Revista Brasileira de Psiquiatria
Print version ISSN 1516-4446
Rev. Bras. Psiquiatr. vol.21 n.4 São Paulo Dec. 1999
http://dx.doi.org/10.1590/S1516-44461999000400014
revisão
Dissociation and dissociative disorders: theoretical models
RESUMO
A compreensão da experiência dissociativa e das origens dos transtornos dissociativos é difícil devido à complexidade da questão. As contradições da classificação são decorrentes das dificuldades de se construir uma teoria da mente abrangente que unifique neurobiologia e psicodinâmica. Os autores discutem as bases conceituais da dissociação com ênfase na integração entre neurobiologia e fenomenologia. O papel do aprendizado é amplamente discutido, assim como as teorias atuais de neodissociação, trauma e sociocognitivismo para os transtornos dissociativos.
A compreensão da experiência dissociativa e das origens dos transtornos dissociativos é difícil devido à complexidade da questão. As contradições da classificação são decorrentes das dificuldades de se construir uma teoria da mente abrangente que unifique neurobiologia e psicodinâmica. Os autores discutem as bases conceituais da dissociação com ênfase na integração entre neurobiologia e fenomenologia. O papel do aprendizado é amplamente discutido, assim como as teorias atuais de neodissociação, trauma e sociocognitivismo para os transtornos dissociativos.
DESCRITORES
Dissociação; transtornos dissociativos; modelos teóricos
Dissociação; transtornos dissociativos; modelos teóricos
ABSTRACT
It is challenging to understand the dissociative experiences and the origins of dissociative disorders. Contradictions of classification are due to the intrinsic difficulties to build up a theory of the mind that unifies neurobiology and psychodynamics. The authors discuss the conceptual basis of dissociation, with emphasis on the integration of neurobiology and phenomenology. The role of learning is discussed as well as the neodissociative, trauma, and sociocognitive theories for dissociative disorders.
It is challenging to understand the dissociative experiences and the origins of dissociative disorders. Contradictions of classification are due to the intrinsic difficulties to build up a theory of the mind that unifies neurobiology and psychodynamics. The authors discuss the conceptual basis of dissociation, with emphasis on the integration of neurobiology and phenomenology. The role of learning is discussed as well as the neodissociative, trauma, and sociocognitive theories for dissociative disorders.
KEYWORDS
Dissociation, dissociative disorders; theoretical models
Dissociation, dissociative disorders; theoretical models
Introdução
"O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Fernando Pessoa.
O Guardador de Rebanhos, XXXIX."
Dissociação: a (in)definição do conceito
O
estudo dos fenômenos dissociativos e transtornos mentais associados à
dissociação é um dos grandes desafios da psiquiatria. Muito da
controvérsia da área se deve à formação científica distinta dos
cientistas, cujos argumentos teóricos por vezes beiram discussões
ideológicas. O próprio termo "dissociação" pode ser entendido de
diversas formas e dar margem a múltiplas interpretações, dependendo do
contexto de seu uso. Não há definição única, simples e coerente capaz de
obter o consenso dos pesquisadores da área.
Cardeña1 agrupa experiências dissociativas em um Domínio da Dissociação, baseado nos diferentes usos do termo. Dissociação (ou a "desagregação" de Pierre Janet2,3)
implica que dois ou mais processos mentais não estão associados ou
integrados. Sob o ponto de vista do estudo da personalidade e do campo
da psicologia clínica, o Domínio pode ser abrangido sob três
perspectivas diferentes: 1) para caracterizar módulos mentais
semi-independentes ou sistemas cognitivos não acessados conscientemente
e/ou não integrados dentro da memória, identidade e volição
(conscientes) do indivíduo; 2) como representação de alterações da
consciência do indivíduo, em situações em que certos aspectos do Eu e do
ambiente se desconectam; 3) como um mecanismo de defesa associado a
fenômenos variados, tais como amnésia psicológica, eliminação de
sofrimento físico ou emocional, e não integração crônica da
personalidade (como no transtorno de personalidade múltipla)1.
Dissociação como módulos/sistemas não-conscientes
Três subdivisões são propostas1:
a) Dissociação como ausência da consciência de estímulos ambientais ou de comportamentos em andamento
(por exemplo, mudança de marchas ao dirigir o automóvel, sonambulismo e
outros comportamentos ou percepções considerados "dissociativos" em
sentido amplo). Tal definição exagera inapropriadamente o termo
"dissociação" para incluir processos executivos não-conscientes e
funções de monitoração neuropsicológica (é melhor não usar o termo
dissociação para situações em que trazer o estímulo à consciência não é
esperado em termos de funcionamento neuropsicológico normal devido a
limitações físicas ou atencionais do indivíduo. Aceitar tal definição de
dissociação implicaria viver nossas vidas em estados dissociativos
perpétuos).
b) Dissociação como
coexistência de sistemas mentais separados que deveriam ser integrados
na consciência, memória, ou identidade do indivíduo (exemplos:
identidade – transtorno de personalidade múltipla; memória – memória
dependente de estado ou reencenamento de memórias traumáticas em
situações em que o indivíduo se diz amnésico para o trauma; volição –
estados de transe ou possessão espiritual). Esse conceito de dissociação
é datado do começo do século – Pierre Janet, Freud, Breuer – e embasa a
noção de distúrbios dissociativos4.
c) Dissociação como comportamento em progresso ou percepção inconsistentes com o relato verbal introspectivo do indivíduo
(por exemplo, experiências hipnóticas e certos distúrbios neurológicos,
como cegueira por lesão cortical – síndrome de Anton – e desconexão por
comissurotomia). Indica inconsistência entre relatos sinceros de
indivíduos sobre determinadas experiências e medidas
fisiológicas/comportamentais.
Dissociação como alteração na consciência em que ambiente e Eu se desconectam
Os
conceitos anteriores de dissociação não implicam necessariamente
mudanças qualitativas do estado de consciência, mas apenas na
incapacidade de integrar processos mentais. Em contraste, essa definição
de dissociação inclui situações em que o indivíduo experiencia estados
distintos de consciência que envolvam uma separação ou desconexão entre a
experiência fenomênica do ambiente e o ambiente propriamente dito.
Assim, uma vítima de estupro pode se desconectar da situação e descrever
ausência de experiências sensório ou emocional, mas vivenciar a
situação como um observador fora do corpo (uma experiência de
autoscopia). As experiências de despersonalização e de desrealização
também podem ser classificadas aqui (como vivências de irrealidade e/ou
anestesia mental/corpórea).
Dissociação como mecanismo de defesa
Mecanismo
de defesa é um conceito teórico que diz respeito ao controle de
informações capazes de provocar ansiedade ou sofrimento. O conceito de
dissociação como mecanismo de defesa é frequentemente utilizado. Para a
teoria psicanalítica, esse mecanismo é considerado proposital, ainda que
inconsciente, podendo ser desencadeado por eventos específicos ou se
apresentar como traço de personalidade. Segundo Pierre Janet, o fenômeno
não teria origem proposital ou funcional, mas surgiria quando o
indivíduo experiencia emoções "veementes" (inclusive terror) que
levariam ao estreitamento do campo atencional e desorganização das
funções usuais de integração das informações na consciência. Assim,
experiências não integradas na identidade e memória de longo prazo do
indivíduo se tornariam "idéia fixas" simples ou identidades alternativas
complexas1,5.
A dissociação como
mecanismo de defesa poderia ter uma origem filogenética devido à
adaptação conferida pela experiência dissociativa em situações
traumáticas e a seu paralelo a comportamentos de passividade verificados
em animais em situações de trauma inescapável (com a vantagem de
possível conservação de energia em tais situações).
É
preciso ressaltar que, na condição de mecanismos de defesa, distinções
clínicas entre repressão e dissociação são ambíguas (os dois mecanismos
são na verdade virtualmente indistinguíveis) e frequentemente baseadas
em posicionamentos teóricos em vez de descrições fenomenológicas claras.
Isso é de grande importância na controvérsia atual a respeito da
recuperação de memórias "reprimidas" de abuso6. A seguinte
taxonomia do fenômeno dissociativo em eixos patológico-normal e
neurológico-psicológico pode ser útil para sua classificação:
Os transtornos dissociativos em perspectiva
A
característica central dos transtornos dissociativos é o distúrbio das
funções normalmente integradas de consciência, memória, identidade ou
percepção do ambiente. Tais distúrbios podem ser súbitos ou graduais,
transitórios ou crônicos. Há quatro subtipos principais, segundo o
DSM-IV: amnésia dissociativa, fuga dissociativa, transtorno dissociativo
de identidade e transtorno de despersonalização7.
Sintomas
dissociativos também fazem parte dos critérios diagnósticos de outros
transtornos mentais, como o distúrbio de estresse pós-traumático e o
transtorno de somatoformes. No DSM-IV, reações conversivas são
codificadas como transtornos somatoformes para enfatizar a importância
de descartar distúrbios clínicos e neurológicos no diagnóstico
diferencial.
Essa divisão dos transtornos
dissociativos, assim como a classificação de reações conversivas como
"transtornos somatoformes" é consequência da suposta natureza "ateórica"
do DSM-IV, que busca antes a classificação dos distúrbios pelos seus
sintomas do que por mecanismos subjacentes. Ainda que a ênfase em
fenomenologia clínica e nosologia descritiva do sistema DSM o coloquem
como herdeiro da tradição kraepeliniana como base científica da prática
clínica, as contradições no caso dos sintomas dissociativos demonstram
os limites da abordagem "ateórica" da classificação.
Distúrbios
conversivos são inerentemente dissociativos, já que envolvem a exclusão
de conteúdos mentais do controle e da consciência do indivíduo. A
classificação de transtornos conversivos como somatoformes devido à
proeminência de sintomas físicos não leva em conta que sua natureza é
mental e não física (e não indica problemas corpóreos, mas distúrbio na
consciência). Da mesma forma que amnésia e fuga dissociativas e
transtorno dissociativo de identidade indicam transtornos na integração
da memória e identidade, fenômenos análogos ocorrem nos transtornos
conversivos, tais como cegueira funcional, surdez, anestesia e
paralisia, que desagregam percepções e atividade motora dos processos
conscientes do indivíduo8,9 (Figura 2).
Em outra linha de raciocínio,
não é claro no momento o papel de distúrbios de personalidade em
indivíduos com transtorno dissociativo de identidade, apesar de
evidências claras de comorbidade. Para alguns autores, transtorno
dissociativo de identidade seria um distúrbio primariamente de
personalidade10,11. O problema é que a origem da divisão dos
transtornos mentais em eixos I (transtornos mentais propriamente ditos) e
II (distúrbios de personalidade) no sistema DSM teve uma base política;
a validade e a confiabilidade dos instrumentos estruturados utilizados
para o diagnóstico de distúrbios de personalidade (p. ex., entrevista
clínica estruturada para transtornos de eixo II no DSM-IV ou SCID II) é
limitada. Instrumentos utilizados em pesquisa tendem a diagnosticar
vários distúrbios de personalidade no mesmo paciente em contraste com a
prática clínica da maioria dos psiquiatras (que diagnosticam um
distúrbio principal). A abordagem "ateórica" do sistema DSM e a ênfase
descritivista dos instrumentos causa a sobreposição de diversos
diagnósticos que pouco ajuda na compreensão da interação entre a
estrutura de personalidade e os fenômenos dissociativos.
Pierre Janet2,3
descreveu os "automatismos psicológicos", que consistem em atos
complexos, responsivos a situações específicas e que incluem uma idéia e
uma emoção. Em indivíduos normais, os automatismos psicológicos são
acessíveis à consciência fenomênica e ao controle voluntário. Em
condições de estresse, um ou mais automatismos podem se separar ou
dissociar dos demais, tornando-se inacessíveis ao controle voluntário.
De acordo com Janet, estados sonambúlicos representam a repetição
involuntária de alguma experiência traumática esquecida, seguidos por
amnésia da experiência e de sua repetição imaginária. A teoria de Janet
foi eventualmente ofuscada por Freud; entretanto a teoria
neodissociativa de Hilgard12 trouxe um novo interesse por suas idéias.
Mas
o que significa o não-acesso à consciência de memórias e identidade e
quais seriam as bases psicofisiológicas de tais fenômenos? Essa
discussão é crucial não apenas para a escolha de técnicas terapêuticas
apropriadas13, mas para o julgamento da recuperação de
memórias "reprimidas" em situações legais, ao qual profissionais de
saúde mental podem ser chamados a oferecer opiniões técnicas14 .
Sob
o ponto de vista sociocultural, há ampla evidência da fragilidade e do
poder da memória. Ainda que eventos traumáticos possam produzir amnésia
extensa, descrições na literatura focam traumatismos psicológicos
isolados produzindo amnésia retrógrada para eventos traumáticos e
não-traumáticos, mas não abordam claramente a possibilidade de bloquear
experiências traumáticas repetidas e prolongadas (por exemplo, no caso
de pacientes com abuso na infância).
As
limitações metodológicas deste tipo de estudo incluem a impossibilidade
de distinção entre o esquecimento ordinário de eventos da infância e a
"repressão" maciça de experiências traumáticas repetidas. É possível
implantar falsas memórias através de processo hipnótico ou sugestões
não-hipnóticas; o processo hipnótico cria um ambiente de recuperação de
memórias no qual indivíduos tendem a considerar mais facilmente uma
experiência mental como "memória" e expressar maior (ou igual) confiança
em memórias falsas e verdadeiras15. Estudos
neurofisiológicos de memória vêm se afastando do paradigma de memória
como arquivo e se voltando para modelos que estudam memória de maneira
contextual. A lembrança de experiências passadas não provê evidências
sobre as propriedades da informação acumuladas sobre os eventos, mas
sobre a ação conjunta, sinergética, da informação guardada e do contexto
cognitivo quando da sua recuperação. A discussão sobre mecanismos de
memória é crucial para o entendimento, classificação e tratamento de
transtornos dissociativos por várias razões.
Freud
originalmente acreditava que todas as suas pacientes histéricas teriam
sofrido traumas sexuais na infância e que seus sintomas de histeria
seriam representações simbólicas de suas experiências traumáticas16.
Apenas mais tarde ele reviu essa formulação para argumentar que as
memórias de terem sido seduzidas seriam fantasias, derivadas de desejos
infantis inconscientes. A despeito da mudança de opinião de Freud ter
sido crucial para o desenvolvimento da psicanálise, por ter abordado o
inconsciente, as fantasias e os desejos provenientes dele, ao mesmo
tempo ela desviou a atenção do papel de eventos traumáticos no
desenvolvimento de psicopatologia17,18.
A
premissa de que fantasias inconscientes fossem as organizadoras
primárias da vida psicológica (fantasias de base filogenética ou
fantasias reprimidas, que surgem da mediação de conflitos entre desejos
instintivos e defesas construídas contra eles) contrasta com a idéia da
modelagem da vida psíquica pelo impacto da realidade no indivíduo.
Freud, entretanto, nunca abandonou totalmente a idéia da significância
etiológica de experiências traumáticas. A construção de experiências
dissociativas e de amnésia associada como repressão da memória se
encaixa dentro da visão da dissociação como mecanismo de defesa, no
modelo de conflitos proposto por Freud, porém contradiz estudos sobre
neurofisiologia da memória. A distinção entre fantasias e traumas é de
crucial importância (ainda que disputada por diferentes autores) como a
contraposição entre as idéias de Freud e Janet16.
A codificação fragmentária das experiências traumáticas, principalmente na infância (a amnésia de fonte ou source amnesia
é parte normal do desenvolvimento neuropsicológico), favorece sua
recuperação fragmentada e fenômenos como memórias dependentes de estado (state dependent memory)
e confusão entre fantasias e lembranças. É possível, entretanto, a
codificação primária de experiências traumáticas em níveis
sensório-motor (como "coisa") e a codificação de fantasias primariamente
em formas linguísticas simbólicas (como "palavra"). Tentativas de
distinção entre repressão e dissociação de memórias como fenômenos verticais e horizontais foram formuladas, mas a distinção tende a ser mais teórica do que de valor prático19 (Figura 3).
O fenômeno dissociativo pode,
portanto, acontecer não apenas como decorrência da mediação de
conflitos entre impulsos e defesas em um modelo (estruturado) de Ego20,
mas devido à ação desencadeadora de experiências da realidade física ou
interpessoal sobre complexos ideacionais/mnésticos fragmentados,
relativos a eventos traumáticos passados (em contraposição de idéias de
Freud e Janet)13,21-27.
Isso torna mais compreensíveis as experiências intrusivas oatológico decorrente do trauma34.
A articulação entre neurociência e psicanálise é atual e deve se
desenvolver intensamente nos próximos dez anos para providenciar
respostas a estes dilemas35,36.
As teorias neodissociativa e sociocognitiva e suas controvérsias
Quão
ilusório é o modelo de que processos mentais representam uma entidade
unitária? Uma visão de dissociação se baseia na pressuposição de que os
processos mentais representam uma forma de unidade, que pode ser rompida
por um mecanismo especial (a dissociação). Outra visão de dissociação
se baseia na pressuposição de que alguma multiplicidade dos processos
mentais é típica e normal, que níveis diferentes de controle
comportamental se sobrepõem, normalmente coordenados por níveis de
funcionamento consciente. Circunstâncias nas quais a dissociação se
torna evidente seriam aquelas em que esse funcionamento superior se
enfraqueceria, liberando níveis subjacentes e expondo a natureza de
multiciplidade dos processos mentais37,38. Conforme discutido
acima, o modelo teórico proposto por Freud para a repressão implicava
que o processo de reprimir idéias ou informações para o inconsciente era
um fenômeno ativo ou motivado, enquanto este não era necessariamente o caso da dissociação.
A teoria neodissociativa de E.R. Hilgard12,
parcialmente inspirada nas idéias de Janet, sugeria um predomínio de
processo primário no material reprimido (irreal e ilógico). Em
contrapartida, a dissociação diria respeito a um sistema de idéias
desconectado da consciência por uma barreira amnéstica. Esse
sistema manteria relações lógicas e realistas entre si. O conceito de
barreira amnéstica implica a coexistência de duas (ou mais) correntes
paralelas de consciência.
A demonstração clássica dessa suposta barreira envolveu a descrição de um observador oculto
pelo autor em situações de hipnose na qual parte da pessoa sabe da
presença de dor, enquanto outra parte (consciente) nega a experiência
álgica12. Em revisão de suas próprias idéias neodissociativas, Hilgard39
sugere a existência de sistemas cognitivos subordinados, cada qual com
um certo grau de unidade, persistência e autonomia funcional. Um sistema
hierárquico de controle e integração coordenaria as atividades desses
diversos sistemas (o Ego executivo, em referência a funções executivas).
O
fenômeno hipnótico influenciaria o processo executivo e seria capaz de
modificar os arranjos hierárquicos, levando a alterações motoras,
mnésticas e perceptuais. O fenômeno do observador oculto é observado
apenas em uma minoria de indivíduos altamente hipnotizáveis, mas sugere a
existência de multiplicidade no contexto da fragmentação do sistema de
monitoramento; assim, indivíduos instruídos a regredir até 5 anos de
idade, em transe hipnótico, são capazes de falar como uma criança e, ao
mesmo tempo, dizer que se sentem tristes por essa criança, evidenciando a
presença da dualidade (supostamente, sugestões de regressão foram
feitas sem sugerir a presença de um observador adulto)40,41.
O
conceito da barreira amnéstica na dissociação é a base da teoria
neodissociativa; as experiências em transe hipnótico de ausência de
vontade e esforço seriam inteiramente ilusórias, Na verdade, o sujeito
estaria exercendo considerável esforço e controle, ainda que afastado da
consciência42.
Segundo a teoria
neodissociativa, o comportamento hipnótico seria controlado e conduzido
da mesma forma que qualquer comportamento não-hipnótico. Porém, a
experiência do por que o comportamento estaria ocorrendo seria
incompleta e incorreta; a existência de amnésia espontânea seria,
portanto, implícita à experiência hipnótica. Entretanto, mesmo fora do
fenômeno hipnótico, haveria sempre múltiplas camadas de barreiras amnésticas,
já que na condução de comportamentos complexos, processos cognitivos
paralelos e materiais examinados não são necessariamente levados à
consciência, caracterizada por capacidade limitada de organização
narrativa dos eventos37,43 .
A análise da neurofisiologia da memória44,45
não aponta para barreiras mnésticas ou processos ativos de repressão de
informações (ainda que haja evidências de repressão de estados
afetivos)46, mas para a codificação fragmentada em diversas regiões corticais e subcorticais6; o próprio termo "recuperação" (retrieve) de informações vem sendo criticado, já que seu uso remete a um conceito de memória enquanto arquivo (ou storehouse)47.
Como
informações mnésticas são arquivadas de forma fragmentada, sua
"recuperação" na verdade envolve um processo ativo de interdigitação do
material arquivado com o estado cognitivo do sistema durante sua
recuperação. Desta forma, existe um viés de retrospecção que pode ser
acentuado ao longo do fenômeno hipnótico, durante o qual um ambiente
especial de recuperação de informações é criado e leva o indivíduo a
nomear mais facilmente experiências mentais como "memória". Em modelos
de processamento paralelo de informação, memórias não são arquivadas
como traços discretos, mas como superposições em memórias anteriores em
representações compostas. A distinção entre memória implícita e
explícita (ou não declarativa e declarativa) indica a presença de
sistemas biológicos separados (ainda que interagindo entre si) para o
processamento de informação; memória explícita depende do lobo temporal
medial, das estruturas diencefálicas e dos lobos frontais, enquanto
memória implícita depende de diferentes regiões corticais (por exemplo, priming)
e subcorticais (como no caso de habilidades motoras e núcleos da base).
A codificação de habilidades motoras específicas nos núcleos da base
aponta para sua função como responsáveis por sub-rotinas de
comportamento (um sistema cognitivo subordinado), ou "hábitos"
comportamentais desencadeados por estímulos específicos (como conduzir
um automóvel automaticamente) e coordenados por funções executivas
(primariamente frontais). No entanto, regiões ventrais dos núcleos da
base (incluindo o núcleo accumbens) fazem parte do sistema
límbico e participam do comportamento voltado a metas (e dos sistemas
dopaminérgicos de recompensa) e da vida emocional48,49.
Em
analogia à porção motora, a porção límbica dos núcleos da base poderia
codificar hábitos emocionais, sistemas de resposta emocional
subordinados, possivelmente associados a processos dissociativos e a
fenômenos comportamentais como atuação (acting out) e
repetição-compulsão. Isso reforça a importância dos lobos frontais na
transformação de memórias em uma estrutura narrativa (lesões frontais,
além de causar disfunção executiva, podem produzir amnésia de fonte – source amnesia –
e confabulação). Em resumo, a fragmentação da informação mnéstica não
aponta para um processo ativo de repressão, mas para um processo ativo
de reconstrução da memória em narrativa por sistemas modulados,
hierarquicamente estruturados.
A tensão entre
múltiplos módulos mentais inconscientes, razoavelmente independentes
entre si e capazes de um enorme processamento de informações e uma mente
consciente, de capacidade limitada e caracterizada por um fluxo único e
serial de informação – porém responsável por integrar estes diversos
módulos inconscientes e fazê-los aparentar unidade – é de grande
importância. Não é de se surpreender que o fenômeno hipnótico,
caracterizado pela monotonia, alusões ao sono e, ao mesmo tempo,
sugerindo a concentração do indivíduo no hipnotizador possa liberar
esses módulos subordinados; dessa forma, em vez de entender a hipnose
como devida à formação de barreiras amnésticas que escondem os processos
de controle da consciência, pode-se considerar o fenômeno como devido à
diminuição parcial do mecanismo de integração superior desses mesmos
módulos.
Tal hipótese implica considerar a
hipnose, sob o ponto de vista neuropsicológico, como um tipo de
disfunção executiva e consequente liberação de sub-rotinas de
comportamento arquivadas em regiões subcorticais, tais como os núcleos
da base. Conforme descrito acima, os núcleos da base podem participar do
arquivamento de memórias de habilidades motoras e sub-rotinas afetivas;
é possível imaginar subrotinas de comportamento afetivo encoberto
emergirem em situações clínicas e experimentais de diminuição da
atividade integrativa mental. A descrição de vivências dissociativas de
veteranos de guerra é um bom exemplo do fenômeno. Elas podem ser
desencadeadas pelo barulho de helicópteros civis em veteranos da guerra
do Vietnã, por exemplo. A resposta dissociativa pode incluir sentir-se
na selva, reviver a intensidade da exposição ao perigo com descarga
adrenérgica, reduzir qualitativamente o campo vivencial e experienciar
alucinações auditivas e visuais. O contexto existencial também
influencia o desenvolvimento dessas experiências de flashback e
dissociação; frequentemente veteranos de guerra do Vietnã não
desenvolvem sintomatologia de distúrbio de estresse pós-traumático logo
após retornar da guerra, mas anos após, quando têm filhos e família,
possivelmente conectando situações de sua vida cotidiana com observações
de violência durante a guerra (por exemplo, relembrando crianças mortas
no conflito).A inibição do sistema de supervisão neuropsicológica leva à
emergência de padrões de comportamento aparentemente contraditórios,
mas frequentemente observados em condições de disfunção executiva por
distúrbios neurológicos: uma rigidez comportamental caracterizada por
ausência de comportamentos espontâneos, autogerados (observada em lesões
do córtex cingulado, por exemplo), perseverança (observada em lesões da
convexidade frontal, por exemplo) e a tendência de pensamento e
comportamento serem desencadeados por estímulos impróprios e levados a
associações irrelevantes (como no caso de lesões orbitais)50-54.
O
empobrecimento do comportamento espontâneo, a tendência a associações
irrelevantes é descrita em sujeitos hipnotizados. A despeito de
desinibição inespecífica não ser característicamente descrita, estímulos
podem desencadear desinibição comportamental específica em determinados
indivíduos (em um modelo de aprendizado operante)55-57.
Paradoxalmente, há evidências de que indivíduos com alta
sugestionabilidade demonstram padrões de EEG consistentes com produção
mental de imagens – consistente com especulações de uma distinção
biológica entre respostas mais imaginativas vs. realistas58.
Parte da dificuldade em se definir hipóteses claras no campo da hipnose
provém da influência da escolha de escalas de vulnerabilidade à hipnose
nos resultados empíricos e, portanto, da mistura entre teoria e
mensuração59.
Como explicar a amnésia hipnótica sem utilizar o modelo de barreira mnéstica?
O fenômeno representa uma alteração na recuperação de informação, não
da codificação da memória. Entretanto, a recuperação de informações
arquivadas como memória semântica (ou episódica) envolve a utilização de
operações atribuíveis ao sistema de supervisão, capaz de integrar de
forma narrativa informações arquivadas de forma fragmentada37,60.
Portanto, embora muito da informação não seja arquivado em regiões
diretamente responsáveis por atividade supervisora, esse sistema é
responsável pela integração da memória no contexto geral da vida do
indivíduo. Para Shallice57, quando confrontado com um
problema não solucionável por sistemas de sub-rotina, os sistemas de
supervisão primeiramente formulariam descrições de como seriam dados
relevantes de memória, caso existentes. A seguir, essas descrições
seriam pareadas como os dados arquivados e aqueles considerados
relevantes, recuperados para verificar se realmente o são. Ciclos de
descrição, pareamento e verificação são análogos àqueles observados na
recuperação de material em CD-ROM em sistemas cibernéticos. A interação
entre córtex frontal e formação hipocampal provavelmente inclui a
mediação separada das propriedades temporais e representacionais das
cognições na produção de memórias (narrativas) de eventos e a
reconstrução flexível destes. Esse modelo é útil na análise da hipnose,
cuja interferência em sistemas supervisórios criaria vulnerabilidades em
processos mnésticos caracterizados pela formulação de descrições e
subsequente verificação (com o envolvimento de estruturas frontais e
temporais mediais, portanto), com a preservação de sub-rotinas
mnésticas, tais como o reconhecimento desencadeado por estímulos
ambientais. Amnésia hipnótica característicamente prejudica "lembrança
livre" (free recall) de eventos ao mesmo tempo que preserva
reconhecimento e memória implícita em tarefas como associação de
palavras. Indivíduos hipnotizados também mostram uma verificação ruim de
informação, seja por diminuição da discriminação entre dados corretos e
incorretos, seja por atribuição de igual certeza subjetiva a memórias
relativas a fatos reais e a fantasias (source amnesia)61.
Para Nicholas Spanos62,
os comportamentos observados em indivíduos hipnotizados ou com
diagnóstico de personalidade múltipla são baseados em processos
psicológicos semelhantes. Porém, ao contrário de considerá-los como
decorrentes de traumas, o pesquisador os define como papéis sociais -
construídos, legitimados, mantidos e alterados por meio de interação
social. Essa é a base da teoria sociocognitiva para a hipnose e
personalidade múltipla, que define comportamentos dissociativos como
representações ou dramatizações (enactments) responsivas a modelagem social.
Mais
de um século de pesquisa em hipnose não levou a provas conspícuas da
existência de um "estado hipnótico", porém há evidências de que
comportamentos "dramáticos" associados à hipnose podem ser executados
por voluntários não hipnotizados que não mostram evidências de terem
estado em um "estado de transe". Comportamentos hipnóticos seriam mais
condizentes com representações dirigidas a metas (goal-directed enactments)
e indivíduos altamente hipnotizáveis seriam aqueles capazes de
responder a interações interpessoais sutis e ao mesmo tempo se mostrar
mais motivados para cumprir com demandas sociais de situações de hipnose
para se apresentar como "bons" indivíduos. Sugestões para levantar o
braço seriam na verdade sugestões para usar habilidades cognitivas para
se comportar como se o braço estivesse levantando por si mesmo;
sugestões para amnésia, significariam não apenas falha na lembrança da
informação em questão, mas definir-se como tendo esquecido o material e,
portanto, criar o cenário contextual que inclua não apenas o
comportamento desencadeado, mas a experiência subjetiva apropriada62.
As experiências de Hilgard12,39
que levaram à hipótese do observador oculto foram desafiadas por
experimentos mais recentes que mostraram uma associação entre
comportamentos relacionados ao observador oculto e as expectativas
sociais indicadas pelas instruções nos experimentos63-65.
Quanto mais explícitas eram as instruções, mais frequentemente o
fenômeno do observador oculto era observado. As instruções indicavam, de
forma mais ou menos vaga, que eles possuiriam um Eu oculto capaz de
certas habilidades. Resultados semelhantes foram mostrados em situações
de regressão a vidas passadas, associada a medidas de hipnotizabilidade e
capacidade de fantasiar, mas não a sintomas de transtornos
dissociativos66.
Múltiplas
identidades seriam criações sociais, que incluiriam interações sociais
com terapeutas durante o fenômeno hipnótico, quando o indivíduo estaria
mais vulnerável à sugestão e à distorção de memória. Curiosamente, a
influência da sugestão na organização e modelagem de comportamentos
grupais já havia sido apontada por Freud67, ainda que em um contexto diferente.
A
teoria de Spanos considera que o transtorno dissociativo de identidade é
uma síndrome ligada à cultura e produzida pela interação entre agentes
microssociais (terapeutas) e macrossociais (mídia, livros, associações
de indivíduos com personalidade múltipla). Tais idéias causaram grande
controvérsia, principalmente quando o autor comparou o conceito de
personalidade múltipla a comportamento de bruxaria, identificada e
"tratada" (fisicamente eliminada) durante a Idade Média68.
Memórias de abuso infantil em indivíduos com tal diagnóstico seriam
decorrentes de comorbidade, do uso de história de abuso infantil para
justificar intervenções hipnóticas (e induzir personalidades múltiplas)
ou de confabulação após exposição a entrevistas nas quais tais relatos
são sugeridos e legitimados.
Spanos62
observa que amnésia não é invariavelmente observada durante a hipnose
e/ou em indivíduos com personalidade múltipla, mas atribui o fenômeno
(quando presente) à barreira amnéstica descrita acima, um fenômeno
ativo, também modelado por expectativas sociais. Suas idéias foram
abordadas na literatura, alvo de intensa controvérsia69-71 e contraditas por estudos empíricos de transtornos dissociativos72-74.
Um dos principais argumentos é que, apesar de modelagem social do
comportamento poder ser observada em situações experimentais, nenhum
desenho experimental foi capaz de gerar o transtorno de personalidade
múltipla. Infelizmente, o pesquisador não teve oportunidade de responder
a várias críticas devido à sua morte precoce e trágica.
Aspectos transculturais de experiências dissociativas
Embora
muito tenha sido escrito sobre aspectos transculturais das experiências
dissociativas, dados clínicos precisos e investigações estruturadas
ainda são claramente insuficientes. A análise transcultural dessas
experiências e dos transtornos dissociativos é relevante não apenas para
entender o fenômeno, mas para articular intervenções psicoterapêuticas
que possam ser justificadas em diferentes culturas. Como todo termo
psiquiátrico ou psicológico, "dissociação" é uma tentativa de membros de
um grupo social descrever e compreender o mundo em que vivem.
Entretanto, fenômenos dissociativos são construídos de maneira diferente
em diferentes momentos históricos e em diferentes grupos sociais75,76. É importante cautela, portanto, com a reificação do termo e a aceitação sem crítica de paradigmas ocidentais (europeus)77.
A
possessão por uma entidade espiritual e o transtorno de personalidade
múltipla podem ser considerados exemplos de como o processo dissociativo
pode ser reconstruído de maneira completamente diversa em culturas
diferentes. O DSM-IV7 separa o fenômeno de possessão
não-patológica, considerada parte normal de práticas culturais e
religiosas, da possessão como transtorno dissociativo em que o indivíduo
é tomado por um espírito ou divindade e se apresenta com sofrimento
psicológico e/ou diminuição da adaptação e desempenho social. O
diagnóstico é chamado de transtorno de transe dissociativo, porém
codificado com critérios diagnósticos sugeridos para estudos adicionais
em pesquisas subsequentes. O DSM-IV equaciona o fenômeno possessivo como
um estado involuntário de transe, não aceito como parte normal da
cultura ou das práticas religiosas do grupo ao qual o indivíduo
pertence. Estados de transe seriam caracterizados por alterações da
consciência e da atenção e associados a comportamentos não-complexos
(por exemplo, movimentos convulsivos, correr, cair). A possessão
espiritual seria associada a comportamentos mais complexos, inclusive
com o aparecimento de uma ou mais identidades alternativas (como
conversas coerentes, gestos e expressões faciais características).
Já a Classificação Internacional de Doenças, Décima Edição (CID-10)78, classifica transe e possessão dentro dos Transtornos Neuróticos e Relacionados a Estresse e Somatoformes.
Com
os dados atualmente disponíveis, é incerto se a associação entre
episódios de transe e de possessão espiritual (patológica ou não) é
sempre necessária, ainda que o transe seja verificado frequentemente
nestas experiências. A teoria sociocognitivista de Spanos68
pode ser utilizada para explicar o fenômeno, embora a complexidade do
fenômeno da alteração de consciência em transes seja abordada na
literatura79. Da mesma forma que muitos participantes de
sessões de hipnose parecem se apresentar como "bons indivíduos" para
procedimento, médiuns recebendo espíritos podem se apresentar como "bons
médiuns" e assumir papéis consistentes com esse comportamento. Conforme
descrito acima, a teoria sociocognitiva pode ser criticada, mas a
analogia entre o fenômeno hipnótico como uma ação dirigida a metas e a
mediunidade como atividade que preenche os requisitos de papéis sociais é
sugestiva. Em contraste, indivíduos com personalidade múltipla se
identificariam com papéis contraproducentes veiculados pela mídia
norte-americana, que legitimaria comportamentos negativos.
Richeport80
observou diversas similaridades entre atividades mediúnicas e aquelas
de indivíduos hipnotizados, tais como dissociação, uso positivo de
imaginação, e frequente amnésia para as experiências. As características
mais apreciadas nos médiuns são aquelas que facilitam interações
sociais, como dar conselhos amigáveis e oferecer apoio em situações de
dificuldade. Tais médiuns se comunicam eficazmente com outras pessoas e
demonstram poucos sintomas que possam ser considerados patológicos, além
de se submeter a treinamento intensivo e se colocar à disposição para
ajudar indivíduos doentes ou mentalmente desequilibrados, atividades não
consideradas um "passatempo de personalidade frágeis ou indivíduos
enganadores"75.
O diagnóstico
espiritual de "obsessão" e, ainda mais sério, de possessão corresponde a
uma disfunção atribuída a espíritos hostis nos círculos religiosos e
razão para procedimentos espirituais que visam o tratamento do indivíduo
e expulsão do espírito. O transtorno de personalidade múltipla é mais
frequentemente diagnosticado nos Estados Unidos do que em países como
Japão81, Inglaterra82 e Rússia83. Estes dados são criticados por autores69
que colocam em dúvida a capacidade diagnóstica de clínicos de outras
nações devido a seu suposto despreparo para o diagnóstico de
personalidade múltipla. Até o momento, nenhum estudo foi executado que
comparasse o diagnóstico de personalidade múltipla nos Estados Unidos
com o diagnóstico de possessão espiritual voluntária ou involuntária em
países como Brasil e Haiti.
A aparente maior
frequência do diagnóstico de personalidade múltipla seria decorrência de
altas taxas de abuso infantil nos Estados Unidos em contraste com
sociedades nas quais crianças são respeitadas e valorizadas69,75;
mas o argumento não se sustenta, considerando a triste realidade da
aviltação infantil no Brasil. Também é argumentado que o transtorno de
personalidade múltipla seria mais congruente com culturas nas quais o Eu
é "rico em fenomenologia e separado em existência" do que em culturas
que promovem a interdependência e o Eu social39. Os
parâmetros para avaliar e definir essas características socioculturais
são vagos, entretanto, principalmente ao se considerar a cultura de uma
nação não como entidade monolítica, mas como associação de diferentes
tonalidades e subgrupos mais ou menos integrados. Ainda que o transtorno
de personalidade múltipla seja uma experiência cultural, mais que
entidade clínica (correndo com essa asserção o risco de uma certa
reificação do fenômeno), estudos com testes e questionários padronizados
normalmente utilizados para diagnosticar transtornos dissociativos
graves (inclusive personalidade múltipla) mostram resultados
consistentes em populações norte-americanas, canadenses, belgas e
holandesas10,84,85. Tal informação sugere que personalidade
múltipla seja mais que uma síndrome ligada à cultura (ainda que
possivelmente magnificada por iatrogenia).
Equacionar
personalidade múltipla com possessão espiritual involuntária é um erro,
apesar de autores apontarem similaridades entre os dois fenômenos75.
O desenvolvimento mediúnico em indivíduos submetidos a treinamento
espiritual não produz pessoas com distúrbio crônico da integração da
personalidade*,86.
Ainda que o distúrbio de personalidade múltipla se afirme como entidade
clínica transcultural, os modelos teóricos desenvolvidos para sua
compreensão contém vieses da cultura de seus autores e correm o risco de
ser explicações locais para o fenômeno87,88, ainda que
travestidas de asserções universais devido à penetração e influência
científica norte-americana. Mais ainda, como a maior parte das
comparações diagnósticas se deu em países ocidentais (Europa e Canadá
principalmente), vieses relacionados a modelos culturais europeus podem
estar presentes na apresentação do distúrbio e elaboração de modelos
teóricos, levando a uma falsa universalidade, que apesar de
transnacional, pode, ainda assim, não ser transcultural devido a
correntes históricas e sociológicas comuns entre esses países.
Conclusão
A
compreensão da experiencia dissociativa e da origem dos transtornos
dissociativos é difícil devido à complexidade da questão. As
contradições de classificação são decorrentes das dificuldades de se
construir uma teoria da mente abrangente que unifique aspectos
neurobiológicos e psicodinâmicos. As teorias atuais focam aspectos
específicos do problema, mas ainda carregam as cores de sua cultura de
origem. A elaboração teórica e a comparação empírica de resultados entre
diferentes culturas devem produzir informações úteis. A integração da
neurobiologia e da psicodinâmica é fundamental para a compreensão do
fenômeno dissociativo, intimamente relacionado à natureza da mente
humana.
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Paulo Jacomo Negro Jr.
Commission on Mental Health Services
Community Outreach Branch
2700 Martin Luther King Jr. Ave, S.E.
Allison Bldg 4, 1st. Floor
Washington, D.C. 20032, EUA
Email: pjnegro@pol.net
Paulo Jacomo Negro Jr.
Commission on Mental Health Services
Community Outreach Branch
2700 Martin Luther King Jr. Ave, S.E.
Allison Bldg 4, 1st. Floor
Washington, D.C. 20032, EUA
Email: pjnegro@pol.net
1Médico assistente e professor de psiquiatria clínica - Commission on Mental Health Services, Washington, D.C., EUA.
2Residente em psiquiatria - Georgetown University, Washington, D.C., EUA.
3Médico assistente e coordenador do Projeto Esquizofrenia (Projesq) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clinicas da FMUSP.
* Negro Jr PJ, Palladino-Negro P, Sciullo D, Habib KE, Kay A, Louzã MR. Do religious mediumship dissociative experiences conform to the sociocognitive theory of dissociation? (no prelo)
2Residente em psiquiatria - Georgetown University, Washington, D.C., EUA.
3Médico assistente e coordenador do Projeto Esquizofrenia (Projesq) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clinicas da FMUSP.
* Negro Jr PJ, Palladino-Negro P, Sciullo D, Habib KE, Kay A, Louzã MR. Do religious mediumship dissociative experiences conform to the sociocognitive theory of dissociation? (no prelo)
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