos considerados por ele como os principais da teoria psicanalítica, abordou a relação entre o significante unário e a libido. Isto o permitiu concluir que a identificação primária, vinculada ao narcisismo, é a mola para que incida o Ideal do eu. Esta relação é complexa, pois marca o entrecruzamento do olhar do Outro com o ponto de onde o sujeito mesmo consegue se ver, que é o eu ideal.
Vimos no capítulo anterior, a este respeito, como a transferência neurótica é marcada por esta interferência. De todo modo, para pensarmos na função do Ideal do eu para casos de paranoia, iremos nos ater ao que foi ilustrado no esquema I de Lacan, tendo como parâmetro o modo como o Ideal se põe no lugar do Outro. Podemos nos questionar, aqui, sobre qual estatuto esta referência é assimilada para um determinado sujeito, já que sua relação com o Outro é marcada por uma ausência no nível do simbólico.
Sobre a função do significante em sua relação com o fenômeno da transferência, parece-nos que a regulação da relação imaginária a partir do bom uso do significante faz com
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que a posição clínica baseada no registro simbólico possibilite o desvio dessa captura. Esta observação vem corroborar a análise que fizemos no capítulo dois sobre o manejo da transferência, que passa por esta necessidade estrutural de se desviar do imaginário no dispositivo analítico.
Por outro lado, para retomarmos a organização simbólica como possibilidade de fazer suplência nos casos de paranoia, iremos nos servir do que ficou indicado por Lacan a respeito da identificação enquanto identificação do Ideal do eu. Sua natureza é justamente esta identificação por traços isolados, únicos, que Lacan (1960-61/1992) bem destacou serem da mesma estrutura de um significante. Observando, portanto, a função do significante A mulher de Deus para Schreber, temos indicada uma possibilidade de organização subjetiva na paranoia a partir da limitação dessa função do traço, do significante unário. É nesse sentido que esse caso nos indica um possível objetivo no tratamento da paranoia: qual seja, que o sujeito não mais encarne o objeto de desejo que falta ao Outro, mas que ele possa reconhecer-se através de um significante que o permita relacionar-se com este campo do simbólico, distanciando-se da posição de objeto. O manejo da transferência pode contribuir para a passagem de uma posição à outra, através de uma retificação do Outro – detalhada no segundo capítulo - já que o paranoico não apresenta uma organização estrutural que permita uma retificação subjetiva.
Em relação à estrutura neurótica, a organização baseada no Ideal do eu determina toda a dialética do desejo, já que o sujeito aqui se constitui a partir do desejo do Outro. Essa função do traço unário está, portanto, na base do fenômeno da transferência. Porém, em relação à psicose, uma vez que o sujeito chega a uma organização de sua realidade através de uma elaboração delirante, a função do Ideal do eu nos interessa particularmente por essa relação com uma possível suplência: a que se baseia na retenção maciça de um significante determinado, que possa fazer as vezes do significante que teria sido assimilado se tornado operante no momento de constituição subjetiva de um determinado paciente paranoico.Veremos a seguir que a hipótese sobre o que faz suplência ao Nome-do-Pai não operante envolve justamente uma organização que sincronize os registros simbólico, real e imaginário.
3.4. Algumas hipóteses sobre a estabilização na psicose
É importante fazermos nesse ponto uma observação a respeito das mudanças feitas por Lacan que levaram a novas consequências sobre a clínica da psicose, como destacado por
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Guerra (2007) e Laurent (1989). Enquanto no primeiro seminário sobre a psicose a função do significante restringia-se à sua necessidade de encadeamento, sendo o sujeito do inconsciente localizado nessa efêmera ligação entre um primeiro e um segundo significante; ao final do ensino de Lacan, após vários acréscimos teóricos, a ênfase dada quanto ao significante passou a ser sobre seu funcionamento. Como significante único, o Um ou S1 representa a incidência do simbólico no sujeito, ao mesmo tempo em que carrega em si a possibilidade de gozo.
Dada a complexidade da estrutura psicótica e as possibilidades de estabilização de um sujeito, Lacan recorreu à topologia com vistas a esclarecer o conceito de S1 para pensar nessa dificuldade concreta. Aqui nesse trabalho, porém, preferimos fazer uma leitura desta formulação lacaniana com o auxílio dos autores que a comentaram, ao mesmo tempo em que fizeram avanços sobre a clínica da psicose tentando aplicar à mesma essas novidades. Veremos em que medida mencionaremos essas leituras, já que nos concentramos sobre as possibilidades de manejo da transferência na paranoia.
Antes de detalhar as contribuições derradeiras da última teorização de Lacan sobre a psicose, feitas pelos autores citados, ressaltemos, porém, o que não se pode perder de vista sobre a primeira hipótese de estabilização da psicose. O que costumamos ver, na clínica paranoia, a respeito da função do delírio para um dado sujeito – para além da intuição de Freud (1910/1994) relatada a Ferenczi em carta de maio de 1910, quando ambos discutiam sobre a aplicação do método psicanalítico com pacientes paranoicos, de considerar o delírio como uma tentativa de cura – é sua condução à construção de um Outro que traz a marca de uma idealização do sujeito, segundo a qual o Outro se localiza no mesmo nível de seu Ideal do eu. Em outras palavras, quando a elaboração delirante conduz a um significante que corresponde ao ideal do sujeito, com relação ao qual ele pode se identificar diante do Outro, esta identificação é feita, no entanto, de modo imediato, e possui a marca da pregnância imaginária característica do quadro.
É por isso que Soler (2007) afirmou que “o delírio descreve uma operação rigorosamente inversa à da metáfora paterna em relação ao gozo. Esta é solidária de um esvaziamento do gozo do lugar do Outro” (p.203). Afinal, a produção delirante muitas vezes começa de modo completamente disperso, em uma situação de crise, mas pode evoluir de modo favorável para o sujeito mesmo, já que o delírio “é também um remanejamento significante” (p.201). O possível advento de um significante, portanto, acaba por reter o sujeito a um modo de gozo específico – o que pode permitir sua inserção em um laço social.
Isso porque a perda da identificação imaginária, enquanto um efeito da foraclusão do Nome-do-Pai no registro simbólico, funciona como uma desestabilização do sujeito. A
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fixação ao narcisismo na psicose repercute em fenômenos ligados a uma relação especular e também ao modo de considerar o corpo próprio como objeto de investimento – o que é feito em maior ou menor grau em cada caso, além daqueles delimitados patologicamente. Mas, devido à estrutura, a função paterna resta para o sujeito como uma imagem, uma redução ao registro imaginário mesmo.
Há uma passagem de Freud (1916-7a/1996), em uma de suas conferências, que nos serve aqui como articulação com a concepção atual sobre a estabilização na psicose:
Considero extremamente provável que os instintos do ego são arrastados secundariamente pela instigação patogênica da libido e levados a perturbações funcionais. E não penso que seria um desastre para o rumo de nossas pesquisas se aquilo que nos aguarda é a descoberta de que, nas psicoses graves, os próprios instintos do ego perderam sua orientação, como fato principal. O futuro dará a resposta – para os senhores, pelo menos (p.430).
As chamadas psicoses graves podem ser assimiladas justamente com as situações de crise em que o sujeito não localiza o gozo e perde o sentido de seu mundo: tendo sido abalada sua frágil identificação, advindo um surto, o que temos é uma proliferação da libido sem um modo de escoamento determinado. A gravidade do caso, conforme já destacado por Freud, deve-se em parte à desorientação da libido que estaria antes investindo o ego. Essa descoberta parece de fato ter sido confirmada no futuro que adveio desde então, quando a experiência de psicanalistas com a psicose paranoica tem adquirido mais consistência.
Senão, qual será a importância atribuída por profissionais que trabalham na área da saúde mental, enfrentando os desafios da psicose e tentando fazer avançar a teoria da psicanálise, quando se destaca sobretudo a solução singular de um sujeito? Nos modelos atuais de tratamento, dentre os quais o que se realiza em instituições, encontram-se soluções singulares “que fogem a uma possível regra geral de domesticação do gozo” (Guerra, 2007, p.99). Então, mantém-se a ideia de que a regulação do gozo é um objetivo do tratamento – mas como cada um chegará a ela é o decisivo e o que não é passível de ser prescrito.
Por outro lado, diante de um quadro organizado, em que o sujeito localizou um significante que o referencia, podemos supor que a paranoia se estabeleça como um modo de discurso – no sentido genérico do termo – e chegue a uma modalidade de laço social forte. Talvez tão forte que se aproxime de um laço totalitário, cujo líder manteria um lugar de investimento extremo. Assim, se o paranoico entra de algum modo no discurso, mas sem circular facilmente entre eles, como pensarmos na função do tratamento psicanalítico para ele? Afinal, o dispositivo de análise funciona como um modo de laço. Mas antes de
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detalharmos essa consideração sobre a modalidade de laço baseada no manejo da transferência, convém aprofundarmos a noção lacaniana de sinthoma.
3.4.1. Comentário sobre a função do sinthoma
Vejamos finalmente como o seminário de Lacan (1975-76/2007) a respeito de James Joyce, escritor que forjou um ego para si através de sua obra, permitiu uma mudança de perspectiva quanto às soluções esboçadas por psicóticos. Enquanto Laurent (1989) a localiza “no ano de 1976 [n]a apresentação do Seminário sobre Joyce, „O sinthoma‟, onde surge de maneira absolutamente nova a ideia do eu como procedimento de remendo na psicose, a fabricação de um eu pelo sujeito psicótico mesmo” (p.17); Guerra (2007), por sua vez, afirma que os elementos centrais da formulação lacaniana da década de cinquenta, tais como o Nome-do-Pai e o falo, passaram a ser tratados como articuladores das soluções singulares mencionadas na década de setenta. O caso do escritor James Joyce, devido ao uso que ele fez de seu nome e ao modo com que se relacionou com a sua própria obra, tornou-se um paradigma deste momento do ensino de Lacan, que passou a tratar a clínica psicanalítica segundo a lógica da topologia dos nós.
Para Guerra (2007), porém, a novidade maior desse momento da formalização de Lacan consiste em considerar o nó – o modo de enlaçamento dos registros para um determinado sujeito – como uma forma de escrita; esta pode incidir sobre o gozo, articulando suas diferentes manifestações. A partir daí a foraclusão do Nome-do-Pai seria entendida como a ruptura de um nó, e não mais como a rejeição de um significante primordial. Ao contrário do que possa parecer, não se trata de dispensar os ensinamentos das formulações iniciais do próprio Lacan sobre a psicose, mas sim torná-los mais complexos, à medida que as soluções psicóticas nos fazem enigma quanto ao modo de apreendê-las teoricamente. Nesse último momento formulado por Lacan, portanto, ele pensou como os três registros se enlaçam, ao invés de priorizar o fenômeno psicótico através da primazia do simbólico.
Uma das consequências desse raciocínio é o modo de considerar a organização da realidade para um sujeito. Nas palavras de Guerra (2007),
Ela não seria senão um véu tecido do Imaginário e do Simbólico que serve para recobrir a dimensão insuportável do Real. Essa proteção, que permite a um discurso se desenvolver e fazer laço, implica em contrapartida numa limitação de gozo, procedente da função do pai, operadora da castração sobre o Outro materno (p.128).
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Observamos que o Nome-do-Pai não deixa de ser o elemento que organiza os registros de modo estável, que permitiria ao sujeito a constituição de laços sociais e sua habilitação para inserir-se nos discursos. Se essa solução normatizada de modo semelhante para todos passa a ser relativizada, pode-se concluir que o que determina o modo do sujeito encontrá-la é a possibilidade de relação com o gozo; ou seja, como lidar com o quê do real não é nomeável, mesmo que seja necessário encontrar uma suplência à sua estruturação para fazê-lo.
Considerando o nó como essa função, podemos trabalhar na clínica com essa articulação entre o significante e o gozo tornada mais direta: a partir das elaborações ao nível do simbólico, iremos esperar um modo de deslocar, ou de ao menos tocar algum ponto do gozo. Não deixamos de considerar a operação analítica como um trabalho de melhor articulação entre os diferentes registros – o que é buscado para todo indivíduo que se submete à análise, não sendo portanto uma exclusividade do trabalho com paranoicos.
A importância fundamental do sinthoma deve-se ao fato de que ele estrutura as relações sociais do sujeito, tal como indicado por Morel (1999). Esta autora afirma que
Quando não há sinthoma na psicose, o real, simbólico e imaginário não se mantém juntos. Às vezes, as identificações bastam para manter um equilíbrio, porém lábeis e instáveis. No entanto, mesmo se o sujeito construiu um sinthoma, ele pode passar por momentos psicóticos agudos intermitentes, onde o sinthoma não funciona (p.7).
O trabalho de Guerra (2007), por sua vez, acerca das possibilidades de estabilização na psicose, indica que quando o sujeito está em tratamento, o que nos interessa, enquanto clínicos, é sobretudo o artifício que o sujeito pode inventar em relação a uma determinada criação sua. A indicação é antes de tudo de cunho ético: o tratamento será guiado justamente a partir do estilo sugerido pelo psicótico mesmo, de acordo com seu modo de lidar com seus tormentos.
3.4.2. O tratamento do gozo na paranoia
Essa discussão se relaciona com o tratamento específico da paranoia, contribuindo para pensarmos sobre o tratamento do gozo do Outro: o que Lacan formulou sobre a psicose nos diferentes momentos de seu ensino permite considerá-lo um ponto de extrema importância para a criação de uma suplência e, logo, um modo de atar os registros, estabilizando a costura do nó de um sujeito, qualquer que seja seu formato. Ou seja, cada
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caso, se o trabalho analítico for conduzido por essa orientação dos nós, pode sugerir em qual momento da amarração houve uma espécie de erro, um ponto que não permite muita sustentação para o sujeito ao longo de sua vida. Todavia, como admitimos que o que se passa no sujeito depende do que se passa no Outro, somente com a regulação deste a suplência singular poderá ser obtida – e mantida, de algum modo.
Podemos nesse ponto admitir que a estabilização em quadros de paranoia submetidos ao tratamento psicanalítico necessita de uma baliza no remanejamento imaginário, ao mesmo tempo em que se utiliza de uma retificação do próprio simbólico. Os efeitos decorrentes seriam a limitação do real. O psicanalista, portanto, se posicionaria de modo a permitir esse balizamento, na direção apontada pelo sujeito mesmo, em cada situação. O trabalho de elaboração para o paranoico consistiria, em contrapartida, em uma re-nomeação, dependendo do modo como ele lida com sua versão da lei. Dependendo do processo da foraclusão, o seu trabalho de construção de uma suplência será condizente com seus recursos.
É possível que a clínica da paranoia seja questionada sobre seus efeitos pelo fato de usarmos frequentemente o método para a neurose como um parâmetro para defini-la e mesmo tentar localizar as possibilidades de sua estabilização. Mesmo quando definimos a inserção em um discurso, nos referimos à neurose como a estrutura mais hábil em fazê-lo, dado o modo de constituição do sujeito nesses casos. Outro ponto a ser destacado é a organização cultural baseada na interdição que funda a própria neurose, de modo que o que poderíamos oferecer, como objetivo do tratamento da paranoia, seria a adaptação a um sintoma social – portanto, adequadamente neurótico. A nosso ver, essa é uma questão que pode ser considerada ingênua se for colocada às pressas, o que nos leva a considerar o laço que pode haver entre neurose e paranoia a partir do momento em que a realidade reconstruída de um sujeito se esforça por relacionar-se com a do outro, mais estável e apontada como a regra a ser seguida.
Se, conforme Quinet (2006) afirma, “na psicose, de forma geral, toda tentativa de cura é uma tentativa de inserção no laço social, inclusão em algum discurso” (p.42), como podemos pensar a postura do analista, se na clínica o que o guia é o seu desejo, enquanto desejo do analista? Ou seja, como pensá-lo enquanto sujeito barrado capaz de não encarnar uma função específica, mas transitar entre as posições: seja aquela onde o analisante o quer colocar, seja aquela em que a ética da psicanálise indica enquanto o lugar vazio referente ao terceiro, à ordem simbólica? Por um lado, admitimos que o discurso do analista, no qual este ocupa o lugar de objeto e se dirige ao sujeito (barrado), é um tipo de laço que de fato considera o outro, seu interlocutor, como um sujeito. No entanto, sabemos que na paranoia,
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especificamente, o sujeito em questão não é marcado por uma falta; logo, tampouco o analista é considerado como o portador do objeto causa de desejo. Não é este o lugar que ele ocupa; portanto, como podemos abordar sua posição, no que se refere à direção do tratamento com vistas à estabilização de um sujeito?
Uma discussão atual e mais refinada sobre a estabilização na psicose precisaria passar por conceitos lacanianos definidos mais tardiamente, os quais, contudo, não teremos oportunidade de trabalhar nesta dissertação. Mas podemos nos valer das elaborações de autores que avançaram na teoria lacaniana sobre o tema, nos restringindo, porém ao que nossa discussão até o presente permite acompanhar. Assim, entre os referidos conceitos há a noção de letra, articulada com a clínica topológica do nó borromeano, que perpassa o modo de relação dos registros psíquicos. Isto porque a clínica da psicose apresenta, como um de seus questionamentos, a relação que o sujeito estabelece com a escrita, atividade que não é fortuita em relação à suas tentativas de elaboração, seja antes ou depois de um surto. Deste modo, ao analisar a elaboração de Lacan sobre o começo da década de sessenta, Guerra (2007) acrescenta que
O fenômeno da escrita consistiria (...) no apagamento do sentido e na aplicação de uma bateria de significantes – o que Lacan chama de traço unário. Seria como uma espécie de realização de uma castração „positiva‟, permitindo ao sujeito adquirir uma certa identificação pelo abandono de uma relação direta com o objeto originário (p.87).
Esta passagem nos remete à consideração que o psicanalista pode fazer sobre a produção escrita de um determinado paciente psicótico, recolhendo ali um modo arranjado de fixação do gozo, ou até mesmo de distribuição do mesmo. Em alguns casos tal escrita permite de fato certo esvaziamento do gozo que acomete o sujeito.
Tais trabalhos escritos irão servir também como testemunho da relação do psicótico com a linguagem. Assim, a função do analista, ao receber tais escritos, é permitir a manutenção do vínculo do sujeito com a palavra, diante do seu esforço de construir uma linguagem que possa incluí-lo. Sobre isso Laurent (1989) adverte que a escrita psicótica sempre se refere ao S1, escolhido pelo sujeito, que se repete. Notamos aqui como a certeza psicótica, sintoma tão evidente, se refere à certeza mesma quanto ao gozo do Outro. Por isso o significante sozinho, não articulado, representa esta constatação subjetiva, isolada do discurso - ao menos em um primeiro momento. De uma possível relação com o mesmo é que podemos esperar modos de o sujeito acalmar-se.
Dependendo do modo de relação de um determinado sujeito com a escrita, notamos às vezes um trabalho de isolamento do significante, que, uma vez chegado ao estatuto de um S1,
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passa a ser fixado como um elemento que permite limitar o gozo, civilizando-o. Admitimos, com Freud, que o gozo consiste na própria satisfação da pulsão. A questão com a qual nos defrontamos na clínica é justamente o modo de alcançar essa satisfação em limites suportados socialmente.
Apesar de sabermos da importância da limitação de uma metáfora delirante para o paranoico, cuja constituição serviria como um índice para o trabalho analítico, as consequências da mesma para o laço revelam a necessidade de um lugar adequado para o sujeito exercer essa designação. Com ela o sujeito encarna o Um, tratando os outros como objetos – dejetos – submetidos à sua ordem. É claro que, em um contexto social banal, isto se mostra insustentável. De todo modo, conforme o vínculo de tratamento que este sujeito alcance, há chances de esta atividade ser endereçada para um lugar em que há ao menos um agente tratando-a como uma produção singular, permitindo a ela sua permanência em níveis minimamente compartilháveis.
3.5. O tratamento e a oferta de um Outro retificado
No dispositivo da psicanálise, o objetivo do analista em um primeiro momento é avaliar a possibilidade de instauração do discurso analítico. Trata-se de estabelecer um pacto entre o analisante e o analista, com o qual alcançar uma maneira de tratar o gozo. Na estrutura neurótica temos o significante mestre como algo recalcado, mas ainda assim servindo como um traço de identificação do sujeito. Nela o sujeito se localiza justamente entre dois significantes, já que a cadeia foi assimilada nessa organização específica, tendo o Outro simbólico operado como o lugar da lei. O traço unário, servindo aqui como suporte da separação do sujeito com o objeto que funcionará eternamente como a causa de seu desejo, permite uma identificação simbólica justamente por causa dessa mediação.
O interesse clínico de buscar o que poderia fazer essa mesma função, na paranoia, baseia-se no nosso objetivo de procurarmos evitar a relação mimética, que é a baseada no imaginário. A identificação feita pelo sujeito de modo mais próximo a uma referência simbólica é a que nos interessa para obtermos efeitos de apaziguamento do sofrimento psíquico. Ainda que a singularidade envolvida em uma solução desse tipo implique uma questão íntima do sujeito, podemos problematizá-la com a lembrança feita por Freymann (2007) de que o particular só pode existir quando em relação com uma coletividade. Esse autor retoma a definição de Freud sobre o Einziger Zug, destacando sua função de pequeno
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traço de diferença, que permite uma distância entre o sujeito e o objeto com o qual ele irá se relacionar.
Esta é a referência teórica que nos leva a considerar a posição do analista no atendimento de pacientes paranoicos como uma possível incidência simbólica, no sentido de suplementar a função do ideal para um determinado sujeito. Se tivesse sido internalizado, o sujeito teria condições precisas de operar uma distância entre seu ideal e o objeto de investimento. Estaríamos aí no campo da neurose, com as modalidades de relação com o objeto e vínculos libidinais já discutidos. Mas na psicose paranoica, porém, na qual o objeto a não foi extraído, o tratamento precisa se guiar por outras margens possíveis para lidar com o objeto, que pertence ao sujeito mesmo. Buscaríamos localizar o traço em questão para obter alguma lei que regule a relação do sujeito com ele, ou, como afirmado por Diogo (2008), tentaríamos, “na direção do tratamento, promover essa certa distância [que] requer a simbolização da perda do objeto ou algum tratamento do objeto não extraído” (p.54).
O manejo da transferência na paranoia envolve, portanto, localizar o objeto na experiência atual do sujeito, no sentido de nos atentarmos para o modo como ele mesmo vem tentando tratá-lo. Dada essa possibilidade de circunscrição do real, talvez o sujeito pudesse em decorrência situar-se melhor em relação à ordem simbólica. Nesse sentido, ele poderia se beneficiar da psicanálise enquanto uma modalidade de laço, em si mesma, e ainda inserir-se em outros laços de algum modo orientados e beneficiados por essa nova referência.
O tratamento psicanalítico da paranoia pode envolver, ainda, uma aposta na possibilidade de estabelecimento de um laço entre o sujeito e a sociedade que o cerca. Em si seria um vínculo com efeitos de endereçamento já discutidos; mas, para além disso, teríamos uma esperança de contribuir para os recursos de mediação do sujeito com os outros em uma esfera social maior. O vínculo do paranoico com a analista precisaria passar por esta mediação, como um desafio constante de introduzir um ponto dialético nas convicções quase sempre muito fechadas do sujeito.
Broca (1985b) propõe, sobre isso, que o analista seja uma função compatível com a inserção do paciente paranoico em certo tipo de realidade, sem incentivar a relação impregnada com o ideal. O psicanalista poderia manter esta função “com a condição de manter à distância o Ideal, de um lado, e de outro um lugar onde o sujeito possa se reunir ao redor de um objeto” (p.8). Ou seja, a partir da transferência mesma o analista pode encontrar meios de encarnar um laço social, ao modo de uma suplementação do laço fragilizado pela própria condição estrutural do paciente.
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A nossa hipótese sobre a possibilidade de estabilização em casos de paranoia passa pela possibilidade de regulação do gozo. Admitimos que após o surto um novo gozo se apresenta ao sujeito, e que a saída para lidar com ele passa pela reorientação a um significante. A dificuldade para o sujeito consiste justamente nesta articulação entre o campo libidinal e a delimitação de um novo significante, trabalho este que pode ser beneficiado pelo acompanhamento psicanalítico, uma vez que o analista aposta nesta possibilidade de elaboração pelo sujeito mesmo.
Feitas essas considerações sobre as possibilidades de estabilização na paranoia a partir dos recursos que um determinado sujeito pode utilizar, podemos nos voltar novamente para a função do manejo da transferência com vistas ao objetivo mencionado: uma definição para o sujeito que o permita equilibrar de algum modo os registros de sua experiência. Há que se delimitar o delírio, referenciar-se ao Outro e ainda direcionar a satisfação pulsional – desafio que leva a uma solução, uma vez ultrapassado.
O manejo da transferência pode levar a uma mediação com o objeto não extraído. Laurent (1989) afirma o seguinte, destacando a distinção da função do objeto a na psicose: “É por aí que podemos discernir, na psicose, uma declinação particular do um inteiramente só, do S1, e pensar na báscula transferencial que procuramos. Esse Um encontra-se por toda parte, em outros modos de combinação” (p.148). O problema é como se relacionar com o S1, o significante que representa o sujeito, ainda que sob forma estática e não articulada, tal como na psicose. Nela o sujeito se coloca como quem garante uma ordem, acreditando de fato em sua encarnação diante de tal designação.
O que torna delicada a solução encontrada através de uma metáfora delirante, deixando ao sujeito o estatuto de exceção radical, não deixa de ser também uma dificuldade encontrada no manejo da transferência. É certo que o significante permite para o paranoico uma organização subjetiva; mas introduz, ao mesmo tempo, uma barreira para uma flexibilização da ideia, o que poderia talvez ser uma tentativa do analista durante uma consulta.
3.5.1. A instituição como outro Outro
Tendo considerado a importância da retificação do Outro no manejo da transferência na paranoia, passemos a considerar agora em que medida isso se correlaciona com o tratamento realizado em uma instituição que acolhe um sujeito dessa mesma estrutura. Uma equipe determinada, como nos serviços públicos que temos estabelecidos atualmente para o
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tratamento em saúde mental, pode representar para o paranoico uma figura tratada do Outro. Vejamos em que medida isso se justifica, ao retomarmos as observações feitas por autores que trabalham nesse campo utilizando a psicanálise lacaniana e freudiana como referencial teórico.
Nesse contexto atual de atendimento da psicose podemos admitir uma mudança que reflete os aprendizados adquiridos pelo convívio com a própria loucura. A prática institucional nos serviços, embora não se confunda com a psicanálise, pode se beneficiar dela a partir de suas considerações sobre a causalidade da psicose e os princípios derivados de sua teoria no que concerne à postura do profissional diante de tais quadros. Assim, o tratamento institucional não tem como objetivo substituir o que poderia ser feito em um consultório particular. Mas esses são, com efeito, modos diferentes de lidar com a psicose, nos quais um determinado paciente pode ser beneficiado dependendo do vínculo que decorrer de um encontro – seja este na vertente de uma prática coletiva ou na de uma prática de consulta, em que um psicanalista se torne sua referência. Em ambos os casos o profissional que se oriente com os princípios da teoria psicanalítica que temos indicado até aqui aposta em um mesmo resultado: que o sujeito consiga lidar com seus sintomas, de modo a se inserir em um laço e manter-se de algum modo orientado nele.
Em termos mais específicos podemos afirmar que o tratamento, em qualquer das modalidades, tem por objetivo a localização de uma possibilidade do tratamento do gozo, singular para cada paciente. O papel da instituição é notadamente importante em uma situação de crise que não possa se contornar somente com o dispositivo da consulta. Mas, dada a importância do período de elaboração delirante para um paciente, acreditamos que o tratamento na instituição precisa respeitar esse momento, no qual há busca de uma resposta e tentativa de reordenação da realidade. Uma vez atravessada a crise, o acompanhamento semelhante a uma escuta individualizada – seja em qual dispositivo ela puder ocorrer – oferece uma oportunidade para que se chegue à denominada metáfora delirante, com as consequências já mencionadas nesta dissertação.
Os casos de paranoia, dentre os tipos de psicose, não raro são os que encontram mais facilidade para a constituição de um delírio; particularmente os delírios verídicos ou viáveis, conforme destacado por Calligaris (1989). Por isso o autor afirmou, sobre a possibilidade de estabilização do psicótico, que “a constituição de um delírio viável é o caminho mais imediatamente acessível” (p.57) – acessível inclusive para o acompanhamento pelo analista. Sabemos que há casos que se estabilizam com a definição de uma metáfora delirante – para tanto, a instituição, assim como o analista, fariam o papel da presença de um parceiro que em
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si não sabe sobre o sujeito, mas que está ao seu lado para recolher o saber que ele mesmo possui.
O manejo da transferência na paranoia envolve evitar uma injunção: a função do analista, no consultório ou na instituição, oferece um espaço para a elaboração. Que esta leve ou não a uma metáfora delirante, bem delimitada, é algo que varia em cada caso. Mas a transferência paranoica requer esta abstenção por parte do profissional de referência.
Zenoni (2000) nos esclarece muito a respeito do papel social da instituição, alertando para a necessidade de um espaço destinado aos estados psíquicos complexos, principalmente os que se caracterizam como um risco de passagem ao ato do sujeito. O autor destacou que em certos momentos trata-se de oferecer esta resposta social a um fenômeno que é clínico – de onde vem em seguida um objetivo terapêutico, posto de fato em segundo lugar. Isso nos alerta para a conjunção dos papéis clínico e social da instituição para tratamento de saúde mental: pois “em alguns estados da clínica, não se trata de ir ao consultório do analista, trata-se de ser protegido” (p.16).
De todo modo, seguindo as elaborações do autor, ao reconhecermos o caráter clínico da instituição notamos ao mesmo tempo o destaque de sua função social. Sabemos que em alguns casos de psicose é possível que se instaure uma transferência com um analista, sendo possível a realização de um tratamento no consultório. Não significa que todo caso de psicose apresentará necessidade de uma resposta coletiva; embora o acolhimento institucional se destine a quem quer que dele necessite, nem sempre ele será prescrito para um sujeito. Na clínica da paranoia, a prática nos ensina que o próprio sujeito localiza os pontos da rede social que servirão para sua referência. Assim, ao frequentar um determinado consultório médico, outro psicológico, alguma atividade feita em grupo, dentre outros inúmeros exemplos, seu círculo passa a funcionar como uma pequena instituição, que passa a intervir ao redor do próprio sujeito, de acordo com a sua lógica de funcionamento.
O autor faz ainda uma ressalva extremamente pertinente para nossa discussão, no que concerne ao papel da equipe de saúde mental: a diferenciação entre o social e o terapêutico só faz sentido se tiver como ponto de partida a clínica. Tais pontos se confluem à medida que “o sujeito pode ser acolhido sem ser obrigado a fazer um tratamento. Esse tratamento é deixado como uma opção para o sujeito. Mas essa liberdade dada ao sujeito já tem efeitos terapêuticos” (Zenoni, 2000, p.29). No entanto, esta consideração não nos leva, de modo algum, a priorizar o que determinadas perspectivas teóricas vinculadas à saúde mental designam como o social, como se esta esfera excluísse a determinação psíquica que a teoria psicanalítica reconhece como a estruturação psicótica. Ao contrário, nos parece que é nos
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primórdios mesmo da relação com o Outro que se define a resposta paranoica à subjetivação da realidade, de modo que, do nosso ponto de vista teórico, ao mencionarmos o social estamos de fato visando a estruturação e seu decorrente modo de relação do indivíduo com aqueles que o cercam.
A importância de tratarmos o Outro que acompanha o paranoico relaciona-se, portanto, a uma certa adequação da nossa resposta à estrutura. Por isso propomos que o trabalho com paranoicos se baseie na constatação clínica da natureza da transferência desenvolvida nesses casos. Trata-se de localizar tais princípios como possibilidade de uma realização propícia para o acompanhamento desses sujeitos. O contexto de atendimento em equipe, por sua vez, não deixa de colocar, para os profissionais, aderências ao imaginário – o que existe como modo de identificação entre os próprios membros. Apesar de este registro compor qualquer grupo que se coloque para trabalhar com um mesmo ponto em comum, convém que ele seja tratado para uma melhor parceria com cada caso de paranoia.
Quando nos referimos, anteriormente, ao tratamento da palavra como modo de manejo, visando sobretudo à não colocação do analista em posição especular ao paciente, estávamos nos referindo também a esta necessidade de se colocar como um parceiro submetido ele mesmo ao pacto com o Outro, simbólico. Com isso nos resguardamos de incorporar alguém com vontade desenfreada de gozo. O laço possível com o analista, afinal, existe com a consideração destas particularidades da estrutura na paranoia. Se temos, por um lado, essa constatação como um ponto de referência para nossa própria prática, há, por outro, a dificuldade clínica essencial: referimo-nos ao essencial no tratamento, que é, de acordo com Goldberg (1996), “a elaboração de uma prática voltada para a clínica individual da psicose” (p.105), mesmo quando inserida em um contexto institucional. Esta discussão terá validade à medida que nos basearmos em seus princípios para pensarmos na particularidade de cada caso com o qual lidamos, seja em consultório ou em uma determinada instituição.
Enfatizamos aqui que, qualquer que seja o modo de atendimento de um paciente paranoico, a natureza do laço entre o profissional e o sujeito são o determinante para a manutenção do mesmo. A relação transferencial é o ponto crucial para uma adequada condução do tratamento enquanto o sujeito estabelece suas próprias condições para conviver com suas certezas; sem sofrer com isso, ou suportando-as, minimamente. Esta dificuldade está intrínseca à problemática que a loucura em si mesma coloca para a sociedade, à medida que suas produções nem sempre são recolhidas como uma resposta particular, tampouco são aceitas como um possível modo de endereçamento ligado ao esforço de estabelecer um vínculo.
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As possibilidades de estabilização passam, portanto, pela retificação do Outro, de modo que este se torne um lugar passível de oferecer um suporte para o sujeito. Quando tratamos, acima, da função que um significante isolado passa a ter após uma elaboração, nos referíamos à possibilidade de ancorar na linguagem um termo que represente o sujeito, precisamente naquilo que ele tem de mais singular. A verdade apresentada no delírio conduz a esta tentativa de articulação; de modo que, seja em qual contexto for de tratamento, trata-se de reconhecer este trabalho de elaboração quando um paciente o apresenta. Por isso Diogo (2008) afirmou que neste momento “há uma lógica de funcionamento; mas que o sujeito em questão ainda não encontrou um lugar significante que o coloque a certa distância em relação ao Outro, que pode ser encarnado pelo semelhante” (p.137). Essa constatação converge com o que nos apresentam também outros autores com experiência na prática em instituição.
Nesse sentido, Pitta (1996) nos lembra que o tratamento da loucura, como um todo, apresenta desafios de toda ordem: indagam os limites da teoria que estabelecemos, as dificuldades pessoais dos profissionais que mesmo assim se dispõem a tentar tratá-la, além das dificuldades práticas que exigem respostas contextualizadas. Ao referir-se à trajetória do tratamento psiquiátrico no Brasil, a autora menciona as instituições hospitalares – representantes de um modelo considerado atualmente como violação de direitos dos psicóticos – como aquelas que se baseiam em uma tentativa de esconder as manifestações psicóticas, por causa do incômodo que elas provocam na ordem social. O desafio que se coloca, segundo ela, para os novos modelos institucionais e para os profissionais, refere-se à permissão de uma “produção de subjetividade com o peso do desconcerto, da provisoriedade das teorias, do desenclausuramento de si próprio para acompanhar os caminhos do „outro‟” (p.166).
3.5.2. Para além do objetivo clínico
Os avanços obtidos na teoria psicanalítica a respeito da clínica da psicose são úteis para a concepção do tratamento também no contexto institucional, para além da possibilidade de aplicação clínica em consultório particular. O debate a respeito da possível inserção do psicótico na sociedade envolve não só o alcance de uma estabilização – tendo como parâmetro o acompanhamento formal e regular de cada caso para admiti-la – como também a abertura por parte da cultura com relação às saídas encontradas. A este respeito Lobosque (1997) sugere que a psicanálise seja uma das ferramentas utilizadas pelos trabalhadores da saúde mental, já que o importante é a atenção a esta singularidade, ao invés da proposta
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anterior de um tratamento maciço que teria como intuito tamponar as criações psicóticas. A autora se interroga, portanto, sobre “Qual o fora-dentro possível para o psicótico? Trata-se de uma difícil topologia, que interpela os trabalhadores de saúde mental” (p.45) – e, poderíamos acrescentar, interpela cada analista que acompanha também em análise um sujeito paranoico.
Concordamos com a autora quando ela destaca a proposição ética que nos move nesta prática, estejamos inseridos em uma instituição ou não. Pois nos guiamos, de fato, pelo real da estrutura em jogo, o que nos leva a admitir a um só tempo as dificuldades no manejo da transferência e ainda nossa responsabilidade enquanto clínicos. Lobosque (1997) conclui afinal que “interessam-nos, sobretudo, as diversas formas que o psicótico pode encontrar, sozinho ou com nossa ajuda, com nossos meios técnicos, com o respaldo da cultura, para o trajeto bizarro que lhe permita permanecer dentro, estando fora” (p.45).
Nestas saídas psicóticas há um tratamento do próprio sujeito sobre a linguagem e também um modo de tratar a pulsão. Em relação ao laço social, conforme destacado por Guerra (2007), o que irá influenciar sua constituição é justamente como esta solução se endereça à civilização, para além do profissional que acompanha o sujeito como uma das figuras de seu Outro. Ambas as autoras citadas concordam com a importância de se analisar uma construção desse tipo na função que ela adquire para cada caso, já que ela evidencia os recursos subjetivos de cada um deles e permite visualizar as possibilidades de estabilização que podem ocorrer, cada uma a seu modo.
É assim que nos guiamos para pensar na possibilidade de inserção no laço social para pacientes paranoicos, à medida que consideramos tal laço como a relação entre o sujeito e o Outro. Nesta relação está em jogo o uso que cada um faz da linguagem e também como o sujeito estabelece suas identificações com aqueles com quem se relaciona. Está fora de questão, na clínica psicanalítica, qualquer avaliação que diga respeito à qualidade ou número de trocas e interações sociais. O que importa, para pensar na estabilização como consequência da localização do sujeito em relação ao Outro, são os recursos que ele desenvolve, os significados que ele atribui às suas vivências, na medida mesma em que tal atribuição de sentido está envolvida diretamente com a construção do delírio.
Porém, se o delírio pode ser considerado como uma tentativa espontânea de elaboração da realidade do psicótico, vimos que ele não pode ser estimulado; convém que em cada situação o psicanalista esteja atento para os seus limites, tentando observar se ao seguir em uma determinada direção há o risco acentuado de passagem ao ato. Autores como Diogo (2008) defendem, sobre isso, que a preferência por um acompanhamento com a psicanálise
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deve ser feita justamente para tentar fazer este balizamento, a fim de limitar uma proliferação espontânea que gerasse tal risco.
Como conclusão do que tratamos, temos esclarecidos os princípios clínicos que regem a conduta do psicanalista em relação aos paranoicos, uma vez consideradas as particularidades da estrutura e a natureza da transferência. A prática da psicanálise, como algo que pressupõe uma submissão ao quadro da transferência que o paciente demonstra, revela a importância da análise do próprio analista. Ela requer uma declinação das preferências e atribuições pessoais sobre um determinado fato. Calligaris (1989) afirma, em relação aos pacientes psicóticos, que esta abertura subjetiva por parte do analista o permite considerar quando um caso não indica possibilidade de cura – esta enquanto um ideal acabado. Assim, ao aceitarmos a paranoia em análise, não significa que estaremos animados por uma causa final. De acordo com este autor, uma ambição quanto à cura por parte do analista poderia servir como, ao contrário de uma função terapêutica, uma injunção ao sujeito, guiada por uma resistência por parte do próprio analista quanto à aceitação de um acompanhamento sem qualquer garantia de efeitos de apaziguamento. Esta situação seria provocada pela postura do analista como semelhante a uma exigência de elaboração, apresentando os riscos que o tratamento por si mesmo traria ao paciente, tal como consideramos no segundo capítulo.
Nossa busca por tentar delimitar alguns pontos que contribuam para a reflexão sobre a estabilização na paranoia nos leva ainda a mais uma palavra sobre o trabalho de acompanhamento realizado por uma instituição de saúde mental. Como a posição do sujeito suposto saber – referência para a clínica da neurose – não é favorável para lidarmos com a paranoia, a posição que devemos assumir é a da destituição do saber. No consultório esta tarefa se restringe ao psicanalista; na instituição ela se mostra ainda mais facilitada pela constituição do trabalho em equipe, o trabalho feito por muitos (Zenoni, 2000), no qual a dispersão do saber é quase natural. Não que isto signifique que o trabalhador membro de uma equipe se exima da responsabilidade implicada em saber não saber, em deixar que o sujeito elabore suas questões a seu modo; mas a postura ética desta advertência se coaduna com a posição favorável assumida pelo Outro na estratégia de manejo da transferência na paranoia.
As considerações que fizemos no começo deste capítulo sobre a organização do imaginário através do advento do delírio oferecem como possibilidade para a estabilização aquela solução baseada na regulação do imaginário. O caso paradigmático de Schreber, que alcançou o ponto de estabilização ao assumir a emasculação, mostrou-nos que foi com este registro que o sujeito chegou à restauração da realidade, que havia se desestruturado no
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momento do surto. Esta localização nos é útil, para nos guiarmos na prática, porque fornece parâmetros para a evolução do delírio de um determinado paciente; são alguns indícios de como pode ocorrer esta reconstrução. Se a manutenção da transferência é possível, apesar dos riscos do declínio a uma posição persecutória ou erotomaníaca, temos circunscritos os remanejamentos do método psicanalítico de modo a termos algum êxito nos casos de paranoia, no que se refere à compatibilização do método com o estatuto do Outro em questão.
O delírio, com sua base imaginária, acaba servindo como uma rede que articula os três registros, incluindo nesta base o simbólico e o real. Destacamos em nosso percurso, em relação a esta organização, que o principal modo de manejo é a atenuação da convicção psicótica: é necessário que o analista saiba o lugar que ocupa na estrutura da transferência paranoica, para saber não saber demais sobre o sujeito; e saber como dizer, como fazer suas colocações, com o intuito de fazer furo no saber total apresentado pelo próprio sujeito. É neste aspecto que Sciara (2005) localiza o que é praticável no tratamento psicanalítico da paranoia.
Para o autor o tratamento em questão faz uma dupla exigência ao analista. Por um lado há a posição diante do saber, do qual, ao se esquivar, desempenharia um importante papel. Por outro, há a necessidade de parecer como um semelhante, no sentido de se colocar como um parceiro, um testemunho do trabalho do sujeito – posição apresentada com detalhes no capítulo anterior. O tratamento levaria, portanto, a uma construção de saber que pudesse apoiar uma nova forma de gozo, que confortaria o sujeito de algum modo.
Resta dizer que a direção do tratamento psicanalítico da paranoia se baseia na possibilidade de se alcançar uma forma de estrutura sustentável para o sujeito e para o seu círculo de convívio, no qual os resultados podem ser averiguados caso a caso.
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Considerações finais
Apesar dos princípios gerais esboçados nessa dissertação acerca do manejo da transferência na clínica da paranoia, sabemos que na condução de um determinado caso o que importa é sua particularidade, a qual deverá ser sempre priorizada. Se a teorização nos dá parâmetros, somente no contexto individual poderemos adquirir mais segurança para o manejo, diante do que cada paciente nos apresenta ao longo de um tratamento. Pois a concepção do tratamento do Outro, no que concerne à alteridade do sujeito, supõe a necessidade de uma intervenção na contingência que se apresenta em uma dada situação de convivência; logo, de uma intervenção caso a caso.
Podemos admitir que a foraclusão do Nome-do-Pai não implica, necessariamente, em um desencadeamento psicótico, pois o sujeito pode funcionar utilizando outros recursos, como o de uma solução imaginária; ou uma identificação pautada sobre um duplo especular. Sabemos que essas soluções, que se situam no eixo imaginário do esquema L, evidenciam fenômenos de transitivismo, nos quais encontramos com frequência aspectos agressivos e erotomaníacos.
Aprendemos com Schreber que a construção da mulher de Deus incidiu sobre o buraco no simbólico correspondente à ausência do Nome-do-Pai. Sua solução assintótica, de um dia gerar uma nova raça de homens a partir da fecundação pelos raios divinos, correspondeu à solução encontrada pelo sujeito, que passava pela emasculação. Esta seria a possibilidade de conciliar os três registros – real, imaginário e simbólico – apesar de sofrer a perseguição divina.
No caso de Cláudia, parece que a elaboração delirante concernente à mulher perseguidora favoreceu alguma separação entre o sujeito e o Outro – este mostrando sua face real devido à exigência de gozo – no sentido de servir como material a ser trabalhado no atendimento psicológico e, consequentemente, permitir alguma retificação desse Outro. Apesar de ser uma relação problemática, a delimitação e circunscrição quanto ao caráter da mulher não deixou de ser a base sobre a qual pôde ser trabalhado o modo de suportar o fato de ser alvo de interesse da mesma.
Um fator importante quanto à estabilização da paciente se relacionou ao uso da medicação concomitante à escuta prestada. O atendimento, contextualizado em um ambulatório de psiquiatria, beneficiou-se também do efeito da ingestão de medicamentos - que não é um efeito qualquer. Mesmo que servissem para a paciente como uma espécie de calmante para enfrentar os incômodos gerados pelo Outro.
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Além disso, a instituição onde acontecia o atendimento representava uma equipe – consistente em no mínimo uma referência médica psiquiátrica e outra psicológica, além da presença implícita de outros atendentes-estagiários – que provavelmente serviu como uma pluralização do Outro, conforme elaboração que fizemos seguindo os passos de Zenoni (2007).
De todo modo, a possibilidade de estabilização para o caso, naquele contexto, nos remete de volta ao problema na psicose de se encontrar uma solução mais ou menos transitória, mas funcional para o sujeito, permitindo um convívio social mínimo. Neste ponto nossa dissertação se conclui, sem extinguir o problema que lhe foi colocado no começo.
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