sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Reflexões sobre a interpretação psicanalítica e sua relação com a teoria e a clínica psicanalíticas

Reflexões sobre a interpretação psicanalítica e sua relação com a teoria e a clínica psicanalíticas

Reflections about the interpretation and its relations with the psychoanalytical theory and clinic

Reflexiones sobre la interpretación y sus relaciones con la teoría y la clínica psicoanalíticas


José Martins Canelas Neto*
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Endereço para correspondência



RESUMO
O autor desenvolve uma reflexão sobre a interpretação psicanalítica, considerando tanto a prática desta dentro da sessão, quanto seu valor de revelação de um sentido latente. Como a interpretação depende essencialmente da subjetividade do analista, sendo uma maneira de estar e pensar do analista, sua compreensão foi abordada recorrendo ao conceito de “pensamento clínico” de André Green. É desejável que a interpretação surja como uma emergência da latência onde ela se mantinha. Essa latência é próxima da idéia de vazio como vacuidade, isto é, um vazio potencialmente habitado por sentidos que estão a ponto de ser colocados em forma. O pensamento clínico opera favorecendo esse processo. Para isso é fundamental levarmos em conta a incerteza e o hiato entre teoria e clínica. O trabalho de pensamento clínico introduz um terceiro que permite ao analista sair de uma relação mal delimitada, simbiótica, com o analisando para introduzir palavras com valor interpretativo.
Palavras-chave: Interpretação, Pensamento clínico, Vazio.

ABSTRACT
The author develops his ideas about the psychoanalytic interpretation considering its clinical practice as well as its value as a revelation of a latent sense. The interpretation depends essentially on the subjectivity of the analyst — i.e., the analyst’s way of being and thinking while working with the patient. Because of that, the interpretation is approached in the article based on André Green’s concept of “clinical thought”. It is desirable that the interpretation emerges from the latency where it was. This latent state is close to the idea of emptiness and vacuity, i.e., an emptiness that is potentially inhabited by meanings that are ready to be expressed. The clinical thought operates collaborating to this process. Therefore, it is essential to take into account the uncertainty and the gap between theory and clinic. The clinical thought work introduces a third element that allows the analyst to leave from a symbiotic and weak delimited relationship with the patient and to introduce words of interpretative value.
Keywords: Interpretation, Clinical thought, Emptiness.

RESUMEN
El autor desarrolla una reflexión sobre la interpretación psicoanalítica, considerando tanto la práctica de la misma dentro de la sesión, como su valor de revelación de un sentido latente. Como la interpretación depende esencialmente de la subjetividad del analista, siendo una manera de estar y pensar del analista, su comprensión fue abordada recurriendo al concepto de “pensamiento clínico” de André Green. Es deseable que la interpretación surja como una manifestación de la latencia en la cual ella se encontraba. Esta latencia se aproxima de la idea de vacío como vacuidad, o sea, un vacío potencialmente habitado por sentidos que están próximos al “mise en forme”. El pensamiento clínico opera favoreciendo este proceso. Para ello es fundamental que consideremos la incertidumbre y el hiato entre teoría y clínica. El trabajo de pensamiento clínico introduce un tercer elemento que le permite al analista salir de una relación mal delimitada, simbiótica, con el analizando para introducir palabras con valor interpretativo.
Palabras clave: Interpretación, Pensamiento clínico, Vacuidad.



Gostaria de agradecer o convite feito a mim pela comissão organizadora da Jornada da Teoria dos Campos realizada em São Paulo em 2007. Considerei esse encontro como o desenvolvimento vivo da força do pensamento e da presença de Fabio Herrmann, que foi sem dúvida um dos mais importantes e originais pensadores da psicanálise contemporânea.
No Vocabulário de psicanálise de Laplanche e Pontalis, o termo “interpretação” é definido em duas direções diferentes e mais ou menos paralelas: a primeira, ligada à noção de sentido, “fazer emergir (ou liberar, desembaraçar) pela investigação analítica o sentido latente na fala e nas condutas de um sujeito” (Laplanche & Pontalis, 1981); a segunda direção se refere àquilo que comunica o analista ao paciente e que faz com que este tenha acesso ao sentido latente. Esta última direção parte de um ponto de vista centrado na prática clínica do analista, durante a sessão. Penso que seria interessante aprofundar a questão da interpretação levando em conta esses dois eixos de reflexão.
Segundo a concepção freudiana, a interpretação visa essa liberação do sentido latente que estaria presente na fala do paciente durante a sessão analítica, explicitando o conflito defensivo ligado ao desejo inconsciente. Este modelo é teorizado na Interpretação do sonho (Freud, 1900/2004). Em seguida, o modelo é expandido para as diversas formações do inconsciente (os atos falhos, os lapsos, os esquecimentos, os chistes, o cômico, etc.). Por fim, salienta Freud que para completar esse modelo não se pode esquecer que esse sentido só é alcançado a partir da fala associativa do paciente. Assim, podemos notar que toda a teorização de Freud quanto ao papel mutativo da interpretação se fundamenta na possibilidade de que uma fala e uma escuta associativa possam ocorrer na sessão. Aparece aqui a questão da prática clínica da psicanálise. Essa importância essencial da prática clínica está presente de maneira muito rica e cristalina nos textos anteriores à Interpretação do sonho, sobretudo nos “Estudos sobre a histeria” (1895), texto que Freud escreve a partir de mais de dez anos de prática clínica de psicoterapia. Com suas pacientes histéricas, Freud descobre que há, nessas formações do inconsciente, um trabalho psíquico completo com objetivo próprio, como uma manifestação que tem seu conteúdo e significado próprios.
O segundo eixo de direção da definição do Vocabulário de psicanálise concerne ao que se passa entre analista e analisando dentro da situação na sessão analítica. Referência à importância do processo analítico, enquanto prática clínica da análise. Tocamos aqui na noção de técnica analítica. Entendo técnica mais no sentido do fazer analítico do que de um conjunto de regras e normas da ação do analista.
Laplanche e Pontalis notam que a palavra usada por Freud — “Deutung” — ao ser traduzida (traída?) para nossa língua não pode deixar de dar ênfase ao aspecto “subjetivo”, “forçado”, “arbitrário” da interpretação, isto é, salientando o papel da subjetividade imposta do analista. No entanto, em alemão o termo não tem essa conotação e sim o sentido de esclarecimento, de acréscimo de sentido. Por isso, quando incorremos no erro de colocar a teoria como fundamento da prática clínica, estamos forçando a importância do sentido pejorativo de pura imposição da subjetividade do analista em detrimento dessa abertura para novos sentidos que parece ser a função central da interpretação. É essa abertura para um sentido novo do ser do analisando que buscamos ao interpretarmos a partir da fala associativa do paciente. Se o analista recobre essa fala associativa com sua teoria, o resultado é um fechamento e não uma abertura. Isso me faz salientar que a interpretação não engloba o conjunto das intervenções do analista, como por exemplo assegurar o paciente, dar uma explicação, fazer uma construção quanto ao passado deste, encorajá-lo a falar, reconfortá-lo, etc. O que não impede que em determinados momentos da análise essas intervenções possam ter valor interpretativo.
Mas, se não é uma teoria explicativa que o analista imagina, nem uma explicação causal de seus sintomas, nem de suas faltas, nem de seu funcionamento psíquico atual em geral, que por esse fato não tem um estatuto de objeto de conhecimento, o que seria interpretar? Sinto-me muito próximo da concepção de René Diatkine, para quem a interpretação é uma maneira particular de estar no decorrer de uma sessão, o modo de funcionamento mental do analista. Trata-se então de uma certa disposição psíquica do analista (consciente e inconsciente). As intervenções e os silêncios do analista não são codificáveis e sua descrição objetiva não faria avançar nosso conhecimento sobre o processo psicanalítico.
Essa disposição psíquica do analista tem uma semelhança com a disposição mental da mãe diante do bebê nos primeiros meses, embora para o analista o seu conteúdo, sua orientação e seus objetivos gerais sejam totalmente diferentes dos da mãe. Tanto essa mãe como o analista, por meio da organização de suas fantasias, podem desempenhar um papel estimulante ou de retorno à calma, sem passar por uma análise sistemática do comportamento.
A interpretação surge da relação íntima que se estabelece para o analista entre o que diz o paciente e a apreensão de sua contratransferência. Além disso, essa interpretação deve levar em conta, a meu ver, a globalidade daquilo que o analista compreende quando se pergunta: “Por que ele me diz isso, nesse momento e para mim?”.
Só é possível ao analista responder pelo seu próprio jogo associativo porque ele dispõe de uma representação global daquilo que se passa com seu paciente, interpretação que serve como trama a suas reações contratransferenciais, materiais de base de suas cadeias associativas (Diatkine, 1994, p. 69).
Tocamos aqui no que André Green chamou de “pensamento clínico”, que deve ser distinguido da teoria psicanalítica. Esse autor defende a idéia de que há não somente uma teoria da clínica, mas também um pensamento clínico, isto é, “um modo original e específico de racionalidade proveniente da experiência prática” (Green, 2002, p. 11). Trata-se então de uma disposição singular do psiquismo do analista que incluiria o trabalho de pensamento operando dentro da relação do encontro com o analisando. Nessa maneira de conceber, devemos considerar a clínica como o olhar não somente direcionado àquele que sofre, mas também àquele que está encarregado de escutar esse sofrimento, graças a uma sensibilidade particular, isto é, o analista.
Dessa maneira introduzimos como centrais as questões da transferência e da contratransferência e o papel das trocas entre o analisando e o analista. O “pensamento clínico” depende das características do campo no qual o analista deve trabalhar. Green mostra o paralelo entre o “enquadre” psicanalítico e o modelo do sonho, aquele criando uma situação analógica com o sonho. Essa situação seria a forma ideal para o trabalho do pensamento clínico. Mas Green lembra que atualmente é freqüente que o analista tenha de fazer modificações nesse modelo.
Numa tentativa para melhor caracterizar o que seria o cerne analítico do enquadre, Green propôs a divisão do enquadre em duas partes. A primeira seria uma “matriz ativa”, constituída pela associação livre do paciente e pela escuta flutuante e a neutralidade do analista, que constitui o coração da ação analítica, quaisquer que sejam as modalidades em que o analista seja levado a trabalhar. A segunda parte, que chamou de “fração variável”, seria formada pelos elementos variáveis e convencionais do enquadre (o analista estar visível ou não, pagamento ou não, freqüência das sessões, duração delas, convenção sobre as sessões em que o paciente falta, etc.).
O pensamento clínico resulta de um trabalho mútuo de observação e de auto-observação dos processos mentais utilizando o canal da palavra. Lembro aqui a formulação de Green: “A psicanálise transforma o aparelho psíquico em aparelho de linguagem”. Na atividade analítica ocorre um retorno a si, por meio de um desvio pelo outro.
O trabalho de pensamento clínico coloca em relação, por meio da linguagem, duas formas que essa última mantém com o psiquismo. Uma primeira que é constituída pelas relações entre pensamento consciente e pensamento pré-consciente, ambos indissociáveis da linguagem. E uma segunda forma, que buscaria estabelecer relações entre pensamento consciente e pré-consciente de um lado e “as conjecturas sobre o pensamento inconsciente, o qual não tem a mesma relação de dependência às representações de palavra, mas se apóia nas representações de coisa” (Green, 2002, p. 30).
Essa noção de pensamento clínico se caracteriza pelos diferentes processos de relação entre os diversos regimes de funcionamento das instâncias psíquicas. O autor já havia avançado essa concepção, com o nome de processos terciários, os quais se caracterizam essencialmente pelo estabelecimento de ligações, num vai-e-vem permanente entre os dados do processo primário e os do processo secundário. Na obra de 2002, reflete sobre a relação desses processos terciários com o virtual. Este é uma das formas do trabalho do negativo, conceito desenvolvido há bastante tempo pelo autor. O virtual se inscreve dentro da ordem de possibilidades oferecidas pelas ligações que trabalham subterraneamente e só emergem como uma eventualidade.
Para que o pensamento clínico possa ocorrer é preciso haver uma confiança na associação livre, a qual necessita que haja o que Bion chamou, emprestando o termo de Keats, de “capacidade negativa”. Trata-se de uma tolerância necessária ao negativo, e sobretudo o do não-saber. Por isso, devemos estar atentos ao risco para o processo analítico causado pelo estabelecimento em nossa mente de um pensamento que seria como uma tradução simultânea interpretativa do que o paciente fala ou faz. Daí a importância que vejo no conceito de perlaboração, que funciona como atividade que retarda essa tendência a uma precipitação interpretativa. A análise passa pela colocação em palavras e percorre seu caminho por uma via lenta.
Levando em conta essas considerações, podemos dizer que é desejável que a interpretação surja como uma emergência da latência onde ela se mantinha. Essa latência na qual estava a interpretação é próxima da idéia de vazio como vacuidade que desenvolvi em um trabalho sobre esse tema. A vacuidade é um vazio que é potencialmente habitado por sentidos que estão a ponto de serem colocados em forma. Green fala, sobre esse movimento, em positivação do negativo ou colocação em forma da virtualidade.
Dentro desse movimento [de positivação do negativo], o pensamento não articulado do inconsciente, ao se enunciar, se articula e, por esse fato, se limita. Limitando-se ele se torna apreensível; ele talvez tenha perdido uma parte de seu dinamismo, mas adquiriu uma precisão que o tornou comunicável e manipulável pelo pensamento, em suma, ele acedeu a um estatuto de linguagem (Green, 2002, p. 31).
A escuta do analista tem forçosamente uma relação com suas idéias sobre a natureza do inconsciente ou do Id, por exemplo; enfim, com suas concepções teóricas, metapsicológicas. Não há escuta neutra e despojada de influência teórica. Por outro lado, devemos lembrar que há um intervalo entre teoria e prática clínica que é impossível de preencher e que deve ser mantido assim. Penso que nunca a teoria poderá se sobrepor completamente à clínica, nem cobrir toda a extensão de seu campo, assim como também nunca a clínica poderá ser uma aplicação sem restos da teoria, totalmente esclarecida por esta. É essa incerteza e esse hiato entre teoria e clínica que permitem o pensamento clínico.
A disposição particular da escuta do analista e a possibilidade de o pensamento clínico se desenrolar na análise levam a uma abordagem indireta do psiquismo, o qual dá somente sinais para o analista. Em sua escuta, dentro de uma reserva de silêncio, o analista abre seu inconsciente às ressonâncias do inconsciente do analisando. Mas essa comunicação “direta”, em vaso comunicante, só pode se tornar pensamento (pensamento clínico) se houver um terceiro que escuta o que os dois outros se dizem e entendem entre eles.
Penso ser muito importante que se mantenha durante a análise essa tensão entre esses dois pólos, o da ressonância entre os dois inconscientes e o do pensamento clínico. Esse pólo da ressonância entre os dois inconscientes implica que o analista “entre” no chamado “terreno de jogo da transferência”, como citado por Mannoni sobre Freud (Mannoni, 1982), onde há “suspensão da realidade, como no teatro”. Foi Winnicott quem se aproximou mais de Freud nesse sentido, com sua concepção do brincar e do espaço transicional.
A idéia de um trabalho de pensamento clínico introduz um terceiro que permite ao analista sair dessa relação mal delimitada, simbiótica, com o analisando para introduzir palavras com valor interpretativo. Por vezes, isso se faz por abordagens discretas, nas quais o analista dá toques do que apreende, os quais podem evoluir num crescendo repetitivo até que o paciente tenha uma percepção de um novo campo de significações cobrindo o que é vivido por ele na experiência analítica. Outras vezes, o analista faz ligações entre duas seqüências diferentes do dito manifesto do paciente, o que também pode favorecer a abertura para novos sentidos.
Algumas características me parecem poder ser explicitadas quanto às condições idealmente esperadas para a interpretação. Em primeiro lugar, sabemos que a interpretação não deve ser considerada como verdade absoluta sobre o inconsciente do analisando; ela deve então poder ser revisada a todo momento, a cada vez que descobrimos novos aspectos do funcionamento psíquico do paciente.
Utilizamos com freqüência as palavras do paciente quando aproximamos dois aspectos ditos em momentos diferentes da sessão, criando assim uma nova maneira de arranjar esses elementos da fala do analisando. Esse rearranjo novo cria um movimento interno no analisando, seja de denegação, seja repúdio ou de aceitação. Muitas vezes, esse tipo de intervenção recai sobre o pré-consciente e tem como efeito desencadear novas associações que estavam potencialmente presentes na fala do paciente.
Considerando a elaboração secundária do sonho como uma primeira tentativa de interpretação do sonho, diz Freud: “Certos sonhos sofreram uma profunda elaboração realizada por uma função psíquica análoga ao pensamento em vigília; eles parecem ter um sentido, mas esse sentido é o que há de mais afastado da significação (Bedeutung) do sonho...” (Freud, 1900, citado por Laplanche & Pontalis, 1981, p. 208)
Qual tipo de significação é veiculado pela interpretação? Um dos objetos da interpretação para Diatkine é a articulação das diferentes fases da libido e sobretudo
como a genitalidade e a bissexualidade integram a pré-genitalidade... isso deve ser compreendido da seguinte maneira: assim que pegamos um ser humano em análise... a identidade do sujeito repousa na integração dentro do sistema genital da oralidade e da analidade, as quais só se exprimem em referência aos termos narcísicos fálicos (Diatkine, 1994, p. 72).
A pré-genitalidade supõe em geral uma relação de possessão total e de insuportável aniquilamento do outro, enquanto a genitalidade se liga à constância do desejo e à conservação do objeto. Seria então um dos objetos da interpretação psicanalítica a articulação entre esses modos de funcionar da psique.
A situação analítica, com seu convite ao paciente para não criticar seus próprios pensamentos, leva-o a reencontrar uma descontinuidade, que podemos relacionar à descontinuidade psíquica do bebê que passa, no primeiro ano de vida, de uma descontinuidade de estados psíquicos (agradáveis ou desagradáveis) a uma continuidade trazida na tensão psíquica em direção do objeto. O trabalho do analista com suas aproximações e associações permite ao paciente vislumbrar uma nova trama de sua continuidade.
Há uma questão, às vezes referida como timing de uma interpretação, que é a busca do momento ideal em que ela deve ser dita. Nesse sentido penso que o analista deve ser prudente e cuidadoso, evitando interpretações imediatas do processo defensivo colocado em jogo, sobretudo no início de uma análise.
A interpretação pode ter dois tipos de efeito: um primeiro, pelo fato de mostrar ao paciente, se for pertinente, que um outro sistema, diferente daquele que ele conhece, pode organizar sua atividade mental; um segundo efeito é que o paciente possa descobrir em seguida novas ligações, isto é, as palavras do analista possam se articular de forma mediata com as representações de palavra e de coisa do analisando. Como disse Diatkine: “Mostrar que um outro arranjo é possível só pode ser entendido pelo paciente se essa demonstração permitir-lhe encontrar em seu próprio funcionamento, com suas próprias representações próprias, um sistema de ligações diferente” (Diatkine, 1994, p. 79).
Enfim, as palavras do analista são elementos constituintes da situação analítica e poderíamos considerar muitas vezes que a interpretação ideal só se fará quando os processos inconscientes já tiverem perdido sua imperiosa necessidade. A interpretação seria então como formulou Diatkine: “A conclusão desse trabalho a dois que é a perlaboração, muito mais do que o veículo de uma verdade que acabaria por ser convincente” (Diatkine, 1994, p. 82).
Gostaria agora de levantar algumas considerações sobre a relação entre interpretação e construção, tal como essa noção aparece no texto de Freud de 1937, “Construções em análise”: “A interpretação define uma maneira de tratar um elemento singular do material, tal como uma associação ou um lapso. Mas é uma construção que fazemos quando expomos ao sujeito um fragmento de sua pré-história...” (Freud, 1937/1985, p. 273).
Penso que não devemos colocar em oposição os termos interpretação e construção, pois ambos são o produto de um trabalho interpretativo. Piera Aulagnier, num interessante texto sobre as construções em análise hoje, salienta que a interpretação está do lado do esclarecimento do funcionamento da psique e que a construção estaria do lado do deciframento de sua estrutura. A construção questiona uma mise-em-scène da fantasia que é efeito da estrutura do desejo inconsciente e caracteriza a história libidinal do sujeito. “A interpretação do elemento singular coloca à luz do dia a singularidade de uma escolha que nos remete a uma história que não tem mais nada de universal” (Aulagnier, 1986, p. 88).
Para essa autora, há uma permanente inter-relação entre interpretação e construção na análise. A construção permite ao analisando interpretar certos elementos ou processos de sua história atual como repetição de uma história passada. “A interpretação é o que vai lhe permitir remodelar segundo uma nova arquitetura uma parte das construções com as quais ele conta para si mesmo a história de sua infância” (Aulagnier, 1986, p. 88).
Infelizmente não podemos aprofundar aqui essas questões relativas à história e à memória do sujeito em análise. Simplesmente, como nos lembra Aulagnier, diria que o sujeito é totalmente tributário da memória e do saber materno na reconstrução que se faz de sua história quando essa toca a sua primeira infância. Ele não tem o poder de se rememorar algo desse período. Só pode saber essa parte de sua história retirando-a do discurso familiar. Esse branco de sua história seria preenchido por essa fala que vem reconstruir après-coup, num segundo tempo, a hipótese desse primeiro tempo, a qual será construída a partir do que se revela no sujeito como efeitos ou cicatrizes da primeira experiência.
A questão da convicção, ou crença, trazida por essa construção apóia-se naquilo que é reativado na repetição induzida da transferência. Daí, o grande risco da repetição que faria o paciente aceitar como parte de sua história toda fala do analista, investido na transferência de uma memória onisciente, criando a ilusão no sujeito de que nada será perdido de sua história e de seu desejo. Enfim, se nos é possível reconstruir com um sujeito sua história, não é mais possível dizer que podemos construir a história do sujeito.
Após apresentar essas idéias alinhavadas a partir de alguns dos autores que considero importantes na minha formação como analista, para tentar pensar a questão da interpretação em sua dupla dimensão, teórica e clínica, gostaria de terminar levantando algumas reflexões sobre o lugar de cada uma dessas dimensões — a da teoria e a da prática clínica — em psicanálise.
Num texto em que critica a visão de Habermas (num capítulo de seu livro Conhecimento e interesse, consagrado a Freud), o filósofo Bento Prado Jr. defende a tese de que a teoria do aparelho psíquico, desenvolvida no capítulo VII da Interpretação do sonho, estaria fundada na prática da interpretação, em lugar de fundar essa prática original.
A interpretação freudiana busca, nos textos que defronta (sonhos, sintomas, discursos truncados), a deformação como lei interna da construção do sistema simbólico. Noutros termos, o sentido buscado coincide com a necessidade do truncamento do sentido (Prado Jr., 2000, p. 16).
Concordo com essa posição de Bento Prado Jr. que não assimila a psicanálise a uma hermenêutica. Esse autor mostra a grande mudança que se opera no pensamento de Freud ao passar da teoria do aparelho psíquico do Projeto para a da Interpretação do sonho. Nesta última, a teoria não é mais uma axiomática donde se pretende deduzir o material clínico e o mecanismo do sonho, mas, ao contrário, a teoria é extraída de uma prática original de interpretação do sentido dos sonhos. Esse “olhar que deslinda o emaranhado de significações do sonho” é um olhar “desarmado teoricamente”, diz-nos Bento. “A interpretação dos sonhos precede e fundamenta a arquitetura teórica” (Prado Jr., 2000, p. 35).
Enfim, pensar assim, invertendo a relação entre a prática e a teoria, como diz Prado Jr., equivale a dizer que “a teoria não tem fundamento objetivo”. Em psicanálise a teoria vem depois da aplicação do método interpretativo. No entanto, penso que a teoria, enquanto atividade teorizante do psicanalista, é imprescindível pela necessidade, que, antes de ser privilégio dos analistas, é necessidade do ser humano, a necessidade de criar um universo simbólico que possa dar sentido e acrescer nosso conhecimento da alma humana.

Referências
Aulagnier, P. (1986). Un problème actuel: Les constructions psychanalytiques. In P. Aulagnier, Un interprète en quête de sens (pp. 83-115). Paris: Ramsay.
Diatkine, R. (1994). Introduction à une discussion sur l’interprétation. In R. Diatkine, L’enfant dans l’adulte ou l’éternelle capacite de rêverie (pp. 65-82). Lausanne: Delachaux et Niestlé.
Freud, S. (2004). L’interprétation du rêve. In S. Freud, Oeuvres complètes (Vol. 4). Paris: PUF (Trabalho original publicado em 1900.)
Freud, S. (1985). Constructions en analyse. In S. Freud, Résultats, idées et problèmes (Vol. 2, pp. 269-281). Paris: PUF (Trabalho original publicado em 1937.)
Green, A. (2002). Pour introduire la pensée clinique. In A. Green, La pensée clinique (pp. 9-34). Paris: Odile Jacob.
Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (1981). Interprétation. In J. Laplanche & J.-B. Pontalis, Vocabulaire de psychanalyse (pp. 206-209). Paris: PUF.
Mannoni, O. (1982). L’amour de transfert et le réel. Études Freudiennes, (19/20), 7-14.
Prado Jr., B. (2002). Auto-reflexão ou interpretação sem sujeito?: Habermas intérprete de Freud. In B. Prado Jr., Alguns ensaios (pp. 11-28). São Paulo: Paz e Terra.


Endereço para correspondência
JJosé Martins Canelas Neto
R. Baltazar da Veiga, 24 — Vila Nova Conceição
04510-000 São Paulo, SP
Fone: (11) 3842-4769
E-mail: josecanelas@uol.com.br

Recebido em: 20/11/2007
Aceito em: 04/12/2007



* Membro Efetivo da SBPSP.
 

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