Considerações sobre o silêncio na clínica psicanalítica:

Considerações sobre o silêncio na clínica
psicanalítica: dos primórdios aos dias atuais

Camila Braz Padrão*

Resumo : Este trabalho tem como objetivo discutir o desenvolvimento da noção de silêncio da
clínica psicanalítica clássica à contemporânea. A partir de uma concepção geral sobre o silêncio,
chegaremos à concepção freudiana do silêncio como efeito da resistência. Promoveremos um
desdobramento desta noção a partir de Lacan e Winnicott, ao propormos o silêncio como uma
possibilidade de abertura do inconsciente e de trabalho psíquico. Enfim, discutiremos os aspectos
da cultura contemporânea e sua relação com o silêncio na clínica atual, levando em conta sua
especificidade.

Palavras-chave: Silêncio, Freud, Lacan, Winnicott, resistência, elaboração, cultura contemporânea,
clínica psicanalítica.
Abstract: This paper has the objective to discuss the development of silence notion from the classic
psychoanalytic clinic to contemporaneity. Departing from a general conception about silence, we
reach a freudian conception of silence as an effect of resistance. We intend to promote a twist of this
notion from Lacan and Winnicott, by proposing the silence as a possibility of unconscious opening
and psychic work. Finally, we discuss the aspects of the contemporary culture and its relations about
silence in actual clinic, taking in consideration its specificity.
Keywords: Silence, Freud, Lacan, Winnicott, resistance, elaboration, contemporary culture, psychoanalytic
clinic.
DIMENSÕES DO SILÊNCIO
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Introdução
Antes de constituir objeto de interesse da psicanálise, o silêncio é um elemento
da comunicação que se faz presente em qualquer ato comunicativo humano.
Assim, em nosso entendimento, a discussão que pretendemos realizar
sobre o silencio na clínica psicanalítica deve, necessariamente, ser precedida
de uma breve reflexão acerca deste conceito. Iniciaremos nosso trabalho, portanto,
a partir de uma concepção mais geral sobre o silêncio, tal como é definido
pelas teorias da comunicação.
Após esta breve conceituação, nos deteremos à ascensão do silêncio enquanto
ponto de interesse freudiano por sua incômoda insistência na clínica
psicanalítica, comportando, neste momento, um aspecto paradoxal, na medida
em que pode se apresentar seja como fenômeno de resistência, seja como
abertura do inconsciente. Analisaremos certas contribuições de Lacan, passagem
que se faz inevitável na medida em que definiu o próprio Inconsciente
como uma linguagem, o que nos remete diretamente a novas manifestações
por meio dos quais tal instância emerge na clínica psicanalítica.
Discorreremos, então, sobre algumas considerações de Winnicott em seu
trabalho sobre a capacidade de estar só e o silenciar, por acreditarmos que este
autor vem promover uma importante positivação da noção de silêncio. Desta
forma, buscaremos dar conta de um posicionamento da clínica psicanalítica
clássica frente a tal questão, para em seguida apresentar uma discussão acerca
do silêncio na clinica psicanalítica atual.
Nesta perspectiva, falaremos brevemente da inserção do silêncio na cultura
contemporânea, onde serão destacados certos aspectos que nos interessam:
a questão da temporalidade e da relação com a alteridade, que parecem estar
intimamente relacionadas com uma dimensão de falta, bastante evidente na
clínica das chamadas novas subjetividades.
Concluiremos então, analisando a relevância do desenvolvimento da noção
de silêncio ao longo da teoria e clínica psicanalíticas, o que certamente nos
convoca a pensar uma nova clínica, uma nova posição do analista e uma nova
relação transferencial, enfatizando assim, a importância de tal conceito enquanto
analisador de nossa própria prática.
Considerações gerais sobre a noção de silêncio
A própria concepção de silêncio comporta em si um aspecto dicotômico,
já que se funda na dicotomia entre presença e ausência de sonoridade, sem que
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uma exista sem a outra. Assim como a dicotomia clássica corpo/alma, a dicotomia
som/silêncio se define pela divisão lógica de uma noção em dois outros
conceitos, contrários entre si, que lhe esgotam a extensão. É a preexistência de
um que engendra a existência de seu oposto, ou seja: sem som não há silêncio,
e sem o silêncio não seria possível conceber a sonoridade.
Eduardo Cañizal (2005), pesquisador das manifestações não-verbais da
comunicação, nos traz importantes contribuições num artigo sobre a incomunicação,
onde afirma, por exemplo, que “o que possibilita ou impossibilita a
comunicação é, em ultima instância, o silêncio.” (2005, p. 18) Contudo, é comum
a ideia de que a comunicação se dá apenas através de signos, palavras e
imagens. As teorias da comunicação certamente privilegiam situações em que
os atos comunicativos são mediados pelo código verbal. Segundo o autor, a
própria invenção da escrita e da fonologia consagrou um método de análise
que acabou contribuindo para a marginalização do papel desempenhado pelo
silêncio na comunicação.
Para este autor, é preciso reconhecer que, em qualquer prática de interlocução,
o silêncio se espalha sobre os atos sociais ditos comunicativos, constituindo
assim, um elemento tão importante quanto qualquer dos outros códigos
de que nos servimos para falar. “Mesmo nos signos verbais, considerados como
entidades eminentemente sonoras, as configurações que eles desenham nas
paisagens de qualquer tipo de conversa, se revestem de cargas de silêncio contundentes...”
(Cañizal, 2005, p. 17)
Em variados campos de saber onde se estuda a comunicação, o fenômeno
do silêncio está presente e se apresenta como objeto de estudo. Além do aspecto
que já enfatizamos, outra razão para tal interesse se baseia no fato de que o
silêncio está presente nos diferentes contextos socioculturais, o que lhe confere
um caráter universal, visto que “também em outras culturas (...) a abstenção
do uso da palavra institui formas paradigmáticas cuja utilização configura algumas
das propriedades mais significativas de um ato de comunicação.” (Cañizal,
2005, p. 14)
Tais idéias nos levam a pensar o silêncio como um meio de comunicação,
e não como um modo de incomunicação, como se poderia considerar a partir
de um olhar superficial. Esta concepção promove uma relevante abertura a
respeito do silêncio como um comunicador, e o faz para além de um ponto de
vista fonético ou lingüístico.
Ao realizarmos tal afirmação estamos, certamente, nos referindo a um
ponto de vista psicanalítico, pois na medida em que consideramos que o silêncio
comunica, ele também o faz na experiência clínica. Ao lançarmos um olhar
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mais cuidadoso sobre o que este pode comunicar na clínica psicanalítica, chegamos
ao conceito freudiano de resistência e, paradoxalmente, a idéia de abertura
do inconsciente, representada pelos conceitos de elaboração, construção e
simbolização, como veremos a seguir.
Freud e a fala, Lacan e a linguagem
Com o que dissemos anteriormente, é de fácil compreensão que, antes de
nos atermos ao silêncio propriamente dito, se faça imprescindível analisarmos
a importância da fala na psicanálise freudiana. Sabemos que desde os primórdios
da psicanálise, Freud (1893) já havia constatado o poder curativo da fala
e posteriormente fez dela instrumento privilegiado do tratamento dos sintomas
neuróticos. A especificidade do método psicanalítico a este respeito, em
detrimento de outras psicoterapias, reside no fato de que estas se utilizam da
fala em sua relação com a consciência, enquanto a psicanálise pontua uma relação
fundamental entre fala e inconsciente. Isto significa dizer que, ao falarmos,
dizemos mais do que pensamos dizer, denunciando a existência de
conteúdos latentes sob os conteúdos manifestos do falar.
Então, para Freud, o inconsciente se manifestaria tanto nos sonhos e sintomas
neuróticos como na fala, o que revela uma articulação entre inconsciente
e linguagem. Fontenele (2008) ressalta que é este o aspecto privilegiado por
Lacan em sua releitura da obra freudiana: a idéia de que o inconsciente é uma
linguagem, não no sentido de constituir um baú de símbolos, mas uma instância
que produz efeitos a partir da linguagem.
Desta maneira, o acesso do homem ao simbólico se realiza através da linguagem,
a partir de uma falha constitutiva que separa o homem do mundo. É
nesta falha que incide a linguagem, cuja atuação se dá como uma ponte que
busca superar esta distância. Neste sentido, a própria concepção da realidade
inconsciente resulta da inserção do homem na cultura e a linguagem entra em
cena para tentar dar conta de um esvaziamento de sentido, ou seja, daquilo que
o homem não pode compreender, assimilar. Esta dificuldade de assimilação do
mundo pelo homem vem do limite que constitui a própria linguagem, insuficiente
para a apreensão do mundo por um sujeito do inconsciente. Assim, por
mais que o inconsciente procure se valer da linguagem na busca de sentido,
sempre haverá um resto, um sem sentido, algo da ordem do irrepresentável, um
não dito.
Através da experiência de sentido, o homem inaugura, assim, a aquisição
da linguagem como possibilidade desta experiência de nomear e apreender o
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mundo, experiência que ao mesmo tempo em que fundamenta o trabalho analítico
pela construção significante a partir de um trabalho de nomeação, se
mostra insuficiente, na medida em que deixa um resto inominável, um algo por
dizer, pois faltam palavras. A este respeito Fontenele (2008) enfatiza o termo
lacaniano alíngua, que preserva e transmite uma verdade que não é dita, termo
que podemos aproximar à concepção freudiana de umbigo do sonho, que denuncia
um núcleo, uma verdade obscura que não se pode conhecer.
A entrada do elemento imprevisível, como o ato falho, é prova de que o
falar está a todo instante ameaçado por aquilo que está presente em estado latente,
isto é, “um significado recalcado (...) se imiscui no dizer do sujeito e
ilumina seu desejo, interrompendo o aparente domínio que teria sobre si mesmo,
abalando suas intenções comunicativas, revelando o que não pode ser revelado”
(Felipeto; Calil, 2008, p. 26)
Vemos assim que de um modo ou de outro, o inconsciente nos fala alguma
coisa, mesmo através de uma fala tropeçada e truncada a despeito das intenções
do sujeito. E é por esta fala que a psicanálise se interessa: a fala do
sujeito do inconsciente, um sujeito clivado; a fala que evidencia uma dimensão
de conflito. Esta dinâmica nos revela que enquanto o mecanismo da resistência
atua, mantendo o sujeito em silêncio, buscando esconder o desejo que não
pode aparecer por ser desprazeroso, o inconsciente quer falar e se apresenta
quando a fala do sujeito é capaz de desvelar uma outra coisa: o equívoco, a
ruptura, um aparente sem sentido.
Assim como a fala parece resistir - a partir de mecanismos como o deslocamento
e a condensação - o silêncio na clinica psicanalítica parecia para Freud,
uma manifestação deste mesmo mecanismo de resistência, marcado pelo esquecimento,
pela ideia de renunciar as palavras ou por um não ter o que dizer. Cañizal
(2005) nos diz que o silêncio nos revela sentidos viscerais, pois o que
verdadeiramente importa nos discursos, nunca figura neles. Há, portanto, uma
ausência presente no silêncio, e por trás dele “sempre se implícita uma fala, o que
equivale a admitir que por trás de um enunciado oral se escondem “frases do
silêncio” (2005, p. 15). Deste modo, quando falamos baboseiras em nossas análises,
podemos sim denunciar um conteúdo latente, mas também o fazemos se
nos mantemos em silêncio, um silêncio que precisa ser escutado pelo analista,
pois também nos conta uma história: ao mesmo tempo em que se apresenta
como resistência, paradoxalmente, o silêncio denuncia territórios nos quais evitamos
pisar e promove assim, uma abertura para a emergência do inconsciente.
Neste momento, a interpretação do analista pode contribuir para um se
dar conta, para uma tentativa de se oferecer um sentido para este não dito,
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inassimilável. O próprio trabalho de construção empreendido pelo par analista-
analisando deve se valer dos silêncios, não apenas como denunciadores,
mas como abertura para o trabalho psíquico por meio de elaboração e produção
de sentidos. O analisando só pode assimilar uma interpretação na medida
em que vive um momento de silêncio para escutá-la e para escutar a si mesmo,
e neste escutar se implicita um trabalho de simbolização que, portanto, está
para além de uma simples percepção sonora.
Pensar o silêncio desta maneira contribui para que nos livremos de um
negativismo que parece assombrá-lo na prática clínica, para que possamos assim,
nos valer dele e positivá-lo, trabalhando analiticamente a partir de seu
aparecimento de modo a diluir nossa própria resistência a momentos clínicos
silenciosos. Buscando refletir sobre esta positivação do silêncio na clínica psicanalítica,
passaremos agora para um breve estudo da obra de Winnicott, autor
que nos traz uma interessante contribuição a este respeito.
Winnicott e a capacidade de estar só: um olhar positivo sobre o
silêncio
A capacidade de um indivíduo de estar só é, para Winnicott ([1958]1983),
um dos sinais mais importantes do amadurecimento do desenvolvimento
emocional e clinicamente pode se representar por uma fase de silêncio ou uma
sessão silenciosa. Tal capacidade é considerada pelo autor como uma conquista
para o paciente e não uma resistência como inicialmente pensava a psicanálise
freudiana. Segundo esta consideração, podemos observar uma positivação
do estar só, até então visto com maus olhos por diversos campos de saber, que
geralmente estabelecem uma aproximação entre o estar só e o isolamento social,
a solidão e a sensação de não-pertencimento e de inadequação; e pela
própria psicanálise, como já dissemos, que o considerava basicamente como
um sinal de resistência a ser interpretado e combatido.
Assim, o autor define o estar só como uma capacidade a ser desenvolvida
pelo indivíduo o partir do ambiente que o cerca ao longo de seu desenvolvimento
emocional. Esta capacidade se formaria a partir de um momento anterior
às relações triádicas próprias do Complexo de Édipo, num estágio mais
precoce do desenvolvimento emocional infantil, marcado pela relação diádica
entre a criança e sua mãe. Pode-se dizer que o momento desta relação é
quase anterior ao narcisismo, na medida em que se passa quando há apenas
um grau mínimo de integração e unidade, ou seja, num instante em que o
nível de maturidade egóica é apenas presumido. Assim, o salto para uma conCONSIDERAÇÕES
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solidada integração e unidade narcísica só pode se dar de acordo com o que
se experimentou em termos desta relação diádica. Mas de que modo esta relação
da criança com a mãe define o desenvolvimento da capacidade de estar
só no indivíduo?
Pressupõe-se aqui a necessidade de um tipo muito especial de relação: a
experiência de ficar só na presença de um outro, que neste momento estamos
chamando de mãe, ainda que representada por um objeto ou por uma atmosfera
geral do ambiente que cerca a criança. Neste sentido, esta afirmativa torna
evidente que a base de tal capacidade constitui em si um paradoxo: trata-se de
um estar só na presença de alguém. Winnicott aqui não se refere apenas a uma
presença física. A presença da mãe – aqui representante do Outro – se configura
como uma presença marcada por uma disponibilidade interna, por uma
preocupação contundente em relação à criança. Sobre este aspecto nos fala o
autor de uma mãe preocupada e “orientada para as necessidades do ego infantil
através de sua identificação com a própria criança.” (Winnicott, 1983, p. 35)
Neste sentido, o que importa nesta dinâmica é a relação entre a criança e
a mãe que está confiantemente presente e mesmo que ambos estejam sozinhos
– a mãe e o bebê – a presença de um é de fundamental importância para o
outro. Trata-se de um estar só psiquicamente, o que podemos referir a um não
ser invadido por um ambiente demandante, estimulante, que faz exigências.
“Maturidade e capacidade de estar só significam que o indivíduo teve oportunidade
através de maternidade suficientemente boa de construir uma crença
num ambiente benigno.” (Winnicott, 1983, p. 34)
É através deste ambiente suficientemente bom que o indivíduo pode alcançar
certa posição: essencialmente uma posição de confiança no ambiente.
Confia nele porque sabe que ele não lhe faltará, que pode contar com ele e,
assim, não se sente desamparado: “a imaturidade do ego é naturalmente compensada
pelo apoio do ego da mãe. (...) O indivíduo introjeta o ego auxiliar da
mãe e dessa maneira se torna capaz de ficar só sem apoio freqüente da mãe ou
de um símbolo da mãe.” (Winnicott, 1983, p. 34)
Assim, o autor afirma que a capacidade de estar só constitui um fenômeno
altamente sofisticado, que depende inicialmente da existência de um ambiente
suficientemente bom no plano do real, que por sua vez, pode ser internalizado
como um objeto bom na realidade psíquica do indivíduo. “Há sempre alguém
presente, alguém que é (...) equivalente, inconscientemente, a mãe, (...) na ocasião
interessada em mais nada que não fosse seu cuidado” (Winnicott, 1983, p.
37). Presença essa que, ao longo do desenvolvimento emocional, vai se constituindo
como um objeto interno.
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É nesta relação com o objeto interno que pode se realizar a capacidade do
indivíduo de confiar e descansar temporariamente mesmo na ausência de objetos
externos: “É somente quando só (...) que a criança pode descobrir sua
vida pessoal própria” e tornar-se “capaz de fazer o equivalente ao que no adulto
chamamos relaxar.” (Winnicott, 1983, p. 35). Também somente assim poderá
se dar o desenvolvimento da capacidade de se tornar não-integrado, de
devanear e de sentir-se real, o que de acordo com essa experiência pode surgir
na vida ulterior do sujeito em termos de gesto espontâneo ou de falso self.
O próprio autor destaca que ficar em silêncio por alguns instantes na presença
do analista, pode ter sido para o sujeito sua primeira experiência de ficar
realmente só. Tal afirmação nos parece verdadeira e universal em qualquer
contexto cultural e em qualquer época, na medida em que possui um caráter
subjetivo subjacente ao próprio desenvolvimento emocional humano. Todavia,
o estar só e o estar em silêncio indubitavelmente assumem diferenças significativas
quando circunscritos na contemporaneidade em comparação à sua
aparição na clínica freudiana do século XIX.
Para compreender no que substancialmente se diferem esses silêncios, a
saber – o silêncio como resistência da época freudiana e o silêncio da clínica
atual –, é preciso analisar nosso contexto atual, o que podemos realizar a partir
da simples observação de fatos cotidianos que nos atravessam e nos interpelam,
e certas conjecturas que, por conseguinte, somos impelidos a formular
quase naturalmente, se nos entregarmos ao livre fluxo das associações.
O (não) lugar do silêncio na cultura contemporânea
É notório, mesmo para um observador consideravelmente ingênuo, que
em nossa cultura, sons, barulhos e ruídos integram a cena contemporânea
como protagonistas, enquanto ao silêncio resta apenas um pequeno espaço
como mero figurante. No teatro da vida queremos ouvir tudo e qualquer coisa
que não seja o silêncio ensurdecedor que nos pesa aos ouvidos. Aonde vamos,
carregamos conosco mais barulho do que pensamento, reflexão. E gritamos
sem que nós mesmos possamos nos ouvir: “Tudo, qualquer coisa! Qualquer
saída para o silêncio, e para o que este carrega em si!” Pode ser droga, bebida,
amigo chato, latido de cachorro, buzina de carro, Zorra Total. Vamos sentir reverberar
no corpo e nos ouvidos o insuportável sob a forma de ruídos suportáveis.
Sejamos solidários! Vamos ligar o som no maior volume e abrir a mala do
carro para que todos compartilhem nosso momento musical samba funk groove
metal e lhes proporcionar que, assim como nós, estejam livres de todo o mal!
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Mas o que está implicado neste insuportável que o silêncio representa
para nós na atualidade? Muitas articulações poderiam porvir a partir de tal
indagação, contudo nos ateremos a certos aspectos que nos parecem promissores
em nossa busca por uma melhor compreensão do fenômeno do silêncio
na cultura contemporânea. Neste sentido, destacaremos inicialmente a temporalidade
própria do contemporâneo: o caráter efêmero, imediato, descartável e
reciclável do nosso tempo. Tempo? Tempo parece ser tudo que não temos.
Correndo contra o relógio tentamos dar conta de uma série infindável de
compromissos que parecemos não ter escolhido, que apenas se impõem a nós
numa tentativa sem sentido de “se encaixar na prateleira” das inúmeras exigências
de performance que caracterizam uma sociedade do espetáculo. E entre trabalho,
filhos, academia, trânsito, mercados e bancos, não há tempo a perder e
qualquer momento de espera nos parece perda de tempo. Mas esperar em silêncio
é, certamente, pior que apenas esperar. Então, esperamos o ônibus com nosso
MP3 player, esperamos a volta da novela com as baboseiras dos anúncios, esperamos
a fila do banco cantando. O interminável jantar só pode ser suportado
com a TV ligada, mesmo que não a olhemos, pois o que nos serve é o barulho.
Pelo insuportável que o esperar comporta para nós, sujeitos contemporâneos,
o fazemos sempre na companhia de algum recurso sonoro que preencha
o não menos insuportável silêncio desses momentos. Vemos assim a forma
peculiar que assume o silêncio e, dicotomicamente, sua ausência nos atos comunicativos
dos contextos globalizados, com os atropelos da velocidade avassaladora
dos meios de comunicação invasores de nosso cotidiano, própria de
nosso tempo e desses contextos.
Em segundo lugar, gostaríamos de destacar a dimensão de alteridade e sua
falta de lugar na cultura contemporânea. Sobre tal aspecto, Birman (2001) nos
diz que vivemos hoje uma cultura do autocentramento, marcada por um esvaziamento
de si e do Outro, de um não espaço para a alteridade, para o reconhecimento
do Outro. O que há na cultura contemporânea é a extração do gozo, o
que Melman (2003) retrata ao afirmar que “passamos de uma cultura fundada
no recalque dos desejos e, portanto, cultura da neurose, a uma outra que recomenda
a livre expressão e promove a perversão” (Melman, 2003, p. 15), “uma
economia organizada pela exibição do gozo” (Melman, 2003, p. 16). Para o
autor, funda-se aí uma nova economia psíquica, marcada pelo não reconhecimento
da alteridade, mas pela busca desenfreada de prazer do próprio eu.
A cultura do individualismo nos faz não pensar no outro, não considerar
a alteridade e mais ainda, não pensar em nada. Promove uma alienação em
relação ao outro e nós mesmos, comportando em si a experiência de um vazio
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radical. Assim, uma dimensão de falta parece estar presente em ambos os aspectos
que buscamos destacar - temporalidade e alteridade - dimensão esta
que melhor analisaremos adiante.
O silêncio na clinica atual
Falamos anteriormente da dificuldade que temos em conviver com momentos
silenciosos nos dias atuais, no entanto, em nossa experiência clínica,
temos encontrado sujeitos extremamente calados e apáticos, o que nos parece
extremamente contraditório e, portanto, nos convoca a uma reflexão.
Este silenciamento das vozes que se abate sobre os analisandos, nos parece
correlato a um emudecimento do imaginário psíquico, a uma pobreza fantasística,
como ressalta Kupermann (2003). Tanto o silêncio quanto a apatia e a
desafetação presentes em seus discursos se coadunam ao vazio que experimentam
em suas vidas, como sujeitos desprovidos de um potencial desejante.
Cabe nos perguntarmos neste momento: onde está o desejo? De que maneira
se instaurou, nos sujeitos contemporâneos, essa lógica da falta, vivenciada pela
sensação de um vazio radical?
A este respeito, Recalcati (2004) nos fala que o discurso do capitalismo e o
discurso da ciência realizam uma expulsão-anulação do sujeito do inconsciente,
afirmando que, na época de Freud, o inconsciente era o inaudito, o escandaloso,
mas atualmente, parece confinado aos territórios da superstição.
Enquanto “a histeria freudiana celebrava a verdade do sujeito do inconsciente,
os novos sintomas negam cinicamente sua existência” (Recalcati, 2004, p. 2).
Assim, para o autor, a clínica dos chamados novos sintomas se manifesta como
uma clínica além do recalque, mais caracterizada pela passagem ao ato, pela
desagregação do caráter simbólico do sintoma e pelo retorno do gozo no real.
Ao afirmar uma anulação do sujeito do inconsciente, o autor deixa claro
que a demanda contemporânea é desenganchada da “dialética do desejo”, e neste
sentido, se configura como uma demanda imaginária do objeto, como um
estado de contínua solicitação de renovar o objeto a consumir e descartá-lo
quando não está mais na moda, fundando assim uma nova ética do consumo.
Assim, a demanda é imaginária na medida em que é eletrizada pelo objeto
de gozo, um objeto-fetiche que viria a preencher uma pseudofalta. Esta demanda
produz um vazio do objeto, que este objeto-fetiche é capaz, ilusoriamente,
de preencher. “É, em outros termos, (...) o objeto que mostra
paradoxalmente isto que falta ao sujeito e não a falta do sujeito que o guia em
direção ao objeto, segundo a metonímia do desejo” (Recalcati, 2004, p. 8).
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Para o autor, a demanda contemporânea é, então, esvaziada de desejo e se
configura como demanda do objeto impossível, efêmero. Tal dimensão da demanda
contemporânea alude, portanto, a um afastamento radical da simbolização
do objeto perdido e promove
(...)um fechamento autístico do sujeito, uma refutação do Outro,
(...) uma redução do laço social à ideologia narcisista da
homogeneidade, “monossintomática”, que prescreve o estatuto
isolado, monádico, fechado sobre si mesmo, “mono”, do sujeito
contemporâneo. (Recalcati, 2004, p. 9)
Na época do Outro que não existe, as subjetividades são marcadas por
uma ausência da dialética do desejo e uma crença num objeto impossível, permanecendo
assim num estado radical de desamparo. Essas subjetividades
constituem a clínica psicanalítica contemporânea, uma clínica do acting-out,
da passagem ao ato, da convocação do corpo em detrimento do trabalho psíquico
da simbolização.
Consideradas borderline ou estados-limite, as patologias atuais acabam
por eleger saídas precárias para a dor que não se inscreve e, portanto, não se
inserem na lógica do recalque, da fantasia e da simbolização. Quando dizer
não é possível, o que resta é a possibilidade de regressão a meios de comunicação
arcaicos, próprios de uma época anterior à linguagem verbal, como o silêncio,
o choro, o grito, o encolher-se, o movimentar-se desmedidamente e
com violência. Tais saídas precárias devem ser acolhidas, pois foram as saídas
possíveis para estes sujeitos e este acolhimento parece residir nas possibilidades
de escuta analítica que revestem a relação transferencial.
Assim, o silêncio do sujeito contemporâneo não parece ser um silêncio de
resistência, pois não se insere na lógica do recalque; nem tampouco um silêncio
que vem promover um trabalho psíquico de elaboração. Trata-se muito
mais de uma ausência de simbolização, por seu caráter impossível para as novas
subjetividades, o que, a nosso ver, parece inaugurar um silêncio diferente,
um terceiro silêncio.
Considerações finais
Procuramos aqui, antes de tudo, defender a idéia de que o silencio é fundante
e que sem silêncio não há sentido, o que nos convoca a acolher os
momentos silenciosos de nossos analisandos em nossa prática clínica, moDIMENSÕES
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mentos estes que certamente produzem efeitos inevitáveis na dinâmica da
transferência.
Acolher os silêncios dos pacientes significa, acima de tudo, lhes oferecer
uma escuta verdadeiramente analítica: aquela que está para além do ouvir as
palavras, que se define pelo não dito, pela comunicação entre o inconsciente
do analista e do analisando. Segundo Recalcati (2004), a oferta desta escuta
analítica inclui o analista no próprio conceito de inconsciente enquanto constitui
dele, o endereçamento.
Frente ao inequívoco limite da interpretação analítica segundo o princípio
da neutralidade, a nova clínica deve investir o estatuto da palavra que aparece
esvaziada de sentido nos dias de hoje. Isto significa falar com, “escutar o grito
silencioso de socorro dos analisandos anestesiados através do cultivo de uma
outra sensibilidade clínica e do estabelecimento de um “campo de afetação”
(Kupermann, 2003, p. 3) no encontro analítico, “o que sugere uma disponibilidade
para escutar a multiplicidade de ritmos e de vozes que compõem a poética
contemporânea”. (Kupermann, 2003, p. 4)
Concluímos então, propondo um novo posicionamento da psicanálise
frente ao silêncio na clínica: um posicionamento que vá de encontro à interpretação
vacilante do mesmo como efeito da resistência; que leve em consideração
a pregnância de aspectos da cultura contemporânea que inevitavelmente
se impõem à tessitura das novas subjetividades.
Assumir esta posição, em nosso entendimento, promove uma análise da
implicação do silêncio na experiência clínica, o que instaura uma valorização
particular da relação terapêutica, que requer uma renovação a partir do investimento
no reconhecimento da alteridade, do estabelecimento de um novo
laço social e da possibilidade de poder encarnar, como analista, um novo Outro;
posição que nos convoca para além do campo transferencial, na medida
em que nos implica no devir ético da psicanálise de promover um resgate do
sujeito do inconsciente na contemporaneidade.
Tramitação: Camila Braz Padrão
Recebido em 20/07/2009 Rua General Tasso Fragoso, 24/103
Aprovado em 28/08/2009 Lagoa - Rio de Janeiro - RJ
22470-170
fone: (21) 9343-2930
e-mail: camilapadrao@globo.com
CONSIDERAÇÕES SOBRE O SILÊNcIO NA cLÍNIcA PSIcANALÍTIcA: DOS PRIMÓRDIOS AOS DIAS ATUAIS
Cad. Psicanál.-CPRJ, Rio de Janeiro, ano 31, n. 22, p. 91-103, 2009 103
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