A escrita do que se perde
The writing of what is lost
La escritura de lo que se pierde
Jeanne D'Arc Carvalho
Psicanalista, membro de Aleph Escola de Psicanálise, professora da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Fundação Mineira de Educação e Cultura
Endereço para correspondência
RESUMO
O artigo aborda uma concepção do saber e do conhecimento extraída da teoria psicanalítica que afirma que a curiosidade intelectual deriva da curiosidade sexual. O saber que daí advém organiza-se em torno de uma falta que a estrutura de linguagem comporta, um 'saber em fracasso'. Considerando a inibição intelectual, um dos destinos do fracasso das pesquisas infantis, teoriza-se a escrita como uma operação que faz 'ato de separação' do Outro, assim como o efeito de uma perda.
Palavras-chave: falta; saber; inibição; desejo; escrita
ABSTRACT
The article deals with an approach to knowing and knowledge from the psychoanalytical theory, which states that intellectual curiosity stems from sexual curiosity. The knowledge thus obtained revolves around a lack embodied in the structure of language, a 'knowing in failure'. Considering intellectual inhibition as one of the consequences of the child's self-explorations, it is theorized that writing is a construct that operates an 'act of separation' from the Other, like the effect of a loss.
Keywords: loss; knowing; inhibition; desire; writing
RESUMEN
El artículo aborda una concepción del saber y del conocimiento extraída de la teoría psicoanalítica que afirma que la curiosidad intelectual se origina de la curiosidad sexual. El saber que de allí adviene se organiza en torno de una falta que la estructura del lenguaje comporta, un 'saber en fracaso'. Considerando la inhibición intelectual, uno de los destinos del fracaso de las investigaciones infantiles, se teoriza la escritura como una operación que hace 'acto de separación' del Outro, así como el efecto de una pérdida.
Palabras clave: falta; saber; inhibición; deseo; escritura
Introdução
O enlace entre saber, desejo e falta é marcado na obra freudiana desde 1908, com o texto As teorias sexuais infantis (1908/1976a), seguido do complemento que o autor acrescenta no texto Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910/1970). Em 1910 acrescenta nova idéia, anexada na parte II do célebre artigo Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1972), e ainda toda a seção sobre esse assunto, acrescida em 1915.
O termo Wissentrieb, conforme esse texto de 1908, orienta uma elaboração que ressalta a ligação íntima entre a atividade investigativa da criança e a pulsão. Ordinariamente traduzido como impulso ao saber ou pulsão de saber, esse termo interroga não só um modo de satisfação como também aborda a falta em jogo na construção de teorias que a criança empreende movida pelo enigma da origem, do sexo e da distinção entre os sexos.
Tributária de um mal-estar, a atividade de pesquisa não tem uma causalidade inata, e é no âmbito de uma "perda realmente experimentada ou justamente temida", que Freud (1908/1976b, p. 216) ordenará sua tese de que a curiosidade intelectual deriva da curiosidade sexual. Ele nomeia "teorias" as construções das crianças, e as compara às tentativas dos adultos, que consideramos geniais, para explicar os problemas do universo. Mesmo sendo falsas, essas construções terão na sua estrutura "um fragmento da verdade" na sua relação com a organização libidinal. Pressionada pelo enigma, e pelo real da pulsão que acossa o corpo, a criança construirá um saber ali onde um vazio a convoca.
Essa maneira de situar a questão resgata uma experiência de perda como condição para a investigação, ressaltando na sua origem a subjetivação da falta, que a linguagem impõe a todo ser falante. Esse trabalho, o sujeito o fará demonstrando que uma perda é condição necessária para que se instaure um desejo de saber, assim como se opera a constituição de um saber inconsciente com função de verdade no seu enlace com a pulsão.
Partir desse referencial para orientar este artigo sobre a escrita atesta a importância do diálogo do psicanalista com o educador e ressalta, na interseção dessas duas práxis já salientada por Freud (1937/1975), o que as diferencia no manejo com o real em jogo na experiência de analisar e de educar. A radicalidade de uma concepção de saber que aloja o fracasso como estruturante de uma posição que o sujeito assumirá frente ao desafio de um saber não todo promove, a meu ver, uma rica problematização, ao demarcar na interseção entre esses dois campos pontos de cruzamento e corte. Em um âmbito que ultrapassa as perguntas iniciais que as crianças fazem sobre a origem da existência, Freud identifica um modo de pensar que difere das concepções sobre o conhecimento e a aprendizagem, distinto de princípios genéticos e ou evolutivos sustentados pelo discurso pedagógico. A via aberta por Freud, destrona a razão ao desalojar o eu em sua própria casa, na medida em que a consciência é surpreendida por um saber que desconhece, um saber agenciado pelo inconsciente.
Tomemos inicialmente os passos dessa elaboração contida no texto de 1908. Ressalto dela três pontos que me parecem capitais para o propósito deste artigo.
1 - A questão-enigma sobre a origem, formulada logo que a criança começa a falar: De onde vêm os bebês? é agenciada pelo temor da perda do lugar no desejo do Outro; premida pelo "aguilhão das pulsões egoístas" a criança endereçará ao Outro a questão.
2 - Essa elaboração tem a função precisa de fornecer um tratamento simbólico nesse tempo de desamparo frente ao enigma do desejo do Outro, que institui para a criança um campo de investigações doravante estendido a outras questões distintas das teorias sexuais construídas por ela. Segundo Freud "é como toda pesquisa, o produto de uma exigência vital, como se ao pensamento fosse atribuída a tarefa de impedir a repetição de eventos tão temidos. Suponhamos, entretanto, que o pensamento infantil logo se torne independente dessa instigação e passe a operar como um instinto auto-sustentado de pesquisa." (Freud, 1908/1976a, p.216)
3 - É ao adulto, fonte de todo saber, que a criança endereça inicialmente suas reflexões, constituindo-se aí um conflito. Qualquer que seja a resposta ele só poderá contornar a impossibilidade de todo saber sobre o sexo. Sob o efeito da divisão ocasionada entre a perda na suposição de saber endereçada ao adulto e suas construções sobre a diferença entre os sexos, o nascimento e a relação sexual, mais de acordo com a organização libidinal, a criança se comportará, segundo a metáfora de Freud, como os primitivos que, mesmo colonizados, continuam adorando seus antigos deuses.
Não há prevenção possível, a divisão que caracteriza a neurose se instalará na estrutura psíquica e um saber inconsciente vigorará como registro dessa experiência.
Uma insatisfação se instala no ponto da impossibilidade da estrutura de linguagem de tudo dizer, que resultará em vicissitudes diversas frente ao fracasso das investigações sexuais, determinando o devir do sujeito na sua relação com o conhecimento. A esse respeito, Penna (2003, p.51) resgata a questão tal como Freud a apresenta no Projeto para uma psicologia científica. Nesse texto a noção de representação no aparelho psíquico supõe a perda do objeto primitivo, das Ding, definido por Freud exatamente como resíduo, o que foi excluído do juízo. O pensamento e o juízo encontram somente os atributos, substitutos da coisa, jamais a coisa em si.
Um saber 'em fracasso'2
Freud traz novamente a discussão das pesquisas sexuais empreendidas pelas crianças em um artigo posterior, sobre o artista Leonardo da Vinci. Ali, reafirma suas hipóteses e encontra um fracasso nessa primeira tentativa de independência intelectual da criança, que terá um caráter duradouro. "A curiosidade das crianças pequenas se manifesta no prazer incansável que sentem em fazer perguntas; isso deixa o adulto perplexo até vir a compreender que todas estas perguntas não passam de meros circunlóquios que nunca cessam, pois a criança os está usando em substituição àquela única pergunta que nunca faz." (Freud, 1910/ 1970, p.72).
Os três destinos que a curiosidade intelectual pode seguir fazem contorno a um furo no saber ressaltado em itálico na edição Standard conforme a citação acima, destacando a pergunta que o inconsciente desconhece. Trata-se de uma impossibilidade de natureza estrutural; longe de significar uma dificuldade pessoal, traz uma concepção em relação ao trabalho de investigação contrária à idéia de êxito a priori. Cada um deve encontrar o seu modo de tratar um saber que se organiza em torno de um limite: um "saber em fracasso". Impossível saciar o desejo de saber, já que ele se estrutura a partir de uma perda fundamental, orientando uma outra escuta das dificuldades que um sujeito pode vir a apresentar em sua trajetória escolar. O "fracasso das investigações sexuais", tal como Freud se expressa, resultará não só em um gozo tributário de um sintoma ou de uma inibição intelectual, como também será a causa de desejo que jaz na produção de um escrito.
No primeiro destino, a curiosidade permanecerá inibida e a atividade intelectual poderá ficar limitada, caracterizando uma inibição neurótica. A segunda via desemboca na erotização das operações intelectuais, colorindo-as com o gozo e a angústia, o recalcado faz seu retorno sob a forma de uma preocupação pesquisadora compulsiva. No terceiro destino, a libido escapa ao recalque, sendo sublimada desde o começo em curiosidade intelectual, ligando-se à pesquisa.
A sublimação que intervém na produção intelectual não possui qualidade neurótica nem ligação com os complexos originais da pesquisa sexual infantil; nesse processo a libido trabalha junto à "pulsão de saber" (Wissentrieb) e o pensamento fica livre e a serviço dos interesses intelectuais.
O segundo destino contorna a ação do recalque, e o que retorna é a compulsão neurótica do pensamento revelando o que restou sem uma conclusão satisfatória durante as pesquisas infantis. Freud ressalta a posição do obsessivo frente ao desejo, traduzido em uma ruminação interminável.
No primeiro destino que a neurose pode tomar, "a avidez de saber permanece inibida e a livre atividade intelectual limitada"; aqui Freud evoca o reforço da limitação do pensamento pelo meio externo, através da intimidação do educador, dos pais ou da religião. A relação do sujeito com o saber pode chegar ao nível do chamado "pensamento débil" (Denkschwäche), traduzido na versão brasileira por "enfraquecimento intelectual". Segundo Santiago (2005), é somente neste artigo: Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância que aparece essa expressão que na língua alemã possui também o sentido de "debilidade mental", caracterizando uma posição subjetiva que resulta em uma forma extrema de inibição neurótica do pensamento.
Em 1926, Freud escreve Inibição, sintoma e ansiedade. Esse texto, escrito à luz da segunda tópica do aparelho psíquico, retoma a elaboração da teoria psicanalítica sobre a angústia e apresenta uma contribuição fundamental do ponto de vista clínico; efeito de um tempo de maturidade de Freud como analista. As três formas de mal-estar do sujeito: a inibição, os sintomas e a angústia são descritas de maneira a salientar distinções entre elas. Estão em planos distintos, ao mesmo tempo em que se conjugam umas às outras, resultando em uma estrutura triádica, uma escrita nodal, permitindo a Lacan (2005) proferir em seu ensino um seminário dedicado ao tema da angústia.
Situemos a questão inicialmente a partir do texto freudiano; ali a inibição e o sintoma são relacionados a partir da função. Para a inibição, ocorre uma restrição da função; no caso dos sintomas, a função passa por alguma modificação inusitada ou surge dela uma nova manifestação. Funções do eu são destacadas: sexual, nutrição, locomoção e trabalho. A inibição como expressão da restrição de uma função do eu é relacionada à angústia e ao recalque. Algumas inibições indicam o abandono de uma função porque seu exercício produziria angústia, além de indicar um recurso a fim de evitar um conflito com o isso, a fim de não ter de adotar novas medidas de recalcamento. Dessa maneira, a inibição ganha um estatuto que a destaca do sintoma, já que este não pode ser descrito como um processo que ocorre no eu.
Na inibição, o eu renuncia a uma função que se encontra dentro de sua esfera; clinicamente falando, o sujeito pode dar as razões de sua inibição com justificativas cujo sentido apontam para um recurso frente à perda, uma medida de precaução. Entretanto, isso não impede o laço com a causa do desejo no plano inconsciente; em alguns casos a inibição se liga a um modo de satisfação pulsional que caracteriza a estrutura do sintoma. A investigação empreendida por Freud sobre o escritor Fiodor Dostoievski demonstra um modo de satisfação masoquista ditada pela culpabilidade do artista. É somente após ter perdido todos os seus bens que o escritor consegue escrever Humilhados e ofendidos.
Para Lacan (2005), a inibição é identificada no âmbito do impedimento; trata-se de uma posição, assumida na neurose, que indica uma captura narcísica. A própria imagem faz obstáculo ao exercício da função. Há um excesso de moi, indicação clínica que situa na esfera do eu e da alienação ao Outro o fundamental a ser extraído na inibição. O ato de escrever pode ser alvo de tal vicissitude.
O "olhar" toma aqui um lugar de destaque em consonância com a fundamentação freudiana de que o desejo de saber não pode ser integrado entre os componentes pulsionais elementares; sua atividade corresponde, de um lado, a uma maneira sublimada de obter domínio e, de outro, utiliza a energia da escopofilia, conforme exposto no artigo Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905/1972).
O desenho como uma escrita3
A respeito do desenho como escrita, Pommier (1993) apresenta uma contribuição ao interrogar o fascínio que a imagem exerce sobre nós; qualquer produção gráfica fornece razão para evocarmos uma imagem cuja matriz simbólica ancora-se no Outro. A imaturidade do infans precipita-se em direção ao alcance de uma imagem unificada do corpo graças ao narcisismo, ao ideal que promove, naquele que faz a função materna, o olhar apaixonado endereçado à criança. Dessa relação especular teremos um registro através do corpo retratado nos desenhos das crianças, que poderemos doravante nomear 'corpo psíquico'. Tal configuração demonstrará a tentativa da criança de se reconhecer nesse corpo, cuja forma lhe é inicialmente estranha.
Segundo o autor, os primeiros desenhos das crianças não apresentam somente uma imperícia na representação do corpo. Os desenhos podem se reduzir a uma cabeça (nariz, olhos, boca, dentro de uma bola gigante de onde partem embriões de braços e pernas). Tal figuração mostra-se tão repetitiva que não podemos atribuí-la a uma inabilidade. Ela se reitera com uma generalização tal que, se investigarmos os arquivos de uma escola de educação infantil e consultarmos os desenhos das crianças, fatalmente nos interrogaremos sobre essa curiosa uniformidade de estilo. Uma percepção antropomórfica do mundo prevalecerá nos desenhos das crianças. Admiramos essa produção humanizada. O sol, a casa, passará a ter olhos, boca, um rosto. Daí, logo que uma produção gráfica é proposta à leitura, corre o risco de hipnotizar o jovem leitor, pois ele procurará encontrar aí o que se assemelha a ele. A eventual coalescência com esse "gozo do olhar," pode impedir o sujeito de traçar outras formas para além do próprio corpo. Como conseqüência, o ato de escrever implicará uma separação da imagem, em sincronia a uma separação com o Outro. Somente assim ela poderá adquirir valor literal. A indicação de Freud quanto às imagens dos sonhos ganha aqui seu relevo. É preciso tomá-las como "signos verbais"; o sonho escreve.
Também nessa perspectiva encontramos em um texto intitulado O ato de desenhar, de Chemama (1996), uma elaboração sobre o desenho como um esforço do sujeito para marcar, traçar um limite entre o campo do Outro, por vezes invasivo e o sujeito. O autor indica que o desenho é uma escrita que faz ato, um "ato de separação". É por isso que se lê uma representação na produção da criança, desde as primeiras garatujas até o aparecimento de desenhos claramente figurativos. Aqui a perspectiva psicanalítica marca uma diferença na abordagem da questão. Sem pretender entrar no debate do significado atribuído aos desenhos da criança, deve-se tomá-los não como símbolos, mas atribuir a eles a função de circunscrever, dar um limite a um universo inicialmente sem forma. Esse ato, por vezes imperioso, pode tornar o insuportável suportável, o desconhecido circunscrito a uma ordem significante.
O esforço em delimitar um corpo, no início estranho e fragmentado, favorece o enquadre dessa produção como uma exigência da própria estrutura do sujeito. O eu, compreendido como o resultado de uma experiência de identificação a uma imagem que o Outro fornece, pede do sujeito um trabalho de simbolização que o desenho parece verificar; fazer borda, cingir o vazio.
Evidencia-se aí uma escrita da falta agenciada desde a origem pelo significante. A afirmação de Lacan de que é da relação do sujeito com o significante que se trata na identificação ganha aqui importância. É nesse sentido que podemos propor para o desenho não um enquadre evolutivo, mas o fato de que ele atesta o esforço da criança em relação à dimensão do significante que o falo ordena: uma escrita do falo. Entre a mãe e a criança há o falo, há a falta. Como operador lógico no contexto edípico, o falo ordena a operação de alienação e separação. Se não há o luto do falo – de ser o falo para o Outro – pode ocorrer, por exemplo, uma posição subjetiva de inibição frente à aprendizagem. O alheamento e o desinteresse evidenciam que o desejo não está ali.
Estas noções – do narcisismo edo complexo de Édipo – podem esclarecer para o educador os tempos da constituição do sujeito na primeira infância. A alienação aos pais constitui o processo formador da criança, que atravessa dois tempos nitidamente diferentes: o primeiro, narcísico e dual, em que ela se faz objeto ilusório de completude para o Outro materno, fundamental para a constituição de uma unidade corporal; o segundo, marcado pela incidência da castração, em que se opera um corte separador possibilitando o desejo. Os "transtornos de aprendizagem" apresentam desafios, relacionados à escrita, que podem fazer apelo a uma operação de separação da relação narcísica e dual entre o sujeito e o Outro. O conhecimento e o saber seriam assim tributários de uma perda, da perda do objeto, de tal maneira que a própria realidade se constitui para o sujeito, em função da busca do objeto de desejo, como uma "realidade desiderativa" (Bass citado por Penna, 2003, p.52).
Da perda à escrita
Segundo Gnerre (1985, p. 28), as pesquisas sobre a escrita são uma das principais áreas de "categorização das atividades intelectuais do pensamento ocidental". A Psicanálise oferece a esse respeito uma discussão, cujo fundamento ressalta nesse 'fazer' um trabalho que destaca para além do estilo, considerado um modo próprio de escrever, uma forma de dar tratamento àquilo que da linguagem padece de representação.
A noção de objeto na Psicanálise tem uma trajetória que se origina com a noção freudiana de das Ding, a "Coisa" – objeto primeiro e mítico da primeira 'experiência de satisfação' jamais reencontrado –, alcançando o estatuto de objeto a na álgebra lacaniana. São várias as definições para o objeto a, no ensino de Jacques Lacan, destacando-se aquela que se encontra em seu seminário O desejo e sua interpretação (1958-1959). Nesta, o psicanalista francês ressaltou a articulação do objeto da falta ao desejo do Outro, o que resulta na noção de "objeto causa de desejo".
Dos relatos de casos clínicos, cujo teor de escrita revela menos a história do sujeito, e mais o modo de divisão do sintoma que o inconsciente cifra, até ao modo de fazer com a letra que o psicótico endereça à cultura ou a um analista, verifica-se que um escrito pode ser o endereço encontrado para a causa do desejo. A práxis psicanalítica revela que a causa de desejo escreve no contorno da perda de objeto pela mediação das palavras, concorrendo para a operação de luto de um Outro.
É nesse sentido que podemos trazer aqui a lembrança de James Joyce, que modificou o romance e o modo de escrever na literatura. Sua escrita inspirou Lacan (2003b) em seu ensino sobre o uso da letra e a função da arte para certos sujeitos. Para alguns, a escrita é um recurso muito especial, porque fornece um tratamento para aquilo que não se perdeu e que produz a falha na relação com a linguagem.
Em 1908, Freud se pergunta de onde o "escritor criativo" retira seu material, de tal maneira que consegue causar-nos emoções e sentimentos, os quais não só desconhecemos como também não dominamos. Ali, o autor aproxima a criação literária e as brincadeiras infantis, para ressaltar na causa da escrita literária uma satisfação anterior, mítica, tão incompleta que exige a criação: "o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une." (Freud, 1908/1976c, p.148).
Ao final deste texto, a pergunta sobre a fonte de inspiração do artista é deixada em suspensão; a causa do desejo escreve, sem que o sujeito saiba. Assim, o estilo é o modo especial como o objeto se faz letra; de acordo com Vidal (2000), o objeto a faz o texto, "solicitando apenas o consentimento do escritor que, não sem evocar sua angústia, é obrigado a depor suas armas." (p. 76).
Em um estudo surpreendente sobre os documentos e manuscritos de Freud, Grubrich-Simitis (2003) apresenta-nos as condições de seu processo criativo relatado nas correspondências que manteve com Sandor Ferenczi. A "miséria relativa", escreve Freud, o acompanha. Para produzir algo, é necessário um mal-estar, sublinha repetidas vezes. A sábia aceitação de suas próprias feridas levou Freud a interpelar Ferenczi – sempre ávido por curar-se – em uma dessas cartas: "He estado afligido todo o tiempo y me calmo escribiendo – escribiendo – escribiendo". ■
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Endereço para correspondência
E-mail: darc@twi.com.br
Recebido em abril/2008.
Aceito em junho/2008.
NOTAS
1 Carta de Freud a Sandor Ferenczi com tradução modificada por Ilse Grubrich-Simitis.
2 Expressão extraída do texto Lituraterra (Lacan, 2003a, p. 17).
3 Esta seção apresenta um desenvolvimento da temática do desenho de crianças, já desenvolvida em livro de minha autoria, com algumas modificações para o tema deste artigo (Carvalho, 2005).
The writing of what is lost
La escritura de lo que se pierde
Jeanne D'Arc Carvalho
Psicanalista, membro de Aleph Escola de Psicanálise, professora da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Fundação Mineira de Educação e Cultura
Endereço para correspondência
RESUMO
O artigo aborda uma concepção do saber e do conhecimento extraída da teoria psicanalítica que afirma que a curiosidade intelectual deriva da curiosidade sexual. O saber que daí advém organiza-se em torno de uma falta que a estrutura de linguagem comporta, um 'saber em fracasso'. Considerando a inibição intelectual, um dos destinos do fracasso das pesquisas infantis, teoriza-se a escrita como uma operação que faz 'ato de separação' do Outro, assim como o efeito de uma perda.
Palavras-chave: falta; saber; inibição; desejo; escrita
ABSTRACT
The article deals with an approach to knowing and knowledge from the psychoanalytical theory, which states that intellectual curiosity stems from sexual curiosity. The knowledge thus obtained revolves around a lack embodied in the structure of language, a 'knowing in failure'. Considering intellectual inhibition as one of the consequences of the child's self-explorations, it is theorized that writing is a construct that operates an 'act of separation' from the Other, like the effect of a loss.
Keywords: loss; knowing; inhibition; desire; writing
RESUMEN
El artículo aborda una concepción del saber y del conocimiento extraída de la teoría psicoanalítica que afirma que la curiosidad intelectual se origina de la curiosidad sexual. El saber que de allí adviene se organiza en torno de una falta que la estructura del lenguaje comporta, un 'saber en fracaso'. Considerando la inhibición intelectual, uno de los destinos del fracaso de las investigaciones infantiles, se teoriza la escritura como una operación que hace 'acto de separación' del Outro, así como el efecto de una pérdida.
Palabras clave: falta; saber; inhibición; deseo; escritura
"He estado afligido todo el tiempo y me calmo escribiendo – escribiendo – escribiendo".1
Introdução
O enlace entre saber, desejo e falta é marcado na obra freudiana desde 1908, com o texto As teorias sexuais infantis (1908/1976a), seguido do complemento que o autor acrescenta no texto Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910/1970). Em 1910 acrescenta nova idéia, anexada na parte II do célebre artigo Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1972), e ainda toda a seção sobre esse assunto, acrescida em 1915.
O termo Wissentrieb, conforme esse texto de 1908, orienta uma elaboração que ressalta a ligação íntima entre a atividade investigativa da criança e a pulsão. Ordinariamente traduzido como impulso ao saber ou pulsão de saber, esse termo interroga não só um modo de satisfação como também aborda a falta em jogo na construção de teorias que a criança empreende movida pelo enigma da origem, do sexo e da distinção entre os sexos.
Tributária de um mal-estar, a atividade de pesquisa não tem uma causalidade inata, e é no âmbito de uma "perda realmente experimentada ou justamente temida", que Freud (1908/1976b, p. 216) ordenará sua tese de que a curiosidade intelectual deriva da curiosidade sexual. Ele nomeia "teorias" as construções das crianças, e as compara às tentativas dos adultos, que consideramos geniais, para explicar os problemas do universo. Mesmo sendo falsas, essas construções terão na sua estrutura "um fragmento da verdade" na sua relação com a organização libidinal. Pressionada pelo enigma, e pelo real da pulsão que acossa o corpo, a criança construirá um saber ali onde um vazio a convoca.
Essa maneira de situar a questão resgata uma experiência de perda como condição para a investigação, ressaltando na sua origem a subjetivação da falta, que a linguagem impõe a todo ser falante. Esse trabalho, o sujeito o fará demonstrando que uma perda é condição necessária para que se instaure um desejo de saber, assim como se opera a constituição de um saber inconsciente com função de verdade no seu enlace com a pulsão.
Partir desse referencial para orientar este artigo sobre a escrita atesta a importância do diálogo do psicanalista com o educador e ressalta, na interseção dessas duas práxis já salientada por Freud (1937/1975), o que as diferencia no manejo com o real em jogo na experiência de analisar e de educar. A radicalidade de uma concepção de saber que aloja o fracasso como estruturante de uma posição que o sujeito assumirá frente ao desafio de um saber não todo promove, a meu ver, uma rica problematização, ao demarcar na interseção entre esses dois campos pontos de cruzamento e corte. Em um âmbito que ultrapassa as perguntas iniciais que as crianças fazem sobre a origem da existência, Freud identifica um modo de pensar que difere das concepções sobre o conhecimento e a aprendizagem, distinto de princípios genéticos e ou evolutivos sustentados pelo discurso pedagógico. A via aberta por Freud, destrona a razão ao desalojar o eu em sua própria casa, na medida em que a consciência é surpreendida por um saber que desconhece, um saber agenciado pelo inconsciente.
Tomemos inicialmente os passos dessa elaboração contida no texto de 1908. Ressalto dela três pontos que me parecem capitais para o propósito deste artigo.
1 - A questão-enigma sobre a origem, formulada logo que a criança começa a falar: De onde vêm os bebês? é agenciada pelo temor da perda do lugar no desejo do Outro; premida pelo "aguilhão das pulsões egoístas" a criança endereçará ao Outro a questão.
2 - Essa elaboração tem a função precisa de fornecer um tratamento simbólico nesse tempo de desamparo frente ao enigma do desejo do Outro, que institui para a criança um campo de investigações doravante estendido a outras questões distintas das teorias sexuais construídas por ela. Segundo Freud "é como toda pesquisa, o produto de uma exigência vital, como se ao pensamento fosse atribuída a tarefa de impedir a repetição de eventos tão temidos. Suponhamos, entretanto, que o pensamento infantil logo se torne independente dessa instigação e passe a operar como um instinto auto-sustentado de pesquisa." (Freud, 1908/1976a, p.216)
3 - É ao adulto, fonte de todo saber, que a criança endereça inicialmente suas reflexões, constituindo-se aí um conflito. Qualquer que seja a resposta ele só poderá contornar a impossibilidade de todo saber sobre o sexo. Sob o efeito da divisão ocasionada entre a perda na suposição de saber endereçada ao adulto e suas construções sobre a diferença entre os sexos, o nascimento e a relação sexual, mais de acordo com a organização libidinal, a criança se comportará, segundo a metáfora de Freud, como os primitivos que, mesmo colonizados, continuam adorando seus antigos deuses.
Não há prevenção possível, a divisão que caracteriza a neurose se instalará na estrutura psíquica e um saber inconsciente vigorará como registro dessa experiência.
Uma insatisfação se instala no ponto da impossibilidade da estrutura de linguagem de tudo dizer, que resultará em vicissitudes diversas frente ao fracasso das investigações sexuais, determinando o devir do sujeito na sua relação com o conhecimento. A esse respeito, Penna (2003, p.51) resgata a questão tal como Freud a apresenta no Projeto para uma psicologia científica. Nesse texto a noção de representação no aparelho psíquico supõe a perda do objeto primitivo, das Ding, definido por Freud exatamente como resíduo, o que foi excluído do juízo. O pensamento e o juízo encontram somente os atributos, substitutos da coisa, jamais a coisa em si.
Um saber 'em fracasso'2
Freud traz novamente a discussão das pesquisas sexuais empreendidas pelas crianças em um artigo posterior, sobre o artista Leonardo da Vinci. Ali, reafirma suas hipóteses e encontra um fracasso nessa primeira tentativa de independência intelectual da criança, que terá um caráter duradouro. "A curiosidade das crianças pequenas se manifesta no prazer incansável que sentem em fazer perguntas; isso deixa o adulto perplexo até vir a compreender que todas estas perguntas não passam de meros circunlóquios que nunca cessam, pois a criança os está usando em substituição àquela única pergunta que nunca faz." (Freud, 1910/ 1970, p.72).
Os três destinos que a curiosidade intelectual pode seguir fazem contorno a um furo no saber ressaltado em itálico na edição Standard conforme a citação acima, destacando a pergunta que o inconsciente desconhece. Trata-se de uma impossibilidade de natureza estrutural; longe de significar uma dificuldade pessoal, traz uma concepção em relação ao trabalho de investigação contrária à idéia de êxito a priori. Cada um deve encontrar o seu modo de tratar um saber que se organiza em torno de um limite: um "saber em fracasso". Impossível saciar o desejo de saber, já que ele se estrutura a partir de uma perda fundamental, orientando uma outra escuta das dificuldades que um sujeito pode vir a apresentar em sua trajetória escolar. O "fracasso das investigações sexuais", tal como Freud se expressa, resultará não só em um gozo tributário de um sintoma ou de uma inibição intelectual, como também será a causa de desejo que jaz na produção de um escrito.
No primeiro destino, a curiosidade permanecerá inibida e a atividade intelectual poderá ficar limitada, caracterizando uma inibição neurótica. A segunda via desemboca na erotização das operações intelectuais, colorindo-as com o gozo e a angústia, o recalcado faz seu retorno sob a forma de uma preocupação pesquisadora compulsiva. No terceiro destino, a libido escapa ao recalque, sendo sublimada desde o começo em curiosidade intelectual, ligando-se à pesquisa.
A sublimação que intervém na produção intelectual não possui qualidade neurótica nem ligação com os complexos originais da pesquisa sexual infantil; nesse processo a libido trabalha junto à "pulsão de saber" (Wissentrieb) e o pensamento fica livre e a serviço dos interesses intelectuais.
O segundo destino contorna a ação do recalque, e o que retorna é a compulsão neurótica do pensamento revelando o que restou sem uma conclusão satisfatória durante as pesquisas infantis. Freud ressalta a posição do obsessivo frente ao desejo, traduzido em uma ruminação interminável.
No primeiro destino que a neurose pode tomar, "a avidez de saber permanece inibida e a livre atividade intelectual limitada"; aqui Freud evoca o reforço da limitação do pensamento pelo meio externo, através da intimidação do educador, dos pais ou da religião. A relação do sujeito com o saber pode chegar ao nível do chamado "pensamento débil" (Denkschwäche), traduzido na versão brasileira por "enfraquecimento intelectual". Segundo Santiago (2005), é somente neste artigo: Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância que aparece essa expressão que na língua alemã possui também o sentido de "debilidade mental", caracterizando uma posição subjetiva que resulta em uma forma extrema de inibição neurótica do pensamento.
Em 1926, Freud escreve Inibição, sintoma e ansiedade. Esse texto, escrito à luz da segunda tópica do aparelho psíquico, retoma a elaboração da teoria psicanalítica sobre a angústia e apresenta uma contribuição fundamental do ponto de vista clínico; efeito de um tempo de maturidade de Freud como analista. As três formas de mal-estar do sujeito: a inibição, os sintomas e a angústia são descritas de maneira a salientar distinções entre elas. Estão em planos distintos, ao mesmo tempo em que se conjugam umas às outras, resultando em uma estrutura triádica, uma escrita nodal, permitindo a Lacan (2005) proferir em seu ensino um seminário dedicado ao tema da angústia.
Situemos a questão inicialmente a partir do texto freudiano; ali a inibição e o sintoma são relacionados a partir da função. Para a inibição, ocorre uma restrição da função; no caso dos sintomas, a função passa por alguma modificação inusitada ou surge dela uma nova manifestação. Funções do eu são destacadas: sexual, nutrição, locomoção e trabalho. A inibição como expressão da restrição de uma função do eu é relacionada à angústia e ao recalque. Algumas inibições indicam o abandono de uma função porque seu exercício produziria angústia, além de indicar um recurso a fim de evitar um conflito com o isso, a fim de não ter de adotar novas medidas de recalcamento. Dessa maneira, a inibição ganha um estatuto que a destaca do sintoma, já que este não pode ser descrito como um processo que ocorre no eu.
Na inibição, o eu renuncia a uma função que se encontra dentro de sua esfera; clinicamente falando, o sujeito pode dar as razões de sua inibição com justificativas cujo sentido apontam para um recurso frente à perda, uma medida de precaução. Entretanto, isso não impede o laço com a causa do desejo no plano inconsciente; em alguns casos a inibição se liga a um modo de satisfação pulsional que caracteriza a estrutura do sintoma. A investigação empreendida por Freud sobre o escritor Fiodor Dostoievski demonstra um modo de satisfação masoquista ditada pela culpabilidade do artista. É somente após ter perdido todos os seus bens que o escritor consegue escrever Humilhados e ofendidos.
Para Lacan (2005), a inibição é identificada no âmbito do impedimento; trata-se de uma posição, assumida na neurose, que indica uma captura narcísica. A própria imagem faz obstáculo ao exercício da função. Há um excesso de moi, indicação clínica que situa na esfera do eu e da alienação ao Outro o fundamental a ser extraído na inibição. O ato de escrever pode ser alvo de tal vicissitude.
O "olhar" toma aqui um lugar de destaque em consonância com a fundamentação freudiana de que o desejo de saber não pode ser integrado entre os componentes pulsionais elementares; sua atividade corresponde, de um lado, a uma maneira sublimada de obter domínio e, de outro, utiliza a energia da escopofilia, conforme exposto no artigo Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905/1972).
O desenho como uma escrita3
A respeito do desenho como escrita, Pommier (1993) apresenta uma contribuição ao interrogar o fascínio que a imagem exerce sobre nós; qualquer produção gráfica fornece razão para evocarmos uma imagem cuja matriz simbólica ancora-se no Outro. A imaturidade do infans precipita-se em direção ao alcance de uma imagem unificada do corpo graças ao narcisismo, ao ideal que promove, naquele que faz a função materna, o olhar apaixonado endereçado à criança. Dessa relação especular teremos um registro através do corpo retratado nos desenhos das crianças, que poderemos doravante nomear 'corpo psíquico'. Tal configuração demonstrará a tentativa da criança de se reconhecer nesse corpo, cuja forma lhe é inicialmente estranha.
Segundo o autor, os primeiros desenhos das crianças não apresentam somente uma imperícia na representação do corpo. Os desenhos podem se reduzir a uma cabeça (nariz, olhos, boca, dentro de uma bola gigante de onde partem embriões de braços e pernas). Tal figuração mostra-se tão repetitiva que não podemos atribuí-la a uma inabilidade. Ela se reitera com uma generalização tal que, se investigarmos os arquivos de uma escola de educação infantil e consultarmos os desenhos das crianças, fatalmente nos interrogaremos sobre essa curiosa uniformidade de estilo. Uma percepção antropomórfica do mundo prevalecerá nos desenhos das crianças. Admiramos essa produção humanizada. O sol, a casa, passará a ter olhos, boca, um rosto. Daí, logo que uma produção gráfica é proposta à leitura, corre o risco de hipnotizar o jovem leitor, pois ele procurará encontrar aí o que se assemelha a ele. A eventual coalescência com esse "gozo do olhar," pode impedir o sujeito de traçar outras formas para além do próprio corpo. Como conseqüência, o ato de escrever implicará uma separação da imagem, em sincronia a uma separação com o Outro. Somente assim ela poderá adquirir valor literal. A indicação de Freud quanto às imagens dos sonhos ganha aqui seu relevo. É preciso tomá-las como "signos verbais"; o sonho escreve.
Também nessa perspectiva encontramos em um texto intitulado O ato de desenhar, de Chemama (1996), uma elaboração sobre o desenho como um esforço do sujeito para marcar, traçar um limite entre o campo do Outro, por vezes invasivo e o sujeito. O autor indica que o desenho é uma escrita que faz ato, um "ato de separação". É por isso que se lê uma representação na produção da criança, desde as primeiras garatujas até o aparecimento de desenhos claramente figurativos. Aqui a perspectiva psicanalítica marca uma diferença na abordagem da questão. Sem pretender entrar no debate do significado atribuído aos desenhos da criança, deve-se tomá-los não como símbolos, mas atribuir a eles a função de circunscrever, dar um limite a um universo inicialmente sem forma. Esse ato, por vezes imperioso, pode tornar o insuportável suportável, o desconhecido circunscrito a uma ordem significante.
O esforço em delimitar um corpo, no início estranho e fragmentado, favorece o enquadre dessa produção como uma exigência da própria estrutura do sujeito. O eu, compreendido como o resultado de uma experiência de identificação a uma imagem que o Outro fornece, pede do sujeito um trabalho de simbolização que o desenho parece verificar; fazer borda, cingir o vazio.
Evidencia-se aí uma escrita da falta agenciada desde a origem pelo significante. A afirmação de Lacan de que é da relação do sujeito com o significante que se trata na identificação ganha aqui importância. É nesse sentido que podemos propor para o desenho não um enquadre evolutivo, mas o fato de que ele atesta o esforço da criança em relação à dimensão do significante que o falo ordena: uma escrita do falo. Entre a mãe e a criança há o falo, há a falta. Como operador lógico no contexto edípico, o falo ordena a operação de alienação e separação. Se não há o luto do falo – de ser o falo para o Outro – pode ocorrer, por exemplo, uma posição subjetiva de inibição frente à aprendizagem. O alheamento e o desinteresse evidenciam que o desejo não está ali.
Estas noções – do narcisismo edo complexo de Édipo – podem esclarecer para o educador os tempos da constituição do sujeito na primeira infância. A alienação aos pais constitui o processo formador da criança, que atravessa dois tempos nitidamente diferentes: o primeiro, narcísico e dual, em que ela se faz objeto ilusório de completude para o Outro materno, fundamental para a constituição de uma unidade corporal; o segundo, marcado pela incidência da castração, em que se opera um corte separador possibilitando o desejo. Os "transtornos de aprendizagem" apresentam desafios, relacionados à escrita, que podem fazer apelo a uma operação de separação da relação narcísica e dual entre o sujeito e o Outro. O conhecimento e o saber seriam assim tributários de uma perda, da perda do objeto, de tal maneira que a própria realidade se constitui para o sujeito, em função da busca do objeto de desejo, como uma "realidade desiderativa" (Bass citado por Penna, 2003, p.52).
Da perda à escrita
Segundo Gnerre (1985, p. 28), as pesquisas sobre a escrita são uma das principais áreas de "categorização das atividades intelectuais do pensamento ocidental". A Psicanálise oferece a esse respeito uma discussão, cujo fundamento ressalta nesse 'fazer' um trabalho que destaca para além do estilo, considerado um modo próprio de escrever, uma forma de dar tratamento àquilo que da linguagem padece de representação.
A noção de objeto na Psicanálise tem uma trajetória que se origina com a noção freudiana de das Ding, a "Coisa" – objeto primeiro e mítico da primeira 'experiência de satisfação' jamais reencontrado –, alcançando o estatuto de objeto a na álgebra lacaniana. São várias as definições para o objeto a, no ensino de Jacques Lacan, destacando-se aquela que se encontra em seu seminário O desejo e sua interpretação (1958-1959). Nesta, o psicanalista francês ressaltou a articulação do objeto da falta ao desejo do Outro, o que resulta na noção de "objeto causa de desejo".
Dos relatos de casos clínicos, cujo teor de escrita revela menos a história do sujeito, e mais o modo de divisão do sintoma que o inconsciente cifra, até ao modo de fazer com a letra que o psicótico endereça à cultura ou a um analista, verifica-se que um escrito pode ser o endereço encontrado para a causa do desejo. A práxis psicanalítica revela que a causa de desejo escreve no contorno da perda de objeto pela mediação das palavras, concorrendo para a operação de luto de um Outro.
É nesse sentido que podemos trazer aqui a lembrança de James Joyce, que modificou o romance e o modo de escrever na literatura. Sua escrita inspirou Lacan (2003b) em seu ensino sobre o uso da letra e a função da arte para certos sujeitos. Para alguns, a escrita é um recurso muito especial, porque fornece um tratamento para aquilo que não se perdeu e que produz a falha na relação com a linguagem.
Em 1908, Freud se pergunta de onde o "escritor criativo" retira seu material, de tal maneira que consegue causar-nos emoções e sentimentos, os quais não só desconhecemos como também não dominamos. Ali, o autor aproxima a criação literária e as brincadeiras infantis, para ressaltar na causa da escrita literária uma satisfação anterior, mítica, tão incompleta que exige a criação: "o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une." (Freud, 1908/1976c, p.148).
Ao final deste texto, a pergunta sobre a fonte de inspiração do artista é deixada em suspensão; a causa do desejo escreve, sem que o sujeito saiba. Assim, o estilo é o modo especial como o objeto se faz letra; de acordo com Vidal (2000), o objeto a faz o texto, "solicitando apenas o consentimento do escritor que, não sem evocar sua angústia, é obrigado a depor suas armas." (p. 76).
Em um estudo surpreendente sobre os documentos e manuscritos de Freud, Grubrich-Simitis (2003) apresenta-nos as condições de seu processo criativo relatado nas correspondências que manteve com Sandor Ferenczi. A "miséria relativa", escreve Freud, o acompanha. Para produzir algo, é necessário um mal-estar, sublinha repetidas vezes. A sábia aceitação de suas próprias feridas levou Freud a interpelar Ferenczi – sempre ávido por curar-se – em uma dessas cartas: "He estado afligido todo o tiempo y me calmo escribiendo – escribiendo – escribiendo". ■
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Endereço para correspondência
E-mail: darc@twi.com.br
Recebido em abril/2008.
Aceito em junho/2008.
NOTAS
1 Carta de Freud a Sandor Ferenczi com tradução modificada por Ilse Grubrich-Simitis.
2 Expressão extraída do texto Lituraterra (Lacan, 2003a, p. 17).
3 Esta seção apresenta um desenvolvimento da temática do desenho de crianças, já desenvolvida em livro de minha autoria, com algumas modificações para o tema deste artigo (Carvalho, 2005).
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