sexta-feira, 30 de dezembro de 2011


Por Vera Peceguini Saldanha Garcia

Este artigo aborda a temática da criança interior, não só sob a óptica da psicologia que enfatiza a criança ferida, mas também traz uma abordagem espiritual na qual se resgata a criança divina que existe por trás de toda criança ferida.

Uma das formas da evolução humana se dá através das lições apreendidas ao longo do tempo no processo do nascer e renascer. A existência de cada individuo que nasce serve a um propósito maior a algum tipo de crescimento, aprendizagem ou transformação. A essência espiritual, se faz presente desde de o primeiro instante, e se tornará mais desperta ou não, dependendo das opções e buscas do individuo ao longo de sua existência.

O ambiente cultural, social e, sobretudo familiar também exercerá influencias significativas para que este ser evolua e recorde-se de quem realmente É, cumprindo suas tarefas de maneira saudável, contribuindo para sua evolução pessoal e aprimoramento do ambiente em que vive. Um dia retornará já evoluído, pleno de amor por todos os seres, todas as coisas, inclusive por ele próprio, tendo realizado sua bem-aventurança no planeta Terra.
Bem, esta seria a história perfeita de um individuo que nasceu fez suas melhores escolhas, aprimorou-se e despertou a plena consciência, ou seja, atingiu sua iluminação. Contudo esse processo geralmente se arrasta com apego ao próprio sofrimento e as dificuldades pessoais, familiares, culturais e tantas outras.

O não recordar-se da verdadeira essência, impede de trazer a energia necessária à Vida e lembrar-se do propósito maior desta existência, o qual foi sintetizado pelo mestre Jesus, em suas máximas: “Amar a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo como a ti mesmo”. O esquecimento do amor nos traz inúmeros desvios, sofrimentos e mortes ao longo dos tempos, sobretudo obstrui a conexão do eu pessoal com o eu divino.

O processo de morte e renascimento oportuniza o despertar da verdadeira força espiritual. Essas mortes e renascimentos se reportam não só à morte biológica, mas também a mortes e renascimentos psicológicos dentro de uma mesma existência, denominada em Psicologia Transpessoal como morte e renascimento do ego (Saldanha, 1999).

Esse processo é vivenciado cada vez que ampliamos nossa percepção, mudamos nossas crenças, nosso olhar diante da própria dor e da dor do mundo, possibilitando o renascimento com mais sabedoria, compaixão e amor.

Essa força maior, essa essência que está por trás de toda criação pode ser representada por diversos nomes, dependendo da Tradição espiritual que a nomeia, por exemplo, Cristo, Deus, Buda, Atmam e outros. Na Abordagem Transpessoal essa força essencial que a tudo permeia é designada como Unidade, Absoluto e os aspectos de sua manifestação no nível pessoal de Eu Superior e de Supraconsciente ou Inconsciente Superior (Assagioli, 1993).
Essa instância no ser humano é responsável pela capacidade amorosa e criativa de ver o outro lado, a outra face com uma consciência mais profunda e de nos trazer a aprendizagem significativa que existe em toda situação de nossa existência diária.

Esta presença espiritual inerente à nossa humanidade nos permite transitar de nossas dores para a consciência de luz, de nossos medos e temores para o amor incondicional, para a aceitação e confiança em um Ser maior, do qual somos parte. Ela nos permite que da criança ferida, magoada renasça a criança divina. Aquela que sempre existiu, que ultrapassou dores e ressentimentos, fazendo-nos sobreviver até o momento atual e a seguir adiante, apesar dos obstáculos a serem vencidos.

Somos ainda seres em evolução, nascidos em um planeta de transformação, e as experiências do nascimento e da infância poderão deixar marcas dolorosas. A criança muitas vezes poderá ter sido rejeitada e magoada. Outras vezes as experiências físicas ou psicológicas não foram tão negativas, mas foram percebidas como tais pela criança, seja pelo ciúmes, egoísmo, ou condicionamentos anteriores, deixando na psique o registro de uma criança ferida.

Contudo, independente do grau de dificuldade vivido no plano real ou imaginário a emergência da criança divina poderá purificar a alma, trazer a fonte original de poder e transformação.

O tema da “criança” foi abordado no Evangelho de diferentes maneiras. Uma delas é a que nos recorda de que somos crianças no espírito, na evolução, mas que nessa pequena dimensão criança repousa a centelha do espírito divino em sua pureza original, que confia, busca e se entrega.

Em Marcos capitulo 10, versículo 13-16 conta-se que algumas pessoas traziam crianças para que Jesus as tocasse. Os discípulos, porém as repreendiam.Vendo isso Jesus se aborreceu e disse: - “Deixai as crianças virem a mim. Não as impeçais, porque a elas é que pertence o reino de Deus. Em verdade vos digo: quem não receber o reino de Deus como uma criança, não entrará nele”. E abraçava as crianças impondo as mãos sobre elas, as abençoava.

Este versículo indica que se não resgatarmos aquela essência numinosa da criança concebida, não despertaremos o Reino de Deus que nos habita. Este Reino não é uma realização material, mas sim espiritual, é um estado de consciência mais amplo. Um estado da plenitude, paz, equilíbrio e harmonia. Um Reino de bondade e felicidade. A criança divina é que nos traz o amor incondicional, a confiança original, a leveza para “entrarmos” nesse Reino. A criança divina tem asas, voa acima das limitações humanas, pois se agarra aos “pais” divinos. Esta dimensão psíquica se permite ser protegida, esclarecida e amparada.

A criança divina em suas asas, poderá levá-lo as mais lindas paisagens, levá-lo ao bom, verdadeiro e belo. Ela brinca, tem alegria e espontaneidade. É a manifestação do eu superior, a essência maior que faz a travessia do espiritual sutil ao espiritual manifesto.
Jean-Yves Leloup, no romance de Maria Madalena, descreve a cerimônia do lava pés, que Cristo realizou com os apóstolos, como sendo uma experiência de lavar e curar todos os males da criança ferida, para que então eles pudessem se libertar dos bloqueios, caminharem levando a Boa Nova que era a mensagem do Cristo Vivo, aquele que não morre jamais.

Assim nós precisamos também cuidar de nossa criança ferida, acolhê-la, legitimar suas dores, mas ir além; não alimentar suas ressentimentos e experiências de injustiças, que só iriam, impedir nossa evolução, não nos deixando enxergar o sentido maior e aprendizagem desta existência.

É necessário ajudar a criança interior, sentida, magoada que às vezes insiste em nutrir e alimentar seu papel de vítima para ter migalhas de atenção humana, perdendo o grande banquete que Deus lhe oferece de uma vida mais plena para aqueles que ousam caminhar, confiar.

Podemos curar as feridas desta criança, ajudá-la a caminhar, mas, sobretudo recordá-la de que em essência ela é divina. Lembrá-la que uma força maior a fez sobreviver e chegar até os dias atuais, apesar de todas as dificuldades encontradas. Novas oportunidades surgirão e novos passos poderão ser dados. A vida venceu mesmo quando o olhar limitado não conseguia alcançar a amplitude e significado de todo sofrimento.

Esse é o convite: - Despertar a criança divina para receber o Reino de Deus.

Essa é a mensagem: - Seguir em frente, porque dela é o Reino dos céus, da transparência e do amor incondicional.

Por traz de toda criança ferida, há uma criança divina pedindo passagem. Ela nos agradece e nos recompensa, quando permitimos que ela ocupe o seu lugar. Manifesta em nossa vida a simplicidade, a expressão mais pura do amor.

Nela é que reside preciosos tesouros de nossa espiritualidade, tais como a alegria, a entrega, a bondade, espontaneidade e confiança incondicional ao Pai, a grande forma de Amor que a tudo criou. Que nos deu olhos para ver, mas que tudo fará para que verdadeiramente possamos enxergar com o nosso coração. Tal como afirmava o pequeno Príncipe de Saint Exupéry: - “Só se vê bem com o coração o essencial é invisível aos olhos.” Nossa criança divina, enxerga com coração... , nos desperta para a Vida.

Assim, se você deseja despertar para a Vida, comece desde de já convidando sua criança divina através de uma breve meditação pela manhã que deixamos para você como sugestão. Experimente, vale tentar... a sua criança divina te recompensará...

Você pode fazer esse exercício assim que acordar, deitado, ou se preferir sentado: “Imagine-se em um lugar agradável na natureza, com muita vegetação, flores, e uma fonte cristalina com uma queda d’água. Veja essa água, luminosa, aproxime-se dela, tome-a, sinta o frescor e pureza, após banhe seus pés com esta água. Sinta seus pés sendo lavados por essa água pura que vai curando todas as feridas de sua criança, sinta que essa água tem o poder de purificar todo seu corpo, lavá-lo, limpá-lo de todos os desperdícios psíquicos, tristezas, mágoas, ressentimentos, tudo que passou. Tem o poder de prepará-lo, vitalizá-lo para os próximos passos...

Inspire profundamente... conscientemente...

Sinta que o sol chega até você, trazendo toda energia que você necessita para seu dia, refletindo seus raios luminosos sobre a fonte cristalina, criando um lindo arco-íris. Deste arco-íris sai radiante a sua criança divina, vai ao seu encontro e convida-o para brincar, voar, libertar-se.

Sinta a beleza, a alegria que esse momento lhe traz. Acolha essa criança divina sentindo vitalidade e imenso desejo de viver. Então, vá movimentando o seu corpo, espreguiçando sentindo que essa energia permanece em você, integrando-se completamente.

Você desperta confiante, pleno, com a certeza de que jamais esta só. Renovando sua energia para seus próximos passos deste novo dia; para que você continue cada vez melhor caminhando e semeado as Boas Novas, desperto... plenamente para a Vida!

Bibliografia
AÏVANHOV, Ommraam Mikhaël. Nova luz sobre os evangelhos. Lisboa: Provesta, 1984.
ASSAGIOLI, Roberto. Ser transpessoal. Madrid: Gaia, 1993.
BRADSHAW, John. Volta ao lar: como resgatar e defender sua criança interior. 2ª edição, Rio de Janeiro: Rocco, 1995
C.G. Jung, WHITIFIELD, Gharles L. e outros. O reencontro da criança. São Paulo: Cultrix, 1999.
EXUPÉRY, Saint. O pequeno príncipe. Editora Circulo do Livro, [s,d]
CHOPICH, Erica J,, PAUL, Margaret. O fim da solidão. 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 1994.
LELLOUP, Jean-Yves. O romance de Maria Madalena. Campinas-SP: Verus, 2004.
KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. São Paulo: Petit, 1997.
NARANJO, Cláudio. A criança divina e o herói. São Paulo: Editora Esfera, 2001.
PHILLISP, Rick. A emergência da criança divina. São Paulo: Pensamento, 1998.
SALDANHA, Vera. A psicoterapia transpesssoal. Rio de Janeiro: Redord, Rosa dos Tempos, 1999.
XAVIER, Francisco Cândido. Missionários da luz. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1981.
XAVIER, Francisco Cândido. Nosso Lar. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1981.