O Poder do Divã
"FREUD NÃO
EXPLICA NADA. A QUESTÃO NÃO É EXPLICAR, MAS COMPREENDER"
"Entre inúmeras
opções de terapia, a psicanálise segue mais viva do que nunca. Nesta
entrevista, realizada pela revista Joyce Pascowitch, com a jornalista Adriana Nazarian,
o psiquiatra e psicanalista Plinio Montagna (SBPSP) (IPA), derruba
mitos e responde como o método criado por Sigmund Freud no século passado
resolve dilemas do mundo de hoje".
Terapia, medicação, ioga, massagem, Rivotril... a vida não anda fácil e, a fim de aliviar as angústias contemporâneas em velocidade máxima, soluções ora criativas, ora anestésicas pipocam sem parar. E eis que, na contramão de uma sociedade cada vez mais dependente de remédios, a psicanálise - método inaugurado por Sigmund Freud no início do século passado - resiste bravamente, apesar de usar como ferramenta exclusivamente a velha e boa palavra: o paciente deita no divã e fala, fala e fala. Mas esqueça a ideia de um papo-cabeça sofrido que remói o passado e que parece não ter fim. De acordo com o psiquiatra e psicanalista Plinio Montagna, o processo evoluiu e pode tratar, sim, mais rápido do que se imagina, os dilemas atuais.
Presidente da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) (sociedade coordenada pela IPA -
Associação Psicanalítica Internacional). Montagna mantém a admiração
pelo pai da psicanálise, mas passa longe de considerar seus ditames verdades
irretocáveis. “Temos mais perspectivas e instrumentos do que na época de
Freud”, atesta. Psiquiatra formado na Universidade de São Paulo (USP), foi
depois de sua primeira (e, “surpreendente”) sessão de análise em Londres - onde
cursava a pós-graduação - que ele encontrou sua vocação. Entre o consultório,
aulas e viagens por conta de sua participação na Associação Psicanalítica
Internacional, quando não está exercendo o método psicanalítico - que, diz ele,
ajuda a “oxigenar a mente” -, costuma ler, caminhar ou seguir para Ubatuba, no
litoral de São Paulo, com a família - a mulher, também psicanalista, os três
filhos e dois netos. Cinéfilo assumido, elege Peter Greenaway (diretor de O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e O
Amante) como seu cineasta preferido e faz questão de manter-se em dia com a
agenda cultural. Nesta entrevista, Plinio Montagna explica por que a
psicanálise está longe de ser coisa do passado. Ao contrário: continua firme (e
em constante revisão) como uma ferramenta eficaz para compreender os dilemas
humanos. Mesmo que Freud não explique mais tudo.
Adriana Nazarian: Como um método do
início do século passado se aplica à vida atual?
Plinio Montagna: A psicanálise é um
processo que busca a singularidade de cada um, o “quem é você”, e ajuda o
indivíduo a construir o seu universo da imaginação, das fantasias e do lúdico,
que falta em algumas situações. Como o mundo das artes, é uma forma de fazer
vocês respirar e oxigenar a mente. Assim, é um método útil para compreender a
depressão, a síndrome do pânico, as fobias e as neuroses em geral. Na medicina,
por exemplo, a maioria dos médicos concorda que existem fenômenos psicológicos
envolvidos na instalação de uma doença.
Adriana Nazarian: Porque vivemos tão
angustiados?
Plinio Montagna: A angústia é útil para
o ser humano: move a curiosidade, a necessidade de buscar e de ter certas
reações por uma questão de sobrevivência. Funciona como uma corda de violão:
quando a angústia inexiste, é como se ela estivesse frouxa e o som não sai.
Hoje temos fontes de ansiedade muito particulares e intensas e a análise
proporciona um espaço para o paciente dizer o que pensa, sem se preocupar com
julgamentos. É uma forma de filtrar os estímulos do ambiente para poder se
defender e se relacionar com o exterior com maleabilidade.
Adriana Nazarian: As teorias de Freud
ainda funcionam?
Plinio Montagna: As pessoas associam a
psicanálise à primeira teoria de Freud. Mais de 100 anos se passaram e muita
água rolou. Na época de Freud, por exemplo, a psicanálise impunha uma barreira
teórica que inviabilizava a psicose. Isso mudou e, hoje, fenômenos psicóticos
podem ser compreendidos. Tudo que Freud escreveu foi aprimorado. Hoje, com mais
conhecimento do que na era freudiana, também podemos alcançar um aprofundamento
maior.
Adriana Nazarian: Num mundo de relações
superficiais, em que se espera resultados rápidos, quem tem paciência para um processo
que busca justamente o oposto?
Plinio Montagna: Concordo que há uma
tendência à superficialidade, mas a ideia de que oferece resultados a longo
prazo é outro mito. Depende do envolvimento de cada paciente.
Adriana Nazarian: O distanciamento
entre psicanalista e o paciente ainda é inevitável?
Plinio Montagna: A caricatura do
analista que não podia falar com o paciente foi um exagero. Não há impedimentos
e a relação depende da avaliação de cada analista. Eu já fui, por exemplo, ao
vernissage de uma paciente que é pintora, mas, em outras situações, achei que
não deveria.
Adriana Nazarian: Uma das reclamações é
que se trata de um processo doloroso, que fica remoendo o passado.
Plinio Montagna: Essa ideia também é um
mito ultrapassado. A psicanálise está relacionada com o presente, o aqui, o
agora e o daqui para a frente. O objetivo é tirar do presente os vícios que a
pessoa carrega do passado. Coisas que ela não se dá conta de que terminaram,
mas que ainda atrapalham sua vida. A análise ajuda a fazer o luto de um tempo
que já foi e ter uma perspectiva diferente para projetar o futuro.
"AS PESSOAS NÃO
SE DÃO CONTA DE QUE PARTE DO QUE ACONTECE SÃO ELAS QUE FAZEM"
Adriana Nazarian: Como o senhor enxerga
o uso de medicamentos, tão comum hoje?
Plinio Montagna: Sou psiquiatra e não
tenho nenhum problema com medicação, mas não há remédio para todos os
problemas, principalmente para que a pessoa possa se compreender. A maioria dos
deprimidos está insatisfeita e relaciona aquilo com a sua própria vida. No
entanto, também temos pacientes que têm horror em saber qualquer coisa sobre si
mesmo e desejam apenas receber uma medicação.
Adriana Nazarian: Já desencorajou
alguém a fazer análise?
Plinio Montagna: Recebi uma paciente
que desenvolveu um processo depressivo fortíssimo seis meses após a morte do
pai. O problema é que ela não fazia qualquer tipo de relação e enxergava a
depressão como uma amidalite. Queria tomar um antidepressivo que, é claro,
ajudaria a melhorar o ânimo naquele momento, mas seu mundo continuaria fora de
lugar. A psicanálise não o ajudaria, porque é um processo bilateral: a pessoa
precisa ter interesse em seu próprio mundo.
Adriana Nazarian: Hoje a análise tem
muitos concorrentes: das terapias alternativas a outras modalidades da
psicologia. Por que esse método persiste?
Plinio Montagna: A terapia ajuda as
pessoas. É como se houvesse um espaço psicanalítico dentro do ser humano, assim
como um espaço para a expressão artística, presente em todas as culturas.
Shakespeare, por exemplo: dizem que ele inaugurou o ser humano justamente
porque passou a enxerga-lo com uma dimensão nunca vista antes, na
multiplicidade de suas emoções. As concepções vão mudando, mas essa ideia é
universal.
Adriana Nazarian: Afinal, o que é ser
neurótico?
Plinio Montagna: A figura do neurótico
virou uma caricatura. Existe até uma história que brinca: “Se no fundo da alma
a pessoa tiver vocação para ser ladrão, a função do psicanalista é
transformá-lo em um grande ladrão”. É uma brincadeira que ressalta a liberdade
do indivíduo de ser ele mesmo, que é o que tanto busca a psicanálise. A minha
preocupação não é determinar a neurose, mas, sim, ajudar o indivíduo a se
encontrar. Quando ele diz qualquer coisa, não avalio se ele é neurótico,
bonito, feio, condenável, ou não. Quero apenas saber o sentido do que ele diz
junto com a sua história.
Adriana Nazarian: A análise exige que o
paciente fale sobre si. Qual é o poder da palavra diante de tantos estímulos
visuais?
Plinio Montagna: A palavra é uma
conquista que nunca vai ser abandonada, ainda que nossa cultura considere os
elementos audiovisuais tão importantes. Na análise, a palavra é fundamental,
assim como o silêncio e o ritmo. O sentido não está nela, mas na forma como é
falada.
Adriana Nazarian: Quais queixas mais
houve em seu consultório?
Plinio Montagna: Dos relacionamentos e
da falta deles, dos estresses e de como lidar com eles. A pessoa não se dá
conta de que grande parte do que acontece ao seu redor é ela mesma que faz. É
comum atribuir a “culpa” às situações exteriores, mas temos muito mais possibilidade
de controlar nossa vida do que imaginamos.
Adriana Nazarian: Há pessoas saudáveis
ou, como diz a música do Caetano, “de perto ninguém é normal”?
Plinio Montagna: Não existe o ideal da
sanidade, mas há quem esteja mais próximo de fatores como a capacidade de
evitar sofrimentos desnecessários e de estabelecer relacionamentos
satisfatórios, de ter uma visão favorável de si mesmo e do mundo. Trata-se de
um filtro em relação aos bombardeamentos e estímulos externos.
Adriana Nazarian: Nossas atitudes na vida
adulta dependem mesmo do que vivemos na infância?
Plinio Montagna: Dependem de como o
indivíduo viveu aquilo que lhe foi oferecido e o que ele faz dessa vivência
atualmente. É aí que entra a subjetivação: qualquer acontecimento, ótimo ou
negativo, depende de como a pessoa o interpreta.
Adriana Nazarian: E o que faz a pessoa
reagir melhor?
Plinio Montagna: Existe a parte
genética, a constitucional e também a que se refere ao ambiente. Gosto de
lembrar a história do jogador de futebol Cafu, na copa de 2002, na qual o
Brasil foi campeão. Ele era o capitão da seleção e, quando levantou a taça,
mostrou a camiseta escrita “100% Jardim Irene”, um bairro muito precário na
época e no qual ele cresceu. Isso mostra uma capacidade de resiliência
fantástica. Uma das coisas mais importantes na vida é ter uma experiência de aceitação
integral, sem reservas, que faça a pessoa se sentir benquista como ela é. Como
psicanalista, se eu puder propiciar isso para alguém, já é maravilhoso.
Adriana Nazarian: Estamos mais egocêntricos?
Plinio Montagna: No Japão, onde há uma
sociedade muito voltada para o
coletivo, não. Mas, em geral, o individualismo está muito presente e existe uma
contradição entre o indivíduo e o grupo. As ideologias que apagaram
completamente o indivíduo não deram certo. É uma questão de encontrar uma forma
de convivência entre os desejos pessoais e as exigências sociais.
Adriana Nazarian: O que Freud não
explica?
Plinio Montagna: Freud não explica
nada. A questão dele não é explicar, mas compreender o indivíduo, as relações e
os sentidos que existem para cada um. A psicanálise quer encontrar nexos onde
aparentemente não há. E, certamente, há muitas coisas que continuamos sem
compreender.
NOTA
DO EDITOR: Sobre a IPA - International Psychoanalytical Association (Associação
Psicanalítica Internacional):
A International Psychoanalytical Association (IPA)
Freud, em 1910, patrocinou a criação
de uma Associação Internacional de Psicanálise para congregar as sociedades
psicanalíticas existentes, normatizar a formação dos psicanalistas e evitar
distorções e descaminhos na psicanálise, com a expansão de sua prática.
A International Psychoanalytical
Association (IPA), atualmente sediada em Londres, é o
organismo que coordena todo o movimento psicanalítico mundial. Ela congrega,
atualmente, setenta sociedades psicanalíticas, situadas em trinta e três países
e com mais de onze mil e quinhentos psicanalistas associados.
Os objetivos da IPA são, no âmbito
mundial, o estímulo ao desenvolvimento e expansão do conhecimento
psicanalítico, e o cuidado na manutenção e aprimoramento dos padrões básicos para
a formação de novos analistas.
Para atingir seus objetivos, a IPA
organiza, bianualmente, congressos e pré-congressos internacionais de
psicanálise, com todo o universo de analistas e alunos em formação
(candidatos), além de conferências regionais, destinadas a reunir analistas de
uma mesma região geográfica, mas de países diferentes.
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