Síndrome Psicótica
Eduardo Sörensen Ghisolfi
.
INTRODUÇÃO:
O termo psicose tradicionalmente significa a perda do teste da realidade e comprometimento do funcionamento mental, manifestando-se por delírios, alucinações, confusão e comprometimento da memória. No decorrer desta segunda metade do século, dois outros significados se agregaram ao conceito original. Na utilização psiquiátrica mais comum do termo, "psicótico" pode significar também um comprometimento grave do funcionamento social e pessoal, caracterizado por retraimento social e incapacidade para desempenhar as tarefas e papéis habituais. Outro uso do termo é, às vezes, encontrado para especificar o grau de regressão egóica como critério para uma doença psicótica.
De acordo com o glossário da Associação Norte-Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association), o termo psicótico refere-se a um amplo comprometimento do teste da realidade. Pode ser utilizado para descrever o comportamento de um indivíduo em um determinado momento, ou um transtorno mental no qual, em algum momento do seu curso, todos os indivíduos com o transtorno apresentem tal prejuízo no teste da realidade.
Falar em comprometimento do teste da realidade significa que o indivíduo avalia incorretamente a acuidade das suas percepções e pensamentos, realizando inferências incorretas acerca da realidade externa, ainda que em face de evidências contrárias.
Contudo o termo psicótico não se aplica a distorções menores da realidade que decorram de juízo relativo. Por exemplo, uma pessoa deprimida que subestima suas conquistas e qualidades não deveria ser considerada psicótica, enquanto aquela que julga ser culpada de uma catástrofe natural, sim.
A evidência direta do comportamento psicótico é a presença de delírios ou alucinações sem discernimento de sua natureza patológica. Às vezes o comportamento pode estar tão amplamente desorganizado que se pode, a priori, inferir um prejuízo importante do teste da realidade, quando a fala é amplamente incoerente e o indivíduo, em geral agitado, não demonstra notar a incompreensibilidade do seu discurso.
É possível que indivíduos com transtorno mental não-psicótico venham a exibir, embora mais raramente, sintomas psicóticos. Tal fato pode ser encontrado, por exemplo em transtornos graves do humor. Neste caso há necessidade de especificar, assim por exemplo: depressão com psicose.
No DSM-IV, os transtornos psicóticos incluem os transtornos invasivos do desenvolvimento, esquizofrenia, transtorno esquizofreniforme, transtorno esquizoafetivo, transtorno delirante, transtorno psicótico breve, transtorno psicótico compartilhado, transtorno psicótico devido a uma condição médica geral, transtorno psicótico induzido por substância e transtorno psicótico sem outra especificação.
É importante lembrarmos a diferença entre síndrome e transtorno. Síndrome é uma condição que se caracteriza por uma coleção de sinais e sintomas com certa correlação, com uma certa homogeneidade, mas que, contudo, apresenta certas variações importantes. Podemos falar numa síndrome psicótica que é caracterizada pelas alterações básicas descritas nesta introdução e que engloba por sua vez vários transtornos ou doenças, que apresentam as características básicas da síndrome mas que diferem entre si com relação a outros critérios, digamos assim, secundários, como tempo de duração, concomitância de sintomas de outras síndromes, fatores e nexos causais, ou mesmo características mais particulares.
SITUAÇÕES QUE SUGEREM UMA SÍNDROME PSICÓTICA: (como quadro principal ou concomitante)
|
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL NAS MANIFESTAÇÕES PSICÓTICAS:
Antes mesmo de mencionarmos os transtornos definidos pelo DSM-IV na respectiva seção, é necessário que conheçamos alguns outros conceitos, que são fundamentais para auxiliar o raciocínio diagnóstico, para que tenhamos uma definição operacional de termos correntemente utilizados:
Psicose (pode-se ler Síndrome Psicótica): nítido prejuízo do teste da realidade, evidenciado por delírios, alucinações, pensamento incoerente, nítido afrouxamento das associações, pobreza do conteúdo do pensamento, pensamento nitidamente ilógico, conduta bizarra ou grosseiramente desorganizada, ou ainda catatônica.
Síndrome Cerebral Orgânica (alucinose ou delirium e outras): havendo psicose e fator orgânico conhecido pela história e/ou exames complementares ou história de abuso de substâncias psicoativas.
Simulação de Psicose: sintomas sob o controle voluntário e com objetivos obviamente reconhecíveis.
Transtorno Factício/Pantomimia, Síndrome de Münchausen: objetivos não reconhecíveis, mas sintomas sob controle voluntário, como na simulação.
CLASSIFICAÇÃO: (segundo o DSM-IV)
a) Transtorno Esquizofrênico: é uma perturbação em que a psicose dura pelo menos 6 meses, incluindo pelo menos 1 mês de sintomas da fase ativa (que se caracteriza pela presença de dois ou mais dos seguintes critérios: delírios, alucinações, discurso desorganizado, comportamento amplamente desorganizado ou catatônico, sintomas negativos). Implica em um desempenho prejudicado das atividades do dia-a-dia (escolares, domésticas); ausência de síndrome depressiva ou maníaca completa (caso uma síndrome afetiva, geralmente depressiva, esteja presente, ela se desenvolveu após o surgimento dos sintomas psicóticos, ou então que a duração desta seja menor do que a da síndrome psicótica. Algumas alucinações específicas são muito sugestivas (em especial as auditivas), o afeto costuma estar embotado, e outros sintomas negativos podem estar presentes.
b) Transtorno Esquizofreniforme: é semelhante à esquizofrenia, porém de mais curta duração (de 1 a 6 meses) e não exige uma deterioração funcional tão acentuada quanto a esquizofrenia.
c) Transtorno Esquizoafetivo: é um diagnóstico de exceção, quando realmente não puder ser feito o diagnóstico diferencial entre esquizofrenia e transtorno afetivo maior com manifestações psicóticas, sendo uma perturbação na qual um episódio de humor e sintomas da fase ativa da esquizofrenia ocorrem juntos, precedidos ou seguidos de pelo menos duas semanas de delírios ou alucinações sem sintomatologia proeminente de humor.
d) Transtorno Delirante: delírios persecutórios, de ciúmes, hipocondríacos, somáticos, grandiosos, erotomaníacos ou outros. Os delírios não devem ser bizarros e devem durar pelo menos 1 mês, sem outros sintomas da fase ativa da esquizofrenia (não costuma haver alucinações e se presentes não são proeminentes, nem incoerência do pensamento ou afrouxamento das associações). O afeto está de acordo com o conteúdo do pensamento (desconfiança e raiva, hostilidade).
e) Transtorno Psicótico Breve: é uma perturbação psicótica que dura pelo menos 1 dia e tem remissão dentro de 1 mês, devida ou não a um importante fator desencadeante ambiental (morte de familiar significativo, importante mudança sócio- ocupacional, etc...) ou com início no período pós-parto.
f) Transtorno Psicótico Compartilhado (folie à deux): o delírio desenvolve-se em um indivíduo no contexto de um relacionamento próximo com outro indivíduo que também apresenta o delírio, e na ausência de outro distúrbio psicótico (esquizofrenia ou transtorno de humor com sintomas psicóticos).
g) Transtorno Psicótico Devido a uma Condição Médica Geral: os sintomas psicóticos são considerados como decorrentes de uma condição médica geral.
h) Transtorno Psicótico Induzido por Substância: os sintomas psicóticos são considerados uma conseqüência fisiológica direta de uma droga de abuso, medicação ou exposição a determinada substância.
i) Transtorno Psicótico sem Outra Especificação: é uma categoria incluída para classificar os quadros psicóticos que não satisfaçam os critérios para as condições vistas acima, ou então para aquelas sobre as quais não existam informações em quantidade e qualidade necessárias para o diagnóstico.
CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS SOBRE A ESQUIZOFRENIA:
Também a esquizofrenia pode ser vista como uma síndrome, já que engloba várias manifestações ligeiramente diferentes da condição básica. Assim a expressão "transtornos esquizofrênicos" é mais adequada para representar um grupo de condições de diferentes etiologias. Acredita-se que múltiplos caminhos etiológicos possam ser responsáveis pelo fenótipo da síndrome, sendo reconhecido o fator genético como o principal fator de risco para a condição (o risco populacional é de cerca de 1%, que é aproximadamente a sua prevalência, não variando muito geograficamente e mantendo-se relativamente constante ao longo de várias décadas, enquanto o risco da morbidade para um familiar de primeiro grau se encontra aumentado de 5 a 50 vezes; estudos com gêmeos mostram uma concordância de 10 a 19% para os dizigóticos e de 35 a 48% para os monozigóticos). Os fatores ambientais também se fazem presentes. Se acredita que injúrias no período embrionário e também no período perinatal possam estar associadas à etiologia da esquizofrenia. Há uma maior prevalência de esquizofrenia nas classes sociais inferiores, o que pode ser tanto causa como conseqüência da doença.
Os sintomas característicos da esquizofrenia podem ser agrupados em positivos (floridos ou produtivos) e negativos (déficits). Os sintomas positivos são alucinações auditivas (mais freqüentemente, as táteis, visuais e olfativas são mais raras), delírios (persecutórios, de grandeza, de ciúmes, somáticos, místicos, fantásticos), perturbações da forma e do curso do pensamento (como incoerência, tangencialidade, desagregação e falta de lógica), comportamento desorganizado, bizarro, agitação psicomotora e mesmo negligência dos cuidados pessoais. Os sintomas negativos são pobreza do conteúdo do pensamento e da fala, embotamento ou rigidez afetiva, sensação de não conseguir sentir prazer ou emoções, isolacionismo, ausência ou diminuição de iniciativa, de vontade, falta de persistência em atividades laborais ou escolares e déficit de atenção. Esta classificação em sintomas positivos e negativos têm grande utilidade para o acompanhamento e manejo farmacológico dos pacientes.
A esquizofrenia costuma ser classificada nos tipos paranóide (com idéias delirantes de perseguição e grandeza proeminentes e alucinações correspondentes), catatônica (com agitação e/ou estupor, que podem se alternar, além de negativismo e posturas catatônicas bizarras), desorganizada (antigamente chamada de hebefrênica, com extremo prejuízo no funcionamento social e pessoal, com marcada perda de coerência e associações, podendo apresentar maneirismos particulares), e um quarto tipo, chamado indiferenciado, onde não se observa a predominância de nenhum dos três padrões anteriores.
O início da esquizofrenia tipicamente ocorre entre o final da adolescência e os meadas da terceira década de vida, sendo raro o início antes da adolescência ou na velhice. Nas mulheres pode ser mais comum um início mais tardio, e também há maior propensão a sintomas proeminentes do humor, assim como a um melhor prognóstico. São considerados fatores de bom prognóstico: o início agudo dos sintomas e o curso episódico, o início tardio da doença, a presença de fatores precipitantes, a presença de sintomas afetivos, as formas paranóide ou catatônica e um bom funcionamento social e pessoal prévio ao acometimento. De outro lado os fatores de mau prognóstico são: início precoce e insidioso dos sintomas, ausência de fatores precipitantes ou de sintomatologia de humor, a forma desorganizada e personalidade esquizóide prévia ao acometimento da doença.
TRANSTORNOS PSICÓTICOS MAIS COMUNS POR FAIXA ETÁRIA:
Adolescência (11-18 anos) | transtornos esquizofrênicos e psicoses reativas. |
Vida Adulta (18-30 e 31-64 anos) | transtornos esquizofrênicos e psicoses reativas, na primeira etapa; transtornos afetivos ou do humor, com sintomas psicóticos, na segunda. |
Velhice (65 anos ou mais) | psicoses orgânicas (síndromes cerebrais orgânicas) e transtornos afetivos do humor (depressões). |
BIBLIOGRAFIA
1. OSÓRIO CMS, ABREU PBA, CAMOZZATO A, LOBATO MI. Psicoses. In: Duncan BB, Schmidt MI, Giugliani ERJ. Medicina Ambulatorial: Condutas Clínicas em Atenção Primária, 2a edição, capítulo 93, pág. 563-575. Editora Artes Médicas. Porto Alegre, 1996.
2. KAPLAN HI, SADOCK BJ, GREBB JA. Compêndio de Psiquiatria. Ciências do Comportamento e Psiquiatria Clínica, 7a. edição. Editora Artes Médicas. Porto Alegre, 1997.