sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Corpo, psique e pulsao

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Notas sobre o conceito de angustia


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Notas sobre o conceito de angustia

Natureza Humana

Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.9 n.2 São Paulo dez. 2007

 

ARTIGOS

Disposição e acaso em Freud: uma introdução às noções de equação etiológica, séries complementares e intensidade pulsional no momento1

Disposition and chance in Freud: an introduction to the nations of etiological equation, complimentary series and impulse intensity in the moment


Monah Winograd
Psicanalista, Doutora em Teoria Psicanalítica e Professora Assistente do Departamento de Psicologia/ Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Endereço para correspondência



RESUMO
Este artigo tem como objetivo investigar os encaminhamentos que Freud deu ao problema da etiologia da neurose. Para tanto, destacamos três noções chave: (1) equação etiológica, (2) séries complementares e (3) intensidade pulsional no momento. Através dessas noções, percebemos como, para Freud, a busca da causa primeira da neurose, se é inata ou adquirida, na realidade, é um falso problema. Em sua obra, a dualidade herdado/adquirido fica completamente diluída ao ser compreendida como uma conjugação de fatores sempre presentes. Para Freud, a questão nunca foi a de decidir sobre a causa primeira, se a natureza do que aconteceu ao indivíduo ou se suas peculiaridades.
Palavras-chave: Equação etiológica, Séries complementares, Pulsão, Etiologia das neuroses, Inato/adquirido.

ABSTRACT
This article has the aim to explore how Freud treated the problem of the etiology of the neurosis. To do so, we detach three key-notions: (1) etiological equation, (2) complementary series (3) drive intensity at the moment. With these notions, we are able to percieve that, for Freud, the decision about the first cause of neurosis, if it is inate or if it is acquired, is a false problem. In his work, the duality inherited/acquired gets entirely diluted for it is understood as a conjugation of factors always present. To Freud, the question never was that of deciding about the first cause, if the nature of what had happened to the individual or if his peculiarities.
Keywords: Etiological equation, Complementary series, Drive, Etiology of the neurosis, Inherited/acquired.



Aproveito aqui a oportunidade para dissuadi-los de tomar partido numa disputa supérflua. No cultivo da ciência, há um expediente ao qual muitos recorrem: escolhe-se uma parte da verdade, situando-a no lugar do todo e, em seu nome, interdita-se todo o resto que não é menos verdadeiro. (Freud 1916-17, p. 315)
Com essas palavras, Freud identificava outro falso problema. Da primeira vez, em 1888 (Freud, 1888), ele estava às voltas com a discussão sobre ser a hipnose resultante de processos fisiológicos ou psicológicos. Ao invés de decidir por um ou por outro, ele preferiu sabiamente desautorizar a questão por entender que ambos os processos são operantes simultaneamente. Se, na explicação, um ou outro é privilegiado, isso não significa que todo o fenômeno hipnótico possa ser a ele reduzido.
Desta vez, em 1916-17, tratava-se da etiologia das neuroses. São as neuroses endógenas ou exógenas? São conseqüência da constituição do indivíduo ou são produto de certas experiências de vida daninhas (traumáticas)? São hereditárias, inatas ou são adquiridas, fruto do ambiente? Para Freud, esse dilema era tão atinado quanto outro, parecido com este: o filho é procriado pelo pai ou gerado pela mãe?

A equação etiológica
Em 1895 (Freud 1895), discutindo com quem situava a hereditariedade “no lugar do todo” e tratava as afecções neuróticas com base nisso, Freud introduziu uma expressão da qual jamais abriu mão: equação etiológica. Com ela, pretendia fazer entender, de uma vez por todas, que, na causação das neuroses, várias classes de causas estão inter-relacionadas quantitativamente. São elas:
1) Condição (Bedingung) 2: fatores em cuja ausência o efeito nunca se produz, mas que são incapazes de gerá-lo por si mesmos, não importando qual seja a escala em que estejam presentes, pois falta a causa específica. São os fatores hereditários, causas necessárias duradouras, de alteração dificílima, mas não suficientes;
2) Causa específica (Spezifische Ursache): fatores presentes em todos os casos em que o efeito se dá e que, quando presente na quantidade ou intensidade3 requeridas, são suficientes para produzir o efeito, desde que as condições também sejam cumpridas. Também é causa necessária, embora não suficiente, e sua entrada em ação é mais recente, o que a torna mais suscetível a alterações;
3) Causas concorrentes ou auxiliares (Konkurrierende Ursache): fatores que não estão necessariamente presentes todas as vezes, nem podem, qualquer que seja a sua escala de ação, produzir o efeito por si mesmos, mas que operam em conjunto com as condições e a causa específica para satisfazerem a equação etiológica. São quaisquer perturbações “banais”, como emoções intensas, susto, esgotamento físico, etc. Não são nem necessárias, nem suficientes;
4) Causa precipitante ou desencadeante (Veranlassung oder Auslösende Ursache): a que aparece por último na equação etiológica, precedendo imediatamente a aparição do efeito. Sua natureza essencial é ser apenas esse fator temporal.
Dentre esses quatro tipos de causas, apenas duas são necessárias: a condição e a causa específica. Já veremos com mais detalhes em que consistem. Por ora, basta que entendamos que o fato de serem ambas necessárias não significa que tenham a mesma natureza ou que operem da mesma maneira. Muito pelo contrário. Freud identificava, no efeito produzido, as manifestações de uma e de outra. Completou o quadro acima com duas observações sobre as relações recíprocas entre os diferentes fatores etiológicos.
A primeira observação especifica que a ocorrência de uma neurose depende do fator quantitativo, qual seja, a carga total sobre o sistema anímico (“sistema nervoso”, na época dessas formulações), considerando sua capacidade de resistência. Tudo o que possa manter ou retrair esse fator abaixo de certo limite possui eficácia terapêutica, pois faz com que a equação etiológica não se cumpra. Por outro lado, condição e causas específicas (as únicas necessárias) podem substituir-se uma à outra no que tange à quantidade, ou seja, o mesmo efeito acontece quando a etiologia específica é muito grave e a condição é moderada, ou o contrário. Por sua vez, a segunda observação atesta que a dimensão ou o alcance de uma neurose depende, em primeira instância, da extensão da “carga hereditária”. Ou seja, a hereditariedade funciona como um multiplicador introduzido num circuito elétrico, aumentando muitas vezes o desvio da agulha. Porém, a forma que uma neurose assumirá - a direção do desvio da agulha do circuito elétrico - é determinada exclusivamente pelo fator etiológico específico.
A primeira especificação (o fator quantitativo) trazia em si a necessidade de Freud afirmar o método de tratamento que tinha inventado e que incidia sobre as causas específicas, mais suscetíveis a alterações do que os fatores hereditários, porque mais recentes. Se hoje em dia, com todo o desenvolvimento tecnológico que permitiu à biologia expandir-se, qualquer intervenção nesses fatores hereditários já é complicada sob diversos aspectos, na juventude de Freud, ela era quase inimaginável.
Já a segunda afirmação diferencia as manifestações da hereditariedade e da causa específica no efeito produzido. A hereditariedade é condição, como uma quantidade já dada que multiplica o efeito da causa específica, sendo que, em casos extremos, uma pode chegar a substituir a outra nesse aspecto quantitativo. A causa específica influi na escolha da neurose, ou seja, no tipo de afecção ocorrida, no porquê desta e não de outra. Portanto, são dois problemas interconectados que Freud pretendia resolver: o da origem da neurose em geral e o de cada neurose em particular. Embora um implique necessariamente o outro, são problemas diferentes. O primeiro pode ser alargado para a questão da própria constituição do psiquismo: o que importa na formação de um psiquismo, o que é inato ou o que foi adquirido mais recentemente?
No ano seguinte, 1896, em “A hereditariedade e a etiologia das neuroses” (Freud 1896), ao dedicar-se a confrontar Charcot e sua escola diretamente, Freud construiu alguns argumentos de fato, dos quais se destacam a suposição da existência de transições e graus de disposição nervosa nas famílias e nos indivíduos, e a diferença que a patologia nervosa faz entre a hereditariedade similar e a hereditariedade dissimilar (Freud 1896). O primeiro argumento revelava um modo de ver que se tornou característico do pensamento freudiano em todos os seus períodos: do normal ao patológico há variações de graus, não uma linha divisória nítida e clara. Os ensaios de teoria sexual talvez sejam o melhor exemplo dessa maneira de pensar (Freud 1905).
Escritos em 1905, eles foram revistos e aumentados pelo autor a cada cinco anos até 1925. Neles, Freud tratou, entre outros assuntos, de perversão, homossexualismo, fetichismo, etc., demonstrando que, em matéria de amor, ninguém é normal: “No campo da vida sexual, justamente, se tropeça com dificuldades particulares, na verdade insolúveis por agora, se se pretende traçar um limite taxativo entre o que é mera variação dentro da amplitude fisiológica e os sintomas patológicos” (Freud 1905, p. 146). O que há são variações e flutuações de intensidades. A perversão, por exemplo, faz parte da constituição julgada normal. Não se deveria supor que uma disposição hereditária para ela seja uma particularidade rara, pois todos têm moções perversas mais ou menos intensas, de modo que um pouco de predisposição nervosa estaria presente em todos os homens. Qualquer distinção entre o normal e o anormal tem apenas valor convencional. 4
Quanto à hereditariedade similar e a dissimilar, a primeira é simples e certa: em afecções nervosas que dependem da hereditariedade similar, “(...) nunca se descobre traço algum de outra influência etiológica acessória” (Freud 1896, p. 144) e a forma da afecção nervosa é semelhante em todos os casos. Por sua vez, a hereditariedade dissimilar se caracteriza pelo seguinte: numa mesma família, vários membros são afetados por neuropatias funcionais e orgânicas, sem que se possa encontrar uma lei que dirija tanto a substituição de uma doença por outra quanto a ordem de sua sucessão através das gerações. Além disso, ao lado dos indivíduos enfermos, há pessoas sãs e nada explica por que alguns suportam a carga hereditária sem sucumbir nem por que outros escolhem esta e não outra afecção (ou seja, a forma da neurose). E Freud conclui logicamente:
Mas, como o fortuito não existe em patogenia nervosa mais do que em outros campos, é preciso admitir que não seja a hereditariedade que preside a eleição da neuropatia que se desenvolverá no membro de uma família predisposta, mas que cabe suspeitar da existência de outros influxos etiológicos de natureza menos compreensível, que mereceriam então o nome de etiologia específica de tal ou qual afecção nervosa. Sem a existência desse fator etiológico especial, a hereditariedade não teria podido nada; ter-se-ia prestado à produção de uma neuropatia diversa se a etiologia específica em questão tivesse sido substituída por um influxo diverso. (Freud 1896, p. 145)
No exemplo da tuberculose pulmonar5 (Freud 1895), a infecção propriamente dita é o efeito; a predisposição da constituição orgânica, dada, na maioria das vezes, hereditariamente, é a condição; o bacilo de Koch é a causa específica e qualquer coisa que enfraqueça, como emoções, infecções ou resfriados, funciona como causa auxiliar. No caso das neuroses, o esquema é semelhante: a neurose é o efeito, a hereditariedade é a condição e qualquer coisa banal, mas fragilizadora, como emoção intensa, horror, esgotamento psíquico por excesso de trabalho ou por doença, pode ser a causa auxiliar. Qual seria, então, a causa específica “sem a qual a hereditariedade não teria podido nada” (Freud 1896, p. 145)? Qual seria o bacilo de Koch da neurose?

A teoria da sedução e a etiologia sexual das neuroses
O jovem médico tinha uma teoria a respeito:
[...] cada uma das grandes neuroses enumeradas6 tem por causa imediata uma perturbação particular da economia nervosa, e estas modificações patológicas funcionais registram como fonte comum a vida sexual do indivíduo, seja uma desordem da vida sexual atual, seja uns acontecimentos importantes da vida sexual passada. (Freud 1896, p. 149)
Em “A história do movimento psicanalítico” (Freud 1914), Freud relata as recordações de três cenas que tinham lhe servido de inspiração:7
1) Breuer e Freud passeavam pela cidade de Viena quando um homem aproximou-se, precisando falar urgentemente com Breuer. Como Freud manteve-se educadamente afastado da conversa emergencial, Breuer contou-lhe ser o homem o marido de uma de suas pacientes, levada para tratamento como um caso de doença nervosa por seu comportamento “chamativo” em reuniões sociais. “São sempre segredos de alcova”, concluiu Breuer.
2) Numa recepção em sua casa, em Paris, Charcot conversava com um professor de medicina legal e foi entreouvido por Freud. O psiquiatra francês falava de uma mulher, um caso de doença nervosa grave, possivelmente relacionada à impotência ou à falta de jeito excessiva de seu marido. Rebatendo o espanto de seu interlocutor diante do que dizia, Charcot afirmou com veemência: “Mas, nesses casos, a coisa é sempre genital, sempre... sempre... sempre...”.
3) Um eminente ginecologista de Viena, Rudolf Chrobak, pediu a Freud ajuda no caso de uma paciente que sofria de acessos de angústia sem sentido. Após revelar que, embora casada há 18 anos, a mulher permanecia virgem devido à impotência do marido, Chrobak afirmou, resignado pela impossibilidade de prescrição medicamentosa, que a única receita para essa doença era penis normalis dosim repetatur.
Freud sabia que considerar a vida sexual como fonte comum das neuroses não era novidade. O que, segundo o próprio, distinguia a sua teoria era ele dar a essas influências sexuais a dignidade de causas específicas, reconhecendo sua ação em todos os casos de neurose e traçando um paralelismo regular entre a natureza do influxo sexual e a forma da neurose.
Assim, segundo essa sua primeira teoria etiológica, a neurastenia propriamente dita teria como etiologia específica o onanismo desmesurado ou as poluções espontâneas. A neurose de angústia, por sua vez, seria o efeito específico de diversas desordens da vida sexual, tais como a abstinência forçada, a excitação genital frustrada, o coito imperfeito ou interrompido, os esforços sexuais que ultrapassam a capacidade psíquica do indivíduo, etc. Todos com a característica comum de perturbarem o equilíbrio das funções psíquicas e somáticas nos atos sexuais e impedirem a participação psíquica necessária para que a economia nervosa se libere da tensão gerada.
Quanto ao segundo grupo das ditas grandes neuroses, compreendendo a histeria e a neurose obsessiva, Freud acreditava ser uma lembrança de um acontecimento da vida sexual do sujeito a etiologia específica (Freud 1894). No caso da histeria, o acontecimento registrado na memória seria uma experiência precoce de relações sexuais (anterior à maturidade sexual), acompanhada pela excitação dos órgãos genitais, resultante de um abuso sexual praticado por outra pessoa. Noutras palavras, uma experiência sexual passiva antes da puberdade. No momento em que ocorreu, o acontecimento teria tido uma efeito nulo ou escasso, mas se conservaria como memória. Por conta das transformações sofridas durante a puberdade, a lembrança adquiriria um poder que o acontecimento mesmo não teve e agiria como se fosse um acontecimento atual.
No caso das obsessões, a causa específica seria análoga à da histeria. Também teria havido um acontecimento sexual precoce cuja recordação se tornaria ativa durante ou depois da puberdade. A diferença é que, aqui, ao contrário da histeria, o acontecimento teria causado prazer e o próprio abuso sexual teria sido inspirado pelo desejo, no caso dos meninos, ou teria sido acompanhado de gozo, no caso das meninas. Ao contrário da histeria, a experiência sexual teria sido ativa, o que, por outro lado, parecia revelar a influência de uma sedução prévia, da qual a precocidade do desejo sexual seria conseqüência.
Com isso, Freud tinha nas mãos a sua famosa teoria do trauma ou teoria da sedução, a qual abandonou pouco tempo depois. Em 21 de setembro de 1897, ele escreveu ao seu amigo Wilhelm Fliess que não acreditava mais em sua “neurótica” por vários motivos (Freud 1897). Primeiro, a dificuldade em fazer a análise remontar a um acontecimento real; segundo, a debandada dos pacientes; terceiro, a ausência do êxito completo esperado e a possibilidade de explicar os êxitos parciais de outro modo. Explica Freud:
Depois, a surpresa diante do fato de que, em todos os casos, o pai tinha de ser apontado como perverso, sem excluir meu próprio pai, a intelecção da inesperada freqüência da histeria, em cujos casos se deveria observar condição idêntica, quando é pouco provável que a perversão contra crianças esteja difundida até este ponto. (A perversão teria de ser incomensuravelmente mais freqüente do que a histeria, pois a enfermidade só sobrevém quando os eventos se acumularam e se soma um fator que debilita a defesa.) Em terceiro lugar, a intelecção certa de que, no inconsciente, não existe um signo de realidade, de modo que não se pode distinguir a verdade da ficção investida com afeto. (Freud 1897, pp. 301-2)
Se o que ele considerava como causa específica, a sedução real, merecia uma revisão profunda, a idéia de uma equação etiológica permanecia como pressuposto fundamental de seu modo de compreender, mais do que a origem das afecções psíquicas, a constituição e o desenvolvimento do psiquismo humano em geral.

As séries complementares
Em 1916, a equação etiológica ganha uma complementação. Na 22a das conferências introdutórias proferidas nos Estados Unidos aparece, pela primeira vez, a noção de séries complementares (Freud 1916-17). A essa altura, a idéia de que os seres humanos contraem uma neurose quando lhes é retirada a possibilidade de satisfazer sua libido, noutras palavras, por uma frustração, não era nova para o metapsicólogo e seus colaboradores. Em todos os casos de neurose, a frustração da satisfação da libido estava presente, o que fazia dela uma causa específica na equação etiológica. Mas, como vimos, a causa específica só é capaz de produzir neurose se as condições estiverem cumpridas - causa específica e condição operam em conjunto numa relação quantitativa. Ou seja, apenas a frustração não basta, é preciso considerar também a peculiaridade de quem ela afeta.
Para que haja efeitos patógenos, é preciso que a frustração recaia sobre a única forma de satisfação de que o indivíduo é capaz. Se ele puder, por assim dizer, deslocar sua libido para novos objetos ou para alvos não sexuais, possivelmente não neurotizará, embora o grau de libido insatisfeita que se possa suportar seja limitado. A plasticidade ou, ao contrário, a viscosidade libidinal pode ser maior ou menor conforme o caso, mas, em todos os indivíduos, há um limiar a partir do qual uma frustração pode ter como efeito a regressão da libido a fases anteriores de seu desenvolvimento, determinadas por fixações libidinais ocorridas nas histórias individuais. Noutras palavras, de um lado, a frustração pode ser entendida como o fator externo acidental na causação das neuroses, de outro, a fixação da libido ocupa o lugar do que Freud chamava de fator constitucional predisponente, pois, por assim dizer, atrai a libido para organizações e objetos que, na maioria das vezes, não oferecem satisfação real.
Para Freud, é preciso que certa constituição e certas exigências nocivas da vida estejam presentes para que uma neurose ocorra, o que pode acontecer em quantidades variadas caso a caso; quando um deles aumenta o outro diminui, seguindo o princípio da equação etiológica. Pode-se até ordenar os casos de contração de neurose numa série na qual, numa das extremidades, se encontrariam aqueles nos quais se pode dizer com segurança que, em conseqüência de seu desenvolvimento libidinal, os sujeitos teriam neurotizado de qualquer maneira em quaisquer circunstâncias. Na outra extremidade estariam aqueles outros que, inversamente, teriam escapado da neurose se a vida não lhes tivesse jogado nesta ou em outra situação.
Entre os dois extremos, os casos em que “[...] um mais ou um menos de constituição sexual predisponente se conjuga com um mais ou um menos de exigências daninhas da vida” (Freud 1916-17, p. 316). Em outras palavras, casos nos quais a constituição sexual não teria provocado a neurose se não houvesse tais exigências da vida, e estas não teriam tido o efeito que tiveram com outra situação da libido.8 Às séries como esta, Freud chamou de séries complementares, nas quais os fatores em questão se conjugam, cada equação etiológica produzindo um efeito diverso de acordo com a intensidade da frustração e com a rigidez das fixações libidinais.
Porém, para ele, havia mais em jogo na etiologia das neuroses do que somente uma frustração externa acidental somada a uma situação libidinal. O exemplo usado pelo metapsicólogo para ilustrar sua teoria foram os casos nos quais indivíduos até então sãos neurotizavam repentinamente, sem que a vida tivesse feito a eles exigências maiores do que as usuais. Em tais casos, poder-se-ia facilmente identificar a ocorrência de um conflito psíquico: “Um fragmento da personalidade sustenta certos desejos, outro se revolta e se defende deles” (Freud 1916-17, p. 318). Sem um conflito desse tipo, não há neurose.
Mas, assim como ocorre com a frustração, nem todo conflito produz neurose: nossa vida anímica é agitada o tempo todo por conflitos com os quais temos de lidar. Para que um conflito se torne patógeno, é preciso que certas condições se cumpram. Nos casos em que a natureza e a intensidade da frustração são fatores notáveis, o conflito é engendrado a partir da exigência de que a libido busque outros objetos e caminhos para sua satisfação. A condição do conflito é que esses outros objetos despertem desaprovação por uma parte do psiquismo, de modo que se produza um veto que impossibilite a nova modalidade de satisfação. Não obstante, as aspirações libidinosas vetadas conseguem impor-se fazendo certos rodeios, sendo obrigadas a driblar o veto através de certas desfigurações e atenuações. Os rodeios são os caminhos da formação de sintomas e os sintomas são a satisfação nova ou substitutiva que se fez necessária pela frustração. Em poucas palavras, para que uma frustração por causas externas tenha efeitos patógenos, é preciso que se some a uma frustração interna. A primeira elimina uma possibilidade de satisfação; a segunda pretende excluir outra maneira de satisfação, em torno da qual explode depois o conflito.
Nessa época de sua obra, Freud pensava o conflito psíquico como o resultado do confronto entre forças pulsionais sexuais e forças pulsionais do eu, entre a sexualidade e o eu. Conflitos que, é bom lembrar, não são, para Freud, privilégio dos neuróticos. Todos enfrentam a mesma luta para domesticar suas pulsões, de modo que, entre as condições da saúde e da doença não há nenhum tipo de diferença qualitativa. Um acréscimo na quantidade de libido na economia psíquica, - “por ter-se alcançado certa trama da vida e por causa de processos biológicos que obedecem a uma lei [...]” (Freud 1912a, p. 241) - pode muito bem romper o equilíbrio da saúde e estabelecer o conflito, condição para uma neurose. Do mesmo modo, a debilitação do eu por doença orgânica ou por uma demanda particular de sua energia pode trazer à luz neuroses que, de outro modo, teriam permanecido latentes, apesar da predisposição existente.
Novamente, trata-se de variações de quantidade, do quanto de libido cada eu singular é capaz de aplicar, dominar ou manter em tensão em cada período de sua existência. Todos os outros fatores externos e internos - frustração, fixação - permanecem ineficientes se não atingirem certa medida de libido e não provocarem uma estase libidinal de certa monta, contra a qual o eu não pode mais defender-se sem danos. A esse respeito, afirma Freud: “A psicanálise nos advertiu que devemos renunciar à oposição estéril entre momentos externos e internos, destino e constituição, ensinando-nos que, na causação de uma neurose, se acha, por regra geral, uma determinada situação que se pode produzir por diversos caminhos” (Freud 1912a, p. 245).
Ambos, sexualidade e eu, passariam por fases ou estágios de desenvolvimento paralelos e interconexos durante os quais se organizam. Desses desenvolvimentos dependem tanto a resistência do eu quanto a rigidez das fixações libidinais. Esses dois fatores constituem o que Freud (1916-17) chamou, do ponto de vista da ocorrência da neurose, de predisposição. O esquema da equação etiológica da época da teoria do trauma (até 1897) era o seguinte: constituição hereditária + experiências infantis traumáticas e/ou experiências atuais = neurose. Agora, em 1916-17, com a complexificação da idéia de predisposição, o esquema ganhou mais um nível:9
1° nível: constituição + experiências infantis = predisposição (fixação da libido + robustez do eu)
2° nível: predisposição + experiências da vida adulta = neurose

No 1° nível há a conjugação entre o que trazemos à vida e o que a vida nos traz. Se este último aspecto não suscita maiores esclarecimentos para o entendimento pleno dos fatores constitucionais em jogo, é preciso considerar, ao lado dos aspectos ontogenéticos individuais, a dimensão filogenética relativa à evolução da espécie humana e as propensões da espécie para a neurose e psicose. “O quanto a disposição filogenética pode contribuir para a compreensão das neuroses, não podemos ainda estimar” (Freud 1915b, p. 10), escreveu Freud num rascunho datado de 1915 e encontrado em 1983, “Panorama das neuroses de transferência”. Nesse rascunho, Freud afirma ser “[...] ainda legítimo admitir que as neuroses devem também dar testemunho da história do desenvolvimento anímico do ser humano” (ibid., pp. 11-2). Com isso, ele afirmava que, na consideração dos fatores constitucionais, também estão em jogo as marcas da história da espécie.10
No 2° nível das séries complementares, a predisposição seria o resultado da conjugação entre o que foi herdado (onto e filogeneticamente) e o que foi adquirido pela experiência infantil. Esses dois fatores conjugam-se e participam da outra série, composta pela somatória da predisposição e das experiências acidentais do adulto. As duas séries são complementares porque a segunda não existe sem a primeira. Por outro lado, a primeira série não explica a etiologia das neuroses. Seja como for, em ambas as séries, pode-se encontrar os mesmos casos extremos e as mesmas relações de substituição conforme o princípio da equação etiológica. Já antes, em 1912, Freud tinha resumido sua equação etiológica em dois níveis:
[...] todo ser humano, por efeito conjugado de suas disposições inatas e dos influxos que recebe em sua infância, adquire uma especificidade determinada para o exercício de sua vida amorosa, ou seja, para as condições de amor que estabelecerá e as pulsões que satisfará, assim como para as metas que irá fixar-se. Isso dá como resultado, digamos assim, um clichê (ou também vários) que se repete - é reimpresso - de maneira regular na trajetória de vida, na medida em que o consintam as circunstâncias exteriores e a natureza dos objetos acessíveis, ainda que não se mantenha de todo imutável diante das impressões recentes. (Freud 1912b, pp. 97-8)
Numa nota, a reafirmação de que não há uma oposição de princípio entre as séries de fatores etiológicos: disposição e acaso determinam, em conjunto, o destino de um ser humano (Freud 1912b, p. 97, n. 1). Qualquer determinação da distribuição da eficiência etiológica só pode ser obtida, quando muito, em casos extremos. E, mesmo nisso em que consistiria a disposição herdada, Freud acreditava estar presente o que um dia teria sido adquirido. Por exemplo, no caso do desenvolvimento do eu, o metapsicólogo escreve em 1937:
Não há razão alguma para impugnar a existência e significância de diversidades originárias, congênitas, do eu. Um fato é decisivo: cada pessoa seleciona sempre só alguns dos mecanismos de defesa possíveis e os emprega logo continuamente. Isto assinala que o eu singular está dotado desde o começo de predisposições e tendências individuais, só que nós não somos capazes de indicar sua índole, nem seu condicionamento. Ademais, sabemos que não é lícito extremar a distinção entre propriedades herdadas e adquiridas até convertê-la numa oposição; entre o herdado, o adquirido pelos antepassados constitui sem dúvida um setor importante. (Freud 1937, p. 242; os itálicos são meus.)
Nesse mesmo texto de 1937, escrito dois anos antes de morrer, Freud ainda propôs uma nova modificação na equação etiológica e nas séries complementares: ao invés de fatores constitucionais (hereditários), é preciso pensar em termos de intensidade pulsional no momento.

A intensidade pulsional no momento
Ao dedicar-se a discutir sobre ser a análise terminável ou interminável, Freud (1937) dá a impressão de ter sido absorvido pelo pessimismo relativamente à eficácia terapêutica da psicanálise, uma vez que destaca suas limitações, suas dificuldades e seus obstáculos (Strachey 1964). Contudo, se as ambições terapêuticas da análise nunca o entusiasmaram de fato, a novidade aqui está noutra parte: precisamente no novo exame que realiza a respeito dos obstáculos ao processo analítico.
Chama a atenção sua insistência sobre os fatores de índole fisiológica e biológica que, conseqüentemente, não são suscetíveis à intervenção psicológica, tais como alterações no eu por processos fisiológicos, tais como a puberdade, a menopausa e a doença física, e “a intensidade constitucional das pulsões” (Freud 1937, p. 227; o itálico é meu). Definida em 1915 (Freud 1915a) como um conceito-fronteira (Grenzbegriff), a pulsão é simultaneamente somática e psíquica, ou seja, é uma tensão de fonte corporal que, através de objetos infinitamente variáveis, pressiona o aparato anímico, exigindo que ele trabalhe para que ela atinja seu alvo, a descarga. Vê-se como a pulsão, gerada espontaneamente pelo corpo e seus processos, apresenta-se para o sujeito como uma tensão a ser processada e encaminhada na direção de sua diminuição. Cada indivíduo apresentaria, em função de sua natureza, intensidades pulsionais singulares que ele traz à vida e que, nesse sentido, seriam constitucionais, pois independeriam do contexto.
Mas, em 1937, Freud, insatisfeito como o adjetivo “constitucional”, questiona se ele é de fato indispensável. Embora decisivos, é necessário considerar que a ocorrência de reforços pulsionais, sobrevindos mais tarde, exteriorizem os mesmos efeitos que os assim chamados fatores constitucionais. O que importa parece ser menos a intensidade pulsional que trazemos conosco do berço, nossas tendências inatas e espontâneas. Muito mais relevante é o que se apresenta, a cada momento, como expressão do encontro entre a intensidade pulsional local e o contexto no qual tal intensidade deve ser elaborada psiquicamente. A fórmula etiológica merecia nova revisão: “Haveria, pois, que modificar a fórmula: intensidade pulsional ‘no momento’, no lugar de ‘constitucional’ (Freud 1937, p. 227). Dessa intensidade pulsional no momento dependeria tanto a eclosão de uma neurose quanto o desenlace de uma análise.
À análise caberia auxiliar o indivíduo no domínio de suas pulsões, ou seja, admiti-las no eu, tornando-as acessíveis aos influxos de outras aspirações ali operantes e, portanto, desviando-as de seu caminho direto e imediato em direção à satisfação. Assim, a análise ajudaria o neurótico a realizar o que o são leva a cabo por si só. No indivíduo são, todo desenlace para um conflito pulsional vale exclusivamente para uma determinada intensidade da pulsão, ou seja, somente dentro de uma determinada relação entre robustez da pulsão e robustez do eu. Se esta última se fragiliza, por doença, esgotamento, etc., todas as pulsões dominadas com êxito até então podem voltar a apresentar suas exigências e aspirar a sua satisfação. Numa nota de rodapé, Freud alerta para que o psicanalista dê a devida importância a fatores etiológicos inespecíficos, tais como excesso de trabalho, efeito de choques psicológicos, etc., deixados em segundo plano pela psicanálise (Freud 1937, p. 228, n. 1). É que a etiologia das neuroses (e seu avesso, a saúde psíquica) só pode ser pensada, em termos metapsicológicos, por referência a proporções de forças entre as instâncias do aparato anímico. Quanto à intensidade pulsional, também ela não é dada constitucionalmente de uma vez por todas:
Por duas vezes no curso do desenvolvimento individual emergem reforços consideráveis de certas pulsões: durante a puberdade e, na mulher, por ocasião da menopausa. Em nada nos surpreende que pessoas que antes não eram neuróticas se tornem assim nestas épocas. O domínio das pulsões, que tinha sido conseguido quando estas eram de menor intensidade, agora fracassa com seu reforço. As repressões se comportam como diques contra o vigor de assalto [Andrang] das águas. O mesmo que produz estes dois reforços pulsionais pode sobrevir de modo irregular em qualquer outra época da vida por obra de influxos acidentais. (Freud 1937, p. 229)
Reforços pulsionais podem ocorrer em virtude de novos traumas, frustrações impostas do exterior e mesmo por influxos colaterais recíprocos das próprias pulsões. Em todos os casos, o resultado é o mesmo e reafirma o poder do quantitativo na causação da neurose: trata-se sempre de uma equação etiológica envolvendo séries complementares, nas quais os fatores em jogo estão o tempo todo sujeitos a variações de intensidades que podem alterar o resultado final. Vê-se como a dualidade de base herdado/adquirido fica completamente diluída ao ser incluída como uma conjugação de fatores sempre presentes. Para Freud, a questão nunca foi a de decidir sobre a causa última, se a natureza do que aconteceu ao indivíduo ou se suas peculiaridades.

Referências
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_____1896: “La herencia y la etiologia de las neurosis”. A.E., v. III.
_____1897: “Carta de 21 de setembro de 1897”. In: A correspondência completa de Sigmund Freud e Wilhelm Fliess 1887-1904. Rio de Janeiro, Imago, 1985.
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_____1912a: “Sobre los tipos de contracción de neurosis”. A.E. v. XII.
_____1912b: “Sobre la dinámica de la transferência”. A.E., v. XII.
_____1914: “Contribución a la historia del movimiento psicoanalítico”. A.E., v. XIV.
_____1915b: A phylogenetic fantasy. Londres: The Belknap Press, 1987.
_____1915a: “Pulsiones y destinos de pulsión”. A.E., v. XIV.
_____1916-17: “22a Conferencia de introducción al psicoanálisis”. A.E., v. XVI.
_____1937: “Análisis terminable e interminable”. A.E., v. XXIII.
Strachey, James 1964: “Introdución ao ‘Análisis terminable e interminable”. Sigmund Freud - Obras completas. v. XXIII. Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1994.


Endereço para correspondência
E-mail: winograd@uol.com.br

Enviado em 23/04/2007.
Aprovado em 22/09/2007.



1Este artigo foi redigido no âmbito de pesquisa realizada com apoio do CNPq (processo 401750/2007-8).
2A tradução brasileira utiliza aqui o termo “predisposição” ao invés de “condição”. Fazendo isso, dá margem a uma confusão com o que, posteriormente, Freud chamará de fatores predisposicionais ou, simplesmente, de “predisposição”, a saber, a configuração psíquica do adulto determinada tanto pela sua constituição, quanto pelas experiências infantis.
3Em seus textos, Freud faz uso tanto do termos “quantidade”, quanto de “intensidade”. O tipo de correspondência entre esses dois vocábulos mereceria um estudo à parte. Por ora, utilizarei os dois termos sem problematizá-los, tentando manter o uso original de Freud e confiando na tradução.
4Certamente, a questão é mais complexa, pois esse modo de pensar não impede, por exemplo, que Freud faça referência a uma normalidade e a uma patologia. Fica a pergunta sobre o que ele considerava normal e o que ele considerava patológico, ainda que pensasse em termos de transições, graus e valores convencionais.
5Phthisis pulmonum.
6Nesse texto, Freud divide as neuroses em dois grupos. O primeiro grupo, das ditas grandes neuroses, é composto pela histeria e pelas “neuroses de obsessões”. O segundo grupo contém a neurastenia, que Freud decompôs em dois estados funcionais separados pela etiologia e pelo aspecto sintomático: a neurastenia propriamente dita e a neurose de angústia.
7Nem Breuer, nem Chrobak - Charcot já tinha morrido - confirmaram a veracidade destas recordações, de modo que faremos como o psicanalista em sua clínica e não nos preocuparemos em demasia com distinguir entre a verdade fatual e o que pode ser construção fantasiosa de Freud.
8Apesar de ter, desde há muito tempo, abandonado a teoria do trauma, Freud fala em “efeitos traumáticos” das vivências.
9 Esse esquema baseia-se no que Freud desenhou na 22a conferência de introdução à psicanálise (1916-17). Nele, a constituição aparece especificada como constituição sexual e a predisposição não inclui explicitamente a capacidade de resistência do eu.
10Embora Freud fosse lamarckista (naquela época a diferença entre lamarckismo e darwinismo não era tão determinante como ficou após a descoberta do DNA na década de 50), sua teoria é muito moderna e calcada em influências da biologia e filosofia da época; na verdade, ela é comparável à sociobiologia e às atuais teorias psicogenéticas.

 

Considerações Acerca da Hipótese Repressiva

Considerações Acerca da Hipótese Repressiva

Damares de Castro Aleixo*


"O texto pretende explicitar o conceito de repressão, partindo do contraponto de duas diferentes concepções. A principio analisaremos a hipótese repressiva através de uma ótica freudiana, e posteriormente investigaremos os desdobramentos da mesma segundo a análise crítica de Michel Foucault".





    O tema em questão neste trabalho, tem suas raízes históricas no final do século XIX, quando Freud começa seus estudos sobre as doenças do sistema nervoso. Estudos estes que foram empreendidos na tentativa de solucionar alguns enigmas com os quais o Freud médico então se deparava. Foi no empenho em responder algumas perguntas que a medicina da época lhe apresentava, através de casos clínicos de hemianestesia e paralisias sem causa orgânica que Freud desenvolve seus primeiros estudos sobre a histeria (1893-1895). Tais estudos o levariam à descoberta da etiologia sexual da neurose e posteriormente à formulação do conceito de inconsciente.
    A nova concepção de Freud, quanto ao significado sexual das paralisias histéricas, estabelece os alicerces para a constituição de um novo campo de saber: a psicanálise.
    Ao solucionar, pelas vias do significante, uma questão que a medicina deixara em aberto, Freud desloca o problema do campo somático para o campo da significação, estabelecendo desta forma uma mudança de paradigma que influenciará fortemente o pensamento científico do século XX.
    As idéias que Freud começa a desenvolver sobre sexualidade e repressão constituem a pedra fundamental a partir da qual se erguerá um dos principais pilares da psicanálise: o conceito de inconsciente, e o posterior desenvolvimento dos conceitos de pulsão e recalque. Num texto de 1898: "A sexualidade na etiologia das neuroses", Freud formula a hipótese que permeará todo o posterior desenvolvimento da psicanálise.
"Pesquisas exaustivas durante os últimos anos levaram-me a reconhecer que as causas mais importantes de todo caso de doença neurótica devem ser achados em fatores emergentes da vida sexual. Essa teoria não é inteiramente nova. Todos os escritos que trataram do assunto, tem concedido aos fatores sexuais, uma certa importância na etiologia das neuroses desde tempos imemoriais. Em certas regiões marginais da medicina sempre se tem prometido no mesmo alento, a cura das enfermidades sexuais e da fraqueza nervosa. Uma vez que a validade de uma teoria deixe de ser negada, não será difícil discutir sua originalidade" (Freud, S.1969: 290).
    Não é objetivo nosso tratar da questão epistemológica dos conceitos, mas sim partir do caráter científico que Freud desenvolve suas pesquisas, o que torna possível a brilhante sistematização de alguns conceitos. Como consequente desenvolvimento de seus estudos, Freud escreve em 1908 "Ética Sexual Civilizada e Doença Nervosa Moderna", onde desenvolve o conceito de sublimação. Por sublimação entendemos "a capacidade de trocar seu objetivo sexual original por outro, não mais sexual, mas psiquicamente relacionado com o primeiro" (Idem, vol. VII p. 193).
    Desta maneira, na concepção freudiana, cultura e sexualidade se encontram relacionadas de forma intrínseca e numa relação de causalidade ou seja, para Freud, a cultura surge do desvio das pulsões sexuais do seu destino original: a satisfação sexual.
    Nossa proposta é tratar principalmente da relação entre sexualidade e organização político-social, objetivada não apenas sob o parâmetro sublimatório, em que se baseia a proposta freudiana, mas, nos desdobramentos dessa hipótese na obra de outros autores.
    "Existirão ligações entre psicanálise de Freud e o materialismo dialético de marx e Engel?" . Quem fez esta pergunta é Wilhem Reich em 1929, no livro em que escreve para dar conta da mesma: "Materialismo Dialético e Psicanálise". É dessa articulação que se delineia um rico campo de investigação e pesquisa, o campo denominado por Reich de "Política sexual"
    O termo "Política sexual" refere-se à aplicação prática dos conceitos de economia sexual às massas, no cenário social, e, esse termo foi desenvolvido enquanto corpo teórico a partir do trabalho de Reich no seio dos movimentos revolucionários pela liberdade e de higiene mental, bem como a partir da observação dos movimentos políticos da Áustria e Alemanha entre 1927 e 1933, analisados à luz dos conceitos psicanalíticos.
    Por economia sexual entendemos o modo de regulações das energias sexuais do indivíduo. Os fatores que determinam este modo de regulação são de natureza sociológica, psicológica e biológica. A ciência da economia sexual consistiu neste corpo de conhecimentos que resultou do estudo destes fatores.
    Em 1946 Reich publicava: "Psicologia de Massas do Fascismo", obra na qual afirmava que a sua teoria da economia sexual aplicada ao estudo do fascismo "Resistiria à prova do tempo". Cabe a nós, através da análise das críticas posteriores ao que se usou chamar de freudo-marxismo, elucidar o destino dessa profecia.
    A crítica ao freudo-marxismo e a hipótese repressiva defendida pelo mesmo, tem seu principal representante em Michel Foucault, autor que, embora apresente um paralelismo temático em Freud e Reich, pois dedica parte de sua obra à questão da sexualidade, diverge, dos mesmos quanto à articulação Sexualidade-Poder.
    Além de manter uma estreita relação com a obra freudiana, o trabalho de Michel Foucault se encontra permeado pela questão político-sexual, que é tratada aqui de um ponto de vista radicalmente diferente da hipótese freudiana:

"Quando fiz meus estudos por volta dos anos 50 e 55, um dos problemas que se colocavam era o estatuto político da ciência e as funções ideológicas que podia veicular (...) era este o meu problema; o que aconteceu no ocidente que faz com que a questão da verdade tenha sido colocada em relação ao prazer sexual? É este o meu problema desde a história da loucura" (Foucault,M.1979: 235).

    É no questionamento da verdade freudiana que inaugura um novo saber sobre a loucura e a sexualidade que Foucault instaura um debate que pode se tornar amplo objeto de estudo e pesquisa dentro da problemática poder-saber-verdade. A psicanálise aparece como detentora de um novo saber sobre o corpo, inaugurando desta forma novas relações de poder fundamentadas nesse novo contexto freudiano de verdade.
    Segundo Foucault esta aliança entre poder e saber,, apoiada no corpo, constitui-se em um mecanismo da mais alta importância para se compreender o funcionamento das estratégias  de dominação na sociedade ocidental. O corpo aparece na visão foucaultiana como cindido, separado de si e dos outros, sob a ação da disciplina normalizadora, ou seja, o corpo aparece como um dos componentes essenciais das relações de poder nas sociedades modernas, e é justamente esta desarmonia que é necessária ao funcionamento da sociedade disciplinar.
    Foucault mostra que os mecanismos de disciplinarização da sociedade se exercem através da formulação do saber sobre o corpo ou seja, na construção de um corpo dócil que estando submetido às estratégias de dominação, estabelece bases onde estas estratégias são alicerçadas, garantindo assim sua continuidade e permanência e é bastante claro quanto ao seu objetivo de analisar o investimento político do corpo. O filósofo investiga de forma minunciosa a questão do poder, definindo-o não como apropriação, mas como estratégia de táticas, funcionamentos e disposições, mantendo dessa forma uma relação íntima com o saber. E nessa produção de corpos dóceis disciplinados a funcionarem de acordo com a norma é que o poder-saber se institui.
    É dentro da concepção da sociedade disciplinar que Foucault desenvolve o conceito de dispositivo da sexualidade, definido como um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos, ou seja, na ótica deste autor, a sexualidade funciona portanto como dispositivo capaz de vincular as relações de poder à questão da vitalidade do corpo e da espécie. Em Microfísica do Poder Foucault afirma: "O sexo sempre foi o núcleo onde se aloja juntamente com o devir da nossa espécie, nossa verdade do sujeito humano" (Idem pág. 229. O sexo aparece então como objeto constituído pelo dispositivo da sexualidade dizendo respeito ao conjunto dos prazeres e sensações que este dispositivo tem como função

"O desenvolvimento do capitalismo só pode ser garantido à custa da inserção dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos (...) a sexualidade é um nome que se pode dar a um dispositivo histórico, não a realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas a grande superfície sem a qual a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço do controle e da resistências que se encadeiam uns aos outros segundo algumas grandes estratégias de saber e poder" (Foucault, M. 1976: 100)

    Sendo assim, o corpo em Foucault, aparece como elemento para onde convergem as diferentes estratégias de dominação.
    A relação entre sexo e verdade permeia toda argumentação desenvolvida por Foucault:

"O importânte é que o sexo não tenha sido somente objeto de sensação e prazer, de lei ou interdição, mas também de verdade e falsidade, que a verdade de sexo tenha se tornado coisa essencial, útil ou perigosa, preciosa ou tímida, em suma, que o sexo tenha sido constituído em objeto de verdade" (Idem, p.121).

    Sendo esta a concepção foucaultiana do dispositivo da sexualidade, há um questionamento por parte do autor da hipótese repressiva desenvolvida pela linha de pensamento freudo-marxista, que tem seu desenvolvimento vinculado ao conceito de sublimação.
"Não se trata de negar a miséria sexual, mas também não se trata de explicá-la negativamente por uma repressão. O problema está em aprender quais são os mecanismos positivos que, produzindo a sexualidade desta ou daquela maneira, acarretam efeitos de miséria.
    O problema é saber se esta miséria deve ser explicada negativamente por um interdito relativo a uma situação econômica ( "Trabalhem, não façam amor") ou se ela é o efeito de procedimentos muito mais complexos e muito mais positivos...". (Foucault, M. 1979: 231).
    Nosso objetivo é investigar as relações intrínsecas entre sexualidade e poder, para a qual nos utilizaremos dos trabalhos de três autores, Freud, Reich e Foucault.
    Podemos identificar nas obras dos mesmos, duas diferentes concepções da articulação sexualidade-poder.
    Na visão freudo marxista, a repressão aparece como determinante das condições político-sociais vigentes, sendo alguns fenômenos sócio-políticos, como o fascismo, moldados em cima da estrutura de caráter resultante dos impulsos reprimidos. Essa posição é amplamente defendida por Reich.
    Para Freud a repressão de parte dos impulsos sexuais é condição de emergência da cultura, e determinante, segundo essa concepção, de gênese da estrutura social.
    O mecanismo da repressão sexual então como causa agente estruturador.
    Segundo Foucault:

"O interdito, a recusa, a proibição, longe de serem as formas essenciais do poder, são apenas seus limites, as formas frustadas ou extremas. As relações de poder são antes de tudo, produtivas" (Idem, pág. 236).

    Na concepção foucaultiana a repressão aparece como conseqüência de relações de poder mais complexas.
    Aparece desta forma como uma resultante.
    Da contraposição dessas duas concepções emerge o seguinte problema: "Repressão sexual: agente ou resultante nos mecanismos de poder?" Para responder a essa questão teremos que remontar à própria concepção do conceito de repressão nos presentes autores.
    Ao consultar o dicionário observamos que "repressão" é definida como o ato de reprimir, que por sua vez é definido como 1 - conter, coibir; 2 - disfarçar; 3 - oprimir e 4 - punir.
    É nesta concepção de repressão como ato de reprimir, que se encontra alçada a idéia freudo-marxista da repressão sexual. Nesta visão a sexualidade se encontra contida, oprimida, sujeita a punições, ou desviada de seu objetivo primário, oculta, disfarçada podendo portanto ser objeto de desvelamento, de interpretações.
    Segundo essa visão os efeitos dessa repressão seriam o adoecimento neurótico do sujeito e conseqüentemente da sociedade.

"(...) Freud demonstrou que os sintomas neuróticos provêm dum conflito entre as reivindicações instituais primitivas e as exigências que proibem a sua satisfação" (Reich, W. 1977: 31)
    A repressão sexual seria portanto um agente causador dos mais variados distúrbios psico-sociais.

"Podemos constatar que a atitude agressiva perante o mundo exterior é tanto mais intensa quanto mais as exigências esbarram com obstáculos internos ou externos. (...) Portanto, se o recalcamento da genitalidade e mais especialmente a ausência de satisfação genital incrementam as tendências sádicas, temos que admitir que a tendência para rejeitar, reprimir e dividir a sexualidade (tendência que na nossa civilização é generalizada) desempenha um papel decisivo na emergência do sadismo humano" (Reich, W. 1977: 83)

    Trata-se aqui de um mecanismo de barragem e de seus efeitos; dos efeitos de uma negação de uma proibição. Diferentemente da proposta acima, Foucault parece preferir tratar a repressão não como o agente responsável por todos esses distúrbios mas sim localizá-la dentro do complexo investimento político do corpo, como uma resultante de relações de poder sem mais sofisticadas pois paradoxalmente, nesta análise à repressão sexual estaria vinculada toda uma incitação dos prazeres e dos desejos.

"(...) as proibições existem, são numerosas e fortes. Mas que fazem parte de uma economia complexa. Existem ao lado de incitações, de manifestações, de valorizações. São sempre interditos que são enfatizados. Gostaria de mudar um pouco o cenário, em todo caso, aprender o conjunto dos dispositivos" (Foucault, M. 1979: 230)

    Ou seja Foucault parte de uma análise positiva da repressão, tratando de restituí-la dentro de uma análise mais complexa, onde esta interage dentro de um jogo de relações de força. A repressão é para Foucault antes de tudo produtiva.

"(...) foi instaurado sobre o corpo das crianças através das famílias, mas sem que delas fossem a sua origem - um controle, uma vigilância, uma objetivação da sexualidade com uma perseguição aos corpos. Mas a sexualidade, tornando-se assim um objeto de preocupação e de análise, como alvo de vigilância e de controle, produzia ao mesmo tempo a intensificação dos desejos de cada um por seu próprio corpo... como resposta à revolta do corpo, encontramos um novo investimento que não tem mais a forma de controle-repressão, mas de controle-estimulação" (Foucault, M. 1979: 147).

    Essa incitação dos prazeres encontra sua forma mais explicitada na exploração econômica, onde pode-se observar toda uma indústria do sexo. Não só a pornográfica, mas surgem paralelamente instituições calcadas sobre um discurso científico, nascem as chamadas sexologias e toda uma pedagogia do sexo que se denominaram portadoras de uma verdade do sexo.
    O que interessa a Foucault é justamente essa transformação do sexo em discurso, bem com as estratégias de poder embutidas nessa transformação, para investigar as origens dessas estratégias. Foucault localiza suas origens na pastoral cristã e observa que:

"Este projeto de uma colocação do sexo em discurso, formara-se há muito tempo, numa tradição ascética e monástica (...) a pastoral cristã inscreveu, como dever fundamental, a tarefa de fazer passar tudo o que se relaciona com o sexo pelo crivo interminável da palavra" (Foucault, M. 1977: 24)
    É justamente desse sexo discurso que podemos encontrar elementos para uma análise crítica da repressão:
"Todos esses elementos negativos - proibições, recusas, censuras, negações - que a hipótese repressiva agrupa num grande mecanismo central destinado a dizer não, sem dúvida, são somente peças que têm uma função local e tática numa colocação discursiva, numa técnica de poder, numa vontade de saber que estão longe de se reduzirem a isso" (Foucault, M. 1976: 17).
    Neste ponto observamos o surgimento de dois campos distintos de investigação: enquanto os estudos de Freud e seus seguidores focalizam sua atenção nos efeitos da repressão, sobre a organização libidinal do indivíduo, Foucault privilegia o fenômeno da colocação do sexo em discurso, bem como os efeitos que isto acarreta.
    Feita esta distinção fundamental podemos concluir que as relações entre sexo e verdade possibilitam uma ampla gama de interpretações e discursos, pois esta relação é antes de tudo produtiva.




BIBLIOGRAFIA

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MARX, Karl. Manuscritos Econômicos - Filósofos. Lisboa: Edições 70.

































A arte da interpretação à luz da Teoria dos Campos

A arte da interpretação à luz da Teoria dos Campos

The art of interpretation in the perspective of Multiple Fields Theory

El arte de la interpretación desde la óptica de la Teoría de los Campos


Cláudio J. de Campos Filho*
Membro efetivo da Associação Psiquiátrica do Estado do Rio de Janeiro - RIO 4
Endereço para correspondência



RESUMO
O trabalho apresenta uma discussão sobre a arte da interpretação frente à Teoria dos Campos de Fabio Herrmann. Mostra como a Teoria dos Campos permitiu a convergência de várias teorias para interpretação do fenômeno psíquico, criando, desta forma, uma metateoria que dá sentido às várias formas pelas quais se apresenta o fenômeno psíquico. E através da ruptura de campo busca uma nova organização psíquica, permitindo forma e conteúdo novos para o pensamento.
Palavras-chave: Arte, Interpretação, Teoria dos Campos, Metateoria.

ABSTRACT
This paper discusses the art of interpretation in the perspective of Multiple Fields Theory, as developed by Fabio Herrmann. It points out how the Multiple Fields Theory allows the convergence of many theories for the interpretation of psychic phenomena, thus creating a meta-theory that gives meaning to the various manners of psychic phenomena presentations. And by the rupture of the field, a new psychic organization is sought for, allowing new thought contents and formations.
Keywords: Art, Interpretation, Multiple Fields Theory, Meta-theory.

RESUMEN
El trabajo presenta una discusión entre el arte de la interpretación frente a la Teoría de los Campos de Fabio Herrmann. Muestra como la Teoría de los Campos permitió la convergencia de varias teorías para la interpretación de los fenómenos psíquicos, creando así una metateoría que otorga sentido a las varias formas por las cuales el fenómeno psíquico se presenta. Y, a través de la ruptura de campo, busca una nueva organización psíquica, permitiendo nuevas formas y contenidos para el pensamiento.
Palabras clave: Arte, Interpretación, Teoría de los Campos, Metateoría.



Fabio Herrmann foi o maior, ou está entre os maiores pensadores da psicanálise no Brasil. Sua obra é já importante, podendo ter sido ainda maior, se a vida não lhe fosse roubada tão cedo. A Fabio minha maior homenagem neste pequeno trabalho sobre sua arte e ciência.
“Deixaremos que a clínica fale por ela mesma, considerando brevemente cada passo do processo terapêutico, da entrevista inicial à cura, para tentarmos sempre elucidar em que consiste nosso método e como o método, não as teorias, determina que se cumpra cada etapa” (Herrmann, 1991, p. 10).
Com tal formulação inicial, Herrmann deixa antever o que será posteriormente a sua Teoria dos Campos, esta, porém solidamente calcada na clínica e na interpretação.
Interpretação para o autor se produz como arte, tendo estilo, e estética de uma obra de arte que se vai construindo a partir de um método científico, de acordo com as propostas da psicanálise, no sentido de investigar e reconstruir a mente humana — em um processo sem fim que atingirá sempre um andaime superior, e assim infinitamente.
O homem em Herrmann é um vir-a-ser se construindo a partir de um método rigoroso que o colocará sempre diante de um novo porvir.
“Tentativas de apoderar-se de um estilo alheio fracassam lamentavelmente, deixando como seqüela apenas algum maneirismo inconseqüente, um jargão, um cacoete, um tique nervoso da interpretação. Como conseqüência nessa matéria, a palavra de ordem é depurar sem pressa” (Herrmann, 1991, p. 13).
Neste momento Herrmann enuncia um caminho que poderá sem dúvida ir do fracasso ao êxito, dependendo do rigor com que o analista aplica sua ciência, dando assim ao método sua primazia.
Afinal que coisa estranha é essa, o método psicanalítico de que tanto se fala na Teoria dos Campos? Parece-me ligeiramente mágico, funciona quase sozinho, usando o analista como instrumento concreto. Não se sabe ao certo se é uma característica da espécie humana, se é uma forma, se é uma forma de conhecimento, se é um processo terapêutico ou de um estudo do psiquismo. Cria as teorias e as técnicas, mas não se deriva de uma delas em particular (Herrmann, 2001, p. 62).
Este é o instante em que Fabio assume que método e interpretação, apesar de estarem interligados, se separam para tomar cada um seu destino específico. Este que será apontado e controlado pela clínica e seu particular interesse. Portanto clinicar agora é cair vertiginosamente na investigação sem destino preciso, e completamente incerto. Onde se encontrará segurança na formulação artística da interpretação. O que parece estranho à vida e à sua continuidade.
“Por conseguinte, minha ‘teoria’ — insisto nas aspas porque não se trata de uma teoria como a de Klein ou a de Hartmann, por exemplo, mas quando muito uma espécie de metateoria…” (Herrmann, 1991, p. 17).
Esta metateoria é o instrumento com que Herrmann subverte as antigas teorias psicanalíticas e liberta a interpretação para o caminho da arte. Interpretar já não é mais obedecer a regras rígidas “sobre o que” determina “o porquê”. E, sobretudo, produzir com estilo e arte uma possibilidade de pensar para além do conflito e da doença. Desta maneira Fabio ultrapassa obstáculos para produzir uma psicanálise que possa reconstruir o ser em toda a sua capacidade de porvir, e não somente de estar.
Isto é, faço tudo um pouco literal demais, tão materialmente expresso, tão coisa feita que se articulasse uma vaga inquietação no analisando: como virou coisa um momento de emoção vivida?... Ou posso repetir vagamente como se fora uma nuvem de sentido sombreando a sessão presente, para deter-me de golpe num ponto nodal e desenvolvê-lo à minúcia, assim como quem foca um microscópio.... O importante é que nada disso tenha sido arbitrário. São variações tonais, contrapontos, harmonias, sempre determinadas pela forma e contexto… (Herrmann, 1991, p. 90).
É desta forma que Fabio vai se aproximando da idéia de arte da interpretação, usando o método como pano de fundo que conduz uma técnica à reconstrução do sujeito, refazendo o tecido mental, num bordado minucioso e infinito, tal qual uma rendeira que nunca chega ao fim de sua tarefa, pois nunca haverá uma renda final e perfeita.
“A idéia essencial que lhe desejo transmitir é, singelamente, que se não devem confundir interpretação psicanalítica e fala do analista” (Herrmann, 1991, p. 91).
Aqui acontece a separação definitiva entre arte de interpretar e falar. A fala pretende explicar, a interpretação pretende reter o enigma, e reconstituí-lo de forma diferente e interrogativa. Ocasionando um pensar diverso, simbólico e genuinamente próprio sobre si mesmo. O paciente já então pode se ver como outro, mais ou menos semelhante estruturalmente, mas interrogando-se de forma tão diversa, que já não consegue encontrar-se, nem no mesmo lugar, nem no mesmo conflito. Tal deslocamento coloca em função um ato de conhecimento de si mesmo tão profundamente diverso, que leva o paciente a se interrogar sobre sua própria pessoa. Isso porque ele já não se reconhece na história que contou para o analista. Este é um momento precioso dentro do processo psicanalítico, no qual inicia um reconhecimento novo e mais próximo do que seria naquele momento sua identidade.
Sexualidade e agressividade formam um par inseparável dentro da teoria psicanalítica; nascem juntas, como uma espécie de excesso emocional para lá da mera realização dos atos de sobrevivência fisiológica, e presidem a abertura para o social; consideram-se opostas libido e agressão — Eros e Tânatos — que é como dizer princípios de vida e morte —, mas dão uma a outra sentido e se intrincam indissoluvelmente em condições concretas de vida (Herrmann, 1991, pp. 110-111).
É o momento crucial onde a interpretação dá ao método outro sentido, mostrando que a interpretação de dois caminhos diversos acontece em busca da mais profunda versão e completamente diferente da anterior perspectiva do fenômeno psíquico.
Uma cena sexual pode em verdade apoiar-se completamente na sensação de vitória ou de poder sobre o outro. Ou, ao revés, pode-se reproduzir uma cena de vitória no emprego ou nos esportes, um devaneio de riqueza ou de viagem, como estribilho daquela canção de ninar que o adulto dedica a si mesmo, e justamente através de tais estórias encontrar prazer erótico, pois seus esquemas são análogos à fórmula pessoal de prazer sexual. O sexo humano não é natural, como se vê, domesticou-se, arma-se em subterfúgios (Herrmann, 1991, p. 111).
O intrincado caminho da mente que o psicanalista terá que fazer é uma tessitura que, com a mesma qualidade do anterior, reconstitua a mente do paciente, dando a cada fator uma nova conseqüência e um novo sentido, que ao surpreendê-lo permita um pensar diverso que não o faça repetir a trama neurótica.
A trama neurótica do paciente se sustenta justamente na deformação de caminhos da mente, repetindo-se na tentativa de subtrair a capacidade de pensar sobre si mesmo, abandonando a racionalidade e se entregando à concretização de objetivos enganosos para alcançar o restabelecimento da situação neurótica.
O problema da verdade é delicado. Parece confundir-se com a realidade, mas já vimos como a realidade mente.... Verdade é o que afirma uma ciência ou qualquer outro sistema de pensamento, mesmo que outra o negue e que partes diferentes ou diferentes momentos da mesma ciência entrem em flagrante contradição, pois nem sempre a verdade é líquida e certa, quase nunca o é (Herrmann, 2001, p. 106-107).
Verdade e interpretação dentro da Teoria dos Campos são correlatas, pois a interpretação que o psicanalista fornecerá ao seu paciente será tão-somente a reconstrução de uma verdade, que o permitirá libertar-se da culpa e de suas conseqüências danosas para sua vida e sua liberdade.
O método da psicanálise, ao proporcionar outra versão dos acontecimentos tidos como causadores do adoecer psíquico, proporciona uma nova possibilidade crítica até então desconhecida pelo indivíduo-paciente. Este, ao procurar pensar através desta nova versão, alcança outras conclusões sobre si mesmo e desta maneira transforma a sua realidade interna e como conseqüência também a externa.
O Campo psicanalítico revelou-se até aqui esquivamente.... Por fim, restou uma espécie de negativo do conceito de Campo Psicanalítico, que pudemos assim formular: o Campo Psicanalítico define-se por uma extravagância, trata-se de um campo constituído pela propriedade fundamental, definitória, de que todos os campos das relações nele vigentes valem por sua possível ruptura (Herrmann, 1979, p. 68).
A ruptura do campo psicanalítico se dá positivamente pela interpretação, construindo novas possibilidades de organização psíquica dentro das relações do campo.
No interior desta possibilidade a mente humana se reconstrói a cada momento em que uma interpretação psicanalítica se realiza e provoca uma modificação estrutural no campo a que ela se destina.
Ao criar a Teoria dos Campos, Fabio Herrmann tentou harmonizar uma busca antiga dentro da psicanálise. Harmonizar as diversas teorias psicanalíticas, através de um campo onde as tendências e os diversos sentidos que compõem o que chamamos de realidade se estruturassem numa forma que permitisse a intervenção proporcionada pela psicanálise e sua técnica de interpretar cada fenômeno e delicadamente estruturar o campo de forma a permitir o saber de si e para si.
Contudo o exposto evitou assim as contradições, que as neuroses (como denominadas por Freud) dêem a sensação de outras possibilidades como se tivessem respostas para a realidade do existir. Elas desarmonizam o campo psicanalítico, estabelecendo em seu lugar o “falso” no lugar do que poderia se chamar de “verdadeiro” ou “verdade”.
Resta colocar onde fica o sofrimento humano. Este, fazendo parte do existir, se coloca na natureza como tudo mais que nela vive.
Separar-se do natural e existir como humano compõe um sofrimento que é parte do ser diferente de tudo que existe e adquirir a possibilidade de pensar.
Pensar é tentar se harmonizar como outro ser, este fora do natural, pois através do seu pensar constrói uma nova forma de existência, e uma nova forma de coexistir com o natural, fora dele, e dentro de uma diferente convivência entre o real e outro imaginário, fruto da capacidade adquirida de inventar.
Novos campos se estruturam e diversas alternativas de viver e sofrer cria e recria o ser humano. Neste caminho a humanidade terá que lidar consigo mesma não mais contando com os favores da natureza. Os deuses a abandonaram definitivamente.
O problema é, pois, saber como o indivíduo poderia ultrapassar sua forma e seu laço sintático com um mundo para atingir a universal comunicação dos acontecimentos, isto é, a afirmação de uma síntese disjuntiva para além não somente das contradições lógicas, mas mesmo das incompatibilidades alógicas. Seria preciso que o indivíduo se apreendesse a si mesmo como acontecimento. E que o acontecimento que se efetua nele fosse por ele apreendido da mesma forma como outro indivíduo nele enxertado (Deleuze, 1969, pp. 183-184).
Aí se encontra o sentido que ultrapassando a vida fornece sua lógica. Criar e recriar o humano é o destino que aguarda todo ser humano, que pretenda a existência ao lado da natureza.
Porém não se poderá ignorar a dor que sempre restará como rastro das lutas internas com os próprios princípios da natureza. Fato muito bem lembrado no ditado bíblico “Tu és pó e ao pó tornarás”

Referências
Deleuze, G. (1969). A lógica do sentido (4ª ed.). São Paulo: Editora Perspectiva.
Herrmann, F. (1979). Andaimes do real: Uma revisão crítica do método da Psicanálise (1ª ed.). São Paulo: EPU.
Herrmann, F. (1991). Clínica psicanalítica: A arte da interpretação. São Paulo: Editora Brasiliense.
Herrmann, F. (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Editora Casa do Psicólogo.


Endereço para correspondência
Cláudio J. de Campos Filho
R. Jardim Botânico, 295/ 3º andar — Jardim Botânico
22470-050 Rio de Janeiro, RJ
Fone: (21) 2537-5471
E-mail: claudiocamposfilho@gmail.com

Recebido em: 23/11/2007
Aceito em: 11/12/2007



* Psiquiatra. Psicanalista. Membro efetivo da APERJ-RIO 4.
 

Notas sobre o discurso perverso

Notas sobre o discurso perverso1

Notes about the perverse discourse


Ana Maria RudgeI
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Endereço para correspondência



RESUMO
Entre as diversas faces da perversão, escolhe-se privilegiar a perversão como discurso e não como categoria diagnóstica que qualificaria o analisando. Uma vez que a perversão para a psicanálise é algo a ser delimitado a partir da própria situação psicanalítica e do que se produz dentro de um campo transferencial, o objetivo do artigo é buscar circunscrever algumas características das formações discursivas que se poderiam qualificar como perversas.
Palavras-chave: Perversão, Discurso, Angústia, Transferência, Cisão.

ABSTRACT
Among the different facets of perversion, we decided to choose perversion as a discourse as the topic of this paper. Given that in psychoanalysis perversion is delimitated within the psycoanalytic situation in relation to the transferential field, the goal of this article is to circumscribe some of the discursive formations that could be characterized as perverse.
Keywords: Perversion, Discourse, Anxiety, Transference, Splitting.



O uso da categoria perversão na psicanálise é frequentemente impreciso, permanecendo vagas suas fronteiras. Esta afirmativa leva em conta duas questões: 1) o giro subversivo que Freud fez operar sobre a noção de perversão como patologia do comportamento sexual, como desvio em relação a uma norma, que determinou o fundamento do campo da sexualidade infantil como sexualidade polimorfa perversa; 2) o abandono sistemático desta posição por parte de alguns analistas, que desconhecem os caminhos que levaram a psicanálise a transformar a perversão em algo tão paradoxal como uma “perversão normal”.
Freud contribuiu com a psiquiatria na delimitação de alguns quadros psicopatológicos, como a neurose obsessiva. Entretanto, a expressão “psicopatologia psicanalítica” não deixa de requerer sempre as aspas, já que não se pode abstrair da estrutura da situação psicanalítica e do campo transferencial nela instaurado como fundamento de sua prática e da construção de ferramentas teóricas que permitam operar nessa prática.
O princípio classificatório que presidiu a constituição do campo psiquiátrico, como lembra Pereira (2000), atende à prescrição aristotélica de que as disciplinas científicas devem se fundar na descrição precisa dos fenômenos, no agrupamento sistematizado das entidades formalmente delimitadas segundo suas semelhanças e diferenças constantes. Ao definir a psiquiatria como uma especialidade médica independente, Pinel inaugurou uma forma de abordagem sistemática de descrição e classificação dos fenômenos, traços e comportamentos, metodologia bastante diferenciada daquela do campo psicanalítico.
A concepção psiquiátrica de perversão continua a contaminar as elaborações psicanalíticas sobre a perversão em vários âmbitos. Encontramos ressonâncias do âmbito médico-legal em que se inseria a perversão no final do século XIX, designando os assassinos, necrófilos, sádicos e delinqüentes, atravessando as elaborações sobre a perversão, em que o substantivo “perversidade” freqüentemente se insere, junto com a idéia de uma vocação para a destruição e para a exploração do outro.
Além disso, a herança da abordagem psiquiátrica reflete-se na tentação de se definir a perversão como algo da ordem do comportamento sexual insólito ou bizarro que permanece na psicanálise, sem que se atente para o fato de que essa definição é solidária da metodologia descritiva e classificatória, em um certo sentido behaviorista, ao invés de dinâmica.
A abordagem que delimita as estruturas clínicas neurótica, perversa e psicótica, como articuladas por operadores bem distintos e definidos como seriam, respectivamente, recalque, recusa e rejeição (ou foraclusão), às vezes leva os analistas a deslizarem insensivelmente para uma espécie de diagnóstico do analisando, que não contempla a especificidade epistemológica da psicanálise em oposição à da psiquiatria. Não há continuidade entre as concepções da psiquiatria e a psicanalítica, se o campo da psicanálise se especifica por se erigir em torno de uma experiência que é a da clínica sob transferência, e cuja teoria é a teoria desta prática.
A influência do discurso psiquiátrico na psicanálise, que contamina a noção de perversão como uma estrutura clínica, já foi criticada por vários autores – Barande (1980), Calligaris (1993), Frota (2005), Peixoto (1999). A tendência a tomar a perversão como estrutura, escolhendo como seu operador a recusa e como paradigma o fetichismo, pensado de acordo com o texto freudiano de 1927, encontrou seus expoentes em outros autores, como Serge André (1995) ou Joel Dor (1991).
Se é verdade que Freud, como já se disse anteriormente, rompeu com a concepção de perversão como desvio da norma, fica difícil encontrarmos apoio para tais idéias. A idéia de uma sexualidade infantil polimorfa e perversa só foi possível justamente porque o pensamento freudiano se fez em torno de algo que sobrepuja a noção de instinto como algo da ordem da natureza e introduz a indeterminação da pulsão no destino do sujeito.
Nos Três ensaios sobre a sexualidade, Freud (1905) considera que as fantasias perversas são recalcadas nas neuroses, enquanto nos perversos são conscientes e/ou agidas. Daí a conhecida fórmula freudiana da neurose como negativo da perversão. Nesse momento, a perversão poderia ser compreendida como representando a permanência da sexualidade em moldes infantis, uma mera expressão direta das pulsões, que em razão da ausência ou deficiência das defesas ou do recalque não seria transformada em sintoma neurótico. Ora, como uma mera expressão das pulsões, a perversão só poderia se apresentar, para o tratamento analítico, como impasse.
O fato é que logo depois de 1905, como assinalou Gillespie (1956), começa-se a perceber que as perversões deveriam ser tomadas como formações defensivas, e não como aspectos da sexualidade infantil que driblaram as defesas, algo que já se pode encontrar insinuado no texto sobre Leonardo da Vinci, mas que se torna totalmente explícito em Bate-se numa criança (1919), no qual as várias etapas ou manobras envolvidas na fantasia são pertinentes ao complexo edípico.
No texto tomado como paradigmático para a delimitação de uma estrutura perversa, o fetichismo é apresentado como uma manobra para evadir a angústia de castração (Freud, 1927), que determina uma vicissitude da escolha de objeto. O operador dessa escolha, uma das formas de lidar com a angústia de castração, é batizado de Verleugnung – recusa – operação que induz uma cisão do eu. Colocando esse operador em oposição ao recalque e à rejeição, operadores das estruturas neurótica e psicótica, os autores franceses citados desfizeram as ambigüidades e continuidades que freqüentavam a obra freudiana, situando de vez a perversão como quadro psicopatológico.
É importante assinalar que Freud chega a caracterizar a recusa e a cisão do eu como mecanismos que ocorrem sempre na infância, e que podem ter lugar tanto na neurose quanto na psicose (Freud, 1940). Em sua posição de recusar-se, coerentemente, a estabelecer fronteiras rígidas entre normal e patológico, Freud fornece uma contrapartida para essa defesa contra a angústia na psicopatologia da vida cotidiana. Na contramão de uma leitura que define em cores muito contrastantes uma estrutura perversa, em contraposição às estruturas neurótica e psicótica, Freud está lidando com a idéia de uma manobra2 de que se pode lançar mão na tentativa de evitar a angústia3, e que coexiste com o recalque.
Lacan também evita essa separação tão nítida quando estabelece, em seu seminário 4, uma articulação entre a fobia e o fetichismo, em uma tradição que remonta a um trabalho de Hanns Sachs (1923). Este mostrou a presença tanto de uma fobia neurótica à exposição como de uma atuação exibicionista em um mesmo caso clínico, como dois recursos que se alternaram em diferentes momentos de uma análise em torno do mesmo impulso, o exibicionista. Toma, assim, as fronteiras entre os sintomas neurótico e perverso como bastante fluidas.
O que significa tomar a perversão como uma estrutura de discurso e não como uma estrutura clínica? Quando Lacan, no seminário XVII, introduz seus discursos, formas de laço social, não menciona um discurso perverso. Isso permite a interpretação de que só a histeria, entre os “tipos clínicos”, faz laço social (Quinet, 2002, p. 196), já que o autor afirma que “só o discurso histérico é certo e transmissível” (Lacan, 1973, p. 15). Sem dúvida a capacidade de transmissão do discurso histérico se provou por sua eficácia no próprio advento da psicanálise. Entretanto, fica a dúvida entre algumas alternativas: se Lacan sugere que a histeria é o único discurso que pôde transmitir a psicanálise; se é o único discurso que se pode transmitir, já que ele elaborou seu matema; ou, ainda, se ele considerou que outros discursos poderiam ser eventualmente formalizáveis, no porvir do saber analítico.
A prática psicanalítica permite-nos um ouvido para o discurso perverso, desde que não se defina a perversão como impasse absoluto na clínica psicanalítica. Em vez de tomá-lo como desafio à lei social que regula a sexualidade, critério behaviorista, a prática analítica levou com que alguns analistas enfatizassem o ataque à moldura analítica, como uma dificuldade no tratamento, o que seria uma atualização de uma atitude de transgressão às leis de forma geral. O próprio termo moldura está caindo em desuso, porque evoca um momento em que a psicanálise convivia com parâmetros um tanto rígidos de como se deveria organizar o tratamento em termos de número de sessões por semana, horários etc. Com maior propriedade, isso poderia ser caracterizado como desafio à lei que o desejo do outro representa, já que essa é a lei que confronta a castração, e tomará formas variáveis e inéditas no campo transferencial.
A cisão do eu, noção metapsicológica, dá conta de duas atitudes opostas que não entram em contradição. Não surgem conflitos e uma formação de compromisso, como o que articula o sintoma neurótico. As duas atitudes independentes e opostas apresentam a peculiaridade de não exigir um trabalho simbólico, visando a resolução dessa contradição. Na prática clínica pode-se operacionalizar a noção de cisão do eu na abordagem de certos fenômenos que ilustram a idéia de um discurso perverso. A cisão fundamenta uma labilidade argumentativa, em que o sujeito pode dizer e desdizer, talvez sem mentir, qualquer coisa que lhe poupe angústia na situação em que estiver envolvido, sem compromisso com o que enunciou.
O discurso perverso, se economiza angústia, não economiza trabalho. A recusa à castração gera um resultado instável, em que só precariamente a angústia pode ser evitada. Lacan (1962-1963) observou o importante papel da teatralização, da vocação para a cena, presente nos mecanismos perversos. A recusa à castração tem como instrumento um arranjo ou encenação onde outras pessoas fazem parte integrante. Elas devem cumprir, nesse teatro, a parte que o sujeito espera delas, ou sua angústia sobrevirá. Para obter esse efeito o sujeito tem um enorme trabalho, e sua atividade em prol da recusa – surgindo nas formas de sedução, controle, imposição etc – é freqüentemente interpretada como efeito de um compromisso com o desejo. Como um diretor de atores, ele exige uma encenação perfeita em que tudo saia como previsto.
O discurso perverso é comprometido com a busca incessante de colocar os coadjuvantes nos papéis requeridos, e portanto, é afeito ao modo imperativo e à sedução como maneiras alternativas de submeter os outros. Será exatamente na falha da colaboração dos que são chamados para integrantes da encenação dirigida pelo sujeito que o esforço defensivo da recusa poderá desmoronar e a angústia de castração se fará presente. Essa angústia, geralmente de ordem depressiva, muitas vezes é o que encaminha para a psicanálise. Mas a cisão do eu permite ao sujeito a coexistência das contradições sem registrá-las. Assim, se após um episódio de angústia a encenação protetora puder ser restaurada, a vitória sobre a castração irá se restabelecer, cicatrizando-se de imediato a ferida narcísica, o que ameaça a continuidade do processo psicanalítico.
A atuação que caracteriza o discurso perverso busca montar um jogo determinado pelas próprias regras, o que lhe confere um acento tirânico. Lacan traz uma contribuição valiosa para delinear um discurso perverso quando define a posição em que o sujeito busca se situar, como sendo a de a, objeto causa do desejo, ao mesmo tempo em que visa colocar o outro na posição de sujeito dividido, evocando sua angústia (Lacan, 1962-1963; 1963). Este movimento, a unilateralização da castração, é o que lhe permite evitar a angústia. Mas não se trata, para Lacan, de uma relação dual. Existe sempre um Outro, o espectador da cena, a quem o sujeito fantasia estar, como instrumento, completando ou satisfazendo com sua atuação.
Na abordagem lacaniana da perversão, a posição de objeto que causa o desejo é buscada, na medida em que é o outro quem deve sustentar o lugar de sujeito dividido, sujeito à angústia. Gerar a angústia no outro, levá-lo a fracassar, são meios de que o sujeito, assentado em um terreno basicamente imaginário, lança mão para desvencilhar-se da própria angústia. A manobra perversa evita o desejar, já que o desejo remete para a angústia de castração, da qual todo o esforço, nesse discurso, é para se evadir.
O ativismo perverso pode ser entendido exatamente como essa pressão para conseguir com que o outro se “encarregue” dos pensamentos e sentimentos que despertam a angústia. Até que ponto o analista aceita este encargo, e como maneja o que nele foi projetado é o caminho para intervir no discurso perverso em seu aspecto de defesa contra a angústia. A direção produtiva do tratamento será a busca de gradativamente superar, no tratamento, a rigidez da cisão do eu, estabelecendo-se uma certa permeabilidade entre o que Freud tomou como as duas atitudes que não se influenciam, e promovendo-se uma saída por meio da simbolização. É importante não esquecer que apesar dos recursos imaginários que proliferam no discurso perverso, ele não indica a presença de uma psicose: a marca da castração, ainda que recusada, está nele sempre presente.
A castração do Outro, que é para Freud o móvel da angústia, e sobre a qual atua a recusa, assume novas versões em Lacan. Com o francês, a angústia não se desarticula do desejo do Outro, da questão sobre o que é que o Outro deseja, e sobre o que lhe falta. O desejo do Outro coloca um enigma, que Lacan explora amplamente no seminário da angústia. O que ele quer de mim?
No discurso perverso, o desejo do outro não deve ser manifestar, nem levantar questões. Os famosos contratos perversos, para os quais tantos autores, depois do famoso artigo de Deleuze (1983) voltaram sua atenção, são apaziguadores quanto ao imprevisto que o desejo poderia introduzir na cena. Da mesma forma, a pretensão a conhecer como o outro goza (Hyldgaard, 2004), assim como a busca de domínio que visa neutralizar a aparição de qualquer desejo que não o próprio, buscando colocar os interlocutores na posição de bonecos previsíveis, são também recursos para evadir a lei do desejo do outro.
Esbocei apenas alguns aspectos do discurso perverso e breves observações de como ele se apresenta na experiência analítica; nada de muito novo, afinal. No congresso sobre “As múltiplas faces da perversão” que ocorreu em Belo Horizonte em 2004, e em que apresentei uma primeira versão do artigo, entretanto, surpreendeu-me que alguns analistas reiterassem a enumeração de todas as categorias de sexualidades exóticas classificadas por Krafft-Ebbing, sem questionar a incompatibilidade entre a psicanálise e esse critério descritivocomportamental de abordagem.
Por outro lado, em algumas apresentações de casos clínicos, a analisandos ditos “perversos” eram pespegados qualificativos que evocavam o Malleus Maleficarum, sem que o analista levantasse questões sobre a contratransferência na qual parecia assumir, desavisadamente, o lugar de juiz ou sacerdote. Talvez, pensei eu, essas reflexões não sejam assim tão redundantes. Como escreveu Freud (1966) de forma um tanto desaforada ao Pastor Pfister, com Futuro de uma ilusão visou defender a psicanálise dos sacerdotes. Há posições que são incompatíveis com a função do analista, e o termo “perversão” pode servir de guarda-chuva para algumas delas.

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Endereço para correspondência
Ana Maria Rudge
Departamento de Psicologia da PUC-RJ
Rua Marquês de São Vicente, 225 – Gávea
22543-900 – Rio de Janeiro/RJ
E-mail: arudge@psi.puc-rio.br

recebido em 01/09/04
versão revisada recebida em 10/03/05
aprovado em 06/04/05



Notas
I Professora do Departamento de Psicologia (PUC-RJ); Membro Psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle; Pesquisadora do CNPq; Membro da Associação Universitária de Psicopatologia Fundamental.
1 Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no XIII Fórum Internacional de Psicanálise, promovido pelo Círculo Psicanalítico de Minas Gerais em 25 de agosto de 2004, Belo Horizonte
2 Harry Stack Sullivan, que concebe o analista como observador participante, usa o termo dinamismo no mesmo sentido, como algo que envolve analisando e analista.
3 Posição que vem tomando também J.A. Miller, ao valorizar os casos “inclassificáveis” e um “último Lacan”.