terça-feira, 21 de agosto de 2012

A NOÇÃO FREUDIANA DE CONSTRUÇÃO
(The Freudian Notion of Construction)
Márcio Zanardini Vegas
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Psicanalista em Curitiba e autor do livro “A Noção Freudiana de Construção”.
E-mail: marciozvegas@gmail.com
Fernando Aguiar
Doutor em Filosofia pela Université Catholique de Louvain (UCL, Bélgica).
Professor do Departamento de Psicologia e do PPG em Psicologia da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC).
E-mail: fabs@cfh.ufsc.br
Resumo: Freud formalizou a noção de construção tardiamente, em 1937; portanto, já no final de sua vida e
obra. Sempre relacionada à interpretação, à maneira (heurística) de tanto outros pares antitéticos,
a construção se tornou na atualidade um procedimento técnico de pouco prestígio, em particular
na clínica lacaniana, e sua menção praticamente desapareceu dos textos psicanalíticos. Este
artigo propõe-se a examinar o estatuto da noção de construção, conforme a lógica própria e
imanente à clínica e à metapsicologia freudianas. O trabalho de construir visa enlaçar o que há de
compulsivo e irrepresentável, e não pode ser interpretado, é uma tentativa de atingir de maneira
alusiva o núcleo do recalque, de tal forma que o construído passe a operar como verdade.
Palavras-chave: construção; direção do tratamento; fantasia.
Abstract: Freud's notion of construction was lately formalized, in 1937; therefore, in the end of his life and
work. Always related to interpretation, through the heuristic manner of so many other antiethical
pairs, the construction became on present time a technical procedure of low prestige, in particular
regarding the lacanian clinic, and its mention practically disappeared from the psychoanalytical
texts. This article has the objective of examining the construction notion statute, according to the
peculiar logic comprehended by the Freudian clinic and metapsychologies. The work of
construction takes aim of entwining that of compulsive and non-representable, and it can't be
interpreted, being an attempt of attaining in an allusive way the nucles of repression, in such way
that the constructed may operate as the truth.
Key-words: construction; cure management; fantasy.
A técnica psicanalítica da construção se faz presente na clínica freudiana desde os seus
primórdios, e pode ser encontrada nos diversos relatos de casos clínicos lado a lado com a
prática da interpretação. No entanto, Freud pouco se deteve em descrever tal técnica por
considerá-la, segundo suas palavras, “auto-evidente". Dedica à noção, especificamente,
apenas um texto de sua obra, e já ao final de sua vida – o que também não deixa de ser
curioso. Ao menos é o que o título nos faz crer: “Construções em Análise” (1937a).1
Contudo, não se pode considerar tal técnica como de menor importância no tratamento
freudiano; pelo contrário, está presente em todo processo de análise e ocupa lugar decisivo
para um final de análise.
Contudo, na contemporaneidade, especificamente entre os autores freudo-lacanianos
parece consenso que a construção não é trabalho do analista. As obras que de algum modo
abordam a temática tratam-na com alguma estranheza e até mesmo escárnio, colocando o uso
de tal técnica como sendo um erro de Freud. A construção, da parte do analista, é uma
técnica condenada entre os seguidores de Lacan: é antes trabalho do analisando na
construção da fantasia, cabendo ao analista fazer-se de objeto a – objeto causa do desejo.
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Diante de seu ínfimo prestígio atual, e devido ao pouco tempo a ela dedicado pelo
fundador da psicanálise, a noção precisa ser revisitada, com o fim de explicitar seu valor
efetivo no trabalho clínico de Freud e da própria psicanálise. Nosso ponto de partida ou de
referência já foi anunciado, ou seja, o único texto de Freud sobre o tema, “Construções em
Análise”, de 1937. O percurso ali empreendido por Freud define também o deste artigo, além
de remeter a outros textos do fundador que circundam a nossa temática.
Construções em análise
A intenção de escrever o texto de 1937, segundo o próprio Freud, era apresentar uma
resposta às críticas feitas à psicanálise por supostamente colocar o psicanalista no lugar de
mestre, senhor da verdade. Tal crítica se baseia no seguinte raciocínio: se uma interpretação é
aceita, ela está correta, mas se é rejeitada não significa um erro, e sim uma resistência do
paciente ao tratamento. Ou seja, o paciente concordando ou não, o analista estaria sempre
com a razão.
O princípio de sua argumentação se faz com uma descrição sobre o processo de análise.
Segundo Freud (1937a), a finalidade de uma análise é o abandono de formas de satisfação
primitivas e sintomáticas. Para tanto, faz-se necessário acessar de forma completa os
registros recalcados basilares do sintoma. Este acesso se dá por diversas vias: sonhos, chistes,
atos falhos, repetições, formações do inconsciente favorecidas pela transferência com o
analista. É deste modo que se obtém todo material relativo a um possível desfecho de uma
psicanálise.
Uma análise, para Freud (1937a), consiste em duas tarefas, desenvolvidas quase de
maneira independentes. Ao analisando cabe dizer tudo o que lhe vem à alma em busca das
recordações perdidas, e a tarefa do analista é “[...] completar [zu erraten, de fato, adivinhar,
supor] aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou, mais
corretamente, construí-lo” (p.276). A comunicação da construção é o ponto de encontro entre
estes dois trabalhos. A ausência de uma formalização anterior é explicada por considerá-la
auto-evidente, e o faz neste texto apenas visando outro propósito. Ou seja, curiosamente, o
objetivo do texto não é apresentar a noção de construção como o título deixa entender, mas
defender-se das acusações apresentadas e, tendo a construção como lastro, evitar o uso
inadequado da interpretação.
O construir é posto como trabalho preliminar, pois se faz necessário completar um
fragmento para em seguida comunicá-lo ao analisando, que por sua vez age sobre este
material, dando subsídios para uma nova construção do analista. O fragmento construído
versa sobre a “história primeva esquecida”, e possui, portanto, uma proximidade com a
verdade almejada.
Aliás, esse é o ponto em que Freud (1937a) diferencia a construção da interpretação: a
esta última “aplica-se a algo que se faz a algum elemento isolado do material, tal como uma
associação ou uma parapraxia [ato falho]” (p.279). Ou seja, a construção é mais ampla no seu
conteúdo, na produção de sentido, e de maior alcance na aproximação do núcleo recalcado
do que a interpretação. Com tal, pode-se mesmo dizer que a construção é uma
superinterpretação na direção dos objetivos da análise. Por suas características, a sua
comunicação exige certo tempo transcorrido de análise, pois incide sobre conteúdos que o
paciente não foi capaz de lembrar, portanto, diferente dos rememoráveis em análise.
Contudo, a construção, ao contrário da interpretação, poucas vezes produz uma
recordação do material apresentado, no entanto, gera efeitos terapêuticos idênticos ao do
recordar e uma forte crença na realidade da cena apresentada. O que possibilita tal efeito?
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Antes de apresentar as explicações sobre tal fato é necessário fazer alguns apontamentos
sobre o que se constrói em análise.
Por um lado, a construção toca num campo em que o recordar é impossível pela
associação livre do analisando e a interpretação do analista. Por outro, talvez não exista uma
lembrança a ser recordada, seja porque seu conteúdo é uma produção do inconsciente e a
rigor não pode ter sido esquecido; seja por tocar algo fora do campo representacional, como
um “puro pulsional”.
Mas será outra a direção tomada por Freud para explicar o não-recordar pela ação da
resistência, observando que, em contrapartida, se produz imagens “ultra-claras” de detalhes
acessórios da cena construída. Dito de outra maneira, existe o deslocamento da intensidade
psíquica para dados pouco relevantes, capazes de escapar à censura. Trata-se de uma
explicação coerente com o sistema de pensamento freudiano, pois credita às ações defensivas
a permanência de uma representação no inconsciente, dentro da dicotomia conscienteinconsciente.
Mas existe também, na descrição do psiquismo, algo que ultrapassa essa
dimensão representacional (de palavras e de coisas), que na segunda tópica recebe o nome de
Isso. Dispomos assim de uma brecha para pensar em outras explicações para a afirmativa
segundo a qual a construção não produz uma recordação, pois essa segunda descrição do
aparelho psíquico rompe as dimensões consciente, inconsciente, aplicáveis apenas às idéias.
Outro fundamento para as hipóteses levantadas, para além das propostas pelo mestre, é
verificar que em seu texto imediatamente anterior, “Análise terminável e interminável”,
Freud (1937b), debate exaustivamente os limites do tratamento analítico e o fim da análise. O
propósito outro citado por Freud (1937a), com o texto em questão, não seria também
vislumbrar acréscimos, avanços ao tratamento, para além dos limites do rememorável? Existe
algo além do princípio de prazer que opera e produz efeitos na vida das pessoas.
Retornemos aos enigmáticos efeitos da construção: a cena construída pelo analista não
é recordada pelo paciente, mas advém a crença na verdade da sua existência. Freud (1937a)
espanta-se com tal situação, por entender que apenas trazendo para o consciente o
inconsciente é possível chegar a uma “cura” da neurose. No entanto, ele obtém efeitos
semelhantes prescindindo da recordação. Apresenta assim a seguinte questão: “Como é
possível que aquilo que parece ser um substituto incompleto produza, todavia, um resultado
completo” (p.284). Há um interesse em explicar os efeitos produzidos pela construção na
vida do analisando, apesar dele não conseguir lembrar a cena construída.
A comunicação de uma construção produz recordações “ultra-claras”, imagens
secundárias à cena produzidas em sonhos, ou mesmo em estado de vigília, semelhantes a
fantasias: “Essas recordações poderiam ser descritas como alucinações, se uma crença em
sua presença concreta se tivesse somado à sua clareza” (ib, p.285). No entanto, a crença em
sua existência como registro pré-existente é condição para se dizer que a construção foi bem
sucedida. O termo crença deve ser entendido num sentido que excede o campo da vontade,
do consentimento do sujeito, a tal ponto que sua demonstração se faz mais pelos efeitos que
produz, do que pelo julgamento do analisando sobre a sua realidade. O analisando não
precisa declarar sua crença na cena construída, mas demonstrar que ela opera como verdade
em sua vida.
Freud (1937a) aventa a hipótese de as alucinações em geral se constituírem a partir do
material experimentado na infância, depois esquecido, e que retorna: algo visto ou ouvido
pela criança numa época em que ainda mal podia falar. E afirma que os delírios psicóticos
possuem estreita relação com as moções pulsionais inconscientes e o retorno do recalcado.
Admitindo a hipótese de que o material constituinte dos delírios possui semelhanças com o
conteúdo construído em análise, cabe um exame da natureza dos delírios e de que como tal
aproximação é possível.
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O delírio, para Freud (1937a), possui um funcionamento no qual se destacam dois
fatores: o afastamento da realidade e a influência exercida sobre o conteúdo do delírio pela
realização de um desejo. À maneira dos sonhos, ele apresenta o delírio como um
aproveitamento oportunista do impulso recalcado frente ao afastamento da realidade para
ascender à consciência, enquanto as resistências deformam e deslocam o material que vem à
tona. O crucial nesta concepção não é apenas a existência de “método na loucura, [...], mas
também [a existência de] um fragmento de verdade histórica, sendo plausível supor que a
crença compulsiva que se liga aos delírios derive sua força exatamente de fontes infantis”
(p.285).
Freud (1937a) destaca a importância do estudo da psicose, apesar de ter-se dedicado
pouco a ela em sua clínica, e de como é possível, dessa maneira, entender o funcionamento
do aparelho psíquico: é como se fosse um sonho acontecendo sob os olhos do analista. É um
modelo para a compreensão da neurose, como na analogia que se segue:
Os delírios dos pacientes parecem-me ser os equivalentes das construções que erguemos no decurso
do tratamento analítico – tentativas de explicação e de cura [...]. Será tarefa de cada investigação
individual revelar as conexões íntimas existentes entre o material da rejeição atual e o da repressão
[recalque] original. Tal como nossa construção só é eficaz porque recupera um fragmento da
experiência perdida, assim também o delírio deve seu poder convincente ao elemento de verdade
histórica que ele insere no lugar da realidade rejeitada (1937a, p.286). [grifos nossos]
As comparações de Freud entre o delírio na psicose e a construção na análise remetem à
fantasia na neurose como sendo outro equivalente. Tomemos como similares o material da
construção, o da fantasia e o do delírio, “um substituto incompleto que produz efeito
completo” sobre o recalcado. Admitindo esta hipótese, é necessário aprofundar no
entendimento da natureza deste recalcado e, também, como a construção produz efeito de
verdade no processo de análise. Vale seguir as indicações sobre o estudo das psicoses e nos
aproximarmos do estudo da fantasia para entender os seus efeitos e a que ela se destina.
O método na loucura
Não só por sua (relativa) raridade, o texto de Freud mais importante dedicado ao tema
da psicose (ou neurose narcísica, como ele chegou a propor) é indubitavelmente “O caso
Schreber”, um de seus cinco grandes historiais clínicos,3 publicado em 1911. Não se trata de
um paciente de Freud, mas refere-se, como anunciado no subtítulo, a um estudo sobre o
relato autobiográfico de um caso de paranóia, escrito pelo Dr. Schreber sobre a sua própria
doença. Freud (1911) reconhece na paranóia a possibilidade de investigar, mesmo que de
maneira deformada, aquilo que o neurótico procura manter escondido. Isso, por entender que
a diferença entre ambas, em parte, refere-se à intensidade do conflito psíquico. O psicótico
vive aquilo que o sintoma neurótico apenas figura.
Resumidamente, a história do Dr. Schreber consiste num delírio estruturado que em sua
forma final faz dele o escolhido por Deus para repovoar a Terra. Para isso, torna-se
necessário sua transformação em mulher, a mulher de Deus, a fim de por Ele ser fecundado e
gerar com seus filhos uma nova humanidade.
Freud (1911), na medida em que apresenta o histórico de Schreber – desde o episódio
inicial de hipocondria até chegar ao delírio em sua forma final – formula explicações sobre a
progressão da doença e, num trajeto regressivo, de como o delírio se constrói para responder
a um conflito psíquico. Para Freud, aliás, trata-se de essencialmente um o conflito a que o
delírio pretende resolver em todos os casos masculinos de paranóia: a fantasia de desejo
homossexual de amar um homem, mais precisamente o pai ou alguém que figure como tal.
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Para chegar a esse ponto de generalização é preciso percorrer parte do histórico do
Senatspräsident Schreber, a começar por sua relação com seu primeiro médico, o Prof.
Flechsig, de grande importância para o seu delírio na fase bem estruturada. No início do
delírio de perseguição, o médico ocupava lugar central, e mesmo em momento posterior – o
de conciliação com o desejo homossexual – ele permanece como seu instigador durante todo
o curso da doença. Flechsig é visto como um assassino da alma, de quem provém a ameaça
de emasculação contra Schreber. A alma de Flechsig é categorizada com subdivisões iguais
as descritas para se referir a Deus em momento posterior de seu livro: “Deus Flechsig”.
É interessante notar que a figura do médico, temida e odiada, foi antes amada e
honrada. Foi ele quem o tratou durante a primeira internação, e após a sua alta passou a
receber intensa devoção da esposa de Schreber, a ponto de compor um porta-retrato em sua
casa. Mas a mudança afetiva frente à figura do médico é uma reação ao despertar da fantasia
de assumir perante ele uma atitude feminina. O desejo de ser possuído pelo médico
transforma-se em medo de sofrer abuso sexual – esta é a solução temporária manifesta em
seu delírio. É mais suportável para o eu sentir-se perseguido sexualmente por um homem do
que assumir a existência de um desejo de servir de mulher para ele.
O sentimento pelo Dr. Flechsig foi o que possibilitou a ascensão da fantasia
homossexual muito antiga, localizada por Freud (1911) entre o narcisismo e as primeiras
escolhas objetais. Nesse tempo (lógico), a tendência é que as primeiras escolhas sejam pelo
semelhante ao eu, portanto homossexual (“sexo igual”). Claro que outros fatores aparecem
em cena no desencadear da doença de Schreber, como, por exemplo, o pesar que sentia por
não ter tido filhos (não ser pai). De fato, não se trata de um caso de homossexualidade, mas
sim de desejos homossexuais próprios à organização infantil que eclodiram na vida adulta. O
delírio de ser transformado em mulher de Deus é a saída para conciliar esse desejo, que nos
neuróticos pode ter outros destinos, como o recalque e a sublimação. Aliás, no presente caso
tal desejo permaneceu escondido por muito tempo, até algo despertar essa libido
homossexual. Freud levanta hipóteses, como a morte de seu pai e irmão e uma promoção
profissional.
A mudança da figura do médico para Deus parece ser um agravamento da doença, mas
é o que possibilitou alguma resolução no conflito. Tratando-se de um pedido de Deus, a
mudança de sexo e a idéia de ser tomado sexualmente como mulher entram em consonância
ao que Schreber chama a “ordem das coisas”. E ele tinha razão, pois o eu pode ser incluído
nesse desejo pela intensa satisfação narcísica colocada à disposição: a honra de ser mulher de
Deus. Restabelece-se a ordem das coisas no aparelho psíquico, pois se conciliou algo que
antes era insuportável.
É possível remontar esse desejo homossexual a um tempo anterior ao surgimento do
médico na vida de Schreber. Freud (1911) relaciona a figura de Deus e do médico, e estes
com o pai do pequeno Schreber: o Doutor, pois era um famoso médico. Doutor Daniel
Gottlob Schreber, cujo segundo nome, que pode ser traduzido por “Louvor a Deus”, contém
nele mesmo a explicação para as discussões de Schreber com Deus, principalmente pela
semelhança aos conflitos de uma criança com o pai amado. O medo da ameaça de castração
do pai versus seu amor fornece o material para a fantasia de desejo de ser transformado em
mulher.
Depois de confrontar com seus colegas analistas outros casos de psicose, Freud (1911)
fica estupefato ao encontrar como típico dos casos de delírio paranóide a existência, no cerne
do conflito psíquico, de uma fantasia de desejo homossexual. Enuncia tal fantasia de desejo
da seguinte maneira: “eu amo o homem” (o pai). Fazendo jogos de palavra com este
enunciado e criando novas combinações, apresenta as variações possíveis nos casos de
paranóia:
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1. Delírio de perseguição: o “eu amo o homem” apresenta-se por duas inversões “o
homem me odeia”. O amor vira ódio e o eu, de sujeito torna-se objeto;
2. Erotomania: “ela me ama”. Inverte-se o sexo com quem se estabelece relação, bem
como o eu se torna o objeto de amor. O “alvo” passa a ser feminino, enquanto
sujeito da oração;
3. Delírios de ciúme: “ela ama o homem”. Todo o processo está fora do eu, pois ele
não é nem sujeito, nem objeto dos investimentos pulsionais. Contradiz o sujeito, ou
seja, exclui o eu;
4. Megalomania: nega toda a sentença: “não amo ninguém, só a mim mesmo”. O eu
torna-se o objeto de si mesmo excluíndo a relação com qualquer outro. Há o autoenaltecimento.
É preciso considerar o delírio como uma reação frente ao desejo e à ameaça que este
representa à coerência do eu. Inventa-se uma nova realidade capaz de comportar o desejo
ascendente. “A formação delirante, que presumimos ser produto patológico, é, na realidade,
uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução” (1911, p.78). Construção
de um mundo novo capaz de conciliar a falha no recalque do desejo pelo pai. Após o
recalque, a tendência está em procurar estabelecer ligações substitutas, sendo a instância do
eu, na paranóia, o objeto privilegiado de investimento da libido – é um retorno ao narcisismo.
Isso torna possível uma construção da realidade delirante.
As produções do inconsciente carregam um saber, seja no delírio, no sintoma ou na
fantasia. A construção está cercada por esse universo conceitual de formações inconscientes,
no entanto, ela surge exatamente onde não é possível interpretar. Se Freud usa o delírio como
modelo da construção, isso nos faz pensar que ela se presta aos mesmos alvos. E a fantasia
inconsciente, em que medida nos serve para pensar a construção?
As fantasias perversas
Em 1919, Freud publica “Uma Criança é Espancada”. A partir de seis casos clínicos
(quatro mulheres e dois homens, neuróticos e não neuróticos), ele aborda uma fantasia cujo
conteúdo nomeia o referido texto. A fantasia da “criança espancada” envolve alto grau de
prazer de ordem sado-masoquista e surge na mais tenra infância como um traço primário de
perversão que mais tarde pode ser recalcado. Trata-se de uma parcela do sexual que
permanece fixado a essa forma de satisfação. A maneira como os analisandos a narram em
análise é produto de um processo histórico de elaboração e sofrem diversas modificações
durante o seu desenvolvimento.
Freud (1919) inicia sua narrativa pelos casos femininos, afirmando que, numa primeira
fase de elaboração da fantasia “bate-se numa criança”, quem é espancado não é a pessoa
criadora da fantasia e sim uma outra criança conhecida, como um irmão ou irmã. Na outra
ponta da cena está a pessoa espancadora, um adulto que será reconhecido apenas em outra
etapa como sendo o pai da menina fantasiadora. Essa primeira fase da fantasia pode ser
apresentada na seguinte sentença: “alguém está batendo nunca criança”.
Numa segunda fase ocorre uma importante transformação. O pai é claramente o
espancador, e quem passa a apanhar é a própria criança: “Estou sendo espancada pelo meu
pai” é a nova sentença, o que torna a fantasia marcadamente masoquista. Um intenso prazer é
adicionado à cena fantasiada.
Essa segunda fase é a mais importante e a mais significativa de todas. Pode-se dizer, porém, que,
num certo sentido, jamais teve existência real. Nunca é lembrada, jamais conseguiu tornar-se
consciente. É uma construção da análise, mas nem por isso é menos uma necessidade (Freud 1919,
p.201). [grifos nossos]
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Está claramente dito tratar-se de uma fantasia o construído em análise, e impossível de
ser lembrado pela associação livre. Para Freud, essa construção possui o conteúdo mais
importante e significativo da fantasia.
A terceira etapa assemelha-se à primeira, no sentido de que as pacientes são capazes de
comunicá-la. Além disso, quem bate não é mais o pai: ou a figura permanece indeterminada
como na primeira fase ou se torna um substituto do pai, como por exemplo, um professor.
Quem sofre a agressão não é apenas uma criança, mas diversas e todas do sexo masculino,
cujas identidades são diferentes da pessoa criadora da fantasia – inclusive, não se consegue
reconhecer as crianças nem como próximas ou sequer conhecidas. Entretanto, algo é muito
diferente da primeira fase: a existência de uma intensa excitação sexual, derivada da segunda
fase, que procura satisfação pela masturbação. Outra característica dessa fase é que o
espancamento pode ser substituído por cenas de humilhação ou castigos. A sentença é esta:
“Alguém bate e/ou humilha meninos (desconhecidos)”. A fase é marcadamente sádica e
torna-se detentora de forma permanente dessas tendências libidinais na vida adulta.
Deduz-se (adivinha-se?) a segunda etapa pela diferença entre a primeira e a última,
acessíveis pela associação livre – o que explica a intensa satisfação acrescida na passagem de
uma etapa a outra – e também possibilita identificar os seus reais agentes pelos
representantes do pai e da própria criança identificados nas outras etapas.
Freud (1919) afirma ser possível encontrar no processo de análise a criança na época
envolvida com questões relativas ao pai, ao complexo paterno – expressão com a qual Freud
designa, no complexo de Édipo, a relação ambivalente em relação ao pai – caso se chegue até
o período infantil em que tal fantasia é constituída. Existe uma ambivalência de sentimentos
para com aquele que é tomado como objeto, e a necessidade de dividir sua atenção e ternura
com outros, impondo-lhe uma perda de um lugar imaginário de onipotência (narcisismo).
Logo, a fantasia é o produto do conflito posto entre a realidade e os desejos infantis, e pode
ser retratada da seguinte maneira: “O meu pai não ama essa criança, ama apenas a mim”. A
fantasia não resolve o conflito, mas retrata a ambivalência de sentimentos: ser amada pelo pai
e o medo de perder esse amor possibilitam a satisfação por duas vias opostas.
Tudo isso se realiza sob alienação do eu. Encena-se na segunda fase a perda desse
amor, como forma de satisfazer a um sentimento de culpa por ser (imaginariamente) o objeto
incestuoso. Além disso, a organização genital regride para a etapa anal-sádica, ou seja, a
sentença “o meu pai me ama” precisa ser distorcida e na regressão da organização sexual
aparece com a equivalente “o meu pai está me batendo”. Desta maneira consegue satisfazer,
ao mesmo tempo, o sentimento de culpa e o amor em relação ao pai. “Não é apenas o castigo
pela relação genital proibida, mas também o substituto regressivo daquela relação” (Freud
1919, p.205). A fantasia é literalmente uma masturbação mental.
Freud (1919) entende que a fantasia construída (segunda etapa) nessas análises
permanece inconsciente, provavelmente em função da intensidade do recalcamento. Ou seja,
trata-se de algo registrado no inconsciente, mas em função da relevância de seu conteúdo a
pressão para que essa representação permaneça no inconsciente é tal que não se consegue
acessá-la por associação, é preciso que o analista use os fragmentos deixados pelo paciente e
reconstrua esta cena. A hipótese é que esse conteúdo está no inconsciente, e o analista apenas
o denuncia. A construção em Freud equivale a pôr em palavras o que se deduz existir de
modo inconsciente pelos indicativos deixados na fala do paciente a respeito de sua tenra
infância.
Para demonstrar a existência de um registro prévio no inconsciente da fantasia
construída, ele utiliza o caso de um homem que era capaz de lembrar da cena de ser
espancado por sua mãe. Freud acredita existir uma fase anterior no homem que permanece
inconsciente: a inversão do papel entre ele e sua mãe. Se essa é a peça fundamental na
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fantasia masculina, então a etapa de ser espancado pela mãe permanece acessível por já ser
um substituto da fantasia fundamental. Logo, resta também no homem algo a ser construído
em análise; e, ao contrário do que pode fazer crer, a prova freudiana de que o construído já
estava inscrito é ineficiente aos seus propósitos, pois o lembrado não equivale ao construído.
A etapa fundamental recalcada no menino é também o desejo de ser espancado pelo
pai, como uma manifestação regressiva do seu amor por ele, e antes da etapa final do
complexo de Édipo em que o pai passa a ser novamente objeto de identificação. Pois, como
afirma o próprio Freud (1919), essa fantasia é uma cicatriz, um resíduo, uma marca da
passagem pelo complexo de Édipo, e posteriormente recalcada. O pai, aqui também, assim
como no delírio paranóico anteriormente apresentado no caso Schreber, está no centro de sua
organização. Pode-se afirmar que a relação ao pai apresenta contornos próprios na
constituição do sujeito e está na base das formações desse tipo de fantasia, dos delírios
paranóicos e, por que não dizer, da construção em Freud. “Não me surpreenderia se algum
dia fosse possível provar que a mesma fantasia é a base do delirante espírito litigioso da
paranóia” (1919, p.210).
Ainda é importante destacar que, independente das diferenças no roteiro feminino e
masculino dessa fantasia de espancamento, e para além do mecanismo de recalcamento
aplicado ao Édipo, existe também a regressão, enquanto mecanismo de defesa criador das
condições para a realização da fantasia. Ou seja, não apenas o recalcamento explica a
impossibilidade de acessar o “desejo pelo pai”, mas a sua regressão a um período anterior de
organização garante a sua realização e, ao mesmo tempo, sua “invisibilidade”. Dessa forma
percebe-se que o mecanismo de regressão possui importante papel na regulação do
psiquismo, destacando-se junto com o recalcamento na tentativa de garantir que certos
conteúdos se mantenham à distância da consciência. Além de interpretar, é preciso percorrer
o sentido inverso da organização do sintoma para desvendá-lo, reconstituir sua história,
reconstruí-la.
Até o momento, abordou-se o delírio e a fantasia enquanto um modelo para a
construção, e entendidas como tentativas de dar resolução a um conflito primitivo e que
marcam um modo de organização do sujeito. Esses trabalhos indicam o complexo paterno e o
narcisismo como conceitos fundamentais na explicação desses primórdios. Propomos assim
aprofundar com eles este estudo, verificando a construção na prática de um caso clínico, um
dos mais importantes e debatidos: o Caso do Homem dos lobos (1918), um trabalho posterior
à analise dos delírios de Schreber (1911) e anterior ao das fantasias de ser espancado (1919).
As construções sobre o Homem dos lobos
O relato do caso do Homem dos lobos foi publicado em 1918 com poucos acréscimos
à sua escritura, quase toda já realizada em 1914. Este atraso na publicação sem dúvida deveuse
à primeira Grande Guerra; em contrapartida, dele se beneficiou a questão do sigilo, não
tivesse Sergei Constantinovitch Pankejeff se tornado mais tarde um personagem público,
tendo mesmo publicado sua autobiografia. Esse é também um momento de debate entre
Freud e os psicanalistas da época em relação a alguns conceitos, e de certa maneira uma
continuidade do apresentado em “História do Movimento Psicanalítico” (1914).
Discordâncias teóricas entre Freud, Jung e Adler começaram em 1910 e culminaram na
dissidência destes do movimento psicanalítico, menos pelo desejo em montar novas escolas,
do que pela declarada pressão da figura de Freud ao rejeitar veementemente suas
proposições. Na época, até se comentou a existência de três escolas de psicanálise, mas Freud
em 1914 decide o debate, usando sua posição de fundador, estabelecendo critérios para que
um tratamento pudesse ser considerado uma psicanálise. Uma das conseqüências desse
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confronto é a fundação da Psicologia Analítica, por Jung, e da Psicologia Individual, por
Adler.
A discordância de Jung em relação a Freud está focada na concepção de sexualidade
infantil e a definição de libido enquanto energia sexual. Jung acreditava ser “neutra” a
energia que anima a vida, sendo a sexualidade uma de suas vicissitudes. Ou seja, a
sexualidade como centro da vida anímica desagradava a Jung, que, tentado a adentrar o
sedento e puritano mercado americano, preferiu abrir mão desse aspecto central da
psicanálise. Duro golpe para Freud, que via no médico de Zürich seu sucessor, e o único
capaz, inclusive por sua origem não-judaica, de estender os domínios psicanalíticos por toda
Europa.
Em relação a Adler, tratava-se do incômodo de estar “à sombra”, como nos conta Freud
(1914). Ele construiu sua própria teoria, apoiada na idéia da existência de um “protesto
masculino” como fator dominante na neurose, colocando o inconsciente em segundo plano
em favor do eu. Para Freud (1914), Adler propõe uma verdadeira visão de mundo, assim
como a filosofia, na medida em que busca explicar não apenas o funcionamento do
psiquismo humano, mas também quer refletir sobre as coisas do mundo e definir um modo
dos pacientes se conduzirem na vida.
Essa situação descreve parte do momento político que cerca a escritura do caso clínico
do “Homem dos lobos”, e Freud precisa comprovar suas teorias e apresentar argumentos para
refutar a dos outros, a fim de garantir a sua concepção sobre o psiquismo humano e os
aspectos fundamentais de sua teoria. A necessidade de responder a esse aspecto político
expõe o caso a riscos – se comprovar as teorias for mais importante do que ouvir o paciente.
Aliás, interpretações nesse sentido são apresentadas no livro da Associação Mundial de
Psicanálise (1996), que afirmam ser esse caso uma tentativa de comprovar o Édipo em
detrimento ao próprio caso clínico. Lê-se mesmo, em Roudinesco (1998), que Freud chega a
inventar vários detalhes do caso, inclusive o que chama de “estarrecedora cena primária”
(p.565), e muito mais tarde negada por Sergei em entrevista publicada no formato de livro
por uma jornalista vienense.
O “Homem dos lobos” é uma descrição detalhada sobre o tratamento de um jovem que
se encontrava incapacitado e em cuja infância (aos seis anos) apresentou um quadro de fobia
seguido de uma neurose obsessiva de conteúdo religioso. Aos dez anos apresentou os
primeiro sinais de uma grave neurose. Por volta dos vinte anos, sua irmã e pai se suicidaram
num intervalo de dois anos. Na vida adulta, apresentava distúrbios intestinais permanentes.
Um dos momentos mais importantes do caso e também pertinentes a este trabalho é a análise
de um sonho de angústia que o paciente teve com apenas quatro anos de idade: a janela de
seu quarto se abre, lá fora a imagem de seis ou sete lobos brancos sentados em cima de uma
grande árvore, e ele, tomado de pavor de ser por eles devorado. É a partir desse sonho que
Freud faz a construção da cena primária. É da análise desse sonho que se presume a causa
de sua fobia: o medo/amor que sentia por seu pai. A atitude ambivalente em relação a todo
representante paterno foi o aspecto dominante de sua vida, assim como durante a análise com
Freud.
Este sonho é o primeiro momento a trazer à tona o temor ao pai. A análise parcial
realizada por Freud (1918) aponta os seguintes fragmentos utilizados numa construção
posterior: “uma ocorrência real – datando de um período muito prematuro – olhar –
imobilidade – problemas sexuais – castração – o pai – algo terrível” (p.46). Essa seqüência
indica ser este um sonho de angústia, causada pela realização de um desejo de satisfação
sexual com o pai enquanto a revivescência de uma lembrança anterior. Refere-se a uma
ocorrência real, em que a satisfação sexual com o pai é experienciada através da observação
de um possível coito a tergo (relação sexual em posição como a dos animais, de quatro) entre
o pai e a mãe. Essa cena possibilitou-o saber da diferença sexual anatômica, e de sua
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castração como condição para se obter tal satisfação sexual. O desejo em relação ao pai
obriga-o a se posicionar como mulher, ou seja, castrado. No sonho dos lobos existe, de forma
deformada, uma realização de desejo pelo pai, e junto desta o medo da castração, é a
ambivalência do complexo paterno.
O caso segue com uma discussão, em dois tempos, sobre a realidade da cena primária,
cena construída em análise. Trata-se de refletir sobre as duas vertentes dentro do movimento
psicanalítico: uma, a de Freud (1918), crente na realidade da cena primária construída, e
outra, que a considera uma produção imaginária regressiva dos pacientes. Embora
destacando que nada se altera no tratamento, caso seja correta uma ou outra vertente, os
fatos, porém, parecem reforçar a segunda vertente, pois “essas cenas da infância não são
reproduzidas durante o tratamento como lembranças, são produtos de construção” (p.61). A
disputa parece assim se resolver em favor da última hipótese. Porém, apoiando-se na
construção da cena primária no caso do Homem dos lobos, Freud afirma ter o conteúdo
dessas cenas um significado tão extraordinário para o histórico do caso, que elas apenas
podem ser “pressentidas – construídas – gradativa e laboriosamente a partir de um conjunto
de indicações” (ib, p.62). Mais ainda, apesar de não serem fruto de recordações, geram
sonhos, o que não deixa de ser uma forma de lembrar.
No primeiro tempo da discussão, relatada em 1914, Freud posiciona-se favoravelmente
à idéia da cena primária como uma cena ocorrida de fato – em parte, pelo sentimento de
convicção apresentado por seus pacientes. Rebate ao dizer que tal sentimento poderia ser
creditado a sugestão do analista ao comunicar sua construção. Ao considerar o uso da
sugestão na psicanálise, Freud afirma que isso a relegaria a seguinte situação: a diferença
entre a psicoterapia e a psicanálise se resumiria ao fato de a primeira tentar convencer o
paciente de que se está curado, enquanto a segunda o convenceria da verdade de uma cena
capaz de curá-lo. Ou seja, nenhuma diferença na prática, pois ambas precisariam creditar sua
eficácia ao efeito da sugestão.
Freud vai além ao dizer que outra crítica possível é de que, além de ser uma fantasia, a
cena primária é uma fantasia do analista, pois é ele quem a constrói a partir dos seus
próprios conteúdos. A réplica de Freud (1918) a essas críticas é no mínimo interessante:
Um analista que escuta essa reprimenda confortar-se-á a si mesmo recordando o quão gradativamente
veio à tona a construção dessa fantasia [grifo nosso] [...] e, quando tudo estava dito e feito, o modo
como ocorreu independente do incentivo do terapeuta (p.63).
É como se dissesse: só quem conhece o percurso na elaboração de uma construção é
capaz de julgar sobre a imparcialidade deste trabalho, pois é produto da escuta do discurso do
paciente. E mais, é por conta do seu potencial em solucionar o tratamento que acredita na sua
validade enquanto técnica, pois todo o presente caso passa a encontrar explicação e solução
na fantasia/cena primária construída na análise. Aqui não se pode ter dúvida sobre a
necessidade de redimensionar a discussão sobre a construção: o que se constrói em análise é
uma fantasia primária cujo efeito demonstra sua importância, especificamente para o final do
tratamento. Depois de “determinada fase do tratamento, tudo parecia convergir para essa
fantasia, e como mais tarde, na síntese, os mais variados e notáveis resultados irradiam-se
dela” (ib, p.63).
Está-se o mais próximo possível do recalque primário numa análise; ou pelo menos esta
é a tentativa freudiana, entendendo-o como aquele sofrido por um representanterepresentação
(Vorstellungrepräsentanz). Nele, o acesso da representação à consciência é
negado, ou seja, a sua capacidade de se ligar a uma representação de palavra
(Wortvorstellung) é obstruída de forma definitiva – por não poder ser dita, permanece,
irremediavelmente, inconsciente. Construir seria oferecer palavras próximas o suficiente à
representação impossível de ser dita, e a fantasia seria, por sua composição de representações
de coisa (Sachvorstellungen), uma forma de dizer sem palavras, ou melhor, encenar algo
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sobre esse indizível. Assim como o eu faz pressão para efetuar o recalque propriamente dito
(secundário), em contrapartida, no interior do Isso, o núcleo do recalcado procura atrair as
idéias que façam alguma alusão ao seu conteúdo.
O tratamento é capaz, pela interpretação, de levantar parte do material recalcado que
gravita ao redor de seu núcleo. No entanto, ao se abrir uma via de acesso até ele não é
suficiente para saber seu conteúdo, é preciso “construir” para capturar algo desse recalcado.
Considerações Finais
Temos assim, feito esse percurso, o seguinte panorama sobre a noção de construção: é o
trabalho longo e extensivo executado pelo analista em recolher ao longo de uma análise
fragmentos que lhe permitam reconstituir a cena em que a doença se funda e explica-se. A
construção enunciada é uma explicação sobre a causa de o sujeito ser como ele é. E ainda,
por conta da insistência do complexo paterno enquanto cerne dos delírios, fantasias e
formações sintomáticas vistos até então, pode-se afirmar que a relação ao pai está na causa
dessa organização.
Sobre a veracidade da cena primária, Freud acrescenta, em 1918, e em função das
descobertas apresentadas em “Os caminhos da formação dos sintomas” (1917), uma posição
bem diferente da defendida até então e pouco antes anunciada, de que a cena primária
realmente aconteceu: “certamente não há mais necessidade de duvidar que estejam lidando
apenas com uma fantasia.” (Freud 1918, p.67). No caso do homem dos lobos, a cena
construída aos quatro anos de idade – sobre a observação de uma relação sexual entre seus
pais quando tinha apenas pouco mais de um ano – é uma produção regressiva frente aos
momentos decisivos dos complexos de Édipo e de castração em que se encontrava. “A cena
que seria inventada tinha que preencher determinadas condições que, em conseqüência das
circunstâncias de vida do sonhador, só poderiam ser encontradas precisamente nesse período
primitivo [tenra infância]” (ib, p.69).
Apesar das descobertas feitas, Freud prefere encerrar esse tópico da discussão dizendo
serem as provas ainda inconclusas. No entanto, permanece fiel em relação às outras possíveis
acusações com as quais de antemão não se furtou em debater, principalmente ao repudiar a
idéia de que a construção é fruto de sugestão, imaginação do analista ou projeção de seus
conteúdos nos analisando.
Vejamos agora a situação precisa em que Freud busca demonstrar a injustiça de tal
afirmação: a análise faz um percurso em que várias recordações são deixadas de lado, mas
com o tempo e outras circunstâncias acrescidas fazem o analista ficar atento a certos
conteúdos até então tomados como sem importância. Trata-se, no presente caso, de uma crise
de angústia no paciente surgida enquanto caçava borboletas. Essa lembrança retornou
diversas vezes na análise, mas sem encontrar uma explicação. Porém, num certo dia o
paciente fala sobre uma borboleta que era chamada de “vovó” em sua língua materna. A
associação continua no sentido de demonstrar uma equivalência entre borboleta e mulher. A
borboleta caçada tinha listras amarelas e sobre essa característica Freud (1918) faz o seguinte
“esforço construtivo” (p.97): as listras poderiam ser semelhantes à roupa de alguma mulher.
O decorrer da análise mostraria o quão equivocado estava ele em sua construção com a
solução do enigma trazida pelo paciente.
Este exemplo parece mais congruente como interpretação do que como construção.
Talvez porque do ponto de vista prático, na sua clínica, fosse para Freud de pequena monta a
diferença entre construção e interpretação, ou está distinção clínica não lhe parecia com
suficiente clareza até então.
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A construção da cena primária é para Freud condição para a análise encontrar o seu
fim, contudo, seu processo começa já no início de uma análise, chegando ao seu termo
quando a fantasia fundamental é comunicada e produz um efeito de verdade sobre o paciente.
Por esse efeito, presume-se ser verdadeira aquela construção, fruto de um trabalho
meticuloso de recolher fragmentos, que por insistirem na cadeia discursiva do paciente
indicam sua importância futura. O trabalho é do analista, mas o conteúdo é do analisando.
É importante sublinhar neste caso clínico a maneira como, sem ignorar as críticas feitas
em sua época – aliás, semelhantes às contemporâneas –, ele se põe a defender sua posição.
Abre mão da realidade da cena primária e a assume como uma fantasia construída em
análise; mas procura demonstrar – destacando a importância da honestidade intelectual – o
seu valor técnico no final de análise. É a forma encontrada por Freud para solucionar o
tratamento.
Sobre uma possível oposição entre construção e interpretação como deixada a entender
no texto de 1937, deve-se admitir que os conceitos, em certos pontos, se interpenetram.
Primeiro é preciso defini-los nos seguintes termos: a construção é o trabalho feito pelo
analista de recolher, ao longo de uma análise, fragmentos extraídos do discurso do sujeito, da
relação transferencial e de seus atos que, reunidos, possibilitam explicar de que maneira o
sujeito se constituiu. Pelo seu aspecto imaginário, pode-se dizer que se reconstrói a fantasia
do analisando sobre si mesmo. Já a interpretação se mantém como qualquer intervenção do
analista. Ou seja, quando se comunica uma construção, também se faz uma interpretação.
Construir é um processo solitário de “escavação” e a interpretação, qualquer palavra ou ato
do psicanalista. Porém, em sua comunicação, a construção coincide com a interpretação.
Freud supõe que o sentimento de certeza provindo da comunicação da construção é
similar ao sentimento do psicótico em relação ao seu delírio porque ambos provêm da
presença de um elemento de verdade histórica. A construção toca o recalcado por alusão,
faz referência a ele, de tal maneira que pode ser visto como um equivalente disso cujo acesso
está bloqueado. A construção gera um representante2 desse recalcado original na consciência.
É importante ressaltar que em Freud (1937a) a construção é um substituto de uma lembrança
esquecida, e oriunda de um passado primevo. Isso destaca a importância dada por ele até o
fim de sua obra à existência de dados oriundos da realidade material na constituição do
sintoma. Mas não apenas isso: a construção cria uma possibilidade de “cura”. Freud crê que a
explicação apresentada possibilita um fim ao tratamento, como se fosse necessário ao
paciente um sentido sobre as suas origens e a de seu sintoma. É no recalque primário que
essa organização tem início, ele impulsiona o aparelho psíquico a buscar no exterior os
objetos de satisfação, criando as bases inclusive para o pensamento como o conhecemos.
A construção pretende enlaçar pela palavra o excedente pulsional não representável e
interromper o movimento compulsivo. Freud faz avançar o tratamento quando se esforça em
tocar o recalque primário e cria na consciência um equivalente daquilo que não pode ser dito.
Por fazer ressoar a verdade em causa, obtém a convicção do analisando sobre a sua realidade.
Contudo, não se pode deixar de considerar o lugar da transferência como potencializador (em
sua vertente sugestiva) da crença do sujeito sobre as palavras do analista. Parece que Freud,
aqui, está disposto a abrir mão da sua imparcialidade, talvez, por ser o único recurso que
dispunha com alguma eficiência para terminar a análise.
Notas
1 Nas referências às obras freudianas, por nos parecer relevante neste artigo a cronologia dos textos consultados,
aparecerá a data da primeira publicação, conforme sua notação internacional e, apenas nas referências
bibliográficas, ao final, a data da publicação e edição utilizada.
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2 Os demais historiais clínicos são conhecidos como: o caso Dora, o pequeno Hans , o Homem dos ratos e o
Homem dos lobos.
3 Enquanto lugar-tenente: aquilo que ocupa o lugar de outro.
Referências Bibliograficas
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Psicanálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed.
FREUD, Sigmund (1996). “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso
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_____. (1996). “História do movimento psicanalítico” (1914). In: Edição Standard Brasileira
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_____. (1996). “Os caminhos da formação do sintoma” (1917). In: Edição Standard
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das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. XXIII.
ROUDINESCO, Elisabeth. & PLON, Michel (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed.

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