sábado, 18 de agosto de 2012

Revisão da literatura
O modelo estrutural de Freud e o cérebro: uma proposta de integração entre a
psicanálise e a neurofisiologia
From Freud’s theories to brain function: integrating psychoanalysis and neurophysiology
Andréa Pereira de Lima1
1Universidade Federal de Uberlândia (UFU), União Educacional de Minas Gerais (Uniminas).
Recebido: 20/7/2009 – Aceito: 22/10/2009
Resumo
Contexto: Trabalhos recentes mostram que as visões psicanalítica e neurocientífica podem ser complementares e mutuamente enriquecedoras. Esses trabalhos
indicam não só a viabilidade, mas a necessidade de reavaliar o legado psicanalítico de Freud, com uma abordagem conciliadora entre a psicanálise e a neurociência.
Objetivo: Apresentar uma proposta de integração entre a segunda tópica de Freud e o encéfalo, na tentativa de estabelecer um diálogo entre a psicanálise e
a neurofisiologia, para melhor compreensão da mente humana. Método: Pesquisa bibliográfica e reflexão crítica sobre os dados obtidos. Resultados: Considerando
as clássicas descrições de Freud, o id estaria relacionado aos circuitos neurais filogeneticamente mais antigos, como os circuitos do tronco cerebral, o feixe
prosencefálico medial, a amígdala medial, o septo pelúcido, o hipotálamo, o núcleo acumbens, o estriado e os núcleos talâmicos. O superego, como um freio
modulador dos interesses motivacionais/pulsionais do id, estaria representado principalmente pelo núcleo central da amígdala e pelo córtex da ínsula. O ego,
como o mediador entre as forças que operam no id, no superego e as exigências da realidade externa, estaria relacionado principalmente ao córtex pré-frontal,
considerado atualmente a sede da personalidade, importante para a tomada de decisões e ajuste social do comportamento. Conclusão: O modelo de integração
aqui proposto não representa, em absoluto, um modelo completo, acabado, mas constitui um diálogo fértil entre a psicanálise e a neurociência, indicando que
as clássicas descrições de Freud sobre a mente têm lugar perfeitamente na neurofisiologia de hoje.
Lima AP / Rev Psiq Clín. 2010;37(6):270-7
Palavras-chave: Freud, psicanálise, neurofisiologia, neurociências, neurobiologia.
Abstract
Background: Recent studies show that psychoanalytical and neuroscientific contributions to the understanding of human emotions and behavior can be
complementary, and the interaction between these two approaches can be fruitful for both perspectives. Objective: We revisited Freud’s “structural model and
encephalus”, and propose and integrated reading of related psychoanalytical and neurobiological theories. Method: Bibliographic search and critical reflection
about the selected papers. Results: Considering Freud’s classical descriptions, the id would be related to phylogenetically primitive neural circuits, such as the
brain stem, the medial fasciculus of the forebrain (prosencephalon), medial amygdala, septum pellucidum, hypothalamus, nucleus accumbens, basal ganglia
and thalamic nuclei. The superego, as a modulator of id’s drive/motivations, would be represented mainly by the central nuclei of the amygdala and the insular
cortex. The ego, as a mediator between the forces that operate between the id, the superego and the demands of external reality, would be related mainly to the
prefrontal cortex, which is nowadays considered as one the underpinning of personality, given its importance to behaviors involving decision making and social
adjustment. Discussion: These preliminary notions illustrate the authors’ point of view from an integrative reading of psychoanalysis and neuroscience.
Lima AP / Rev Psiq Clín. 2010;37(6):270-7
Keywords: Freud, psychoanalysis, neurophysiology, neurosciences, neurobiology.
Endereço para correspondência: Universidade Federal de Uberlândia. Campus Umuarama. Av. do Pará, 1720, bloco 2A, Área de Ciências Fisiológicas, sala 120 –Secretaria – 38400-902 –
Uberlândia, MG. Telefax: (34) 3218-2200. E-mail: apljh@hotmail.com
Introdução
Freud empregou a palavra “aparelho” para definir uma organização
psíquica dividida em sistemas, ou instâncias psíquicas, com funções
específicas, que estão interligadas entre si, ocupando certo lugar na
mente. Assim, o modelo tópico designa um “modelo de lugares”;
Freud formulou primeiramente a primeira tópica, conhecida como
Teoria Topográfica, e posteriormente apresentou a segunda tópica,
conhecida como Teoria Estrutural ou Dinâmica. Na primeira tópica
de Freud, o aparelho psíquico é composto por três sistemas:
o inconsciente, o pré-consciente e o consciente. Segundo Freud, o
consciente é somente uma pequena parte da mente, incluindo tudo
aquilo de que estamos cientes num dado momento. Do ponto de
vista tópico, o sistema percepção-consciência está situado na periferia
do aparelho psíquico, recebendo, ao mesmo tempo, as informações
do mundo exterior e as provenientes do interior. O pré-consciente
foi concebido como articulado com o consciente e funciona como
uma espécie de barreira que seleciona aquilo que pode ou não
passar para o consciente. O pré-consciente seria uma parte do inconsciente
que pode tornar-se consciente com relativa facilidade, ou
seja, seus conteúdos são acessíveis, podem ser evocados e trazidos
à consciência. O sistema inconsciente designa a parte mais arcaica
do aparelho psíquico. Segundo Freud, por herança genética, existem
elementos instintivos ou pulsões, acrescidos das respectivas energias.
No inconsciente estariam os elementos instintivos não acessíveis à
consciência. Além disso, há também material que foi excluído da
consciência pelos processos psíquicos de censura e repressão. Esse
conteúdo “censurado” não é permitido ser lembrado, mas não é
perdido, permanecendo no inconsciente. Para Freud, a maior parte
do aparelho psíquico é inconsciente. Ali estão os principais determinantes
da personalidade, as fontes da energia psíquica e as pulsões ou
instintos1. Cabe aqui uma explicação sobre o que Freud denomina
pulsões ou instintos. A pulsão consistiria numa espécie de energia
psíquica que tende a levar o indivíduo à ação, para aliviar a tensão
resultante do acúmulo de energia pulsional. Trata-se de um conceito
fronteiriço entre o somático e o psíquico. Freud descreveu duas forças
pulsionais opostas: a sexual (erótica ou fisicamente gratificante)
e a agressiva ou destrutiva. Suas descrições encararam essas forças
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antagônicas, ou como mantenedoras da vida ou como incitadoras
da morte, respectivamente. Tal antagonismo não costuma ser visível
ou consciente, e a maioria de nossos pensamentos e ações é evocada
por essas duas forças instintivas em combinação1.
Insatisfeito com o “Modelo Topográfico”, porquanto esse não
conseguia explicar muitos fenômenos psíquicos, Freud elaborou
uma segunda teoria, a segunda tópica. Na segunda tópica, Freud
estabeleceu a sua clássica concepção do aparelho psíquico, conhecido
como “modelo estrutural” ou “dinâmico”, tendo em vista que a palavra
“estrutura” significa um conjunto de elementos que têm funções
específicas, porém que interagem permanentemente e se influenciam
reciprocamente. Essa concepção estruturalista ficou cristalizada em
“O ego e o id”, de 1923, e consiste em uma divisão da mente em três
instâncias psíquicas: o id, o ego e o superego2.
O id segundo Freud
O id foi concebido como um conjunto de conteúdos de natureza
pulsional e de ordem inconsciente, constituindo o polo psicobiológico
da personalidade. É considerado a reserva inconsciente dos
desejos e impulsos de origem genética, voltados para a preservação
e propagação da vida. Contém tudo o que é herdado, que se acha
presente no nascimento, acima de tudo os elementos instintivos que
se originam da organização somática. Do ponto de vista “topográfico”,
o inconsciente, como instância psíquica, virtualmente coincide com o
id. Portanto, os conteúdos do id, expressão psíquica das pulsões, são
inconscientes, por um lado hereditários e inatos e, por outro lado,
adquiridos e recalcados. Do ponto de vista “econômico”, o id é, para
Freud, a fonte e o reservatório de toda a energia psíquica do indivíduo,
que anima a operação dos outros dois sistemas (ego e superego).
Do ponto de vista “dinâmico”, o id interage com as funções do ego
e com os objetos, tanto os da realidade exterior como aqueles que,
introjetados, habitam o superego. Do ponto de vista “funcional”, o id
é regido pelo princípio do prazer, ou seja, procura a resposta direta e
imediata a um estímulo instintivo, sem considerar as circunstâncias
da realidade. Assim, o id tem a função de descarregar as tensões
biológicas, regido pelo “princípio do prazer”2.
O ego segundo Freud
O ego se desenvolve a partir da diferenciação das capacidades
psíquicas em contato com a realidade exterior. Sua atividade é, em
parte, consciente (percepção e processos intelectuais) e, em parte,
pré-consciente e também inconsciente. É regido pelo princípio da
realidade, que é o fator que se incumbe do ajustamento ao ambiente
e da solução dos conflitos entre o organismo e a realidade. O ego lida
com a estimulação que vem tanto da própria mente como do mundo
exterior. Desempenha a função de obter controle sobre as exigências
das pulsões, decidindo se elas devem ou não ser satisfeitas, adiando
essa satisfação para ocasiões e circunstâncias mais favoráveis ou
reprimindo parcial ou inteiramente as excitações pulsionais. Assim,
o ego atua como mediador entre o id e o mundo exterior, tendo
que lidar também com o superego, com as memórias de todo tipo e
com as necessidades físicas do corpo. Como o ego opera de acordo
com o princípio da realidade, seu tipo de pensamento é verbal e se
caracteriza pela lógica e pela objetividade. Dinamicamente, o ego é
pressionado pelos desejos insaciáveis do id, pela severidade repressiva
do superego e as ameaças do mundo exterior. Assim, a função do ego
é tentar conciliar as reivindicações das três instâncias a que serve,
ou seja, o id, o mundo externo e o superego. Para Freud, estamos
divididos entre o princípio do prazer (que não conhece limites) e
o princípio de realidade (que nos impõe limites). Com referência
aos acontecimentos externos, o ego desempenha sua função armazenando
experiências sobre os diferentes estímulos na memória e
aprendendo a produzir modificações convenientes no mundo externo
em seu próprio benefício. A teoria psicanalítica procura explicar a
gênese do ego como um sistema adaptativo, diferenciado a partir do
id em contato com a realidade exterior2.
O superego segundo Freud
O superego desenvolve-se a partir do ego, em um período que
Freud designa como período de latência, situado entre a infância
e o início da adolescência. Nesse período, forma-se nossa personalidade
moral e social. O superego atua como um juiz ou um
censor relativamente ao ego. Freud vê na consciência moral, na
auto-observação, na formação de ideais, funções do superego.
Classicamente, o superego constitui-se por interiorização das
exigências e das interdições parentais. Num primeiro momento,
o superego é representado pela autoridade parental que molda o
desenvolvimento infantil, alternando as provas de amor com as
punições, geradoras de angústia. Num segundo tempo, quando a
criança renuncia à satisfação edipiana, as proibições externas são
internalizadas. Esse é o momento em que o superego vem substituir
a instância parental por intermédio de uma identificação da
criança com os pais. Freud salientou que o superego não se constrói
segundo o modelo dos pais, mas segundo o que é constituído pelo
superego deles. O superego estabelece a censura dos impulsos que
a sociedade e a cultura proíbem ao id, impedindo o indivíduo de
satisfazer plenamente seus instintos e desejos. É o órgão psíquico
da repressão, particularmente a repressão sexual2.
Freud e a neurobiologia
Há poucas décadas, muitos cientistas consideraram que a psicanálise
não fornecia hipóteses confiáveis, merecedoras de crédito, por não
ter, como método principal de pesquisa, a experimentação controlada
de laboratório, mas somente o encontro clínico no consultório. Os
tratamentos medicamentosos ganharam terreno e a biologização
irrestrita do entendimento das afecções psíquicas não cansou de
anunciar a morte iminente da teoria construída por Freud3.
Felizmente, conquistas recentes da neurobiologia, relativas a
questões caras aos psicanalistas, como a consciência, a memória,
a percepção, processos mentais inconscientes, a pulsão, o desejo, a
sexualidade, entre outros, começam a estar disponíveis para melhor
compreensão da psicanálise4. Para Kandel, a neurobiologia evoluiu
significativamente nas últimas décadas e atualmente apresenta
um corpo de dados que não só permite uma convergência entre a
neurobiologia e a psicanálise, mas também seria benéfico para uma
consolidação mais científica do corpo teórico-técnico da psicanálise.
O autor vai além disso: ressalta que um diálogo genuíno entre a
psicanálise e a biologia é necessário caso se pretenda alcançar uma
compreensão profunda da mente4. O próprio Freud previa ser a
biologia um campo de possibilidades ilimitadas que poderia embasar
o edifício da teoria psicanalítica.
Na resenha do livro Um diálogo entre a psicanálise e a neurociência,
do autor V. M. Andrade, os autores citam que Andrade reconta
a história da psicanálise, destacando a neurologia em Freud e sua
convicção de que fazia ciência natural5. Em 1895, em Projeto para uma
psicologia científica6, Freud fez uma tentativa de construir um modelo
da mente humana com base nos mecanismos neurobiológicos até
então conhecidos. Em seu esforço de elaborar uma psicologia que se
aproximasse das ciências naturais, ele elaborou teorias inovadoras que
até hoje permanecem como a base teórica da psicanálise. Entretanto,
muitos, senão quase todos, dos seus inovadores conceitos ficaram
relegados por muito tempo ao campo da metapsicologia. Como foi
citado anteriormente, felizmente, as descrições atuais das funções
encefálicas parecem poder integrar o quadro teórico proposto por
Freud. Durante as últimas décadas, numerosas investigações no
campo da neurociência têm apresentado dados que corroboram uma
frutífera associação entre a psicanálise e a neurociência4,7,8.
Em seu trabalho, Soussumi9 descreve muito bem a falta de uma
visão integrativa do ser humano que existe no estudo da neurociência
e da psicanálise, em virtude da educação e da cultura fundamentadas
no paradigma da fragmentação. Segundo o autor, essa visão fragmentada
conduz à perda da visão do todo. O autor salienta que a junção
entre neurociência e psicanálise permite a integração mente-corpo
como um todo inseparável, em que é possível constatar a existência
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de um encadeamento contínuo entre manifestações corporais e
psíquicas, de forma indissociável9.
Sempre existiram, no meio psicanalítico, aqueles que se interessaram
em buscar fazer correlações entre a neurociência e os
conhecimentos adquiridos na investigação psicanalítica. Com isso,
puderam ser mostradas as contribuições que a psicanálise poderia dar
para um enriquecimento mútuo nas investigações neuropsicológicas
e traduzir em termos psicanalíticos as conquistas neurocientíficas10.
O desenvolvimento da neurociência começa a tornar realidade o
vaticínio de Freud de que no futuro as hipóteses psicanalíticas seriam
explicadas pela biologia11.
As aquisições recentes da neurobiologia indicam que a neuroplasticidade
pode ser um dos caminhos para a reconciliação entre
a psicanálise e a neurociência7. Dentre os achados neurocientíficos
no âmbito do psiquismo, destaca-se a ação da relação afetiva sobre
circuitos neurais de bebês, os quais podem sofrer atrofia cerebral se
cuidados inadequadamente. Também há evidências de que métodos
psicológicos podem promover modificações no cérebro. Este ponto é
de especial interesse para a psicanálise, cujo método se baseia numa
relação afetiva (transferência)11.
Recentes avanços no estudo interdisciplinar da emoção também
indicam possibilidades de uma aproximação bem-sucedida entre a
psicanálise e a neurociência. O conhecimento atual dos mecanismos
psicobiológicos, por meio dos quais, por exemplo, o hemisfério
direito processa informações sociais e emocionais em níveis subconscientes
e mediante os quais o córtex orbitofrontal regula o afeto e a
motivação, permite uma compreensão mais profunda da “Estrutura
Psíquica” formulada por Freud12.
A descrição tradicional de inconsciência como concebida por
Freud é de significância histórica e não somente ganhou ampla
aceitação, mas também atraiu muito criticismo. Entretanto, hoje se
sabe que o modo fundamental de processamento das funções cerebrais
é de ordem inconsciente. Partes do processamento simbólicodeclarativo
e do processamento de funções emocionais do cérebro
são permanentemente inconscientes. Outras partes desses processos
são conscientes ou podem ser trazidas à consciência ou, alternativamente,
podem ser excluídas da consciência13. Ressaltando o papel
essencial dos processos psíquicos inconscientes, Winograd3 cita
como exemplo a verificação de que o comportamento de pacientes
incapazes de se lembrar de acontecimentos passados, por causa de
lesões em estruturas cerebrais responsáveis pelo armazenamento de
memória, é claramente influenciado pelos fatos “esquecidos”3. Esses
dados corroboram a teoria de Freud, segundo a qual o inconsciente
domina a maior parte dos processos psicofisiológicos.
A neurociência também demonstrou que as estruturas do cérebro
essenciais para a formação de memórias conscientes não são funcionais
durante os dois primeiros anos de vida, explicando o que Freud identificou
como “amnésia infantil”. Assim como Freud hipotetizou, não
poder trazer à luz da consciência a maior parte de nossas memórias
de infância não significa que elas não tenham se inscrito em nós nem
que não afetem nossos sentimentos, pensamentos e comportamentos
atuais. As experiências da primeira infância, sobretudo entre mãe e
bebê, influenciam o padrão das conexões cerebrais e, correlativamente,
o padrão de nossos comportamentos e pensamentos3.
A vasta contribuição de Freud relativamente à função dos sonhos
foi em grande parte ignorada pela ciência, pela falta de um método
quantitativo e de hipóteses testáveis. Felizmente, os avanços da
neurociência convergiram nos últimos anos para dois importantes
insights psicanalíticos. O primeiro consiste na observação concreta
de que os sonhos, frequentemente, contêm elementos da experiência
do dia anterior, denominados de “restos do dia”. O segundo é o reconhecimento
de que estes “restos” incluem atividades mnemônicas
e cognitivas da vigília, persistindo nos sonhos na medida de sua
importância para o sonhador. Assim, ainda que de maneira difusa,
a psicanálise prevê que a consolidação de memórias e o aprendizado
sejam importantes funções oníricas14.
Segundo Freud, os sonhos constituem “uma realização (disfarçada)
de um desejo (reprimido)”. A hipótese de que o sistema
dopaminérgico mesolímbico-mesocortical, relacionado aos estados
motivacionais, é essencial para a formação dos sonhos também oferece
algum respaldo à teoria freudiana. Assim, as emoções parecem
exercer um papel fundamental na formação dos sonhos15.
Estudos experimentais recentes trazem à tona duas grandes contribuições
de Freud aos conhecimentos atuais sobre a supressão e/ou
inibição de memórias. Ambos os processos, largamente estudados
por ele, a repressão e a extinção, já têm boa parte de seus mecanismos
conhecidos. Essa inibição ou supressão é inerente à nossa natureza.
Por um lado, precisamos impedir o acesso à consciência de muitas
memórias, porque sua evocação seria prejudicial ou insuportável.
Por outro, precisamos fazê-lo porque devemos recordar ou aprender
outras memórias16. Em seu comunicado, Izquierdo16 cita achados
interessantes de outro grupo17: no momento em que o cérebro exclui
da consciência a expressão de memórias indesejadas, ocorrem: a)
inibição da evocação dessas memórias (repressão); b) ativação do
córtex pré-frontal anterolateral (envolvido na memória de trabalho);
c) inibição da atividade do hipocampo. O hipocampo é o “diretor” da
“orquestra” de áreas corticais envolvidas na evocação de memórias17.
O estudo desses cientistas pretendeu explicar casos de bloqueio de
memória especialmente nas situações de abusos sexuais sofridos por
crianças que não se lembram dos abusos quando se tornam adultas.
Sua existência foi percebida por meio da utilização de imagens
cerebrais que mostravam os sistemas neurológicos participantes do
bloqueio da evocação de memórias indesejáveis. Esses dados corroboram
a hipótese de Freud sobre o processo de “recalque”.
Analisando todos esses dados, consideramos que as visões psicanalítica
e neurocientífica podem ser complementares e mutuamente
enriquecedoras. Tomados em conjunto, esses achados indicam não só
a viabilidade, mas a necessidade de reavaliar o legado psicanalítico de
Freud, com uma diferente abordagem. Assim, realizamos uma revisão
bibliográfica a respeito da segunda tópica de Freud, procurando
possíveis pontos de contato entre a psicanálise e a neurofisiologia.
A seguir, será apresentada uma proposta de interface entre a segunda
tópica de Freud e o encéfalo, na tentativa de estabelecer uma abordagem
conciliadora entre a psicanálise e a neurofisiologia. Nossa
expectativa é de que esse trabalho possa contribuir para a integração
entre a psicanálise e a neurofisiologia, para melhor compreensão do
complexo funcionamento da mente humana.
Métodos
Para o presente trabalho, foram realizados os seguintes procedimentos:
1. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica nas principais bases de
dados: Biblioteca Virtual em Saúde (BVS); Scientific Electronic Library
Online (SciELO); U.S. National Library of Medicine (PubMed) e
Lilacs; ato contínuo. Tendo em vista que a proposta deste trabalho é
realizar uma abordagem de interface entre a segunda tópica de Freud
e a neurofisiologia, cruzamos as seguintes palavras-chave:
psicanálise-psychoanalysis; Freud-Freud; id-id; ego-ego;
superego-superego X neurobiologia-neurobiology; neurofisiologia-
neurophysiology; neurociências-neuroscience; sistema
límbico-limbic system.
A pesquisa bibliográfica foi realizada no período compreendido
entre 2 de julho e 26 de setembro de 2009, para artigos publicados
nos últimos 10 anos. Quanto aos critérios de inclusão e exclusão,
foram selecionados artigos originais e de revisão que contemplassem
os seguintes aspectos:
• Artigos que apresentassem dados ou hipóteses que possibilitassem
uma aproximação integradora entre a psicanálise e a
neurobiologia atual, utilizados principalmente para a apresentação
da introdução e justificativa do presente trabalho.
• Artigos que apresentassem dados ou hipóteses que possibilitassem
uma aproximação integradora entre a segunda tópica
de Freud e a neurofisiologia atual, utilizados principalmente
para a discussão.
• Artigos que abordassem as emoções e/ou o controle do
comportamento. Esses artigos forneceram informações para
a apresentação de estruturas e vias encefálicas envolvidas nas
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emoções e no controle do comportamento. Tendo em vista
que não se pode abordar id, ego e superego sem falar de emoção
e comportamento, tais informações foram fundamentais
para a nossa discussão de interface entre a neurofisiologia e
a segunda tópica de Freud.
Artigos localizados na pesquisa bibliográfica que não contemplassem
nenhum dos critérios anteriormente descritos não foram
selecionados para inclusão neste trabalho.
2. Além da pesquisa já descrita, também foram utilizados capítulos
de livros de referência em neurociências como “Fisiologia do
comportamento”, do autor Neil Carlson, e “Cem bilhões de neurônios”,
do autor Roberto Lent. Os capítulos selecionados abordam as
emoções e/ou o controle do comportamento e também forneceram
informações fundamentais para a nossa proposta de integração entre
a segunda tópica de Freud e a neurofisiologia.
3. Finalmente, procuramos realizar uma reflexão crítica sobre
todo o material obtido para a elaboração de nossa proposta de integração
entre a psicanálise e a neurobiologia.
Resultados
Durante nossa pesquisa bibliográfica, foram localizados mais de 100
artigos; muitos artigos (os mesmos) estavam citados em mais de uma
base de dados. Após a identificação dos artigos repetidos, restaram
cerca de 40 artigos diferentes para análise. De acordo com os critérios
de inclusão e exclusão anteriormente descritos, foram selecionados
20 artigos (originais ou de revisão) para citação em nosso trabalho.
Dos artigos selecionados e incluídos em nosso trabalho, tiveram
relevância para nossa discussão os seguintes:
• Winograd M. Matéria pensante – a fertilidade do encontro entre
psicanálise e neurociência. Arq Bras Psicol. 2004;(56)1:21-34.
• Soussumi Y. Tentativa de integração entre algumas concepções
básicas da psicanálise e da neurociência. Psicologia
Clínica. 2006;18(1):63-82.
• Cheniaux E. Os sonhos: integrando as visões psicanalítica e
neurocientífica. Rev Psiquiatr Rio Gde Sul. 2006;28(2):69-76.
• Sidarta R. Sonho, memória e o reencontro de Freud com o
cérebro. Rev Bras Psiquiatr. 2003;25(2):59-63.
• De Martino B, Kumaran D, Seymour B, Dolan RJ. Frames,
biases, and rational decision-making in the human brain.
Science Magazzine. 2006;313(5787):684-7.
• Siever LJ, Weinstein LN. The neurobiology of personality
disorders: implications for psychoanalysis. J Am Psychoanal
Assoc. 2009;57(2):361-98.
• Houdart R. Affectivity in the nervous system. Encephale.
2004;30(3):236-44.
• Mancia M. The dream between neuroscience and psychoanalysis.
Arch Ital Biol. 2004;142(4):525-31.
• Damásio AR. Emotion and the human brain. In: Harrington
A, Kagan J (Orgs.). Unity of knowledge – the convergence of
natural and human science. New York: New York Academy
of Sciences; 2001.
Discussão
No presente trabalho, procurou-se realizar uma abordagem de interface
entre a segunda tópica de Freud e a neurofisiologia atual, com
base nas clássicas descrições de Freud e em dados da neurofisiologia,
com inclusão de dados relevantes de artigos de outros autores, para
discussão e elaboração de hipóteses relacionadas ao tema. Para fins
didáticos, apresentaremos nossa discussão nos seguintes tópicos:
• O id segundo Freud e a neurofisiologia;
• O ego segundo Freud e a neurofisiologia;
• O superego segundo Freud e a neurofisiologia.
O id segundo Freud e a neurofisiologia
Trazendo as clássicas descrições do id para o campo neurobiológico,
pode-se considerar que essa instância psíquica estaria voltada basicamente
para os processos vitais mais primitivos, como a conservação
da vida (beber e comer), a defesa da vida ou do território (ataque
e agressão), a propagação da vida (reprodução), e com a obtenção
de prazer. Assim, propomos que os sistemas neurais, cujos processos
ocorrem predominantemente de forma inconsciente e estão
destinados ao controle da conservação e propagação da vida, ou
seja, os sistemas neurais que controlam o comportamento de beber
e comer, que controlam o comportamento agressivo-defensivo, o
comportamento reprodutivo e os sistemas de recompensa cerebrais,
juntos constituiriam o sistema neurobiológico mais estreitamente
relacionado ao sistema id.
Em relação à conservação da vida, parece claro que os comportamentos
básicos de ingestão (beber e comer) são programados por
circuitos cerebrais filogeneticamente antigos. Estudos indicam que
o tronco encefálico contém circuitos neurais que podem controlar a
ingestão de alimentos, e a área postrema, o núcleo do trato solitário
do bulbo e a área parabraquial da ponte estão mais diretamente
envolvidos no controle da ingestão de alimentos. Além disso, toda a
região em volta do terceiro ventrículo anterior parece ser uma parte
do cérebro onde são integrados os sinais osmométricos e volumétricos
para o controle da sede e do apetite por sal. A estimulação do
hipotálamo lateral, particularmente, estimula o comportamento de
beber e a ingestão de alimento. A estimulação do hipotálamo ventromedial,
ao contrário, causa sensação de tranquilidade e saciedade,
inibindo o comportamento de busca por alimento18-20.
Considerando a hierarquia das necessidades, estando o indivíduo
saciado (sem sede ou fome), a próxima etapa seria a preocupação do
indivíduo com a defesa da vida ou de seu território, caso haja algum
evento ameaçador no ambiente. O controle neural do comportamento
agressivo/defensivo é hierárquico, isto é, os comportamentos de
ataque e defesa são programados por circuitos no tronco cerebral,
com o auxílio de sinais do hipotálamo e da amígdala. Tanto o comportamento
defensivo quanto o comportamento agressivo podem
ser eliciados pela estimulação da matéria cinzenta periaquedutal
(MCP), dos núcleos periventriculares do hipotálamo e da amígdala
central. Essas três estruturas compõem uma importante parte do
sistema límbico, denominada sistema cerebral aversivo, responsável
por organizar comportamentos em resposta a situações aversivas ou
ansiogênicas. Além disso, a área pré-óptica medial do hipotálamo
também parece ser importante na mediação dos efeitos dos andrógenos
sobre a agressão entre machos21.
Obviamente, todas essas estruturas não atuam isoladamente,
mas sofrem constantemente influências modulatórias, principalmente
por parte do córtex pré-frontal. Em geral, um aumento
da atividade de sinapses serotonérgicas inibe a agressão. Por essa
razão, alguns clínicos têm usado drogas serotonérgicas para tratar
comportamentos violentos em humanos. Estudos sugeriram que o
álcool pode estimular a agressão, interferindo de forma inibitória
na função do córtex pré-frontal, que tem função modulatória sobre
o comportamento21.
Adiante, veremos como as funções do córtex pré-frontal podem
encaixar-se nas descrições de ego segundo Freud. Assim, a neurofisiologia
fornece suporte para o clássico entendimento, na psicanálise,
de que, quando o ego enfraquece, as manifestações pulsionais do id
irrompem e predominam.
Enfatizando a natureza pulsional do id, não se poderia deixar de
falar de sexo ou comportamento reprodutivo. Considerando que o cérebro
é sexualmente dimórfico, o controle do comportamento sexual
envolve diferentes mecanismos cerebrais em machos e fêmeas. Em
roedores, a área pré-óptica medial (APM), localizada rostralmente
em relação ao hipotálamo, é a região do prosencéfalo mais crítica para
o comportamento sexual do macho. Lesões dessa área diminuem ou
abolem o comportamento sexual masculino. Além disso, a atividade
dessa área é influenciada positivamente pelos níveis de andrógenos
circulantes. A APM recebe aferências quimiossensoriais através de
conexões com a amígdala medial. A amígdala medial, assim como a
área pré-óptica medial, também contém uma concentração particularmente
alta de receptores de andrógenos. A destruição da amígdala
medial prejudica o comportamento sexual de ratos machos. Assim,
284 Lima AP / Rev Psiq Clín. 2010;37(6):270-7
as conexões entre a amígdala medial e a APM são importantes para
a expressão normal do comportamento sexual em machos22.
Da mesma forma que a APM exerce um papel essencial no
comportamento sexual masculino, outra região no prosencéfalo
basal exerce um papel similar no comportamento sexual feminino:
o núcleo ventromedial do hipotálamo (HVM). O estradiol e a progesterona
exercem seus efeitos estimulantes sobre o comportamento
sexual feminino, pela ativação de neurônios do HVM. De forma
semelhante aos machos, a amígdala medial também é importante
para a expressão normal do comportamento sexual em fêmeas.
Os neurônios do HVM enviam axônios para a matéria cinzenta
periaquedutal que circunda o aqueduto mesencefálico. Essa região
também tem sido implicada no comportamento sexual feminino e
também é influenciada pelos hormônios estradiol e progesterona.
Lesões que desconectam o HVM da matéria cinzenta periaquedutal
abolem o comportamento sexual feminino. Os neurônios da matéria
cinzenta periaquedutal enviam axônios para a formação reticular do
bulbo e os neurônios ali localizados projetam axônios para a medula
espinhal. Essa via parece ser o elo final entre os neurônios hipotalâmicos
e os neurônios que controlam a contração dos músculos
envolvidos na cópula22.
Assim, em relação ao controle do comportamento sexual, em
machos, há o envolvimento da área pré-óptica medial do hipotálamo
e da amígdala medial. Em fêmeas, há o envolvimento do núcleo ventromedial
do hipotálamo, da amígdala medial, da matéria cinzenta
periaquedutal do mesencéfalo e da formação reticular do bulbo.
Considerando ainda o id como a reserva inconsciente dos elementos
instintivos que se originam da organização somática, voltados
para a preservação e a propagação da vida, não se pode dissociar
o controle do comportamento reprodutivo do comportamento
maternal. A área pré-óptica medial (APM), a região do prosencéfalo
que exerce o papel mais crítico sobre o comportamento sexual
masculino, parece exercer um papel similar sobre o comportamento
maternal22.
Os neurônios da APM, que são ativados pelo desempenho do
comportamento maternal, projetam axônios para duas regiões: a
área tegmental ventral e a área retrorrubral. A área retrorrubral
do mesencéfalo projeta axônios a regiões da formação reticular
do tronco cerebral, que podem estar envolvidas na expressão do
comportamento maternal. A secção das conexões da APM com o
tronco cerebral abole o comportamento maternal. Hormônios que
estimulam o comportamento maternal, como estrógenos, progesterona,
hormônios lactogênicos placentários e prolactina, exercem seus
efeitos, principalmente, ao estimular neurônios da APM22. Assim,
para a expressão do comportamento maternal estão envolvidos
circuitos da área pré-óptica medial do hipotálamo, a área tegmental
ventral e a área retrorrubral do mesencéfalo, bem como a formação
reticular do tronco cerebral.
Passemos, agora, do controle do comportamento reprodutivo
ao prazer. Ao falar de id, não se poderia esquecer que essa instância
psíquica é regida pelo “princípio do prazer”. Quando ocorrem estímulos
que causam respostas emocionais positivas, isto é, quando
ocorrem estímulos que causam sensações de prazer-recompensa,
os mecanismos de reforço no cérebro tornam-se ativos. Assim,
todo comportamento que produz uma resposta emocional positiva
é reforçado, ou seja, ocorrem alterações em determinados circuitos
neurais que promovem a repetição do comportamento. Como o id é
uma instância psíquica que, além da satisfação imediata dos impulsos
instintivos, busca também o prazer, consideramos que os principais
sistemas de reforço do cérebro poderiam também ser relacionados
ao sistema id.
Entre as principais estruturas envolvidas no reforço, encontramse:
o núcleo acumbens, o estriado (núcleo caudado e putâmen),
núcleos talâmicos, a formação reticular, partes da amígdala, a área
tegmental ventral, a substância negra do mesencéfalo e o locus coeruleus
da ponte23. Assim, há vários mecanismos de reforço. O feixe
prosencefálico medial (FPM) representa a localização mais fiel.
Esse feixe contém longos axônios ascendentes e descendentes que
interconectam estruturas mesencefálicas e prosencefálicas. No seu
trajeto, que se estende do tronco encefálico até suas áreas de projeção
no prosencéfalo, ele contém axônios ascendentes dopaminérgicos,
os quais exercem um papel particularmente importante no reforço.
Uma das principais vias dopaminérgicas do encéfalo é o sistema
mesolímbico. O sistema mesolímbico origina-se na área tegmental
ventral do mesencéfalo e projeta-se, por meio do feixe prosencefálico
medial, para a amígdala, o septo, a estria terminal, o hipocampo e o
núcleo acumbens. A ramificação que termina no núcleo acumbens
é responsável pelos principais efeitos reforçadores da estimulação
do feixe prosencefálico medial. Esse sistema está relacionado aos
estados motivacionais, os quais instigam comportamentos que visam
à satisfação das necessidades biológicas, como beber, comer e
copular23. Substâncias estimulantes e que causam dependência, como
cocaína e anfetamina, atuam nesse circuito, causando um aumento
na liberação de dopamina no núcleo acumbens, o que, por sua vez,
leva a uma grande sensação de prazer15,20.
Em seu trabalho, Soussumi9 se refere ao circuito envolvendo o
núcleo acumbens como o sistema de busca de prazer por excelência,
em que a excitação dopaminérgica pode conduzir a quadros de
fixação e de adicção, correspondendo, segundo sua interpretação, ao
que Freud denomina como “sistema de luxúria”9.
O sistema mesolímbico-mesocortical tende a impulsionar o indivíduo
a uma atividade exploratória do meio, em busca de satisfação
de sua necessidade, desejo ou curiosidade. Segundo Soussumi, é por
meio desse impulso que o homem sai do estado de isolamento para a
busca de contato com o outro, com o que existe fora de si, ou seja, sai
do narcisismo para a relação de objeto. Esse sistema, segundo o autor,
seria responsável pela busca do homem por objetos que satisfaçam,
primariamente, a suas necessidades e, secundariamente, a seus desejos.
Em uma colocação interessante, Soussumi identifica o sistema
dopaminérgico mesolímbico-mesocortical como correspondente ao
que Freud chamou de “libido”, propondo ser por meio desse sistema
que ocorrerão as catexizações dos objetos de relação9.
Analisando todos os dados apresentados anteriormente, hipotetizamos
que diversos circuitos do tronco encefálico, em associação
a outras estruturas como o feixe prosencefálico medial, a amígdala
medial, o septo, a estria terminal, o hipocampo, o hipotálamo, o
núcleo acumbens, o estriado (núcleo caudado e putâmen) e os núcleos
talâmicos, apresentam funções que podem ser relacionadas às
descrições do sistema id de Freud.
Segundo Soussumi9, as atividades desses núcleos, com seus produtos
neuroquímicos, corresponderiam aos correlatos neurais de
Freud denominados drives ou pulsões9. Não por acaso, muitas dessas
estruturas são consideradas como importantes componentes que integram
o sistema límbico, relacionado ao controle das motivações e do
comportamento emocional. Como vimos, nessas áreas predomina a
atividade inata, pré-programada, involuntária e inconsciente. Segundo
Freud, os impulsos motivacionais derivariam de regiões predominantemente
subcorticais, cujas funções impelem o organismo a tentar
descarregar o excesso de energia acumulada, sentido como desprazer,
para um nível mais moderado de energia, sentido como alívio-prazer6.
Passemos agora à próxima instância psíquica: o ego.
O ego segundo Freud e a neurofisiologia
De acordo com as descrições do ego que foram apresentadas na introdução,
quais estruturas cerebrais cujas características funcionais
mais se encaixam no perfil do ego? A neuropsicanálise identificou
nas funções do lobo frontal muitas das funções atribuídas ao ego9.
O lobo frontal é a parte mais desenvolvida do cérebro, em especial o
pré-frontal, que encontra no homem a sua expressão mais evoluída.
Dotado de função associativa, o lobo frontal recebe os estímulos de
todas as demais estruturas do cérebro e os associa, integrando-os.
Nós, humanos, somos capazes de reagir emocionalmente diante
de situações muito complexas, especialmente envolvendo outras
pessoas. A percepção do significado de situações sociais é muito mais
complexa do que a percepção de estímulos individuais. Ela envolve
muito mais que a análise sensorial, incluindo a análise de experiências
e memórias, inferências e julgamentos. Essas habilidades parecem
Lima AP / Rev Psiq Clín. 2010;37(6):270-7 285
envolver os circuitos do córtex pré-frontal, especialmente o córtex
orbitofrontal. O córtex orbitofrontal está localizado na base dos lobos
frontais. A lesão ou retirada do córtex orbitofrontal prejudica a capacidade
de fazer julgamentos e inferências e prejudica a capacidade de
traduzir esses julgamentos em comportamentos apropriados. Pessoas
que tiveram lesões pré-frontais ou foram submetidas a vários tipos de
lobotomias pré-frontais apresentaram perda da capacidade de realizar
planos para o futuro, tornaram-se inconsequentes, irresponsáveis,
emocionalmente instáveis e incapazes de distinguir entre decisões
triviais e importantes20,21.
Em geral, as respostas emocionais fornecem um elemento importante
na tomada de decisões. As lesões pré-frontais (e também
as lesões da amígdala) parecem impedir que as respostas emocionais
e sentimentos sejam traduzidos em julgamentos e comportamentos
apropriados21. Ademais, o corte pré-frontal tem sido considerado a
“sede da personalidade”. Essa estrutura parece ser importante para a
tomada de decisões e para a adoção de estratégias comportamentais
mais adequadas a determinada situação. O córtex pré-frontal estabelece
conexões recíprocas com praticamente todo o encéfalo: todas as
áreas corticais, vários núcleos talâmicos, núcleos da base, o cerebelo,
a amígdala, o hipocampo e o tronco encefálico. Uma região que
possui conexões tão variadas tem grandes possibilidades de exercer
funções de controle e coordenação geral das funções mentais e do
comportamento24.
Tudo indica que a região ventromedial do córtex pré-frontal é
responsável pelo raciocínio lógico para a resolução de problemas, o
planejamento de ações e a ordenação temporal dos atos, sua adaptação
e ajuste às circunstâncias (ajuste social do comportamento) e
a seleção das ações mais adequadas a cada momento, bem como os
objetivos de longo, médio e curto prazo estabelecidos pelo indivíduo.
A região dorsolateral do córtex pré-frontal estaria relacionada com
a memória operacional24.
Acredita-se que o córtex pré-frontal e o córtex orbitofrontal
recebam aferências da amígdala, as quais representam o valor motivacional
dos estímulos, integrando-os e promovendo uma avaliação
do comportamento futuro que será adotado25.
Um limiar baixo para a agressão impulsiva, como observado
nas desordens de personalidade borderline e antissocial, pode estar
relacionado à reatividade excessiva de núcleos da amígdala (id), à
redução da inibição pré-frontal (ego) e à redução do controle serotonérgico
sobre o córtex pré-frontal (ego)26.
Ao falar de ego, não se pode deixar de discutir o giro do cíngulo.
O giro do cíngulo (peleocórtex) é parte importante do sistema
límbico, fornecendo uma interface entre o processo de tomada de
decisão do córtex frontal, as funções emocionais da amígdala e os
mecanismos cerebrais que controlam os movimentos21. Dessa forma,
propomos que ele atuaria como um auxiliar do ego. Danos na
região límbica frontal que produzem confabulações prejudicam os
mecanismos de controle cognitivo – base da monitoração normal
da realidade –, intensificando a influência do desejo na percepção,
na memória e no julgamento3.
O córtex cingulado anterior parece ser importante para a modulação
das informações processadas pelo córtex pré-frontal25. Estudos
de neuroimagem demonstram que processos executivos são mediados
pelo córtex frontal, particularmente o córtex cingulado anterior
e o córtex pré-frontal. A estimulação elétrica do giro do cíngulo, em
humanos, pode produzir emoções negativas ou positivas. Assim, o
giro do cíngulo exerce um papel excitatório sobre as emoções e sobre
a motivação comportamental em geral. Ele se comunica (em ambas as
direções) com o restante do sistema límbico, bem como com outras
regiões do córtex frontal. As pessoas extrovertidas – mais ativas e
mais salientes – apresentam um nível maior de ativação do córtex
cingulado anterior. E as pessoas introvertidas – que são mais reflexivas,
cautelosas e solitárias – apresentam menor ativação do córtex
cingulado anterior e uma maior ativação do córtex pré-frontal21, o
que corrobora a hipótese de que o córtex pré-frontal atua como um
“mediador moderador” do comportamento, exatamente como o ego
se incumbe do ajustamento ao ambiente e da solução dos conflitos
entre o indivíduo e a realidade.
Agora, cabe aqui uma colocação. A afetividade não é gerada pelo
córtex cerebral. Ela resulta do processamento das informações sensoriais
e informações armazenadas na memória pelo sistema límbico
e sistema reticular (circuitos neurais predominantemente id). Após
análise do córtex límbico, se determinada situação é considerada
favorável ou desfavorável, as informações são convertidas nas regiões
médio-centrais do cérebro como “prazer” ou “aversão” e geram
motivação para o comportamento apropriado. Do córtex límbico
(predominantemente id), essas motivações são transmitidas para o
córtex pré-frontal contíguo (ego). O córtex pré-frontal atua como um
centro para a atividade consciente e armazenamento para memórias
afetivas. Assim, somente o neocórtex pré-frontal é consciente, mas o
córtex límbico, embora inconsciente, é a fonte de motivação27.
Esses dados também se encaixam nas clássicas descrições do id
(inconsciente) e do ego (partes inconscientes e conscientes). Com
referência aos acontecimentos externos, o ego desempenha sua
função armazenando experiências sobre os diferentes estímulos na
memória e aprendendo, por meio da atividade, a produzir modificações
convenientes no mundo externo em seu próprio benefício9,
funções desempenhadas pela região ventromedial do córtex préfrontal.
A teoria psicanalítica procura explicar a gênese do ego (córtex
pré-frontal?) como um sistema adaptativo, diferenciado a partir do id
(circuitos filogeneticamente mais antigos) em contato com a realidade
exterior (estímulos externos).
Para Freud, o sonho constitui “uma realização (disfarçada) de um
desejo (reprimido)”. Ainda de acordo com Freud, o conteúdo manifesto
dos sonhos é aparentemente incompreensível, porque consiste
numa versão distorcida do conteúdo latente. Essa distorção se dá, em
primeiro lugar, porque no sono há uma profunda regressão do funcionamento
do ego, que faz com que prevaleça o processo primário do
pensamento. O processo primário é caracterizado pelo predomínio
das imagens visuais, em detrimento da linguagem verbal1.
Estudos recentes mostram que durante o sono REM, o córtex
pré-frontal encontra-se desativado e vários aspectos característicos
do sonho podem ser relacionados a esse achado: a bizarrice, a incoerência,
a perda da crítica e o esquecimento15,28. É interessante o fato
de que, segundo Freud, há uma profunda regressão do ego durante o
sono, como citado anteriormente. Esses dados corroboram a hipótese
de que o córtex pré-frontal pode muito bem sediar as funções do ego.
Passemos agora ao superego.
O superego segundo Freud e a neurofisiologia
Considerando as descrições de superego que foram apresentadas na
introdução, quais estruturas cerebrais cujas funções poderiam estar
mais relacionadas ao superego segundo Freud? Salientamos que o
superego atua como um juiz, como um censor moral. Inicialmente,
o superego é representado principalmente pela autoridade parental
que dá ritmo à evolução infantil, alternando as provas de amor com
as punições, geradoras de angústia. Posteriormente, o superego passa
a incluir também a internalização das regras, proibições e punições
provenientes da sociedade. E são mais comumente as punições ou
estímulos aversivos que nos ensinam o que devemos ou não devemos
fazer, o que podemos ou não podemos fazer, ou seja, o que é bom ou
ruim considerando as consequências. Qual estrutura cerebral que nos
possibilita aprender o que podemos ou não podemos fazer? Propomos
que um bom candidato seria o núcleo central da amígdala.
A amígdala exerce um papel especial nas reações fisiológicas e
comportamentais, diante de estímulos emocionalmente relevantes ou
situações que possuem um significado biológico importante21. Com
relação ao id, vimos que o núcleo medial da amígdala é importante
para o comportamento reprodutivo. O que nos interessa agora é o
núcleo central da amígdala ou amígdala central. Graças à amígdala
central, podemos aprender que uma determinada situação é perigosa,
ameaçadora ou simplesmente traz consequências ruins20,21. Traduzindo:
se levamos palmadas na infância porque desobedecemos nossos
pais, provavelmente não vamos nos esquecer disso.
Danos na amígdala interferem nos efeitos das emoções sobre
a memória. Normalmente, quando as pessoas enfrentam situações
286 Lima AP / Rev Psiq Clín. 2010;37(6):270-7
que produzem respostas emocionais fortes, elas têm maior probabilidade
de lembrar dessas situações. Lesões da amígdala diminuem
essa probabilidade. O núcleo central da amígdala é a região mais
importante do cérebro para a expressão das respostas emocionais
provocadas por estímulos aversivos. A amígdala central é particularmente
importante na aprendizagem emocional aversiva, ou seja,
seus circuitos permitem que o organismo aprenda a emitir respostas
específicas que evitam o contato com estímulos aversivos21. Isso
significa aprender a emitir comportamentos que minimizem ou
evitem consequências desagradáveis para o indivíduo. Traduzindo:
não basta lembrar que levamos palmadas de nossos pais, é preciso
aprender a evitar os comportamentos que estimularam nossos pais
a recorrer às palmadas.
O núcleo central da amígdala também é importante para o desenvolvimento
de respostas emocionais condicionadas21. Aqui a palavra
condicionada refere-se ao processo de condicionamento clássico.
O que seriam nossos comportamentos mais socialmente aceitáveis,
senão aqueles que resultaram de uma série de condicionamentos
clássicos gerados pela sociedade? Não foi por acaso que Freud argumentou
que a transmissão dos valores e das tradições perpetua-se por
intermédio dos superegos, de uma geração para outra2. Dessa forma,
o superego seria o depósito dos modelos de conduta socialmente
aceitáveis e o núcleo central da amígdala funciona muito bem como
o censor neural que prediz o que podemos ou não podemos fazer, o
que devemos ou não devemos fazer.
Quando abordamos o id, comentamos o envolvimento da matéria
cinzenta periaquedutal do mesencéfalo e das zonas periventriculares
do hipotálamo, na organização dos comportamentos de luta e fuga.
Entretanto, essas duas estruturas também apresentam circuitos neurais
que constituem importantes centros de punição e, portanto, não
poderiam trabalhar dissociadamente do núcleo central da amígdala21.
E de fato não trabalham. Os axônios que emergem do núcleo central
da amígdala estabelecem conexões com os núcleos periventriculares
do hipotálamo e com a matéria cinzenta periaquedutal24. Assim, propomos
que os “centros de punição” da matéria cinzenta periaquedutal
do mesencéfalo e das zonas periventriculares do hipotálamo funcionam
como auxiliares do superego (núcleo central da amígdala).
Outra estrutura cerebral cujas funções poderiam se encaixar nas
descrições de superego seria o córtex da ínsula. O córtex da ínsula
é responsável por emoções negativas, como o medo e a ansiedade.
A sua ativação em resposta a situações que podem trazer consequências
desagradáveis atua como um freio inibitório que tende a reprimir
o comportamento de risco21,24.
Damásio sugere que sem a emoção não se pode compreender
como o organismo mantém a homeostase, ante os desafios do
meio ambiente e ameaças à sobrevivência no mundo complexo da
sociedade e cultura. As emoções e os sentimentos que se seguem
aos diferentes tipos de estímulos são parte integrante dos sistemas
de valores necessários para estabelecer a memória de longo prazo
e para racionalização e tomada de decisão, envolvendo as escolhas
para direcionar a vida29.
Consideremos uma situação hipotética. Você deseja comprar
um carro, que é o carro dos seus sonhos. Representando o prazer
antecipado da aquisição do carro, há o envolvimento dos sistemas de
recompensa cerebral, como a via mesolímbica-núcleo acumbens, cuja
ação é motivadora e representa muito bem os anseios do id (Eu quero
muito comprar esse carro!). Por outro lado, analisando o contexto,
prevendo as consequências da compra do carro dos seus sonhos, há
a ativação do núcleo central da amígdala e do córtex da ínsula, que
alertam para os possíveis riscos e prejuízos advindos dessa ação (Não
faça isso agora, você pode ficar muito endividado!). Entre os dois polos,
atuando como a parte executiva da personalidade, entra em ação o
córtex pré-frontal, que deverá decidir se o seu desejo será satisfeito
imediatamente (decisão a favor do id) ou se não será realizado
(decisão a favor do superego). O córtex pré-frontal, atuando como
o ego mediador, poderá decidir pelo adiamento da compra, quando
as circunstâncias econômicas forem mais favoráveis. Na realidade, o
córtex pré-frontal pode ir além disso: ele é capaz de elaborar planos
e estratégias para criar, num futuro não muito distante, essas condições
favoráveis. Assim, numa perspectiva mais otimista, o córtex
pré-frontal (ego) poderá satisfazer o id, sem transgredir as limitações
impostas pelo superego e pela realidade externa. No indivíduo normal,
essa função é cumprida a contento. Nos neuróticos e psicóticos
o ego sucumbe, seja porque o id ou o superego são excessivamente
fortes, seja porque o ego é excessivamente fraco.
Considerações finais
A meta fundamental do aparelho psíquico é manter e recuperar,
quando perdido, um nível aceitável de equilíbrio dinâmico que
maximiza o prazer e minimiza o desprazer. A energia psíquica
que é usada para acionar o sistema nasce no id, que é de natureza
primitiva, instintiva. O id seria representado por circuitos filogeneticamente
mais antigos como os circuitos do tronco cerebral, o feixe
prosencefálico medial, a amígdala medial, o septo pelúcido, a estria
terminal, o hipotálamo, o núcleo acumbens, o núcleo caudado, o
putâmen e os núcleos talâmicos. Emergindo a partir do id, o ego,
representado principalmente pelo córtex pré-frontal, tem a função
de lidar realisticamente com as pulsões básicas do id e também age
como mediador entre as forças que operam no id, no superego e as
exigências da realidade externa. O superego, representado principalmente
pelo núcleo central da amígdala e pelo córtex da ínsula, atua
como um freio modulador em relação aos interesses motivacionais/
pulsionais do id. Ora, o ser humano é um animal social e, se quiser
viver com seus congêneres, não pode fazer sempre o que quer e
quando quer. De fato, o mundo exterior impõe ao indivíduo limites e
proibições que provocam a repressão e a transformação das pulsões,
na busca constante de satisfações substitutivas que não transgridam
as normas sociais. Em indivíduos normais, essa busca constante pela
adaptação ao meio e a procura por prazeres que não prejudiquem
as relações intra e interpessoais tendem a levar ao desenvolvimento
e fortalecimento progressivos do ego.
Finalmente, gostaríamos de salientar que o modelo de integração
entre a segunda tópica de Freud e a neurobiologia aqui proposto não
constitui, em absoluto, um modelo completo, acabado. Longe disso.
Acreditamos que esse modelo estará sempre sujeito a acréscimos e
alterações, de acordo com novos avanços da neurobiologia, e também,
obviamente, está aberto a contribuições de visões diferentes de outros
autores. Entretanto, acreditamos que o presente modelo constitui um
diálogo fértil entre a psicanálise e a neurociência, indicando que as
clássicas descrições de Freud sobre a mente têm perfeitamente lugar
na neurofisiologia de hoje.
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