Compartilho com vocês algo que escrevi no contexto da pós-graduação em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes, e com a ajuda de meu esposo e melhor interlocutor, Luís Fernando. Trata-se de um comentário ao texto lacaniano "Duas Notas sobre a Criança", que pode ser lido na íntegra aqui: http://acpsicanalise.org.br/index.php?option=com_content&view=a...
O primeiro comentário que Lacan faz neste texto, que resume o que é primordial considerar no atendimento à criança, é que o sintoma da criança responde ao que há de sintomático na estrutura familiar. A criança carrega consigo uma série de desejos inconscientes dos pais, de ideiais e projeções que, inevitavelmente, serão frustrados. Pais psiquicamente saudáveis saberão, em algum grau, que embora esses seus desejos sejam constituintes da criança e lhe dêem vida, ela não irá satisfazê-los, sob pena de adoecer.
Lembremos que sintoma não é doença. Na medicina, sintoma “significa algo que não vai bem, algo de anormal e bizarro, uma alteração de função e alerta de doença”. A psicanálise nos ensina que o sintoma é o representante da verdade. E Lacan frisa que esta verdade que o sintoma encobre é a do casal, dos adultos que criam esta criança. É aí que está a doença, no mundo dos adultos – a criança, que tem uma estrutura egóica mais frágil, carrega o sintoma que encobre a doença localizada alhures.
Conclusão lógica: os pacientes em tratamento deverão ser os adultos, não a criança. A transformação familiar possibilitada pela análise tem o poder de fazer desaparecer o sintoma da criança – os adultos, mais amadurecidos psicologicamente, com mais acesso à linguagem, têm maior abertura à intervenção terapêutica, têm mais condições de acessar tais verdades. Isto é mais difícil de acontecer quando o sintoma que toma a criança corresponde à subjetividade da mãe, quando ela é submetida ao papel de corresponder às fantasias da mãe e não é reconhecida como um sujeito com desejo próprio. A ausência real do pai pode facilitar esta tomada da criança pela mãe, mas Lacan deixa claro que é em termos de função paterna que a mediação deve acontecer, ou seja, que o pai deve estar presente no discurso da mãe mediando esta relação de modo que o filho possa realizar o objeto a, o objeto de desejo da mãe e, ao mesmo tempo, concretizar seus próprios desejos, correspondendo e também se libertando dos desejos dos pais. A função paterna garante a relação terciária em contraposição à dual, que é uma relação sem saída, de submissão da criança aos desígnios da mãe.
Quando o sintoma é somático, Lacan afirma que o desconhecimento da verdade perturbadora é garantido ao máximo, pois não há questionamento quando o que acomete o filho não é uma dor emocional, mas um órgão, uma disfunção fisiológica. Na nossa cultura, não nos vemos responsáveis pelo que se passa no nosso corpo, é como se ele nos fosse alheio e independente, restando ao médico cuidar e restaurar. Diante da criança doente, que não sara, todos se sentem vítimas.
Na segunda nota, Lacan aponta algo muito importante: a função que sustenta e mantem a família conjugal é a transmissão de uma constituição subjetiva do sujeito através de um desejo parental. A subjetividade humana se constitui pela referência constante ao pai e à mãe, ou a quem possa cumprir tais funções - e esta é uma função que, ao contrário da sobrevivência biológica, só pode ser garantida na família, nas suas diversas formações. A função materna, que fala de cuidados e interesses particularizados, de inclusive demandar à criança que realize a presença do objeto a; e a função paterna, de encarnação da Lei e de inserção na cultura, na civilização.
No atendimento a adolescentes usuários de drogas, questiono-me constantemente acerca deste uso enquanto sintoma familiar. Esta leitura das Duas Notas, entretanto, me suscita uma reflexão deste tema de forma mais ampliada; arrisco aqui, portanto, uma análise que chamarei de social da questão do uso de drogas por adolescentes.
Interessa-me particularmente pensar a respeito do crack, uma vez que, seguindo a reflexão lacaniana, ele ocupa uma função como a de um sintoma somático, aquele que garante maximamente o desconhecimento da verdade geradora de sofrimento. O crack é uma droga que as famílias, a mídia, os usuários concordam que “domina” quem a usa. De fato, seu grande poder de dependência faz com que o usuário tenha seu repertório de vida rapidamente restrito à obtenção e uso, mas isto não significa que não haja subjetividade mesmo aí onde reina o entorpecimento.
Será que podemos pensar que o adolescente usuário de crack é o elo mais frágil da sociedade que é quem na verdade está adoecida? Pensemos a função materna e paterna nem termos de estruturas sociais. Penso que que cumpre o lugar da função materna sejam, por exemplo, os serviços de saúde e de assistência social. Será que estes serviços conseguem dar uma atenção amorosa e particularizada ao adolescente que os procuram, e depois o permite romper com as suas expectativas afirmando seus próprios desejos? Em minha prática, não percebo que a saúde, a assistência social ou a educação consigam desenvolver programas na perspectiva do próprio adolescente, de modo que ele possa se sentir acolhido. As ações voltadas a este público parecem sempre ter em conta a visão do adulto sobre a adolescência, sendo marcadas por seus preconceitos e equívocos de comunicação. O atendimento ao adolescente usuário de drogas, por exemplo, costuma ter o foco do fim do uso e a tal valorização da vida. Que serviço tem condições de acolher este comportamento como uma comunicação e se por a escutar o jovem verdadeiramente despido de pressupostos para depois propor intervenções e aceitar que ele as cumpra - ou não? Entendo que esta seria uma função primordial, calcada na função materna, destes serviços, que lhes dariam a possibilidade de dar um lugar para o adolescente em sofrimento.
As estruturas judiciais estão no papel da função paterna na sociedade, o Conselho Tutelar, os centro de socioeducação. Mas também estes só podem ser eficazes se puderem desenvolver uma relação amorosa com o adolescente que gere o sentimento de que obedecer é melhor que não obedecer. Para que a função paterna seja exercida, o filho precisa se sentir querido pelo pai e admirá-lo, ou a Lei que ele introduz se torna algo a ser combatido. As experiências exitosas de socioeducação são as que conseguem, muito além de punir, apoiar o adolescente a fazer parte de uma comunidade, e aprender que abrir mão de algumas vantagens em nome da coletividade é bom. De toda forma, estas experiências exitosas são a minoria, porque a ideologia de individualismo e da felicidade a qualquer custo marcam mais.
A adolescência tem sido a moratória de vida em que os desejos dos adultos são depositados. O status de sujeito que tudo pode realizar (pela maturidade de seu corpo e psiquismo), mas não tem os compromissos do mundo adulto, é invejado e desejado pelos próprios adultos. Entretanto, a partir do momento em que o adolescente decifra o desejo recalcado dos adultos e o realiza, ele é repreendido, excluído. Talvez neste dilema esteja a chave para uma abordagem mais honesta do problema. Entretanto, há um arcabouço ideológico bastante conciso para que a sociedade - adultos e adolescentes - continuem a declarar guerra ao crack e a não refletir a respeito. Cultivar a ideia de que o crack é um ente autônomo ("combater as drogas") compactua com o não querer saber sobre o desejo de quem decide usá-lo. Propagar o plano de que o tratamento para o dependente de crack começa pelo isolamento compactua com a desresponsabilização de todos pelo uso - inclusive do próprio usuário. Apoiar as intervenções religiosas (como é o senso comum e como inclusive alguns governantes tem feito) dá a entender que não há resolução humana para o problema.
Advogo aqui que a solução para o problema do crack passa por repensar as estruturas sociais que recebem o usuário (escola, fórum, saúde etc) de modo que elas possam cumprir suas funções tendo em vista as necessidades do adolescente. Que estes sujeitos possam ser reconhecidos como cidadãos com direito a políticas públicas específicas e atenciosas. E me parece muito apropriado que os ensinamentos da Psicanálise inspirem estas políticas.
Bibliografia
CALIGARIS. A adolescência. Publifolha. São Paulo, 2000.
CECHINNATO. Psicanálise dos pais In: Pulsional Revista de Psicanálise, anos XIV/XV, nos 152/153, 42-69
FERREIRA e PIMENTA. O sintoma na medicina e na psicanálise - notas preliminares. In: Revista Med Minas Gerais, 2003:13(3) p221-8.
LACAN. Duas notas sobre a criança. In: Ornicar? n 36, 1986.
O primeiro comentário que Lacan faz neste texto, que resume o que é primordial considerar no atendimento à criança, é que o sintoma da criança responde ao que há de sintomático na estrutura familiar. A criança carrega consigo uma série de desejos inconscientes dos pais, de ideiais e projeções que, inevitavelmente, serão frustrados. Pais psiquicamente saudáveis saberão, em algum grau, que embora esses seus desejos sejam constituintes da criança e lhe dêem vida, ela não irá satisfazê-los, sob pena de adoecer.
Lembremos que sintoma não é doença. Na medicina, sintoma “significa algo que não vai bem, algo de anormal e bizarro, uma alteração de função e alerta de doença”. A psicanálise nos ensina que o sintoma é o representante da verdade. E Lacan frisa que esta verdade que o sintoma encobre é a do casal, dos adultos que criam esta criança. É aí que está a doença, no mundo dos adultos – a criança, que tem uma estrutura egóica mais frágil, carrega o sintoma que encobre a doença localizada alhures.
Conclusão lógica: os pacientes em tratamento deverão ser os adultos, não a criança. A transformação familiar possibilitada pela análise tem o poder de fazer desaparecer o sintoma da criança – os adultos, mais amadurecidos psicologicamente, com mais acesso à linguagem, têm maior abertura à intervenção terapêutica, têm mais condições de acessar tais verdades. Isto é mais difícil de acontecer quando o sintoma que toma a criança corresponde à subjetividade da mãe, quando ela é submetida ao papel de corresponder às fantasias da mãe e não é reconhecida como um sujeito com desejo próprio. A ausência real do pai pode facilitar esta tomada da criança pela mãe, mas Lacan deixa claro que é em termos de função paterna que a mediação deve acontecer, ou seja, que o pai deve estar presente no discurso da mãe mediando esta relação de modo que o filho possa realizar o objeto a, o objeto de desejo da mãe e, ao mesmo tempo, concretizar seus próprios desejos, correspondendo e também se libertando dos desejos dos pais. A função paterna garante a relação terciária em contraposição à dual, que é uma relação sem saída, de submissão da criança aos desígnios da mãe.
Quando o sintoma é somático, Lacan afirma que o desconhecimento da verdade perturbadora é garantido ao máximo, pois não há questionamento quando o que acomete o filho não é uma dor emocional, mas um órgão, uma disfunção fisiológica. Na nossa cultura, não nos vemos responsáveis pelo que se passa no nosso corpo, é como se ele nos fosse alheio e independente, restando ao médico cuidar e restaurar. Diante da criança doente, que não sara, todos se sentem vítimas.
Na segunda nota, Lacan aponta algo muito importante: a função que sustenta e mantem a família conjugal é a transmissão de uma constituição subjetiva do sujeito através de um desejo parental. A subjetividade humana se constitui pela referência constante ao pai e à mãe, ou a quem possa cumprir tais funções - e esta é uma função que, ao contrário da sobrevivência biológica, só pode ser garantida na família, nas suas diversas formações. A função materna, que fala de cuidados e interesses particularizados, de inclusive demandar à criança que realize a presença do objeto a; e a função paterna, de encarnação da Lei e de inserção na cultura, na civilização.
No atendimento a adolescentes usuários de drogas, questiono-me constantemente acerca deste uso enquanto sintoma familiar. Esta leitura das Duas Notas, entretanto, me suscita uma reflexão deste tema de forma mais ampliada; arrisco aqui, portanto, uma análise que chamarei de social da questão do uso de drogas por adolescentes.
Interessa-me particularmente pensar a respeito do crack, uma vez que, seguindo a reflexão lacaniana, ele ocupa uma função como a de um sintoma somático, aquele que garante maximamente o desconhecimento da verdade geradora de sofrimento. O crack é uma droga que as famílias, a mídia, os usuários concordam que “domina” quem a usa. De fato, seu grande poder de dependência faz com que o usuário tenha seu repertório de vida rapidamente restrito à obtenção e uso, mas isto não significa que não haja subjetividade mesmo aí onde reina o entorpecimento.
Será que podemos pensar que o adolescente usuário de crack é o elo mais frágil da sociedade que é quem na verdade está adoecida? Pensemos a função materna e paterna nem termos de estruturas sociais. Penso que que cumpre o lugar da função materna sejam, por exemplo, os serviços de saúde e de assistência social. Será que estes serviços conseguem dar uma atenção amorosa e particularizada ao adolescente que os procuram, e depois o permite romper com as suas expectativas afirmando seus próprios desejos? Em minha prática, não percebo que a saúde, a assistência social ou a educação consigam desenvolver programas na perspectiva do próprio adolescente, de modo que ele possa se sentir acolhido. As ações voltadas a este público parecem sempre ter em conta a visão do adulto sobre a adolescência, sendo marcadas por seus preconceitos e equívocos de comunicação. O atendimento ao adolescente usuário de drogas, por exemplo, costuma ter o foco do fim do uso e a tal valorização da vida. Que serviço tem condições de acolher este comportamento como uma comunicação e se por a escutar o jovem verdadeiramente despido de pressupostos para depois propor intervenções e aceitar que ele as cumpra - ou não? Entendo que esta seria uma função primordial, calcada na função materna, destes serviços, que lhes dariam a possibilidade de dar um lugar para o adolescente em sofrimento.
As estruturas judiciais estão no papel da função paterna na sociedade, o Conselho Tutelar, os centro de socioeducação. Mas também estes só podem ser eficazes se puderem desenvolver uma relação amorosa com o adolescente que gere o sentimento de que obedecer é melhor que não obedecer. Para que a função paterna seja exercida, o filho precisa se sentir querido pelo pai e admirá-lo, ou a Lei que ele introduz se torna algo a ser combatido. As experiências exitosas de socioeducação são as que conseguem, muito além de punir, apoiar o adolescente a fazer parte de uma comunidade, e aprender que abrir mão de algumas vantagens em nome da coletividade é bom. De toda forma, estas experiências exitosas são a minoria, porque a ideologia de individualismo e da felicidade a qualquer custo marcam mais.
A adolescência tem sido a moratória de vida em que os desejos dos adultos são depositados. O status de sujeito que tudo pode realizar (pela maturidade de seu corpo e psiquismo), mas não tem os compromissos do mundo adulto, é invejado e desejado pelos próprios adultos. Entretanto, a partir do momento em que o adolescente decifra o desejo recalcado dos adultos e o realiza, ele é repreendido, excluído. Talvez neste dilema esteja a chave para uma abordagem mais honesta do problema. Entretanto, há um arcabouço ideológico bastante conciso para que a sociedade - adultos e adolescentes - continuem a declarar guerra ao crack e a não refletir a respeito. Cultivar a ideia de que o crack é um ente autônomo ("combater as drogas") compactua com o não querer saber sobre o desejo de quem decide usá-lo. Propagar o plano de que o tratamento para o dependente de crack começa pelo isolamento compactua com a desresponsabilização de todos pelo uso - inclusive do próprio usuário. Apoiar as intervenções religiosas (como é o senso comum e como inclusive alguns governantes tem feito) dá a entender que não há resolução humana para o problema.
Advogo aqui que a solução para o problema do crack passa por repensar as estruturas sociais que recebem o usuário (escola, fórum, saúde etc) de modo que elas possam cumprir suas funções tendo em vista as necessidades do adolescente. Que estes sujeitos possam ser reconhecidos como cidadãos com direito a políticas públicas específicas e atenciosas. E me parece muito apropriado que os ensinamentos da Psicanálise inspirem estas políticas.
Bibliografia
CALIGARIS. A adolescência. Publifolha. São Paulo, 2000.
CECHINNATO. Psicanálise dos pais In: Pulsional Revista de Psicanálise, anos XIV/XV, nos 152/153, 42-69
FERREIRA e PIMENTA. O sintoma na medicina e na psicanálise - notas preliminares. In: Revista Med Minas Gerais, 2003:13(3) p221-8.
LACAN. Duas notas sobre a criança. In: Ornicar? n 36, 1986.
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