sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O sujeito e o destino

O sujeito e o destino

The subject and fate

El sujeto y el destino


Jacqueline Barus-Michel*
Universidade de Paris 7



RESUMO
Qual o lugar da noção de destino, em nossos dias? Recusa obstinada do acaso e do acidental, o destino sempre trouxe à tona a questão da liberdade e da responsabilidade. Concebido como causa exterior e determinante de nossa trajetória de vida, tal noção passou por múltiplas mutações. Ela representou a fúria dos deuses, depois foi figura da paixão, hereditariedade, até que Freud, inscrevendo-a no psiquismo, aí descobre a trama obscura do inconsciente, o ressurgimento de traços mnémicos, o movimento irresistível das pulsões, até se chegar às palavras de nossos ancestrais. Isso não impede que outros a busquem no lado do determinismo genético, reencontrando o destino escondido em nossas células. Podemos entrever aqui os eternos embates do sujeito com a culpabilidade e, além desta, com o fato inelutável de sua morte, o que faz com que o destino e o trágico estejam sempre ligados.
Palavras-chave: Destino, Mito, Trágico, Liberdade, Culpabilidade.

ABSTRACT
What is the role of the notion of fate nowadays? An obstinate refuse of randomness and contingency, fate has always brought to the surface the issue of freedom and responsibility. Conceived as an external and determinant cause of our life course, such notion has undergone multiple mutations. It represented the fury of the gods, a figure of passion, and heredity, until Freud, inscribing it in psychism, unveiled the obscure web of the unconscious, the reappearance of mnemic traces, and the irresistible movement of urges, up to our ancestrals’ words. This does not prevent others from searching for it within the scope of genetic determinism, finding it hidden in our cells. We can envisage here the subject’s endless conflict with culpability and the unescapable fact of death, which makes fate and tragedy be connected forever.
Keywords: Fate, Myth, Tragedy, Freedom, Responsibility, Culpability.

RÉSUMÉ
Que devient la notion de destin aujourd’hui? Refus entêté du hasard et de l’accidentel, le destin a toujours posé la question de la liberté et de la responsabilité. Conçu comme cause extérieure et déterminante de notre trajectoire de vie, il a connu de multiples avatars. Il fut acharnement des dieux, puis figure de la passion, hérédité, jusqu’à ce que Freud, l’inscrivant dans le psychisme, y découvre la trame obscure de l’inconscient, la résurgence des traces mnésiques, l’entraînement irrésistible des pulsions, jusqu’aux dits de nos aïeux. Ce qui n’empêche d’autres de prospecter du côté du déterminisme génétique retrouvant le destin enfoui dans nos cellules. On peut y voir les éternels démêlés du sujet avec la culpabilité et, au delà, avec l’inéluctable de sa mort, ce pourquoi le destin et le tragique sont toujours liés.
Mots clé: Destin, Mythe, Tragique, Liberté, Responsabilité, Culpabilité.

RESUMEN
¿ Qué lugar tiene la noción de destino en nuestros días? Rechazo obstinado a la casualidad y a lo accidental, el destino siempre puso de relieve la cuestión de la libertad y de la responsabilidad. Concebido como causa exterior y determinante de nuestra trayectoria de vida, esa noción pasó por múltiples mutaciones. Representó la furia de los dioses, después fue la figura de la pasión, herencia, hasta que Freud, inscribiéndola en el psiquismo, descubre, entonces, la trama obscura del inconsciente, el resurgimiento de trazos mnémicos, el movimiento irresistible de las pulsiones, hasta llegar a las palabras de nuestros ancestrales. Eso no impide que otros lo busquen en el lado del determinismo genético, reencontrando el destino escondido en nuestras células. Podemos entrever aquí los eternos embates del sujeto con la culpabilidad y, además, con el hecho ineluctable de su muerte, lo que hace que el destino y lo trágico estén siempre unidos.
Palabras-clave: Destino, Mito, Trágico, Libertad, Culpabilidad.



Nada se pode mudar do próprio destino. (Esopo)

A idéia de destino se contrapõe àquelas de independência e de autonomia do sujeito. O que é então, em nossa cultura moderna, a idéia de destino, vista como trajetória imposta que desemboca num fim inevitável, marcado por acontecimentos nem esperados nem escolhidos, mas inscritos, desde todos os tempos, em uma espécie de Grande Livro?

Uma noção que supõe um responsável
O destino é uma figura que persegue a humanidade, sempre angustiada em compreender seu papel, quando se trata de saber o futuro, de ver chegar o inesperado, de decifrar o sentido de todos os acasos. Para contrabalançar o excesso de incerteza, o homem inventou deuses, cuja vontade imprescritível estaria gravada no mármore de uma eternidade imóvel que, paradoxalmente, anuncia as horas dos mortais. Tudo estaria então previsto, sabido, escrito. Todas as culturas tentaram prever o futuro, ler os sinais do destino nos mais diversos materiais, como vôo dos pássaros, búzios, grãos, desenhos do café,1 linhas da mão, fígados, entranhas...,tudo que parece referir-se a uma distribuição na qual o homem não está interessado, mas que testemunha um universo totalmente marcado por desígnios aos quais ele está preso e que cumpre, mesmo sem querer. Sua saída é procurar um vidente que saiba ler tais sinais: um homem prevenido vale por dois, ele poderá saber se resta uma escolha, uma resistência ou uma submissão. Bastaria então encontrar os médiuns e os intérpretes, a fim de se premunir, esquivar-se ou recuperar uma relativa liberdade.
Ainda hoje, os astrólogos lêem nosso futuro nos astros, como vemos em muitas revistas semanais. O tarô e a bola de cristal são muito consultados. Os astros são os equivalentes dos deuses, desde sempre a meio-caminho entre a crença e a ciência, o que na verdade não é nem um nem outro. O horóscopo parece conferir certa possibilidade do jogo adivinhatório, a menos que ele só sirva como um tempo de nos prepararmos algum acontecimento futuro. Certos filmes, como Ça s’est passé demain (Isto aconteceu amanhã) ou um magnífico romance como A ilha do dia seguinte, de Umberto Eco, que trata justamente da passagem da religião à ciência, exploraram essa relação ambígua com o tempo, no qual os heróis têm o privilégio de voltar o curso já determinado de suas vidas e tomar outros caminhos, colocando lado a lado dois tempos: um do destino cumprido e outro de nova liberdade.

As figuras do destino
O destino, na tradição hebraica, parece coincidir com o castigo de Deus. Nada é fortuito, tudo é previsto, visto e desejado por Ele (o olho, alfa e ômega, forçosamente ele sabe o que vai ocorrer). A exclusão do Paraíso terrestre, o Dilúvio, Sodoma e Gomorra, são exemplos do castigo de Deus, que se abate sobre o pecado. Deus se vinga da rebelião dos homens que se entregaram ao gozo ou ao entendimento das coisas, por curiosidade e como um empreendimento – isso que Freud chamou de pulsão epistemofílica –, o que é ilustrado no pecado de Eva devorando o fruto da árvore do conhecimento, bem como no orgulho da construção da torre de Babel.
Só restaria a liberdade de escolher entre a obediência e o castigo, entre o bem e o mal, o céu e o inferno, situação na qual os dois termos podem se confundir. O destino é também a maldição ou a escolha divina. Jó sofre por causa disso, reduzido à impossibilidade de fazer qualquer coisa, abandonado sobre seu próprio esterco. A escolha do povo hebreu fixa seu destino para o melhor e, sobretudo, para o pior. Assim, Deus designa e sela o destino. Tudo está escrito em seu Grande Livro, que é um livro de julgamento e de instrução. A história dos destinos passados serve para lermos os destinos futuros. Certo cristianismo seguiu essa tradição, mas acrescentou-lhe algo: para os jansenistas, só serão salvos aqueles que têm a graça. Deus tem seus eleitos, os braços do crucificado não se abrem para todos. A graça, isto é, o destino, tem seus caprichos.

Mitos e tragédias
O destino, tal como ilustrado nos mitos e tragédias gregas, é uma figura dos deuses, de seus caprichos ou mesmo de suas perversidades. Hera persegue Laio até em seus filhos, como o primogênito Édipo, cujo destino é fixado muito antes de seu nascimento, e contra o qual ele nada poderá fazer, apesar de seus esforços. A moral nada tem a ver com as ações. O herói da tragédia grega é pego em uma armadilha, ele é joguete dos deuses que jogam entre si um jogo no qual os homens são os peões ganhos ou perdidos. Claro, os homens podem, em suas relações, desobedecer aos códigos fixados pelos deuses, códigos às vezes contrários aos sentimentos mais dignos (Antígona, Orestes). Os castigos recolocam em seus lugares os códigos e a autoridade dos deuses (Prometeu, que rouba o fogo); no fundo, pouco importa quem é castigado ou o grau de sua responsabilidade, pois esse alguém era o peão de um deus adversário daquele que o pune.
Mas quem ou o que estava em jogo, nos mitos, e em função de quê? Se antigamente eram os deuses que perseguiam, através de suas vinganças, os mortais incitados ao crime e a um “destino tão funesto”, cegos em relação àquilo que faziam, pois eram instrumentos inocentes, isso recoloca a questão da inocência e da culpabilidade. Édipo é culpado? E caso pensemos em Freud, ele tem mesmo o complexo? Fazendo-se voluntariamente cego, quando o crime foi revelado, pois nada podia conhecer antes nem durante os acontecimentos, ele é o joguete dos deuses, não o autor de seu próprio recalque (que, aliás, não tinha ainda sido inventado!).

O destino e o trágico
A noção de destino está ligada à de tragédia, um destino é, em geral, trágico. “Foi o destino” é uma expressão relativa a algo deplorável, em relação ao qual podemos nos consolar, se pensarmos que nada tínhamos (observe-se o imperfeito) com isso. Na Idade Clássica, o mito é reinterpretado e o destino é ligado à paixão, com no romance Fils de Doubrovsky.
[...] podemos nos perguntar / se o trágico não é inevitável / e talvez aí esteja o segredo do enigma / porque os homens não querem evitá-lo / aí há conivência / e cumplicidade totais entre homens e deuses / apesar das revoltas, das queixas, das denegações de superfície / aquele que desvenda o mistério é Orestes: “Eu nasci para servir de exemplo à tua cólera Por ser um modelo acabado de desgraça Pois bem, morro contente e minha sorte está comprida”. Não existe tragédia senão quando há vontade de tragédia. (Doubrovsky, 1977, p. 97).
Nesta citação, os homens não querem evitar o destino, eles correm em direção a ele, são eles que o fazem e este fazer torna-se seu destino. O destino torna-se, em seguida, maquinação das paixões criminosas. “Vênus inteira amarrada à sua presa” é a paixão amorosa fatal, porque proibida. O furor divino não é outra coisa senão aquele do herói, muito humano e subjetivo. A paixão leva em si a morte, ponto final da contradição insolúvel entre o desejo não formulado, não formulável, e a proibição formal. A lei do trágico é aquela do “tudo ou nada”, diz Doubrovsky:
O pensamento trágico, melhor, o desejo trágico / não faz as coisas pela metade / as duas metades contrárias / ele as quer / totalmente e igualmente / de imediato o homem trágico / se torna herói / ao assumir-se inteiramente contraditório / sem solução, resolução, revolução / suas duas metades contraditórias ele as vive / ao mesmo tempo e até o fim / isto é, até a sua ruptura brusca. (Doubrovsky, 1977, p. 126)
O destino trágico se realiza quando os interditos são violados no coração ou na carne, na inconsciência ou na consciência, como uma espécie de autopunição, de maldição que o sujeito carrega sobre si mesmo. Pois quem ou o que mais abateria o criminoso diretamente, no próprio objeto de seu desejo?
No episódio conhecido como “a tragédia de Vilnius” (o assassinato da atriz Marie Trintignant por seu amante, o músico Bertrand Cantat), assim como em Fedro, nas tragédias gregas ou em Shakespeare (Hamlet), assiste-se a uma confusão incestuosa de lugares. O lugar do herói não existe aí, ele só se sustenta na morte, fadado a não ser nada, mais nada, depois de querer ser tudo, no absoluto do desejo. Nas tragédias gregas, as divindades, com suas rivalidades ou sua cólera, por não serem mais cultuadas, explicavam o destino, a perseguição através da qual as Parcas e as Erínias partilhavam morte e vingança. Nas tragédias de Shakespeare ou de Racine, as paixões, o poder, o amor e o ciúme levam os heróis à perdição. Mas há uma lógica que preside a seus destinos: suas paixões são conscientes, se eles as escondem é por astúcia ou tática; se suas estratégias fracassam, é porque dão de frente com algo mais forte que eles. Outras vezes, eles fracassam por teimosia ou quando são vítimas das frias paixões dos outros.
Segundo as épocas e as culturas, o destino se enuncia de maneiras diferentes. Assim, os deuses foram substituídos pela loucura, pelo inconsciente, pela espécie, pelos genes.

Destino e inconsciente
Com Freud, aprendemos a substituir o destino pelo inconsciente. O inconsciente freudiano é um herdeiro dos deuses antigos, os desejos têm seus caprichos e suas perversidades. Não é à toa que o complexo de Édipo está calcado na tragédia de Édipo-Rei. Os desejos recalcados (as paixões da Idade Clássica) seguiriam seus caminhos por subterrâneos, até explodir em plena luz, por ocasião de um excesso de excitação ou de um evento acidental que fragiliza as defesas. As pulsões então manifestam sua violência: Eros e Thanatos, misturados de forma explosiva, sucedem os deuses furiosos.
Estamos nós entregues ao destino de nossas pulsões? Eros, porção ligada aos hormônios, em complô com as sensações esquecidas, nos carregaria em seus transportes amorosos, extremos e arbitrários? Ou seria Thanatos que nos levaria, contra nossa vontade, ao suicídio e ao crime? Thanatos, busca da infelicidade, da morte, do horror, é a força que nos habita, é a parte maldita, o negro desejo,2 tudo que se pretende evitar mas que acaba por se impor.
Podemos perguntar: por trás do amor há sempre essa face negra, pronta a nos conduzir ao abismo? Estaria Thanatos de olho nas falhas de Eros ou, pior ainda, seria Eros cúmplice muito próximo de Thanatos? Aqui reencontramos as entidades míticas, Eros e Thanatos inteiramente colados em sua presa, no caso, habitando dissimuladamente o sujeito, um sujeito possuído e quase despersonalizado: “eu não entendo o que aconteceu, o que me pegou, eu não era eu”, dizem os assassinos, como se fossem vítimas de seu próprio ato.
As passagens ao ato traduzem a vertigem sentida diante do vazio, do abismo interior e insondável, do inconsciente. Tentação e medo da morte levamnos, ao mesmo tempo, a fazer aquilo que mais temíamos. As formas dramáticas dos instintos de morte e de vida da “espécie que pensa”, as camadas do imaginário e dos afetos e, além delas, a dor, refletem então o sofrimento humano.
Mesmo se fôssemos tentados a deixar um lugar ao acaso, no acontecimento que dá a partida para os demais, a psicanálise não diria que o próprio acontecimento, em si, não seria inconscientemente buscado, suscitado ou, afinal, explorado? Será que o acaso ou a coincidência existem ou, como a psicanálise tenderia por vezes a nos fazer crer, é o nosso inconsciente que persegue o recalque dos desejos e o apaziguamento das angústias, através da doença, do acidente ou mesmo da morte? Será que nos precipitamos, por nós mesmos, em nosso destino, nesse “desejo de infelicidade” ao qual Serge Doubrovsky se refere? Mas fica a pergunta: será que um vaso de flor nunca tomba por acaso? Será que corremos atrás das catástrofes, da epidemia que nos matará? O carro que vem de frente, na contramão, somos nós que o procuramos? Onde começa o acaso, onde não se trata de neurose? É a neurose que utiliza o acaso ou o destino que utiliza a neurose?
Sabemos o que Freud pensava das coincidências e premonições: é nosso inconsciente que sabia, ele tinha percebido os indícios, o acontecimento era desejado obscuramente ou esperado na culpabilidade, sua irrupção na realidade desperta na consciência os momentos nos quais nós o tínhamos fantasiado. As superstições são restos do pensamento mágico, sustentado pela angústia, algo que a razão não consegue desmontar. No entanto, o próprio Freud era supersticioso. Lembremos sua angústia relativa aos números, através dos quais ele acreditava poder decifrar a data de sua morte, como se o desejo mórbido estivesse escrito pela mão do inconsciente, sobre a tela de nossa neurose, esse outro Grande Livro que permanece fechado ao nosso consciente. O sujeito dividido torna-se, para ele mesmo, seu destino cego.
O inconsciente substitui os deuses e se superpõe a eles, a tradição judaicocristã veio acrescentar uma espessa camada de culpabilidade àquilo que não era senão falta. Os desejos inconfessáveis, perseguidos com furor, dão logo seu lugar ao remorso, dada a ofensa feita a Deus, que nos ameaça em nosso interior. Pior será quando aprendermos, com o cristianismo, que este é um Deus de amor, coisa que até então não era clara. O que existe de pior que matar o amor? Não se trata mais das Erínias a perseguir Orestes, mas da culpabilidade do sujeito: o inferno se traduz em um estado de abandono.
Com o pai da horda primitiva, Freud deu um sucessor a Javé. Através dos milênios e da história, ele habita a humanidade culpada, desde seu nascimento, pelo pior dos crimes: além do parricídio e do incesto, a revolta. Os homens têm o destino de Édipo (e de Eva e de Adão), são culpados como ele (como eles), por seu verdadeiro crime: ter desejado escapar a seu destino. Agora estão todos condenados à reparação e à expiação. O crime é a tentativa de escapar ao destino. Este é a herança do crime, esta perniciosa exigência de autonomia inscrita no homem. É preciso que uma Lei vinda do alto freie as loucas exigências do gozo e da liberdade. Daí o eterno “mal-estar da civilização”. O destino é a Lei transcendental, escrita, personalizada na figura do Père sévère (Pai severo),3 verdadeiramente perseverante, pois tem a mão pesada, é o grande supereu antecipador.
Se, no estágio do sujeito, da civilização, o homem ainda anda às voltas com o destino, ele não cessa, ao mesmo tempo, de combatê-lo, pois é assim que ele faz sua história.

Os outros inconscientes
Paralelamente ao inconsciente, outra forma do destino apareceu no fim do século XIX, graças a Darwin, através das leis da evolução à qual Freud claramente se referiu. As leis da evolução não são outra coisa que o destino da espécie. Para Darwin, esta se torna cegamente obstinada com sua sobrevida, desenvolvendo, em termos de seleção natural, os caracteres propícios a isso. Os indivíduos se submetem às leis da evolução, na ignorância absoluta de como são penetrados por ela. O inconsciente é a espécie, o destino é a espécie.4
J. Mendel, por sua vez, substituiu os determinantes genéticos e as leis da reprodução, herdada do destino, mas à custa de sofrimento, pois o fundador da genética era um religioso, o irmão Gregor. O trágico, decididamente, não abandona a questão do destino.
Assim, a natureza abre seu caminho obstinadamente, sem olhar para os indivíduos e seus desejos. Ela os conduz com mão impiedosa e os submete à sobrevivência da espécie, obrigando-os a repetir e manifestar aquilo que seus genes lhes ditam.
Por vezes, ocorre pedirmos à genética que explique como certas características individuais, socialmente incômodas, são determinadas por anomalias ou particularidades ligadas aos genes. Por exemplo, pode-se perguntar se a homossexualidade, assim como a trisomia, se devem a um gene. Mas depois, quando a mãe foi considerada culpada, o gene, que antes era o responsável, foi desresponsabilizado e a questão foi psicologizada. Da falha se passa à doença, e do normal ao patológico.
De acordo com cada época, o destino muda de figura, mudando-se então a referência científica. Assim, o autismo permitiu que, durante muito tempo, se culpabilizassem as mães que não tinham sabido estabelecer contato com seus filhos, condenando-os à morte psíquica. Hoje se descobrem, nas crianças autistas, anomalias do lobo temporal, detectáveis por ressonância magnética. A neurologia toma o lugar do destino “inconsciente-da-mãe”. O homem neuronal toma o lugar do sujeito do inconsciente.
Muitos inconscientes nos habitam: palavras e desejos recalcados, genes, hormônios, leis da espécie e da evolução. Doravante, o destino do homem é selado no psicológico, no antropológico, no genético e no neurológico, estando estes quatro registros entrelaçados e banhados pelo trágico.

Natureza e cultura
Édipo não tinha herdado genes, mas os crimes de seu pai. Mas o que tem a espécie a ver com Édipo? Ora, pelo viés da interdição do incesto, que protege a espécie, multiplicando os cruzamentos, a culpabilidade retorna à espécie e o destino vem pesar sobre os ombros dos indivíduos. Segundo Lévi-Strauss (1958), com efeito, o interdito do incesto é universal, logo do registro da natureza, mas é, ao mesmo tempo, introduzido na cultura, pois ele força os laços de aliança, através da troca de mulheres às quais se renuncia. A transgressão testemunha essa bivalência, pois se pode violar o interdito às próprias custas, ao risco de ser punido por isso: a sociedade, com a regra e o castigo, dá continuidade às leis da natureza. O Édipo de Lévi-Strauss hesita entre acreditarse filho da Terra ou de seus pais, entre se ctoniano ou humano.
Édipo tenta escapar tanto às leis da natureza quanto aos caprichos dos deuses e às pulsões cegas. Tais elementos estão associados para massacrar, mutilar, maldizer quem tenta escapar. Não seguimos impunemente um desejo individual. Não nos acreditamos livres, não o somos. Aliás, será que temos o direito de sê-lo? O indivíduo sujeito é, na natureza, uma aberração. Pena para nós e para a cultura do sujeito. Nós inventamos o sujeito capaz de construir um sentido, de construir sua história, revoltando-se contra o destino, somos Prometeus sem sermos deuses, submetidos às contingências da história, ao mal-estar das civilizações, aos conflitos sangrentos, às pretensões libertárias e às recaídas no totalitarismo.

A invenção do sujeito
Desde os libertinos, passando pelo Iluminismo, a Revolução, as revoluções, a democracia, os progressos da ciência e das técnicas, o cuidado de si, os homens têm buscado, deliberadamente, livrar-se do destino, ora coletivamente, ora cada qual por si, a fim de melhor gozar sua vida. Inventou-se o sujeito, com seu direito a tudo: à palavra, à própria realização, ao gozo, opondo uma liberdade de escolha e de autodefinição ao bestial destino. Gozo e sentido, eis a definição do Sujeito, o oposto (congênito) ao destino.
Este sujeito quer ignorar que é dividido e ambivalente, que o sentido lhe chega de outro lugar, que ele é joguete de outros desejos, de outras palavras ditas sobre ele, mas que ele não sabe pronunciar; ele quer ignorar que cumpre, sem o querer, a profecia (Promessa ao amanhecer)5 proferida por sua mãe ou por sua avó. As fadas foram substituídas, em torno do berço do sujeito “belo adormecido”, pelos antepassados mais ou menos hostis.
No entanto, a importância dos horóscopos na imprensa testemunha a permanência da incerteza, no mundo de razão e de certezas. Sempre angustiado por aquilo que ele quer ignorar, o sujeito retorna aos oráculos. “Espelho, espelho meu, diga-me...”!. Ou ainda: “astrólogos, quiromantes, santos e marabus, dizeime, fazei milagres, protegei-me, pois vós tendes meu destino nas mãos, livro aberto diante de vós”! Quando os sujeitos se sentem desamparados, as superstições e as crenças vêem retomar o destino esquecido.

O outro como destino do sujeito
Num primeiro momento, o sujeito fala. O Eu é, antes de tudo, um sujeito gramatical, assim ele se dirige ao outro, esperando dele escuta e palavra, endereçamento e resposta. O outro se torna então o destino do sujeito. O Eu, como a consciência de si, só existe através do reconhecimento que o outro lhe confere, ficando então submetido a seu reconhecimento. Ora, o que se passa entre o sujeito e o outro é uma longa história de mal-entendidos.

A tentação ideológica
Os resquícios do destino superlotam os caminhos da ciência, na forma de ideologias. Vimos que pareceu cientificamente e, sobretudo, ideologicamente possível tentar assimilar o destino à natureza. Isso deveria permitir, sem nenhum questionamento, que as populações fossem persuadidas de que sua condição de exploradas era tão justificada quanto a condição dos poderosos. Eugenia e maltusianismo se tornaram legítimos, indo só um pouquinho além das leis da natureza ou corrigindo seus erros, pois esta nem sempre era infalível. Assim, o poder dos homens remediava as fraquezas do destino, completando-o (Carrel, 1935).
O racismo é, assim, a afirmação de que o destino se inscreve na raça, na origem étnica, na cor da pele. A raça dos super-homens, arianos (brancos cristãos, integristas de todo tipo), está prometida aos grandes predestinados, à dominação do mundo, enquanto que as raças inferiores, pouco dotadas em inteligência, são destinadas por natureza à escravidão, ao estado de servidão ou mesmo ao extermínio. A guinada do lugar de escolhido a perseguido se dá com facilidade, ela obedece a mecanismos equivalentes.
A noção de destino pode sustentar a idéia de que cada qual tem seu lugar marcado, devendo ficar nesse lugar em que o acaso o colocou. Daí a imobilidade conservadora e “direitista”. A cada qual aquilo que lhe é devido, mas esse “devido” é fixado pelo lugar de nascimento. Ser bem nascido é ser chamado a um grande futuro. Mas chamado por quem?
Não confundamos aqui ideal e ideologia. A idéia de progresso social e político nasce da hipótese segundo a qual cada qual pode tornar-se senhor de seu destino, ou seja, de sua história e sua trajetória, enfrentando as determinações aparentemente fixas, para se construir e se realizar de outra maneira, livre e responsável, autônomo e independente, ou pelo menos escolhendo seus modos de inserção e seus deveres. Ser para si mesmo o próprio destino, ou seja, um futuro que se constrói, ser sua própria linhagem e sua própria filiação, isso é recusar o congênito, a natureza, o dado. Trata-se de um ideal improvável, mas necessário.

História e destino
Com Marx, o destino tomou a forma do materialismo histórico: uma luta de classes, renovada ao longo dos séculos e de acordo com as civilizações, levando-nos ao fim da história. História de conflitos, mas linear, que tende a um fim, no qual a consciência dos povos tem seu papel, mas que nem por isso deixa de obedecer a uma lógica própria, econômica, na qual o destino de classe encontrará sua resolução. O destino é a História passando.
Toda utopia é fundada numa ilusão de destino, na idéia de que se chegará a algum lugar, um fim para o qual se pode colaborar, mas que nem por isso deixa de ser um futuro inelutável, a terra prometida. Os ideólogos são os profetas de um destino histórico que eles mesmos querem encarnar. Já foi dito também que a história tropeça entre criação e repetição, dando voltas sobre si mesma, presa a um destino infernal de recomeço e repetição.

Destino e morte
O destino se oferece como explicação transcendente para a morte, aquela que irrompe inopinadamente na vida, inelutável, abrupta, que não se pode desejar, que não pode vir de nós mesmos, só de um além, um além que tentamos identificar com Deus, para nos conciliar com ele, para conjurá-lo ou nos submeter a ele.
O destino é sempre funesto, trágico, infeliz, fatal. Fora dele, falamos em providência, sorte, fortuna, boa estrela. Há também destinos magníficos, mas não é que os colocamos no feminino: “destinées”? No feminino, há mais graça. Cada qual segue sua ‘destinée”, como uma dulcinéia, numa aventura que é a aventura da vida. Já o destino, no masculino, dá seus golpes, os últimos, os da quinta sinfonia.
A sorte a gente tenta. Se a perdemos “é por culpa da falta de sorte”. Quem se arruína no jogo não diz que “é o destino”, pois o destino tem parte com a morte. O destino de todos é a morte, mas recusamo-nos a carregá-la em nós, ela só pode vir do exterior, num ataque brutal ou sorrateiro, como uma força monstruosa. A morte é o destino da vida, assim como a violência é o destino da relação (homo homini lupus), essa violência mimética, associada por Girard (1972) ao sagrado. Os irmãos inimigos são, de nascença, jogados a um confronto para a morte (Rômulo e Remo, Caim e Abel). Mas todo homem não é, para o outro, seu irmão? A compulsão à repetição está ligada à pulsão de morte, o homem trancado em sua jaula fica dando voltas e repete seu tormento. Trancado por quem? Por seu inconsciente? Por um Deus maligno? Por seu sentimento de culpa? Por seus desejos inconfessáveis, renovados, frustrados, condenados? A condenação de onde vem? Em todo caso, o destino é uma condenação à prisão entre os limites estreitos da vida. A morte permanece no centro, como um buraco negro.

Destino paradoxal da espécie
Por um lado, como seres humanos, somos levados sem saber pela espécie que fala em nós, à maneira de um Eros que plana, transcendente, a serviço da vida em si, mas ignorando soberbamente os indivíduos. Do lado oposto, a civilização combate a evolução, especialmente quando protege os fracos e desamparados, garantindo sua sobrevivência. Qual é, então, o papel da civilização, em relação à espécie? E o de Thanatos? A civilização constrói unidades sociais, laços de solidariedade, combate a natureza, mas acaba destruindo-a. A civilização não dá a mínima para a espécie, ela funciona de trás para frente: só se interessa pelo laço social: primeiro pelas comunidades, depois pelas sociedades, mais recentemente pelos indivíduos, mais recentemente ainda, ela se pretende protetora das espécies e da natureza, um tanto tardiamente e sem verdadeiro sucesso. Ela faz questão do pensamento e de suas construções, baseada em um desenvolvimento neurofisiológico próprio da espécie, fonte de vida social, mas estaria, ao mesmo tempo, indo de encontro à espécie, como se carregasse em si própria o germe de uma autonomia inicialmente benéfica, mas depois perversa, através da qual ela se emanciparia da espécie e de seu determinismo, conquistando uma liberdade que, no final das contas... não seria mortal? A menos que a morte da espécie esteja inscrita na espécie, algo como uma autodestruição programada sob a ilusão da liberdade.
A natureza, ou melhor, a vida na natureza, parece só tender à sobrevivência das espécies. No entanto, seus equilíbrios são precários, pois outros ciclos “naturais” ou cataclismos tão naturais quanto ela podem interromper brutalmente esse programa. Haveria várias naturezas, várias finalidades cegas opondo-se umas às outras? A natureza ora transforma, ora insiste e ora se exaspera. O que Sade dizia sobre isso tem razão de ser. Essa incoerência em nós sempre se manifesta. O fato de a natureza nos ter feito inteligentes talvez seja uma forma de cataclismo, embora seja também um dom da espécie para sua sobrevivência. E nós, acreditando que estamos nos salvando, acabamos nos perdendo.
O sentimento de liberdade, como escreve Atlan (2003) é “real na condição de estado de consciência”, ainda que ele ignore a complexidade dos determinantes, também tão reais, que se encontram nas raízes da ação. A liberdade e, com ela, a responsabilidade, é um dado da experiência, é o princípio significante que ordena nossa relação conosco e com o mundo, ou seja, é o sentido da responsabilidade, é a opção ética. Temos que conviver com os dois: um determinismo mergulhado na complexidade indiscernível das causas entremeadas, um vivido e um pensado de intenções e de escolhas possíveis (a liberdade como estado de consciência).
O paradoxo ainda está nessa coexistência de determinismo físico e de liberdade psíquica, que são o próprio do homem, essa capacidade de voltar-se para si mesmo para se ver e se pensar, para agir e dar sentido à sua ação.

Responsável ou culpado
Sendo trágica ou não, a noção de destino, ao opor livre-arbítrio e determinismo, nos coloca diante do insondável problema da responsabilidade. Isso não é pura especulação, pois como medir o sofrimento e, particularmente, o que chamamos pretium doloris, como reparar o dano da vítima e sancionar o crime do agressor, se os critérios que estabelecem a responsabilidade não forem esclarecidos? Uma vez que o sujeito não faz sua lei, pois ela é feita nele, ele é atravessado por ela (Jesus, crucificado pela vontade do Pai, diz “seja feita a tua vontade”), ele é instrumentado por ela, será ele responsável ou culpado, ou nem um nem outro, ou um dos dois somente? Seria o inconsciente culpado e o sujeito responsável?
O sentimento de culpa supõe uma espécie de partilha do sofrimento, uma identificação amorosa, de compaixão, e o reconhecimento de uma intencionalidade: “Eu desejei isso, não foi acidental, e eu me reprovo por isso, estou com raiva de mim porque eu poderia tê-lo evitado, só dependia de mim e isso aconteceu com a minha cumplicidade; agora eu não sou mais aquele que o quis e fez, passei para o lado da vítima.”
Para a responsabilidade, o discurso é diferente: “Eu sou mesmo a causa, mas sem intencionalidade quanto ao resultado infeliz. Sou autor, mas minha vontade, caso esteja comprometida no ato, não se deve ao efeito do dolo. Eu respondo pelo meu ato, não pelo dano que se seguiu a ele, pois tal dano se justifica por uma causa exterior a mim.” O responsável fica identificado a seu ato, não à vítima. Concebe-se que a passagem da responsabilidade à culpabilidade seja difícil. As relações entre as duas são complexas. Um demente não é responsável nem culpado, ele pode se sentir culpado, mas não responsável (possuído).
Na verdade, o destino desresponsabiliza: estou preso numa engrenagem que não conheço nem quero, cujo sentido ou não-sentido está escrito em outro lugar, independentemente de mim e de minha vontade.
No entanto, a teoria do destino contém um paradoxo perverso: o pecado original, herdado, está inscrito em um destino de pecador, que tem, contudo, a liberdade de repará-lo, de se voltar para o Bem, para Deus. Colocado entre o Diabo e o Bom Deus, o destino do pecador é essa escolha que ele deverá refazer e fazer ao longo de toda sua vida. Paradoxo perverso: “Você já incorreu em erro, mas é livre, ou você será punido, se exercer mal sua liberdade.” O destino é uma liberdade enganosa.
O “estava escrito” é a armadilha de um paradoxo definitivo: estaria Judas livre para não cumprir o que havia sido profetizado? E Édipo foi responsável pelos crimes aos quais os deuses já o haviam condenado? O destino é, em geral, um escrito não só trágico, mas perverso; ele nos fecha em uma alternativa impossível: submissos, somos esmagados, revoltados também o somos.
De acordo com a contradição inerente a um destino inscrito na palavra de Deus, o povo eleito é, da mesma forma, um povo condenado, o filho de Deus é um filho sacrificado. O destino, como poder absoluto, manifesta-se no arbitrário.
Até que ponto somos responsáveis por nosso inconsciente? Até que ponto o somos também pelos efeitos dos psicotrópicos, das anomalias dos nossos genes, dos feitiços que nos foram jogados? Até onde a ignorância de nossas razões ou de nossas causas nos desculpa? Trata-se de questões de ética, de direito, de ciência, que giram em torno do sofrimento e da maneira como dele tomamos parte, como o sofremos, como o infligimos ao outro.

O sujeito livre ou determinado
Acima da responsabilidade, coloca-se a questão do sujeito ou aquilo que determina o ser do sujeito. O que faz com que eu seja o que sou? Quais determinismos constituiriam meu destino, qual o encadeamento das causas das quais eu seria o resultado? Quais são os ingredientes que se conjugam em nós para fazer de nós o que somos? A noção de sujeito implica autonomia, construção de si, elaboração de sentido, o que supõe uma margem de liberdade, a de escolher os materiais de construção de nosso futuro, nossa trajetória, a forma de tornar-nos mestres de nosso destino.
Mas o que dizer, ainda uma vez, se o sujeito fica dividido, presa de suas pulsões, da lalangue,6 das mentiras e dos segredos, submetido a seus genes, seus hormônios, a seus neurotransmissores?
O sujeito geralmente rejeita pensar em si mesmo como objeto passivo, instrumento ou resíduo, ele aspira a um direito de intervenção e de invenção, de criação de si mesmo. Na perspectiva de autonomia, as causas detectáveis só fariam desencadear o possível: o sujeito as toma para fazer delas alguma coisa ou para contorná-las. O determinismo (o destino) é substituído pela oportunidade, os eventos e as disposições são oportunidade para um desenvolvimento criativo ou defensivo, em que se exerce a liberdade na qual se forja o sujeito.
Somos providos de uma capacidade insistente em buscar sentido (ainda que atribuindo-o a entidades sobrenaturais), ou seja, em nos dotarmos de intenções, motivações, razões e representações, graças às quais nos apropriamos da realidade que nos oprime. Imaginariamente, tornamo-nos o seu mestre – mas o que é o imaginário, senão nossa realidade mesma?
Felizmente, somos sapiens sapiens: podemos questionar nossa própria experiência, através da dúvida e da crítica, adquirir um saber sobre nosso saber e julgá-lo enganador, verdadeiro ou aproximativo. Felizmente, há o imaginário e o simbólico, essa capacidade de representar as coisas, dar-lhes significados e adaptar nossos atos a suas representações, descolando-as da realidade imediata, projetandonos no futuro, usando a experiência passada. Nossa liberdade nasce essencialmente da faculdade de colocar em linguagem, de dispor dos signos, de imaginar diferentemente, em suma, de nos reinventarmos. Ela se origina também da multiplicidade de determinantes que se conjugam, se contrariam ou se neutralizam de uma forma tão complexa que a liberdade pode dar-se ao luxo de escorregar nos interstícios e aí tomar seu lugar, tomar o poder.
Pensemos nesses determinantes, um pouco na desordem:
– os eventos fortuitos do encontro, à maneira de um acaso;
– os eventos que marcam afetivamente (morte de um pai, de um ser próximo);
– as origens familiares, as relações familiares, a infância;
– as condições sociais, econômicas, culturais;
– os eventos da história (guerras, agitações sociais);
– os lugares geográficos de origem, os meios sociais;
– os pertencimentos étnicos, religiosos, políticos;
– os dados genéticos e fisiológicos (alimentação, heranças, deficiências, doenças);
– nossa formação e suas aquisições, conhecimentos, habilidades, status;
– as escolhas sexuais, afetivas, profissionais, que tenham relação com as determinantes acima;
– as produções, as apropriações materiais e intelectuais;
– os reconhecimentos, pertencimentos ou rejeições.

Nessa lista sem fim, os elementos interagem de modo fortuito, permitindo ao sujeito, eventualmente, safar-se, em situações delicadas. Ele pode fazer arranjos diversos, pode mesmo fingir que tais determinantes não lhe dizem respeito.
A liberdade, por outro lado, também tem a ver com o sujeito coletivo. O destino de um povo confunde-se com sua história feita de conquistas, invasões, sobressaltos, mas também de crenças, de uma interpretação cultural e ideologizada dessa história e de seu futuro. As proezas de seus heróis orientam seu destino legendário. Os povos se constroem um destino a posteriori, por meio de histórias lembradas e de um imaginário tocado pela emoção, a fim de forjar uma identidade e consolidar sua unidade. Em nome disso, eles defendem sua liberdade: sua independência, seu direito de disporem de si mesmos, de preservar seus ideais. Soberania, unidade e idealidade que são, aliás, eternamente contestadas.
Nossa liberdade revela-se em nossa capacidade de mudança. É nesse princípio que repousa a possibilidade de formação, de terapia para os indivíduos, de intervenção nos grupos, de reforma política etc. Aí está a chance de remanejar dados fisiológicos, psicológicos e sociológicos, através da análise da experiência em seus fatores, suas representações, suas intenções e efeitos. Claro que isso nem sempre é possível: há elementos que parecem pesar bastante e nos aprisionar.

Um destino à parte
Costuma-se também associar o termo destino(s) à mulher e não ao homem, quando se trata de gênero: “destinos de mulheres” faz referência ao estranho e universal destino de ser ela submetida, enclausurada, maltratada. Tal maldição seria, para alguns, ligada à morfologia e à fisiologia, corpo tecido de vazios, escansão do sangue e do fruto do ventre. Para outros, essa maldição provém das fantasias e representações que dela se fazem, da organização sociocultural que a designa, prolongando ou indo além do que é tradição e história. Ou ainda: ela provém da necessidade de garantir a filiação e a proteção da prole, da instrumentalização das mulheres, em função das mudanças sociais.
Tudo isso é, a um só tempo, verdadeiro e falso. Os determinismos da natureza, associados às exigências da cultura, não impedem que a mulher seja também sapiens sapiens, que ela seja dotada de linguagem e da função imaginária. Ela dispõe de sua sexualidade diferentemente do homem, ela tem outras preferências ou atitudes, em seus modos de ação. Mas sua capacidade reflexiva e de pensar não é diferente nem específica, tal como sua fisiologia digestiva. Os interstícios que a história lhe deixou para exercer sua liberdade foram e ainda são bastante estreitos. Seu destino foi tecido pelas representações obstinadas que dele têm os homens, transformando seu sexo em desvantagem.

Um destino econômico
Em nossos dias, o destino é econômico, ganhar ou perecer, crescimento ou falência, todo mundo está amarrado ao destino da empresa, que é aquele da sociedade de economia liberal, destino das multinacionais, dos fundos de pensão, das especulações. Administrar é sinônimo de realizar o destino econômico.
As empresas se fixam um destino (ganhar), os indivíduos participam desse projeto, mas nada lhes resta senão partilhar, como dependentes, do destino da empresa, do contrário tornam-se individualidades perdidas. Eles têm de escolher entre submeter-se ou ser excluídos, embora até na submissão possa haver exclusão. Tomar o próprio destino nas mãos é revoltar-se e correr o risco do fracasso, do retorno ao jugo do destino.
Mas quando renunciamos construir algum sentido, recaímos nas malhas do destino ou, simplesmente, do que é circunstancial, ou seja, na seqüência de fatos desprovidos de sentido, fatos brutos, livrando-nos de qualquer responsabilidade: “é assim, nada se pode fazer”. O filme de Gary Fleder, O júri, de 2004, tem como tema um processo de fabricantes de armas, nos EUA: os empresários vendem produtos sem aparente sentido ou finalidade. O que os compradores fazem deles não diz respeito aos fabricantes. Assim, não há correlação alguma entre armas fabricadas para serem vendidas, armas compradas e assassinatos. A denegação do sentido dá lugar a acontecimentos desconectados. A economia de mercado elimina o sentido, em proveito do lucro. Assim, tudo que acontece é circunstancial, são fatos fortuitamente justapostos. Assiste-se ao desaparecimento do sentido, do cidadão responsável, do coletivo, chega-se ao “cada um por si” e às circunstâncias portadoras de desgraça.
Por outro lado, desenvolve-se uma inflação da responsabilização: é preciso achar um culpado, que responda diante da lei pelo fato acidental (aquele que fabricou a escada da qual alguém caiu). A lógica fria que conjuga o imperativo econômico e a neutralidade dos fatos gera, em contrapartida, a recusa do acidental, a exigência de se reconhecer o sofrimento e a reivindicação de reparação financeira. Aquilo que é fato para um é injustiça para outro. O mundo maniqueísta ou paranóico – tudo é acidental ou tudo é intencional – parece estar substituindo a oposição entre destino e liberdade.

In fine
Definitivamente, o único destino contra o qual nada pode ser tentado é o fato inelutável da morte. Mas nossa vida nunca seria vida, se a morte fosse um acontecimento do qual nada pudéssemos dizer. Da vida podemos fazer histórias, nossa história, dar-lhe um sentido, seja este movediço ou fugaz, escrevendo-a por nossas próprias mãos. Assim podemos colocar, frente a frente, a morte e o destino. Algumas pessoas dão sentido à sua morte, revestindo-a de um ideal, o que é, evidentemente, uma forma astuta de menosprezar o destino. É verdade que, diante da morte, não há outra saída possível senão buscar-lhe um sentido, sentido já dado, sentido transmitido. Quem ganha ou quem perde? Diante da máxima “Morte, onde está a tua vitória?”, poderíamos também exclamar “Vida, onde está a tua vitória?”. Eu diria, numa conjugação do pensamento reflexivo e da audácia imaginária: ela está na invenção permanente do sentido.

Referências
Atlan, H. (2003). Les étincelles du hasard. Paris: Le Seuil.
Canguilhem, G. (1966). Le normal et le pathologique. Paris: PUF.
Carrel, A. (1935). L’homme neuronal. Paris: Plon
Darwin, C. (1859). L’origine des espèces. Paris: Reinwald, 1880 ; Paris: Maspero, 1980.
Doubrovsky, S. (1977). Fils. Paris: Galilée.
Euripide. Théâtre complet. (1966). Paris: Pléiade.
Freud, S. (1912/1983). Totem et tabou. Paris: PB Payot.
Freud, S. (1930/1986). Malaise dans la civilisation. Paris: PUF.
Girard, R. (1972). La violence et le sacré. Paris: Grasset.
La Bible. (1985). Paris: Société Biblique Française.
Lévi-Strauss, C. (1958). L’anthropologie structurale. Paris: Plon.
Racine. (2003). Théâtre complet.Paris : Gallimard, col. Folio Classique.


Texto recebido em março/2008.
Aprovado para publicação em abril/2008.



*Professora emérita de Psicologia Social Clínica, no Laboratoire de Changement Social, Universidade de Paris 7. Tradução: Nina de Melo Franco. E-mail: j.barus@orange.fr
1Prática de adivinhação que consiste em interpretar as linhas ou desenhos do que resta do café, no fundo da xícara (o café é preparado sem se coar o pó). (N.T.)
2Noir Désir é o nome do grupo de rock criado por Bernard Cantat.
3Em francês, temos o jogo de palavras que Lacan estabeleceu entre «père sévère” (pai severo) e a terceira pessoa “persévère” (persevera) do verbo perseverar. (N.T.)
4O destino de Darwin foi o de ficar preso entre dois destinos, o da evolução e o de Deus.
5Título de um romance autobiográfico de Romain Gary.
6Neologismo lacaniano

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