Elementos para uma metapsicologia da interpretação em análise
Resumo
Examinando a base conceitual da obra freudiana sobre a interpretação-sonho (Traumdeutung), o trabalho procura caracterizar alguns elementos para uma metapsicologia da interpretação psicanalítica. Conclui que da mesma maneira que o sonho, a interpretação aponta para as vicissitudes do manejo da angústia, no sentido de facilitar as vias de expressão e mobilidade do desejo.
Examinando a base conceitual da obra freudiana sobre a interpretação-sonho (Traumdeutung), o trabalho procura caracterizar alguns elementos para uma metapsicologia da interpretação psicanalítica. Conclui que da mesma maneira que o sonho, a interpretação aponta para as vicissitudes do manejo da angústia, no sentido de facilitar as vias de expressão e mobilidade do desejo.
Palavras-chave: Interpretação; interpretação-sonho; angústia; desejo.
Elements for a Metapsychology of Analytical Interpretation
Abstract
This paper examined the conceptual basis of Freudian thinking concerning dream-interpretation (Traumdeutung) to devise elements for the metapsychology of analytic interpretation. It is argued that dreams as much as interpretation point to the vicissitudes of dealing with anxiety to provide new ways to the expression and mobility of desire.
This paper examined the conceptual basis of Freudian thinking concerning dream-interpretation (Traumdeutung) to devise elements for the metapsychology of analytic interpretation. It is argued that dreams as much as interpretation point to the vicissitudes of dealing with anxiety to provide new ways to the expression and mobility of desire.
Keywords: Interpretation; dream-interpretation; anxiety; desire.
Esse texto procura levantar uma questão no amplo tema da interpretação que se atualiza na cena psicanalítica:
tomando os desenvolvimentos de Freud acerca da metapsicologia dos
sonhos, examina a função da interpretação com o objetivo de lhe dar uma
formulação que precise o seu lugar nessa cena. Como veremos, pretende
indicar que esse lugar está entre o analista e o analisando,
deslocando-o, portanto, de sua coincidência com o lugar do analista. A
presença do analista é, sem dúvida, como sempre foi em Freud, o que
torna possível que a interpretação ocorra na cena analítica, é só por
relação à transferência, na qual o analista é implicado, que qualquer
peça pode ser mexida no jogo psicanalítico. No entanto, tentaremos
indicar que, se é pela implicação do analista que se pode pensar em
interpretação analítica, não é pela intenção desse mesmo analista, que
de sua boca sai uma palavra interpretativa.
A
idéia de uma intenção que governa a interpretação, está quase sempre de
acordo com uma tradição que remete a um momento anterior à psicanálise:
trata-se de "ajuizar a intenção" ou "explicar, explanar, aclarar o
sentido" (Ferreira, 1975) de um texto. Essa acepção foi guardada,
durante muito tempo, na prática psicanalítica. A partir daí o analista
passa, então, a desenvolver a complexa arte de interpretar. A partir
dela, como o próprio uso linguístico aponta, ele dá a interpretação.
Esse
movimento, no entanto, sofre uma modificação a partir da revalorização
da tese freudiana de que os sonhos são resultados de um trabalho que
partindo dos desejos inconscientes interpretam os restos diurnos, isto
é, as coisas ouvidas, vistas etc. durante o dia, num processo que, como
tentaremos detalhar, é complexo e envolve as várias instâncias do
aparato psíquico, tais como os sistemas inconsciente e pré-consciente/
consciente.
Tomamos essa
tese no presente trabalho com o objetivo de caracterizar alguns
elementos para uma metapsicologia da interpretação psicanalítica,
pensada a partir do ponto de vista do que denominamos
"interpretação-sonho" (Traumdeutung) 3
. Seguindo esse ponto de vista, colocaremos sob exame a afirmação de
que o sonho é uma interpretação do desejo, das vicissitudes do desejo no
sujeito, o que implica um desenvolvimento metapsicológico que já se
encontra presente no Projeto de uma Psicologia para Neurólogos (Freud,1895/1996),
e que, posteriormente, vai-se completar na obra principal de 1900.
Recorremos aqui a essa metapsicologia, desenvolvida nas primeiras
concepções psicanalíticas do aparato psíquico, para auxiliar no exame de
um aspecto fundamental da interpretação: sua relação com o desejo
inconsciente. Essa aproximação, entre o sonho e a interpretação, vale
dizer, foi proposta pelo próprio Freud (1925/1996).
Não
nos deteremos nas questões colocadas ao conceito de interpretação pelas
considerações feitas a partir da concepção dos sonhos traumáticos. Elas
indicam uma dimensão que, ainda que interpretativa, está fora do que
procuramos problematizar na interpretação psicanalítica.
Nosso
objetivo, ao tentarmos desenvolver esses elementos para uma
metapsicologia da interpretação, é tentar livrá-la, por um lado, das
formulações intuitivas que procuram se justificar na aparente
inefabilidade dessa interpretação e, por outro, das implicações
normativas que perpassam a preocupação com as instruções técnicas no que
seria uma conduta interpretativa.
Os Sonhos e a Função Interpretante do Aparato Psíquico
Em Análise dos Sonhos,
Freud (1895/1996) fala que o caráter alucinatório das representações
oníricas é a característica mais essencial do dormir. Enquanto na vida
de vigília pensamos com palavras, durante o sono pensamos com imagens,
isto é, alucinamos. O sonho é, assim, "um pensamento como qualquer
outro" (Freud, 1925/1996, p.114), que se transforma em "imagens
sensíveis" (Freud, 1900/1996, p.528). Uma outra característica que se
junta a essa é a de que tais representações oníricas são acompanhadas de
crença. Essa peculiaridade dos sonhos, esses pensamentos que se tornam
imagens, aos quais se dá crédito e aos quais se crê vivenciar, guardam
forte semelhança, segundo Freud, com as alucinações da psicose, as
visões e certos sintomas, uma vez que todos são resultantes da mesma
maneira de funcionamento do aparelho anímico. Tendo em vista nosso
objetivo, podemos então conceber todas essas modalidades, como
diferentes dimensões do que chamaremos a função interpretante do aparato
psíquico (confrontar com Miller, 1996).
Ressaltar
uma função interpretante no aparato é, desde já, deixar de atribuí-la a
um sujeito da consciência, identificado como o inspirador de seu
comando, de sua aplicação e de seus efeitos, os quais se seguiriam como
conseqüência das atividades que lhe seriam confiadas.
Podemos
então referir essa função à explicação metapsicológica que gira
principalmente em torno das noções de sistemas psíquicos envolvidos nos
processos oníricos. Ainda não tendo desenvolvido completamente tais
noções, Freud, em 1895, explica a característica principal do sonho —
esse caráter alucinatório —, em primeiro lugar pela paralisia da
extremidade motora do aparato psíquico durante o sono, que receberia
então investimentos de y ao
invés de descarregar a corrente de investimento para a motilidade. É
exatamente efeito de um investimento no "sentido retroativo", o qual
garante a qualidade vinda de y em direção a j,
impedido de ter seu investimento efetuado pela extremidade motora. Em
segundo lugar, para falar do caráter alucinatório dos sonhos, Freud
recorre à explicação de que a "lembrança primária de uma percepção é
sempre uma alucinação" (Freud, 1895/1996, p.385) e que só a inibição por
parte do eu é que impede que se invista tal percepção. Na ausência
dessa inibição, como comenta Garcia-Roza (1991), "nada impede que o
investimento se transfira retroativamente para j" (p.185).
Nesse
ponto, Freud (1895/1996) faz ainda uma outra afirmação que da
perspectiva da metapsicologia da interpretação que tentamos acompanhar é
de enorme interesse. Diz ele que essa segunda explicação sobre o
investimento da imagem-percepção se sustenta também pela circunstância
de que "no sonho a vividez da alucinação está em relação direta com a
significação (Bedeutung, valor psíquico), ou seja, com o investimento (Besetzung) quantitativo da representação de que se trata" (p.385).
Essa passagem chama atenção porque faz a Bedeutung e a Besetzung das representações oníricas se tornarem praticamente sinônimas. Se tomarmos a tradição da palavra Bedeutung,
vamos nos deparar com a questão da significação, do valor psíquico, na
língua alemã, sendo posta em tela ao mesmo tempo que o investimento das
representações. É bem verdade que o conceito de Besetzung — que
veio a ser conceito fundamental da psicanálise — já havia sido
transposto para o plano psicológico e já estava menos ligado à ocupação
dos neurônios por uma "quantidade", do que ao investimento das
representações por um "fator intensivo" (Garcia-Roza, 1991, p.184).
Trata-se no sonho, portanto, de um valor psíquico ou de um investimento,
que Freud irá retomar posteriormente na Traumdeutung, ao desenvolver um aparato composto de diferentes sistemas psíquicos.
No
Capítulo VII desse livro, Freud (1900/1996) concebe a existência desses
sistemas no funcionamento do aparato psíquico por onde se propagam as
excitações vindas das percepções. Há um sistema que as recebe e deve
permanecer livre delas para poder estar sempre apto a receber novas
impressões. Ao entrar em contacto com as percepções ele as transmite por
associação de simultaneidade ao primeiro sistema mnemônico que então
irá passá-la a outros sistemas mnemônicos por relações de semelhança e
neles a excitação propagada experimentará uma fixação. Freud conceitua
aí também "gradações de resistência de condução para esses elementos".
Eles não têm uma passagem livre entre si, mas são ligados em
determinados pontos, de forma que não escoam sem barreiras.
Não
precisaríamos mencionar o conhecido esquema proposto por Freud
(1900/1996), se não fosse pela presença novamente, aqui, — no momento em
que trata da propagação da excitação pelos sistemas —, da referência ao
valor psíquico, à Bedeutung desses sistemas. Freud acrescenta,
ainda, que seria "inútil empenhar-se em indicar com palavras" esse valor
psíquico (Freud, 1900/1996, p.533). O tradutor do texto freudiano para o
espanhol comenta, então, que Freud poderia ter dito, ao em vez de
"palavras", "representações-palavra" (Etcheverry, 1996, p.533n). Com
esse comentário propõe que Freud esteja colocando o sonho, ou antes, as
imagens que constituem o sonho, do lado das "representações-coisa",
conceito que, com as "representações-palavra", irá servir a um certo
refinamento do conceito de representação e que só será desenvolvido em
Freud (1915). Com sua observação, sobre a inutilidade das palavras nos
sonhos, Freud aponta para a questão da significação que é posta em pauta
simultaneamente à questão do investimento (ou da ocupação) na concepção
de representações-coisa, portanto, nas próprias representações
oníricas.
Estamos nesse momento aptos a
formular a idéia de que a interpretação-sonho nos remete, portanto, a
representações-coisa que são resultado de investimentos, isto é, valores
psíquicos, que lhes constituem, lhes dando um caráter alucinatório que
se crê vivenciar. Tais representações — sendo semelhantes às que
prevalecem nas alucinações, nas visões e em certos tipos de sintomas
psiconeuróticos —, podem também ser entendidas como aquelas que vão
constituir as representações da interpretação que se exerce na cena
psicanalítica. Certamente, essa difere das outras representações por ser
expressa em palavras, ou seja, pelo uso de representações-palavra. Como
acentua Freud (1900/1996), só nisto diferem das representações nos
sonhos. Nos valendo dessa proximidade, ou antes, dessa coincidência
entre a interpretação-sonho e a interpretação analítica, no registro das
representações, é que nos acreditamos autorizados a pensar numa
metapsicologia da interpretação analítica.
A Interpretação-Sonho: Paradigma da Interpretação Psicanalítica
Ora,
o argumento central introduzido por Freud acerca das representações
oníricas, pode-se dizer, é serem elas representações do desejo. Pensar a
interpretação, a interpretação que é o sonho, é pensar a incidência do
desejo no aparato psíquico, em toda sua complexidade: de sua
constituição aos obstáculos que enfrenta em sua expressão. De início,
entramos em contacto com um desejo que pode ser localizado no sistema
pré-consciente, ou pode ter sido forçado a se retirar desse sistema para
o sistema inconsciente. No entanto, esse desejo pré-consciente, do qual
se tomou conhecimento e por uma razão ou outra não se realizou,
dificilmente terá força suficiente para criar um sonho. Poderá, no
máximo, incitá-lo. Há que estar presente um "outro desejo paralelo,
inconsciente" que venha reforçá-lo para que ele encontre expressão
(Freud, 1900/1996, p.545). Esse outro desejo, um "poderoso auxiliar" na
formação do sonho, vem do sistema inconsciente, onde estão os desejos
sempre alertas, "imortais", que Freud identifica aos desejos infantis
recalcados. São esses a verdadeira força impulsora dos sonhos.
Ao
contrário, quando concebemos o funcionamento do pré-consciente é
necessário supor uma série de alterações ocorridas nele durante o sono.
Esse mesmo estado, no entanto, ao permitir que se tornem mais claras e
precisas as conceituações acerca do funcionamento inconsciente, faz
ressaltar exatamente a inalterabilidade de seu caráter durante o sono.
Se ao pré-consciente é vedada a expressão de excitações em sua busca por
tornarem-se conscientes e é paralizado o seu investimento da
motilidade, o inconsciente não parece sofrer qualquer mudança em seu
funcionamento. Já os pensamentos diurnos ou as excitações
pré-conscientes, no entanto, precisam achar algum meio de se incluírem
no sonho através de uma relação com o desejo infantil suprimido para que
ganhem a possibilidade de expressão.
Isto faz
supor uma prevalência do sistema inconsciente no que diz respeito, em
particular, aos caminhos que tomam as moções de desejo que nele se
originam. Essa referência ao sistema inconsciente e especialmente ao
desejo inconsciente nessa característica de indestrutibilidade, no
quadro do estudo sobre os sonhos, ganha uma qualidade interessante para
nossas considerações sobre a interpretação. É na Traumdeutung que
se tem, em toda a sua extensão, a predicação mais vigorosa do papel do
inconsciente no funcionamento psíquico. E é exatamente na sua
consideração que podemos desenvolver a concepção da interpretação nesse
funcionamento.
Poder pensar a
interpretação-sonho como paradigma da interpretação psicanalítica é
ressituar a importância do papel que nela desempenha o desejo
inconsciente, e, também, reconhecer nela a presença inelutável da força
impulsora que motiva seu exercício e que possibilita uma melhor
definição de seus contornos. É, então, situando seu ponto de partida no
sistema inconsciente, tirá-la do lugar da vontade, da decisão ou da
escolha puramente conscientes feitas pelo analista e, ao mesmo tempo,
afastá-la de um âmbito mais ou menos impreciso que a prende à
intervenção ad hoc que ele realiza.
Freud
(1900/1996), ao dar conta de todo o processo — desde a emergência do
desejo inconsciente até a expressão consciente apresentada com certa
coerência e inteligibilidade —, afirma que a seqüência que propõe tem
fins estritamente descritivos. Não é que realmente surja um desejo
onírico que de início se transfira a um desejo atual pré-consciente que,
em seguida, encontre a censura e regrida até chamar a atenção das
marcas mnêmicas das percepções etc. Trata-se "em realidade, antes, da
tentativa simultânea de um ou outro caminho, de uma flutuação da
excitação de um lado a outro, até que ao final permanece um dado
agrupamento por ser a acumulação mais adequada dessa excitação" (Freud,
1900/1996, p.567). Diz ainda que isto leva mais de um dia e uma noite,
até que se alcance o resultado de um sonho.
O
sonho é resultado de uma oferta feita ao desejo inconsciente para que
encontre uma via de realização. O sonho oferece possibilidades para que o
desejo inconsciente se atualize, se expresse — ou seja, põe em
disponibilidade os meios através dos quais se abrirá o espaço de
mobilidade do desejo. Irá, portanto, facilitar essa mobilidade, velando
para que ela possa vir a ocorrer sem percalços ou com o mínimo de
obstáculos possíveis.
Ao seguir as vias através
das quais o sonho facilita a realização do desejo, Freud mostra que
todo o "caráter assombroso" da construção do sonho, como uma arte
extraordinária, se perde (Freud, 1900/1996, p.568). Exatamente, podemos
acrescentar, como se perde toda a indefinição e a impenetrabilidade do
que se passa numa sessão de análise, quando ocorre uma interpretação.
Não se trata, pois, de um enunciado intuitivo, que vem de uma
experiência supostamente inefável, irracional e, portanto, inexplicável,
que colocaria a interpretação num lugar a que só os mais experientes
chegariam. É claro, que ao mencionarmos a inteligibilidade do processo
de interpretação, nem por isso estamos nos referindo a uma interpretação
de caráter conclusivo (ver Balint, 1968); as referências de Freud ao
"umbigo do sonho" (Freud,1990/1996, p.519), à sobredeterminação da
interpretação e à impossibilidade de um dito definitivo sobre o material
onírico apontam todos para o caráter rigorosamente inesgotável do
sonho. Que ele seja inesgotável, no entanto, não faz dele um processo
menos apreensível.
O Manejo do Desejo Feito pela Interpretação-Sonho
Mantendo
a imagem linear que, em verdade, é apenas uma imagem exemplar para se
considerar as vicissitudes do desejo durante o sonho, trata-se de uma
seqüência de passos cujo objetivo podemos determinar como sendo o manejo
do desejo feito pelo sonho.
Necessariamente, o
manejo do desejo envolve um compromisso entre o desejo inconsciente —
que quer se realizar — e o desejo pré-consciente, atual, que usa o
reforço daquele para se expressar. No entanto, o desejo dominante no
pré-consciente é o desejo de dormir. É importante, pois, que o sonho, ao
permitir ao desejo inconsciente sua descarga, não quebre o compromisso
com esse desejo do pré-consciente de permanecer adormecido. Essa a
melindrosa operação do sonho ao manejar o desejo inconsciente: manter o
desejo móvel e, ao mesmo tempo, usando o estímulo do pré-consciente,
manter o sono sem perturbá-lo. Ora, se a realização desse desejo implica
numa intensidade que agita o pré-consciente a ponto de impedi-lo de
manter seu estado de repouso, haverá uma quebra do compromisso que o
sonho deveria respeitar. Esse é o caso do sonho em que surge
abruptamente a angústia e leva ao despertar. Ou seja, "a função do sonho
termina em um fracasso" (Freud, 1900/1996, p.571).
No
entanto, não foi por culpa do sonho que ocorreu um tal fracasso. Houve
uma mudança nas "condições de sua produção" (Freud, 1900/1996, p.571).
Passa, em seguida, a considerar o papel das "fontes de afeto
inconscientes" responsáveis pelas alterações ocorridas no sonho (Freud,
1900/1996, p.572). Por vezes, as representações do inconsciente liberam
um afeto que em sua origem foi prazeroso; no entanto, quando o recalque
incide sobre elas surge o desprazer. Então, a supressão da representação
inconsciente é necessária para que o desprazer seja evitado. Ao mesmo
tempo, dado o governo que exerce o pré-consciente sobre as
representações, essas também são inibidas por ele para que não sejam
enviados impulsos que desenvolveriam afeto. "O perigo, comenta Freud, se
cessa o investimento por parte do pré-consciente, consiste em que as
excitações inconscientes desprendam o afeto" até aqui suprimido ou
inibido (Freud, 1900/1996, p.573). Vale lembrar, nesse ponto, que é
característico do sonho justamente essa retirada do investimento do
pré-consciente que deseja dormir. Ou seja, o "perigo" é sempre iminente.
Esse
processo, a rigor, não seria resultado do trabalho do sonho. No
entanto, não é possível que o sonho não tenha participação nele. Na
verdade, trata-se aqui, do compromisso resultante de um conflito entre
dois poderes psíquicos, com interesses opostos, que o sonho procura
manejar, tornando os afetos indiferentes. Portanto, além de manejar o
desejo, o sonho maneja também o afeto — a angústia — no sentido de não
deixá-lo irromper na cena onírica, isto é, no sentido de afastar o
perigo.
O exame dessa função de manejo do
desejo e da angústia — exercida pelo sonho — é, então, particularmente
fértil para pensarmos o que acontece na interpretação psicanalítica. Em
relação a ela, também podemos reconhecer a função do manejo do desejo
inconsciente, enquanto, ao mesmo tempo, como aponta Lacan (1962/1963),
reconhecer o quanto o paciente pode ou não suportar a angústia, faz com
que o "manejo da angústia"(p.23) na sessão psicanalítica seja o que põe à
prova o analista a todo instante.
Trata-se,
então, na interpretação, como no sonho, do preciso "manejo da angústia",
para repetir a fórmula cara a Lacan (1962/1963), em seu Seminário, que
trata desse afeto que considera o "afeto por excelência" (p.33). Então,
se consideramos a angústia como o afeto por excelência, que ele situa
num ponto anterior ao ponto da emergência do desejo no sujeito, trata-se
de fazer desse afeto o guia da interpretação, na medida em que ele irá
conduzir aos momentos privilegiados da incidência do desejo.
Apesar
das mudanças que o afeto sofre na formação do sonho, para que, também
em vista de tal afeto, o sono continue, esse mesmo afeto tem uma
resistência muito maior à censura, do que a mostrada pelas
representações. Essas se submetem a toda série de deslocamentos e
substituições e são alteradas pelas desfigurações ao esbarrarem com a
censura, enquanto o afeto, quando aparece no sonho, permanece sempre
intacto. Nesse sentido, quando na cena onírica encontramos uma
determinada representação acompanhada de um afeto, ainda que a
representação seja imaginária, isto é, não corresponda à experiência da
realidade, o afeto que emerge na cena é real. Freud (1900/1996), dá o
exemplo de um sonho em que aparece o medo de uns ladrões; "os ladrões,
diz ele, são decerto imaginários, mas o medo é real" (p.458).
É
esse afeto "real" que Lacan vai enfatizar que "não mente" (1962/1963,
pp.127 e 138, respectivamente), isto é, não joga com a mesma equivocação
que as representações oníricas. Na medida em que não é tão suscetível
de sofrer a ação da censura, não se prestando tanto a deslocamentos e
condensações, o afeto, diferentemente das representações, não se presta
ao engano como essas. Por isso Freud afirma que "é por seu conteúdo
afetivo que o sonho sustenta, mais energicamente que por seu conteúdo de
representação, a reivindicação de que se o conte entre as vivências
reais de nossa alma" (1900/1996, p.458).
O
sonho como vivência real de nossa alma é, pois, o sonho que maneja a
angústia, no sentido de dar os trilhamentos da expressão do desejo
inconsciente, no sentido de permitir essa mobilidade do desejo a que
visa a interpretação na cena analítica.
Não
podemos, no âmbito desse trabalho, desenvolver em toda a extensão as
implicações que essas formulações terão para a teoria da clínica
psicanalítica. Todavia, é importante, para finalizar, enfatizarmos como a
operação realizada pelo sonho nos fornece elementos para considerarmos a
interpretação metapsicologicamente.
A
experiência analítica, sustentada pela relação transferencial, se
articula ao sonho como se articula à interpretação. O modo de conceber o
funcionamento dos sistemas psíquicos traz implícita a possibilidade de
que o sonho integre em sua formação a relação transferencial vivida, em
toda intensidade (Freud, 1923/1996). Não que "o trabalho do sonho
propriamente dito" possa vir a sofrer qualquer influência dos
pensamentos pré-conscientes: "todo sonho genuíno contém referências às
moções de desejo recalcadas a que deve a possibilidade de sua formação"
(Freud, 1923/1996, p.116). Vale lembrar que o lugar reservado ao que se
chama de "moções de desejo" na interpretação-sonho, como na
interpretação analítica, é, poderíamos dizer, indestrutível. Nada
termina, nem nada é passado ou esquecido. É, pois, com essas moções que
se conta primordialmente para que continuem as interpretações da vida
psíquica.
No entanto, na medida em que as
experiências da vida de vigília têm a função de incitar as
representações oníricas, seguramente as impressões da cena analítica
podem se expressar na cena onírica. Tomando a transferência em seu valor
de relação marcante e fundante da cena analítica, é claro que o que se
passa na relação transferencial não pode deixar de ser figurado no
sonho. Os efeitos do desejo do analista, da presença do analista, as
intensas vivências transferenciais engendradas em análise, ao tomarem
parte no sonho que emerge nessa análise, trazem uma marca cuja
característica nos interessa particularmente: a possibilidade da
emergência do sonho entre o analista e o analisando.
Da
mesma maneira, podemos pensar a interpretação no seu laço com a
transferência. Considerando-a um sonho que se expressa com palavras,
podemos conceber claramente sua constituição como devedora das moções
inconscientes incitadas pelos conteúdos pré-conscientes da vida de
vigília. Pode-se, pois, reivindicar para a interpretação que surge em
análise, a mesma localização que atribuímos ao sonho: ela também se
apresenta entre o analista e o analisando. Ela emerge no momento da análise em seu "sentido forte", isto é, no momento da transferência, no qual está em jogo a presença do analista frente ao analisando.
Considerá-la
nesse lugar nos permite, então, pensar as alterações que sofre o curso
da interpretação de acordo com o trabalho de transferência durante o
tratamento. É, pois, a transferência, que determinará esse curso da
interpretação. Não se trata, mais uma vez, de uma interpretação dada por
uma "correta avaliação" ou mesmo por uma posição contratransferencial
assumida pelo analista, mas, ao contrário, da sua inserção no que
podemos considerar como o modo de funcionamento inconsciente operado em
uma análise.
Muitas vezes, frente a uma "nova
fase da transferência, penosa (para o paciente)" (Freud, 1923/1996,
p.114), o sonho procura se expressar de uma maneira que exatamente
"declara" que a análise não é mais necessária. Estamos em presença de
"sonhos de cura", que podem ser categorizados sob os "sonhos de
comodidade", como Freud os denomina em1990/1996 (p.562) e continua a
fazê-lo, bem mais tarde, em 1923/1996 (p.114). É exatamente de
comodidade que podemos falar quando estamos diante da interpretação
analítica que evade os momentos de emergência da angústia, se
confundindo com uma prédica confortante que se prolonga por anos a fio
em um tratamento.
O exame da interpretação, sob
a égide da metapsicologia dos sonhos, nos mostra, em suma, como o
sonho, tem que encontrar o ponto médio entre duas posições que
exatamente se trata de evitar. De um lado a palavra cômoda e
apaziguadora que, ao servir de via para o desejo, o impede de se
realizar, parando a meio caminho a fim de não deixar emergir a angústia
sob qualquer forma possível. De outro lado, a palavra que a deixa
irromper e termina igualmente por impossibilitar a expressão do que é o
objetivo primordial da interpretação — a mobilidade do desejo, a
emergência do sujeito desejante.
1 Endereço
para Correspondência: Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica
- Instituto de Psicologia UFRJ, Av. Pasteur,250 fundos, 22290-240, Rio
de Janeiro, RJ. Fone/Fax:(21) 2948403. E-mail: aclobianco@gbl.com.br
2 O processo editorial deste artigo foi realizado pela Editora Responsável da revista Profª. Drª. Sílvia Helena Koller.
3
Usamos aqui uma tradução diferente da que tradicionalmente se faz na
Língua Portuguesa que é "Interpretação dos Sonhos". A Língua Alemã
faculta, sem dúvida, essa possibilidade. Mas menos voltados para as
questões de tradução (em francês Traumdeutung se transformou na Science des Rêves!)
e de exatidão de seus termos, estamos interessados em valorizar uma
dimensão que, como veremos, está presente no texto freudiano: a de que o
sonho fornece um valor psíquico (Bedeutung) ao desejo inconsciente.
Referências
Balint, M. (1968). The basic fault. London:Tavistock Publications. [ Links ]
Etcheverry, J.L. (1996). Nota do tradutor à pág.533. La interpretación de los sueños. Em S. Freud obras completas, (Vol. V, pp.345-747). Buenos Aires: Amorrortu. [ Links ]
Ferreira, A.B. de H. (1975). Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio: Nova Fronteira. [ Links ]
Freud, S. (1996). Proyecto de psicologia para neurologos. Em S. Freud obras completas (Vol.I, pp.323-487). Buenos Aires: Amorrortu.(Original publicado em 1895) [ Links ]
Freud, S. (1996). La interpretación de los sueños. Em S. Freud obras completas (Vol.IV, pp.1-344 e Vol.V, pp.345-747). Buenos Aires: Amorrortu. (Original publicado em 1900) [ Links ]
Freud, S. (1996). Pulsiones y destinos de pulsión. Em S. Freud obras completas (Vol.XIV, pp.105-134). Buenos Aires: Amorrortu.( Original publicado em 1915) [ Links ]
Freud, S. (1996). Observaciones sobre la teoría y la práctica de la interpretación de los sueños. Em S. Freud obras completas (Vol.XIV, pp.107-122). Buenos Aires: Amorrortu. (Original publicado em 1923) [ Links ]
Freud, S. (1996). Algunas notas adicionales a la interpretación de los sueños en conjunto. Em S. Freud obras completas (Vol.XIX, pp.123-140). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Original publicado em 1925) [ Links ]
Garcia-Roza, L.A. (1991). Introdução à metapsicologia freudiana 1. Rio: Jorge Zahar [ Links ]
Lacan, J. (1962/1963). Angústia. Seminário Inédito. [ Links ]
Miller, J.-A. (1996). Inconsciente @ intérprete. Freudiana, Publicación de la Escuela Europea de Psicoanálisis de Catalunya, 17, 7-61
Recebido em 08.03.99
Revisado em 03.05.99
Aceito em 27.08.99
Revisado em 03.05.99
Aceito em 27.08.99
Sobre a autora:
Anna Carolina Lo Bianco
é PhD em Psicologia pela Universidade de Londres, psicanalista,
professora do Instituto de Psicologia da UFRJ e coordenadora do Programa
de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do mesmo Instituto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário