Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul
Print version ISSN 0101-8108
Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul vol.28 no.3 Porto Alegre Sept./Dec. 2006
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-81082006000300011
ARTIGO DE REVISÃO
O que é metapsicologia científica?
Carlos Eduardo de Sousa Lyra
Psicólogo. Mestrando em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ. Bolsista, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Correspondência
RESUMO
No presente artigo, o autor procura apresentar as bases epistemológicas, metodológicas e conceituais para uma metapsicologia científica, que ofereceria um espaço teórico privilegiado para o diálogo entre a psicanálise e a neurociência. Assim, o autor considera os possíveis obstáculos à tentativa de estabelecer esse diálogo (complexo de Édipo e pulsão de morte) e também formula as principais questões levantadas pela metapsicologia científica. Dentre as questões apresentadas pelo autor, encontramos: a problemática pulsão versus instinto; os conceitos de representações e (quotas de) afetos; os fundamentos da teoria do recalque; e a relevância do conceito de compulsão à repetição.
Descritores: Psicanálise, neurociências, psicoterapia.
INTRODUÇÃO
A psicanálise, tradicionalmente, é dividida em teoria e prática. Ambas são complementares e, em geral, aparecem mescladas no trabalho do psicanalista. Contudo, é possível analisá-las de um ponto de vista didático, separando-as a fim de obter uma melhor compreensão das dimensões que compõem o universo da psicanálise. Nesse sentido, primeiramente, devemos esclarecer o que viria a ser a "teoria psicanalítica". Para tanto, podemos recorrer ao argumento utilizado por Laplanche1, de que a teoria psicanalítica pode ser dividida em dois níveis.
No nível I, temos as teorias sexuais infantis, isto é, "ideologias, mitos, formalizações que, como tais, não poderiam ser nem refutadas nem provadas pela psicanálise"1 (p. 83). Essas teorias são elaboradas no discurso dos próprios pacientes e, posteriormente, são sistematizadas pela psicanálise, vindo a constituir generalizações denominadas de complexos (por exemplo, complexo de Édipo, complexo de castração). Segundo Laplanche1, essas ficções costumam ser bastante criticadas pelos opositores da psicanálise.
Por outro lado, no nível II, temos a metapsicologia, um modelo teórico construído para descrever e explicar aquilo que é fornecido como dado no nível I. A metapsicologia, portanto, pretende ser uma teoria refutável e falsificável1. É nesse sentido que podemos sustentar a idéia de uma metapsicologia científica. Assim, alguns conceitos, como o de inconsciente, recalque, pulsão, entre outros, podem reivindicar sua natureza metapsicológica.
Tendo definido o que entendemos por "teoria psicanalítica", podemos contrapô-la à dimensão da prática psicanalítica. Esta pode ser dividida em uma práxis e uma teoria da técnica psicanalítica. A práxis envolve toda a dimensão ética da experiência psicanalítica, marcada por uma ética do desejo, que difere da ética moral. Essa práxis envolve conceitos como "desejo do analista" e "contratransferência", entre outros, e foi desenvolvida e aprofundada no ensino de Lacan. Segundo esse psicanalista, a ética é a "dimensão mais profunda do movimento do pensamento, do trabalho e da técnica analíticos"2 (p. 248). Por outro lado, temos a teoria da técnica, que abrange conceitos como "associação livre", "resistência", "transferência", "interpretação de sonhos e parapraxias", entre outros.
Muitos dos conceitos envolvidos na prática psicanalítica podem ser explicados do ponto de vista metapsicológico. Dentre os conceitos citados, destacamos o de "transferência" como principal instrumento da prática psicanalítica, sem o qual todo tratamento psicanalítico perde o seu sentido. A tendência da psicanálise atual é a de se concentrar na análise da transferência como instrumento privilegiado de trabalho, deixando de lado outros dispositivos técnicos, como, por exemplo, a interpretação de sonhos. Embora a transferência se coloque no centro de toda a prática psicanalítica, não podemos utilizá-la como instrumento único e exclusivo no processo psicanalítico, uma vez que os outros dispositivos citados devem auxiliar no andamento desse processo, inclusive no desenvolvimento do próprio vínculo transferencial.
Assim, uma vez estabelecida a divisão entre teoria e prática em psicanálise, não resta dúvidas de que a metapsicologia, enquanto teoria explicativa, pode reivindicar a qualidade de ser científica3. E é a partir da metapsicologia, enquanto modelo científico da mente, que a neurociência atual pode estabelecer um diálogo fecundo com a psicanálise4.
METODOLOGIA
No que diz respeito à metodologia, a psicanálise oferece um método próprio, baseado na observação empírica dos dados clínicos; podemos caracterizá-lo como um método hipotético-dedutivo. Freud elabora a metapsicologia a partir da observação dos pacientes, analisando seus discursos e remetendo-os a um modelo abstrato da mente (isto é, o "aparelho psíquico"); ou seja, ele formula hipóteses e deduz estruturas do psiquismo a partir das evidências clínicas. Por outro lado, a afirmação de que, em psicanálise, as teorias advêm da prática clínica pode não ser completamente verdadeira, pois Freud5 elaborou grande parte do que viria a ser a teoria psicanalítica antes mesmo da criação da própria psicanálise, em sua "Psicologia para neurologistas", texto publicado postumamente com o título de Projeto para uma psicologia científica (1895). Em outras palavras, podemos supor que Freud deduziu as estruturas básicas que compõem seu modelo de psiquismo a partir de sua experiência anterior como neurocientista e aprimorou esse modelo confrontando-o com os dados advindos da prática clínica, construindo, assim, a metapsicologia.
A neurociência, na época de Freud (final do século XIX e início do século XX), estava longe de fornecer instrumentos fidedignos e capazes de oferecer a comprovação biológica para as teorias elaboradas pelo psicanalista austríaco. Atualmente, no entanto, a situação é bem diferente: a neurociência evoluiu de maneira surpreendente nas últimas décadas do século XX, a ponto de oferecer, na atualidade, a possibilidade de observar o cérebro em pleno funcionamento. Trata-se de um momento sem precedentes na história da ciência, no qual os diversos ramos da neurociência, em conjunto, estão aptos a desvendar o mistério da mente.
O método neurocientífico, não obstante, diverge do psicanalítico por ser um método indutivo, baseado em experimentos passíveis de serem testados em laboratório. Isso imprime uma maior confiabilidade aos resultados obtidos por esse método; além de uma aceitação mais abrangente por parte da comunidade científica.
Se afirmamos que a metapsicologia freudiana pretende ser científica, então os resultados obtidos pelo método psicanalítico deveriam coincidir - senão totalmente, mas em grande parte - com os resultados fornecidos pelo método neurocientífico. Do contrário, a metapsicologia não poderia ser considerada uma teoria científica fidedigna. No entanto, se o que caracteriza uma teoria científica é sua possibilidade de ser refutada ou falsificada, é de se esperar que a metapsicologia possa vir a ser corrigida, ou modificada, pelos dados obtidos com o método neurocientífico. Essa possibilidade de confrontar o método psicanalítico com o método neurocientífico ofereceria à metapsicologia um duplo critério de verdade, dando subsídios para que as teorias elaboradas por Freud, e pelos demais psicanalistas, possam ser corroboradas ou refutadas pela neurociência atual. A junção dos dois métodos citados tem sido utilizada na investigação de pacientes com lesões neurológicas, constituindo um novo campo de estudos, denominado de neuropsicanálise6.
OBSTÁCULOS CONCEITUAIS
Não obstante, para poder reivindicar seu lugar como disciplina científica, a metapsicologia tem que, independentemente da neurociência, resolver suas próprias contradições internas. Nesse sentido, alguns conceitos em psicanálise parecem colocar obstáculos à realização de uma metapsicologia científica. Dentre esses conceitos, podemos apontar dois: o complexo de Édipo e a pulsão de morte.
O complexo de Édipo tornou-se o núcleo para o qual aponta toda tentativa de explicação causal dos fenômenos psíquicos em psicanálise. Freud afirmava que o complexo de Édipo era um conceito universal e necessário; contudo, esse conceito foi bastante criticado ao longo do tempo. Lacan, por sua vez, tentou resolver o problema ao conceber o complexo de Édipo como uma estrutura7,8. Embora a solução lacaniana pareça interessante como resposta às críticas recorrentes, o problema ainda persiste na medida em que o conceito de complexo de Édipo é utilizado como referência para explicar toda a gênese da sexualidade humana ou mesmo a gênese do sujeito.
Como vimos anteriormente, o conceito de complexo de Édipo deve ser classificado como teoria pertencente ao nível I, segundo a classificação de Laplanche1, sendo, assim, um conceito advindo das teorias sexuais infantis. Não se trata, portanto, de um conceito necessário, mas de uma generalização. Um exemplo disso é que a teoria psicanalítica winnicottiana é construída a partir de um paradigma não-edipiano9 e, contudo, não deixa de ter sua eficácia como teoria explicativa. Dessa forma, torna-se fundamental para a psicanálise limitar o uso do conceito de complexo de Édipo como chave-mestra capaz de abrir e fechar todas as portas1. É necessário restringir o conceito a alguns fenômenos clínicos.
Outro obstáculo conceitual ao avanço da metapsicologia é o conceito de pulsão de morte. Esse conceito não é compatível com a ciência biológica, principalmente no que diz respeito ao pensamento evolucionista, amplamente aceito pela comunidade científica. A evolução defende a propagação da vida, não admitindo, portanto, a existência de uma pulsão de morte que se opõe à vida e conduz o ser vivo ao inanimado10.
Uma proposta interessante seria a de tentar responder as questões levantadas por Freud com o conceito de pulsão de morte a partir do conceito de narcisismo. Segundo Maia11, os três determinantes do conceito de pulsão de morte em Freud são: 1) a compulsão à repetição; 2) os princípios de ligação-desligamento; e 3) a agressividade. De acordo com Maia11, o conceito de narcisismo seria suficiente para explicar os três determinantes acima relacionados, o que possibilitaria a rejeição do conceito de pulsão de morte. Nesse sentido, Maia aponta o narcisismo como sendo regulado pelo princípio de redução ao zero (a partir do conceito de compulsão à repetição), como sendo aquele pólo do psiquismo que empreende a negação da alteridade (através do desligamento pulsional) e que reage à dependência dos objetos (através da agressividade)11. Trata-se de uma argumentação útil, na medida em que se mostra plausível com a tentativa de estabelecer um diálogo com a biologia.
Assim, limitando o uso do conceito de complexo de Édipo e rejeitando o conceito de pulsão de morte, a psicanálise poderia avançar consideravelmente no diálogo com a neurociência, a partir de uma metapsicologia científica.
QUESTÕES FORMULADAS PELA METAPSICOLOGIA CIENTÍFICA
Tendo avaliado as dimensões epistemológica e metodológica, bem como os principais obstáculos conceituais à realização da metapsicologia enquanto teoria científica, passemos, então, ao exame das questões mais fundamentais que são formuladas pela metapsicologia científica.
Pulsão versus instinto
A questão do significado do conceito de Trieb na obra de Freud tem gerado algumas controvérsias3. Como veremos mais adiante, o problema da tradução a partir dos originais em alemão não raramente conduz a equívocos na interpretação da obra freudiana, principalmente no que se refere aos conceitos da metapsicologia.
A palavra Trieb pode ser traduzida como pulsão ou instinto. Outra palavra alemã, Instinkt, também é utilizada por Freud para se referir, neste caso, apenas ao instinto no seu sentido exclusivamente biológico. Apesar de reconhecer a diferença entre Trieb e Instinkt, Andrade3 propõe que se traduza Trieb como instinto, pois acredita, entre outras coisas, que o termo é menos inadequado, mais simples e mais fiel aos escritos de Freud. Por outro lado, boa parte dos psicanalistas traduz Trieb como pulsão. Esta será nossa posição neste artigo.
Independentemente, portanto, da tradução utilizada, parece haver argumentos suficientes para considerar o conceito de Trieb como distinto de Instinkt. A pulsão se diferencia do instinto biológico na medida em que agrega qualidades psicológicas a este último. Somente a pulsão possui plasticidade, é capaz de se adaptar a uma infinidade de objetos. A pulsão é aquilo que movimenta um sujeito em direção a um objeto.
Essa plasticidade da pulsão está associada à própria plasticidade neural. O ser humano é o único animal que nasce com o cérebro imaturo. Os demais animais agem por instinto. A influência do ambiente na maturação do cérebro humano é extraordinária, o que o levou a desenvolver habilidades e capacidades cognitivas sem precedentes na cadeia evolutiva.
Assim, podemos dizer que a pulsão sexual (libido) se diferencia do instinto sexual, pois, diferentemente dos animais, a sexualidade humana não está apenas a serviço da reprodução e da conservação da espécie, mas é perversa, ou seja, vai além da genitalidade e adquire um caráter mais amplo12. Da mesma forma, o instinto de autoconservação é ampliado na pulsão de conservação do indivíduo biopsíquico, ou seja, no conceito de pulsão do ego. De uma maneira mais resumida, podemos dizer que a pulsão do ego está para a libido assim como a conservação do indivíduo biológico está para a conservação da espécie11.
Representações e afetos
De acordo com a metapsicologia freudiana, a pulsão só se manifesta, no psiquismo, na forma de representantes psíquicos, que são de duas naturezas distintas: representações e quotas de afeto3.
As representações psíquicas são inscrições que se apresentam como traços mnêmicos e determinam apenas o fator qualitativo referente às idéias e pensamentos13. Há apenas dois tipos de representações: as representações de coisa, que são restritas ao sistema inconsciente; e as representações de palavra, que são componentes qualitativos restritos ao sistema pré-consciente/consciente13.
As quotas de afeto, por sua vez, são os representantes quantitativos do psiquismo13,14. As quantidades atribuídas às quotas de afetos podem variar de acordo com a intensidade da experiência inscrita na forma de traço mnêmico, ou representação, no psiquismo. Apenas as quotas de afeto, enquanto representantes psíquicos, podem transitar do sistema inconsciente para o sistema pré-consciente/consciente13,14.
É importante ressaltar que "a quota de afeto se distingue do afeto propriamente dito, uma vez que a primeira diz respeito à quantidade de energia psíquica, enquanto o segundo é a percepção de uma descarga desta energia, que atinge o somático. É por isso que Freud não considera a existência de afetos inconscientes, uma vez que toda percepção deve passar necessariamente pela consciência. Contudo, podemos falar de quota de afeto inconsciente"15 (p. 86).
Freud expressou claramente as dificuldades relacionadas ao estudo dos afetos13,16. Assim, o estudo dos afetos parece ter sido, de certa forma, colocado em segundo plano pela psicanálise. Segundo Green17, isso se deve à "ausência de uma teoria psicanalítica do afeto satisfatória" (p. 8). Dentre os afetos estudados por Freud, a ansiedade (Angst) é, sem dúvida, o mais profundamente investigado16,18. Freud ressalta a importância do afeto para a teoria psicanalítica como um todo e, em particular, para a teoria do recalque. Por outro lado, não desenvolve suficientemente a problemática do afeto, deixando em aberto muitas questões a respeito dos conceitos envolvidos "nessa região obscura"16 (p. 462).
Teoria do recalque
Tendo delineado alguns dos conceitos básicos da metapsicologia freudiana, passemos à teoria do recalque, fundamento maior da teoria psicanalítica19. É importante, antes de tudo, distinguir entre os conceitos de recalque, repressão e supressão, visto que, não raro, o uso impreciso de tais conceitos pode causar desde falhas sutis na compreensão até mal-entendidos que comprometem o entendimento correto da metapsicologia15.
Para evitar a possibilidade de confusão, definiremos previamente os termos que serão utilizados em nossa discussão. Assim, utilizaremos o termo recalque, traduzido do francês refoulement, para nos referirmos apenas ao recalque originário ou primário (do alemão Urverdrängung; do francês refoulement originaire; do inglês primal repression). Por sua vez, utilizaremos os termos, traduzidos do inglês, repressão (do alemão Verdrängung; do francês refoulement; do inglês repression) e supressão (do alemão Unterdrückung; do francês répression; do inglês supression) para nos referirmos, respectivamente, ao recalque secundário e à "operação psíquica que tende a fazer desaparecer da consciência um conteúdo desagradável ou inoportuno: idéia, afeto, etc."20 (p. 457). A escolha desse procedimento em particular visa simplificar o entendimento dos conceitos ao associá-los, em cada caso, a apenas um vocábulo.
Dessa maneira, tendo definido os termos com os quais iremos trabalhar, podemos iniciar nossa discussão a respeito da teoria do recalque.
O recalque (originário) é o responsável pela divisão ou clivagem do aparelho psíquico em dois grandes sistemas: o inconsciente (Ics) e o pré-consciente/consciente (Pcs/Cs). Estamos, portanto, nos referindo ao inconsciente em seu sentido sistemático13,21. Em um primeiro momento, poderíamos dizer que as principais características do Ics é que o mesmo funciona sob o princípio do prazer-desprazer e pelo processo primário (ver argumentação mais adiante), admitindo apenas representações de coisa em seu interior13; é também o local onde se originam as quotas de afeto. O recalque (originário) é o responsável pelo aparecimento da linguagem e do processo de tradução1 - ou reinscrição do traço mnêmico (de acordo com a "hipótese tópica") - que permitirá reinscrever as representações de coisa (próprias do Ics) em representações de palavra (no Pcs/Cs). Há fortes razões para se atribuir à região cerebral do hipocampo a função relacionada ao recalque (originário)15. Dentre essas razões, podemos afirmar que: 1) o hipocampo é responsável por traduzir as memórias implícitas (inconscientes) em memórias declarativas ou explícitas (conscientes); 2) a maturação do hipocampo se dá em torno dos 2 anos de idade, coincidindo com o aparecimento da linguagem verbal15.
A repressão (ou recalque secundário) é a "operação pela qual o sujeito procura repelir ou manter no inconsciente representações (pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão"20 (p. 430). Nesse sentido, o que é repelido e mantido em estado inconsciente é uma representação de palavra que, outrora, teria sido, ao menos uma vez, consciente. Estamos falando, portanto, de um inconsciente dinâmico21. Segundo Izquierdo22, "trata-se de memórias declarativas, quase sempre episódicas, que o indivíduo simplesmente decide ignorar, e cuja evocação suprime, muitas vezes durante décadas" (p. 30). O conteúdo dessas memórias reprimidas são desagradáveis para o ego, por isso são tornadas inconscientes (de acordo com a "hipótese funcional"). Contudo, podem retornar à consciência através de um trabalho de associação livre, em psicanálise ou, em alguns casos, espontaneamente22. Esses conteúdos, ou representações de palavra, segundo Freud, são atraídos pelo núcleo do Ics14, que foi submetido ao recalque (originário). Segundo Izquierdo, "a repressão envolve provavelmente sistemas corticais capazes de inibir a função de outras áreas corticais ou do hipocampo"22 (p. 31). Essa possível relação com o hipocampo poderia corroborar a hipótese freudiana da relação entre a repressão (recalque secundário) e o recalque (originário). Já a provável relação com a inibição da função de outras áreas corticais foi comprovada recentemente por Ramachandran no exame de pacientes com anasognosia, mostrando mais precisamente a importância da relação entre os hemisférios cerebrais na produção de alguns dos mecanismos de defesa descritos por Freud6.
A supressão, por sua vez, já descrita anteriormente, está relacionada com a memória de trabalho e, portanto, com o córtex pré-frontal22. Essa região privilegiada do córtex cerebral é responsável pela evocação de memórias, que "dura desde poucos segundos até, no máximo, 1-3 minutos"22 (p. 51). O córtex pré-frontal também está relacionado com a percepção e a atenção e também tem ligações com o hipocampo22. Poderíamos relacionar o córtex pré-frontal e sua função de evocar memórias com o que Freud denomina de sistema percepção-consciência (Pcpt - Cs)23 ou antigo sistema de neurônios ω5. Seria, portanto, a região responsável pela percepção e pela consciência. Essa região, sem dúvida, funciona sob o princípio de realidade, pelo processo secundário. Também não há dúvidas de que uma representação de palavra só pode se tornar consciente se for investida de uma determinada quota de afeto15. Podemos chamar de inconsciente, no sentido descritivo13,21, toda representação que está fora da consciência (Pcpt - Cs).
Uma vez definidos o que chamamos de recalque, repressão e supressão, também definimos os sentidos sistemático, dinâmico e descritivo do termo "inconsciente". Da mesma forma, definimos o que seria a consciência (Pcpt - Cs). Resta, portanto, dizer o que seria o pré-consciente. Para isso, também temos que levar em consideração o sentido dinâmico ("hipótese funcional") e dizer que o pré-consciente é a região cujo conteúdo se encontra entre o que é suprimido pela consciência e o que foi submetido à repressão (recalque secundário).
Definimos, portanto, a primeira tópica freudiana (inconsciente, pré-consciente e consciente). No entanto, surgem algumas questões. Primeiramente, sabemos que o processo primário, bem como o princípio de prazer/desprazer, é próprio do sistema Ics; por outro lado, não resta dúvida de que o processo secundário, juntamente com o princípio de realidade, atua na consciência (sistema Pcpt - Cs). No entanto, entre esses dois sistemas, há uma zona intermediária, formada pelo pré-consciente e pelo inconsciente dinâmico, que parece problemática. Podemos chamar esta região de zona defeituosa.
Segundo Laplanche & Pontalis20, "assim como certos conteúdos do inconsciente, como assinalou Freud, são modificados pelo processo secundário (por exemplo, as fantasias), também elementos pré-conscientes podem ser regidos pelo processo primário (restos diurnos no sonho, por exemplo). De modo mais geral, podemos reconhecer nas operações pré-conscientes, sob o seu aspecto defensivo, o domínio do princípio de prazer e a influência do processo primário" (p. 351).
Assim, parece que, para resolver o problema atribuído a essa zona defeituosa, temos que admitir a hipótese de que o inconsciente dinâmico funcionaria, por atração e por adesão ao sistema Ics14, pelo processo primário e sob o princípio de prazer/desprazer; e que o pré-consciente, por sua vez, funcionaria pelo processo secundário e sob o princípio de realidade, devido à possibilidade de se tornar consciente; embora, em ambos os casos, como vimos, haja exceções20. Dessa forma, encontramos uma solução parcimoniosa para o problema do que chamamos de zona defeituosa.
Outra questão que surge - mas que não se trata de um problema no mesmo sentido que o anterior - é a diferença entre o que chamamos de repressão e supressão. Nesse caso, a diferença é apenas dinâmica. O que é reprimido é apenas o que foi suprimido da consciência num grau mais elevado e por motivos mais fortes. Ora, o que é suprimido da consciência e apenas se torna pré-consciente não está senão obedecendo a uma tendência natural e adaptativa da consciência22, que não suportaria uma grande quantidade de representações (memórias) funcionando ao mesmo tempo15. A supressão, portanto, bem como o esquecimento, nesse sentido, é um processo necessário22. Já o que foi reprimido, o foi num sentido bem mais forte que o simplesmente suprimido - foi repelido (de acordo com a "hipótese funcional") pela consciência num grau mais elevado, devido ao conteúdo desagradável que ameaçaria a integridade do ego. Portanto, podemos afirmar mais uma vez que, ao que nos parece, a diferença entre o reprimido e o suprimido é apenas dinâmica.
Outras questões
Outra questão de interesse para a realização de uma metapsicologia científica seria o exame da natureza do Ics e sua relação com as memórias implícitas (emocionais e procedurais). Nesse sentido, pode-se investigar a relevância do conceito de inconsciente procedural24 para a psicanálise, como também propor uma diferenciação desse conceito em relação ao inconsciente emocional, definindo o papel desempenhado pelas memórias procedurais, emocionais e traumáticas na gênese de uma teoria do trauma e, mais especificamente, na compreensão do conceito de compulsão à repetição10.
A abordagem do conceito de compulsão à repetição empreendida por Freud10 em Além do princípio de prazer (1920) vem trazer problemas para a concepção metapsicológica do aparelho psíquico desenvolvida até então. Com a introdução do conceito de compulsão à repetição, teremos que admitir algumas modificações na compreensão do Ics enquanto sistema. Primeiramente, começaremos por questionar o que, num primeiro momento (em trecho acima), parecia inquestionável: que o Ics funciona pelo processo primário. Considerando a diferenciação entre o sistema Ics - possibilitado a partir da existência do recalque (originário) - e o inconsciente dinâmico - submetido à repressão (ou recalque secundário) -, teríamos que admitir, seguindo uma nova hipótese, que o Ics funcionaria simplesmente por compulsão à repetição, enquanto o inconsciente dinâmico é que, de fato, funcionaria pelo processo primário. Essa nova abordagem só se sustenta na medida em que se atribui à compulsão à repetição o papel de "resistência do inconsciente"25, ou seja, essa compulsão seria a responsável pela atração exercida pelo Ics sobre as representações reprimidas através do processo de repressão (ou recalque secundário)18. Essa hipótese parece interessante, mas, ao mesmo tempo, também se apresenta como um problema, na medida em que temos que rever o modelo defendido até então. Laplanche25 adota essa hipótese, considerando o inconsciente reprimido como um dos dois níveis do sistema Ics, e, mais precisamente, aquele nível que, de fato, funciona pelo processo primário. O outro nível do Ics, segundo Laplanche25, seria formado pelas representações submetidas ao recalque (originário), ou seja, aquelas representações originais que jamais passaram pela consciência, isto é, que sempre foram inconscientes15. Laplanche as chamará de representações-coisa (num sentido diferente das "representações de coisa")25.
É por conta desses problemas que apresentamos acima que Freud adota a denominação id, derivada do modelo estrutural da segunda tópica21, para se referir ao antigo sistema Ics, da primeira tópica20.
Assim, podemos relacionar o conceito de representação-coisa com as memórias implícitas em geral15, atribuindo-as a característica principal de funcionarem segundo uma compulsão à repetição10.
Por último, parece importante, ainda, considerar o avanço da neurociência na compreensão do mecanismo de formação dos sonhos6,26, que tem confirmado algumas das hipóteses freudianas sobre o processo de elaboração onírica23.
CONCLUSÃO
Apontamos, neste estudo, a metapsicologia como espaço teórico privilegiado para realização de um diálogo produtivo entre a psicanálise e a neurociência. Mostramos, assim, a importância de um estudo aprofundado da metapsicologia freudiana, bem como das contribuições de outros teóricos da psicanálise à mesma. Reconhecemos as limitações do modelo metapsicológico freudiano, isto é, a existência de alguns problemas conceituais que devem ser resolvidos pelos teóricos pós-freudianos; no entanto, isso não impossibilita a tentativa de dialogar com a neurociência, na medida em que o caráter de ser passível à refutação ou falsificação é que faz da metapsicologia uma teoria científica1. É necessário, portanto, empreender novas revisões e efetuar eventuais acréscimos à metapsicologia, para que esta continue oferecendo um modelo adequado tanto para a reflexão acerca da prática clínica quanto para o diálogo com a neurociência, de modo que possamos chamá-la de metapsicologia científica.
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