domingo, 15 de julho de 2012

Da paranóia a psicose ordinaria

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
PROGRAMA DE MESTRADO EM PSICOLOGIA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO
LINHA DE PESQUISA: INTERVENÇÕES CLÍNICAS E SOCIAIS
DA PARANÓIA À PSICOSE ORDINÁRIA
Núcleo Universitário Coração Eucarístico
LUCIA MARIA DE LIMA MELLO
Belo Horizonte
2006
LUCIA MARIA DE LIMA MELLO
DA PARANÓIA À PSICOSE ORDINÁRIA
Núcleo Universitário Coração Eucarístico
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em
Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para obtendo do título de
Mestre em Psicologia.
Área de Concentração: Processos de Subjetivação
Linha de Pesquisa: Intervenções clínicas e sociais
Orientadora: Doutora Ilka Franco Ferrari
Belo Horizonte
2006
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Mello, Lucia Maria de Lima.
M527p Da paranóia à psicose ordinária / Lucia Maria de Lima
Mello. – Belo Horizonte, 2006.
108 f.
Orientador: Profa. Dra. Ilka Franco Ferrari.
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Instituto de Psicologia.
Bibliografia.
1. Paranóia. 2. Psicose. I. Ferrari, Ilka Franco. II. Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais. Instituto de Psicologia. III. Título.
CDU: 159.964.2
Bibliotecária – Valéria Inês Mancini – CRB -1682
Lucia Maria de Lima Mello
Da paranóia à psicose ordinária
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção do
título de mestre em Psicologia, Belo Horizonte, em 06 de março de 2006.
Dra. Ilka Franco Ferrari (Orientadora) – PUC Minas
Dra. Elisa Alvarenga
Dr. Luis Flávio Couto – PUC Minas
RESUMO
Pesquisa teórica em psicanálise dos conceitos de paranóia, psicose e psicose
ordinária. O autor de referência é Jacques Lacan e a investigação conduz ao
desenvolvimento histórico dos conceitos, além de examinar seus efeitos sobre a
subjetividade. O objetivo é delimitar, diferenciar e perceber as modificações sofridas
pelo sujeito e o Outro na psicose. O método utilizado foi da leitura teórica
comentada, no qual o resultado forneceu subsídios para uma compreensão mais
ampla do trabalho na clínica contemporânea.
Palavras-chave: Paranóia, psicose, psicose ordinária, sujeito, Outro, inconsciente,
imaginário, simbólico, real.
ABSTRACT
Theoretical research in psychoanalysis of the concepts of paranoia, psychosis and
ordinary psychosis. The reference author is Jacques Lacan and the investigation
leads to the historical development of the concepts beyond examining their effects on
the subjectivity. The goal is to delimit, to differentiate and to perceive the
modifications suffered for the subject and the Other in the psychosis. The used
method was the commented theoretical reading in which the result supplied subsidies
for an enlarger understanding of the work in the contemporary clinic.
Key-words: Paranoia, psychosis, ordinary psychosis, subject, unconscious,
imaginary, symbolic, real.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO...................................................................................... 08
2 A PARANÓIA – LINHA DIVISORA DE ÁGUAS ........................ 17
2.1 A PSIQUIATRIA CLÁSSICA.................................................................. 17
2.1.1 Jacques Lacan e a psiquiatria clássica .......................................... 19
2.1.2 Psicose infantil e a psiquiatria clássica ......................................... 23
2.2 A LINHA DIVISORA EM FREUD .......................................................... 26
2.3 O DIVISOR DE ÁGUAS EM LACAN .................................................... 34
3 O COGITO PARANÓICO - “EU PENSO, LOGO ELE GOZA”
- E OS CONCEITOS LIMITES ............................................................
39
3.1 O IMAGINÁRIO ..................................................................................... 43
3.2 O SIMBÓLICO ....................................................................................... 46
3.3 O REAL ................................................................................................. 55
4 A PSICOSE ORDINÁRIA ................................................................. 63
4.1 SE O OUTRO NÃO EXISTE ... ............................................................. 68
4.2 A DIALÉTICA ENTRE TIPOS CLÍNICOS E PSICOSE ORDINÁRIA ... 73
4.2.1 Esquizofrenia .................................................................................... 75
4.2.1.1 Debates sobre a esquizofrenia ..................................................... 75
4.2.2 Melancolia ......................................................................................... 77
4.2.2.1 Debates sobre a melancolia ......................................................... 78
4.2.3 Mania .................................................................................................. 79
4.2.4 Paranóia ............................................................................................. 81
4.2.4.1 Debates sobre a paranóia ............................................................. 82
4.3 A DIREÇÃO DA CURA ......................................................................... 86
5 A PSICOSE É QUESTÃO DO SUJEITO E DO FALASSER
(PARLÊTRE) ............................................................................ 90
5.1 PRODUZIR O SUJEITO? ...................................................................... 91
5.2 UNERKANNTE EM LACAN .................................................................. 95
5.3 FORCLUSÃO ........................................................................................ 96
6 CONCLUSÃO ...................................................................................... 101
REFERÊNCIAS ....................................................................................... 103
8
1 INTRODUÇÃO
O tema desta dissertação será circunscrito ao âmbito da aporia psicanalítica
nas duas dimensões contidas nessa palavra: enquanto passagem - significado
etimologicamente advindo de poros – e enquanto ausência de passagem e de saída
– indicado pelo prefixo deste termo. Há, portanto, de um lado, a passagem, travessia
de conceitos ao lado da permanência de elementos e, por outro, o impossível, o
limite da resposta. O trabalho com a aporia psicanalítica pôde ser demonstrado
através de um corpo teórico cujos limites implicaram a formalização de uma
escritura, reexaminada por Lacan durante seu ensino (MILLER, 1998). Entretanto,
em lugar do impasse, a orientação lacaniana propõe ao sujeito a mudança
discursiva, a pesquisa e a conversação sobre seus limites conceituais.
A psicose, particularmente a paranóia, foi situada por alguns autores como
um divisor de águas na história da psicanálise, investigada desde 1896 nos estudos
pré-psicanalíticos por Sigmund Freud, e amplamente estudada por Jacques Lacan a
partir de sua tese de doutorado, em 1935. A tese constituiu para o autor um limite e
um ponto de passagem entre epistemologias distintas - da psiquiatria clássica para a
psicanálise.
As definições da paranóia situadas em tempos diferentes, desde as primeiras
construções psicanalíticas de Freud e Lacan, chamam a atenção: em 1895, no
Rascunho H (1969), Freud a define como psicose intelectual e como um modo
patológico de defesa verificado pelo conteúdo inalterado das representações,
inconciliáveis para o eu e pela projeção das representações para o mundo externo.
“A idéia delirante é uma cópia da idéia rechaçada ou o oposto dela (megalomania)”
(FREUD, 1969, p.283). A leitura do capítulo III da história de Schreber, conforme
9
indicam alguns psicanalistas, permite localizar em Freud indicativos a respeito da
questão essencial da paranóia, situada na formação dos sintomas mais do que nos
complexos ou fantasias (SCHEJMAN, 2004). A contribuição freudiana para o tema
da paranóia foi fundamental como suporte de quase todo o desenvolvimento das
concepções psicanalíticas posteriores sobre a psicose. Entretanto, ele estabelece
um impasse ao manter até o fim de sua vida a indicação de que não havia aplicação
da psicanálise para a clínica da psicose.
Lacan, em 1932, dirá que:
Podemos conceber a experiência vivida paranóica e a concepção do
mundo que ela engendra como uma sintaxe original, que contribui
para afirmar, pelos elos de compreensão que lhe são próprios, a
comunidade humana. O conhecimento desta sintaxe nos parece uma
introdução indispensável à compreensão dos valores simbólicos da
arte e, muito particularmente, aos problemas do estilo [...] problemas
sempre insolúveis para toda antropologia que não estiver liberada do
realismo ingênuo do objeto. (LACAN,1987, p. 380)
Em 1948, em A agressividade em psicanálise, Lacan (1998) investiga o
estatuto original do eu narcísico, supostamente paranóico, capturado pela imagem
ideal do outro, imagem simultaneamente amada e odiada. Por outro lado, esse
estatuto original do eu será diferenciado da psicose como estrutura, portanto
conduzindo à diferenciação entre o eu e o sujeito. Esses conceitos iniciais foram
repensados, relidos, modificados pelos próprios autores em decorrência do
desenvolvimento das respectivas investigações e da contribuição de outros
psicanalistas. A investigação nesse campo, dentre outros caminhos, pode então
indagar tanto as transformações sofridas na causalidade, nos sintomas da psicose e
da paranóia, quanto suas conseqüências para a teoria psicanalítica e para a clínica
contemporânea.
O trabalho lacaniano sobre o tema da psicose encontra-se diferenciado nos
dois momentos e decorre de formalizações mais amplas, não excludentes,
10
comparativamente àquelas de Freud - conforme perspectiva que será desenvolvida
nos próximos capítulos - pensadas a partir de epistemologias diversas, ou seja, o
estruturalismo, seguido da lógica e da topologia. Essa partição, nem sempre
rigorosamente datada, em dois grandes momentos do ensino de Lacan, foi proposta
por Jacques-Alain Miller (2003) e por vários autores do Campo Freudiano. Estes
situam ainda alguns Seminários como pontos de torção, passagem, novas
perspectivas abertas pelo exame exaustivo de questões cruciais, tais como o
conceito de inconsciente, o lugar do sintoma, o estatuto do ser e do sujeito, o objeto
e o gozo.
No primeiro ensino, a psicose representa uma das estruturas clínicas
demarcada por uma causa precisa, a forclusão do primeiro significante, o Nome-do-
Pai. Partindo desse ponto de ruptura, que Lacan nomeia desencadeamento, três
efeitos diversos serão reconhecidos: paranóia, esquizofrenia e melancolia. Essas
manifestações não constituem quadros clínicos tomados apenas descritivamente,
mas indicam posições subjetivas passíveis de trânsito dentro da mesma estrutura.
Nessa concepção, o sujeito do inconsciente é pensado a partir dos registros
simbólico e imaginário, do registro fálico, portanto da linguagem, e do discurso do
Outro, o que conduz à prática do deciframento na referência à neurose. O sintoma
consistirá um uso particular do simbólico que fixa o sujeito em determinados modos
de gozo.
A pesquisa lacaniana considerada no registro do real conduzirá à releitura
das posições subjetivas, sem, entretanto, excluí-las, mas concebendo-as como
modalidades particulares de enlaçamento das proposições real, simbólico,
imaginário. O conceito de inconsciente também se modifica, pois no segundo ensino
torna-se escritura, letra de gozo que comporta afetos fora da apreensão pela
11
linguagem. Na perspectiva topológica, a partir das referências aos nós borromeanos,
Lacan estuda sintomas diversos de origem simbólica, que se inscrevem no real e
são concebidos como antinômicos ao sentido, à lei. Portanto, a prevalência não é
do ser, que como efeito de palavra pulsava, representado como falta-a-ser. A noção
inicial de estrutura da linguagem é modificada em escrituras discursivas, um discurso
sem palavras. A partir de novos paradigmas clínicos, Lacan propõe o exame dos
empregos particulares de alingua (lalangue), localizável em um tempo anterior ao
código de linguagem e fora da comunicação. Nesse tempo, a referência é a psicose.
O corpo teórico da psicanálise é assim modificado em seus fundamentos,
através da investigação lacaniana, em decorrência da mudança de axioma, quando
examinado através das perspectivas diversas, nos registros do simbólico, imaginário,
real. Essa mudança permite tanto reler o primeiro paradigma freudiano, a psicose
extraordinária de Schreber, quanto examinar uma nova questão preliminar
descortinada pela noção de psicose ordinária.
A psicose ordinária é um nome que representa as formas contemporâneas da
psicose, e que difere da psicose extraordinária porque acarreta tanto uma
multiplicidade de soluções tais como a psicose tratada, compensada, suplementada,
não desencadeada, medicada, quanto a ausência de desencadeamento típico, ou
seja, sem fenômenos elementares e grandes construções delirantes. A psicose
ordinária representa, segundo a expressão de Eric Laurent (1999, p.16), citada na
Convenção de Antibes, formas de “desligamentos progressivos do Outro” que
demonstram um encontro com o real sem mediação simbólica ou imaginária.
Da paranóia à psicose ordinária é um título que pretende percorrer e indagar
momentos diferentes da contribuição de Jacques Lacan para o tema da psicose,
fundamental para a abordagem da clínica psicanalítica contemporânea. A
12
dissertação situa duas perguntas que decorrem desse percurso histórico sobre o
tema:
1. A psicose ordinária, contemporânea, apresenta formas de desligamentos
progressivos do Outro, mas a paranóia parece tentar responder a um paradoxo: Se
há forclusão, há resposta do Real, e esta não pertence ao Outro. De que modo
ocorre a aparente conciliação entre a resposta do real e o Outro?
2. Considerando as Conversações de Antibes e Arcachon, assim como as
conversações promovidas atualmente pelo Campo Freudiano, quais as implicações
para o manejo do tratamento do sujeito psicótico?
O procedimento metodológico que se utilizará nesta dissertação será a
pesquisa teórica comentada. Jacques Lacan será o autor de referência central para
a pesquisa, mas, também, serão consultados autores contemporâneos que
desenvolveram seus escritos a partir da orientação lacaniana. A pesquisa teórica
será ilustrada por exemplos colhidos na prática institucional e particular de casos
clínicos publicados e debatidos nas Conversações nacionais e internacionais, a
partir das apresentações de pacientes.
O tema será desenvolvido em quatro capítulos, após uma breve introdução:
Capítulo 2. A paranóia - linha divisora de águas
O capítulo dois abordará o conceito de paranóia através do sintagma “um
divisor de águas”, empregado por Lacan (1985) no Seminário 3, que enuncia alguns
limites conceituais. A paranóia pode representar um dos exemplos da diferença
conceitual entre Freud, Lacan e a psiquiatria clássica, entre Lacan e Freud, entre os
diferentes tempos do ensino lacaniano. A paranóia foi introduzida na nosologia
alemã como um delírio sistematizado primitivo, limitado a uma perturbação
intelectual, e estudada inicialmente na psiquiatria clássica como “um delírio sem
13
evolução para a desagregação e a demência” (MAZZUCA, 2004, p.56). Na
psicanálise, a paranóia foi introduzida como psicose extraordinária, na qual sua
etiologia, seus sintomas, sua clínica foram demonstrados a partir da manifestação do
conceito de defesa, dos fenômenos elementares e do desencadeamento. Deve-se,
portanto, examinar os conceitos que compuseram o histórico da paranóia e que
serviram de demarcação e passagem dentro do corpo teórico da psicanálise. Há que
se diferenciar a estrutura clínica do narcisismo original e extrair desse contraponto
possíveis conseqüências.
Capítulo 3. O cogito paranóico - “Eu penso, logo ele goza” - e os conceitos limites
Nesse capítulo, será desenvolvido o cogito, o modo de pensar privilegiado na
paranóia, tal como foi proposto por Miller (1996). Localizado inicialmente na dupla
posição de Schreber, na dupla recusa da falta-a-ser, pois se o gozo é situado no
lugar do Outro, ocorre identificação do gozo e do saber. Na paranóia, o pequeno a e
o Outro confluem, o que é manifestado no sentimento, na certeza de que o Outro
goza do sujeito. Em decorrência disso, surge a confluência das metáforas delirantes,
que promovem as substituições nos efeitos do sentido, e da metonímia do gozo. A
agressividade e as passagens ao ato paranóicos decorrem da peculiaridade desse
cogito, enquanto a escritura do gozo fora da palavra surge na clínica quando
evidencia que o sujeito paranóico inventa-se como causa de um desejo infinito.
A paranóia é examinada através dos três registros que demarcaram o ensino
de Lacan - Imaginário, Simbólico, Real - e de cada um deles o autor demonstra
soluções subjetivas diversas. Entretanto, um modelo que se apóia no
desencadeamento e no Outro encontra um limite para se considerar as psicoses fora
do desencadeamento. A mudança de axiomática lacaniana promove novas
perspectivas para o sintoma.
14
Capítulo 4. A psicose ordinária
A psicose ordinária foi discutida inicialmente nas Conversações de Antibes e
Arcachon na França, em 1998 e 1999. Essas Conversações foram realizadas por
psicanalistas do Campo Freudiano que investigaram, à luz das últimas contribuições
do ensino de Lacan, vários exemplos da clínica da psicose contemporânea. Dentre
os novos conceitos estudados, destacam-se as psicoses fora do desencadeamento,
que privilegiam um enfrentamento do sujeito com o vazio da significação e um
surgimento, um começo, por vezes sutil, imperceptível, que pode ser confundido
com sintomas de natureza diversa, que afetam o corpo. Embora as diferentes
posições subjetivas entre esquizofrenia, paranóia e melancolia permaneçam, a
psicose ordinária ressalta, privilegia a pluralização dos nomes, dos usos possíveis
da letra.
Destaca-se, nesse momento, a investigação sobre uma perspectiva comum
entre neurose e psicose: o vazio enigmático de significação e o enigma do gozo.
Nessa zona de interseção, o sinthoma tem lugar. (MILLER, 1997)
A investigação abordará as principais questões teóricas que decorrem da
mudança de perspectiva lacaniana: novas formas de suplência, outro conceito de
sintoma, a utilização do conceito de alingua (lalangue). Como conseqüência disso,
tem-se um manejo que considera a clínica como constituída por sucessivos
desligamentos e religamentos entre os três registros e que privilegia os modos de
conexão singulares. Estão em jogo as suplências sinthomáticas e os nomes. Os
exemplos clínicos advêm das Conversações de Arcachon e Antibes e dos trabalhos
clínicos, publicados pelo Campo Freudiano, que demonstram a perspectiva da
psicose ordinária. As Conversações constituem tentativas de formalização das
questões que ficaram em aberto e foram colhidas nos Seminários de Lacan, nos
15
anos de 1970 a 1975. Portanto, trazem a marca da incompletude, de um trabalho
que se realiza no campo do real. Simbólico, Imaginário, Real são revistos como
essência do nó borromeano.
A releitura dos conceitos de ego e personalidade, promovida por Lacan no
Seminário Le sinthome, contribui decisivamente para diferenciar comunicação e
nominação, porque os acontecimentos de corpo, um corpo afetado pelo gozo,
promovem a falha nos efeitos de sentido.
Capítulo 5. A psicose é questão do sujeito e do falasser (parlêtre)
A pesquisa promovida na clínica psicanalítica da psicose, ao mesmo tempo
em que conduz ao estudo do real, disjunto do saber, delineia que: “A psicose é
questão de sujeito – pois ela assim mesmo nos conduz aos confins de sua
produção” (MILLER, 1996, p.160), ou seja, o objeto na condição de puro real obriga
o sujeito psicótico a um trabalho incessante de invenções, remédio ou solução que
constituem formas diversas de comentar uma mesma estrutura.
Lacan traz uma contribuição fundamental para o capítulo do pensamento
humano quando indaga e examina os limites do pensamento em um diálogo
constante com filosofia concluindo sua obra por esse exame nos registros do real,
simbólico e imaginário. Com isso demonstra a falha irremediável, o limite do
pensamento no gozo, no corpo, na impossibilidade da relação sexual, na falta de um
significante no campo do Outro, em um conjunto de experiências que afetam o
sujeito, mas que se encontram fora de sentido, podendo ser diversamente
nomeadas. O pensamento encontra seu limite no real resultando para o humano
duas possibilidades ou a loucura ou a debilidade do mental. Essa é uma questão
que Lacan deixa como herança para ser trabalhada pelo campo freudiano.
16
Em decorrência da mudança de axioma na obra de Lacan, o estatuto do
sujeito implicará outro lado, outra face, cujo gozo e corpo implicam outra relação
com o tempo. Se o sujeito como efeito do significante é sem substância, o ser falante
encontra seu estatuto na materialidade do corpo. Trata-se de uma das
conseqüências da estrutura no real, que tem efeitos decisivos sobre a clínica
contemporânea.
6 Conclusão
O percurso histórico no tema da paranóia à psicose ordinária implica o exame
de hipóteses e termina por ensinar que a clínica do real descortina novas
perspectivas que contribuem para aclarar o paradigma constante: a disjunção entre
o sujeito e o Outro.
17
2 A PARANÓIA – LINHA DIVISORA DE ÁGUAS
A paranóia foi um dos conceitos que a epistemologia psicanalítica herdou da
psiquiatria clássica. Entretanto, trata-se de uma herança cuja história é marcada por
descontinuidade e sucessivas reformulações, por vezes representativas de uma
“linha divisora de águas”, sintagma utilizado por Lacan (1981, p.12) em 1955.
Determinante também das diferenças estabelecidas por esse autor entre psiquiatria
e psicanálise, das diferenças entre Freud e a psiquiatria, entre Lacan e Freud. A
psicanálise mantém, até a atualidade, interlocução com a psiquiatria e esse debate
que assume contornos marcados pela dissimetria e rupturas, circunscreve,
necessariamente, a psicose, sua clínica e tratamento.
2.1 A PSIQUIATRIA CLÁSSICA
Um breve histórico da paranóia a partir de seu ponto de origem - a psiquiatria
clássica - fornece esclarecimentos interessantes. Alguns autores representativos de
duas principais escolas de psiquiatria européias, alemã e francesa, são escolhidos
para elucidar essa perspectiva na vastidão oferecida pelas diversas vertentes da
psiquiatria.
A escola alemã, no início do século XIX, utilizava os termos Wahnsinn
(mania, loucura, demência, delírio), Verrückheit, (loucura, demência), e paranóia
ao descrever uma síndrome delirante e alucinatória, sem déficit intelectual, crônica e
relativamente sistematizada. Essa concepção, advinda de J. C. Heinroth, em 1918,
era partilhada por grandes nomes da psiquiatria da época. Em 1845, W. Griessinger,
18
considerado o fundador da escola psiquiátrica alemã, propõe uma nosologia que
considerava a precedência do surgimento da Verrückheit associada um período
primário de perturbação afetiva, com sintomas melancólicos e maníacos. Além disso,
propunha um modelo do funcionamento mental: há representações em luta para
ocupar o campo da consciência e transformar-se em atos. O eu se modifica segundo
o tempo e as circunstâncias, e esse modelo é aplicado à loucura (MAZZUCCA,
2004). Essa concepção, retomada posteriormente por Freud na perspectiva da
psicanálise, surge em outro contexto do eu e das representações inconscientes, não
mais do indivíduo.
A nosologia de Griessinger é construída sobre a noção do ciclo unitário das
psicoses, ou seja, a idéia de formas clínicas diversas que seriam fases sucessivas
de uma mesma enfermidade Essa concepção é também partilhada por Pinel e
Esquirol, embora estes defendessem a idéia da loucura como um gênero unitário e
cada entidade clínica como formas sucessivas de degradação involutiva.
(MAZZUCCA, 2004)
R.von Krafft-Ebing, em 1879, define a paranóia como uma síndrome de
delírios crônicos sistematizados, na qual as representações apresentam coerência
interna, diferenciada das formas agudas. Em 1899 - essa data é variável segundo
as edições de seu Tratado de psiquiatria - Emil Kraepelin propõe uma delimitação
precisa do termo paranóia, separando-a definitivamente das formas agudas, dentre
as quais era confundida com manifestações diversas da esquizofrenia. Kraepelin
define a paranóia como:
grupo de casos segundo os quais se desenvolve, precoce e
progressivamente, um sistema delirante inicialmente característico,
permanente e inquebrantável, mas com total conservação das
faculdades mentais, e da ordem dos pensamentos da vontade e da
ação. (MAZZUCCA, 2004, p.60)
19
A psiquiatria francesa, através de P. Sérieux e J. Capgras diferencia e
acrescenta às descrições de Kraepelin formas de delírios interpretativos e
reivindicativos, que permitirão à Clérambault o esclarecimento dos delírios
passionais, diferenciados dos delírios de reivindicação, de ciúme e da erotomania
(MAZZUCCA, 2004). Acrescenta-se a contribuição de Clérambault para a
erotomania, como a ilusão delirante de ser amado, e para o diagnóstico de psicose
fundamentado nas formas do surgimento dos delírios, no automatismo mental –
descrito como fenômeno primordial - e diferenciado das formas de psicose em que
predomina a alucinação crônica.
Em alguns manuais de psiquiatria encontra-se a descrição pormenorizada dos
delírios crônicos, diferenciados pelas formas evolutivas deficitárias. No capítulo
referente a esses delírios, a paranóia é tratada de forma secundária. Diferenciada da
esquizofrenia, sua manifestação é reconhecida nos delírios sistematizados,
passionais e de reivindicação, sem evolução deficitária. (EY, 1969)
2.1.1 Jacques Lacan e a psiquiatria clássica
Em 1932, Lacan (1987) publica sua tese de doutorado em medicina: Da
psicose paranóica em suas relações com a personalidade. No capítulo I, esclarece
que, em 1818, o termo paranóia foi empregado pela primeira vez na Alemanha por
Heinroth e em seguida desenvolvido pelas três escolas de psiquiatria européias,
alemã, francesa e italiana. Lacan é contundente em sua crítica ao sentido e emprego
do termo, e cita Séglas quando este diz que a paranóia era uma palavra que em
psiquiatria tinha “a significação mais vasta e pior definida” (LACAN, 1987, p.10) e
que era a noção mais inadequada à clínica.
20
Ressalta que, para kraepelin, a entidade da afecção se depreende do estudo
de sua evolução, que exclui a evolução demencial sem causa orgânica subjacente.
Lacan reconhece no trabalho desse autor o rigor nosológico de sua obra, a
maturidade do trabalho de delimitação conceitual da paranóia.
Ele comenta Krestschmer e sua contribuição para o estudo dos delírios
paranóicos, ao diferenciar nas causas dos delírios três elementos: o caráter, o
acontecimento vivido, o meio social - e destacando as reações psíquicas aos
acontecimentos, seu caráter vital e o valor significativo.
Quanto a Jaspers, Lacan diz da atenção especial que aquele autor concedeu
ao estudo das experiências paranóicas, observando os sentimentos marcados por
expectativa indefinida, inquietude, desconfiança, tensão, sentimento de perigo
ameaçador, estado de temor, pressentimento. Comenta o conceito maior de
Jaspers, o processo psíquico, que representa uma mudança na vida psíquica do
doente, no qual as ilusões desempenham um papel preponderante. Diferencia ainda
processo psíquico das reações, fases e períodos, dos processos físico-psicótico,
além de estudar os delírios de ciúme, diferenciados das idéias de perseguição e sua
interferência na personalidade.
A tese de doutorado de Lacan (1987, p.354), que teve na fenomenologia um
marco de reflexão e Karl Jaspers como autor de referência, apóia uma parcela dos
argumentos na psiquiatria alemã, embora as referências ao seu mestre Clérambault
o acompanhem para além da tese em grande parte do seu primeiro ensino. Essa
tese indagou a psicose paranóica sob a égide dos conceitos de personalidade e
desenvolvimento, a partir dos quais o autor propõe os conceitos de paranóia de
autopunição e de reivindicação. Inicia, entretanto, no capítulo II, o emprego de
conceitos psicanalíticos freudianos, tais como libido, objeto, investimento,
21
narcisismo, incorporação, identificação, inconsciente. A conseqüência desse
emprego é interessante, pois o conceito de personalidade, tal como consta na frase
“desenvolvimento da personalidade do sujeito”, depois de ser examinado em
diferentes perspectivas a partir da análise dos sintomas clínicos, é remanejado,
adquirindo o sentido de “acontecimentos da história, progressos da consciência e
reações ao meio social“. Evidencia-se na tese a sutil travessia entre dois campos
epistêmicos.
O estudo pormenorizado do caso Aimée conduz à hipótese da paranóia de
autopunição, na qual são diferenciados o diagnóstico, prognóstico, profilaxia e
tratamento. O início da psicose é brutal, no qual surge o período de estado com a
sistematização do delírio e os fenômenos elementares, como ilusões da percepção,
da memória e sentimento de transformação do mundo externo, dentre outros. As
idéias de perseguição são prevalentes, nas quais o perseguidor (amado-odiado) é
sempre do mesmo sexo que o sujeito. As idéias de ciúme, grandeza e a erotomania
apresentam o caráter do platonismo ou idealismo apaixonado. Lacan observa ainda
a importância das reações agressivas e a satisfação da pulsão auto-punitiva,
realizada com a pulsão agressiva.
Em 1948, no artigo A agressividade em psicanálise, Lacan (1998, p.113)
reexaminará a questão da tendência agressiva nos “estados significativos da
personalidade que são as psicoses paranóides e paranóicas”, tratando a primazia do
ato agressivo ao desfazer a construção delirante.
Uma das grandes questões presentes na tese de Lacan (1987) é o exame
das relações da paranóia com a personalidade. Em suas conclusões críticas,
dogmáticas e hipotéticas, diferencia três indicações de pesquisa diversas, que serão
22
retomadas e reexaminadas pelo próprio autor, mas tendo a psicanálise como
referência teórico-clínica.
Quanto ao tratamento, Lacan argumenta que a psicanálise oferece a técnica
que permite maior aproximação do estudo experimental do sujeito. Suas conclusões
hipotéticas são interessantes porque reúnem numa só frase termos que pertencem à
fenomenologia e à psicanálise. Essas hipóteses têm o mérito de elucidar tanto o
conceito de psicose paranóica, quanto um estudo realizado em um ponto de
passagem entre dois campos teóricos, tal como se depreende da citação:
A paranóia de autopunição e paranóia de reivindicação formam um
grupo específico de psicoses, que são determinadas, não por
mecanismo dito passional, mas por parada evolutiva da
personalidade no estádio genético do Superego. (LACAN,1987,
p.357)
Lacan indica ainda, como hipóteses de pesquisa, as idéias delirantes
hipoconcríacas e os temas delirantes de significação homossexual, como sintomas
que poderão fornecer esclarecimentos nosológicos e clínicos. Além disso, propõe
que seu método possa apreciar diferencialmente: as situações vitais e infantis que
determinam a psicose; os tipos de estrutura conceitual pré-lógica, revelados pela
psicose, e as pulsões agressivas e homicidas que implicam a responsabilidade do
sujeito.
Efetivamente, Lacan retornará em diversos momentos de seu ensino às
hipóteses propostas em 1935 e extrairá contribuições tanto para o tema da psicose e
da paranóia, quanto para a psicanálise de modo mais amplo. As conseqüências
dessa releitura de sua própria tese repercutiram e modificaram a experiência
psicanalítica. O parágrafo extraído de seu Seminário de 1975, Le sinthome, elucida
essa afirmação e contribui para justificar o título do capítulo da presente dissertação:
Houve um tempo, antes que eu estivesse na via da psicanálise, no
qual caminhei numa certa via, aquela de minha tese Da psicose
paranóica em suas, eu disse, relações com a personalidade. Se,
23
durante muito tempo, resisti à sua publicação, é simplesmente porque
a psicose paranóica e a personalidade como tais não têm relação
pela simples razão que são a mesma coisa. (LACAN, 2005, p.53,
tradução nossa)
Em seguida, ele esclarece que os três registros, imaginário, simbólico e real,
possuem uma mesma consistência, portanto, continuidade, o que demarca e
diferencia a psicose paranóica no segundo momento de seu ensino. Essa questão,
que será desenvolvida nos próximos capítulos da dissertação, justifica a afirmação
de que a paranóia opera uma linha divisora de águas entre Lacan e a psiquiatria
clássica.
2.1.2 Psicose infantil e a psiquiatria clássica
O Manual de psiquiatria infantil de J. de Ajuriaguerra (1985), professor do
Collège de France e Coordenador do Serviço Médico-pedagógico em Genebra,
constitui mais uma referência para a pesquisa sobre o histórico da paranóia a partir
das contribuições da psiquiatria clássica.
O aspecto prevalente para o tema advém das indagações de Lacan, em 1932,
sobre a determinação da psicose na infância, retomadas em 1967, na Allocutions sur
les psychose de l’enfant (2001), assim como sobre os pontos de fixação da libido,
anteriormente estudados por Freud, questão que mereceu a pesquisa e indagação
mais ampla de vários psicanalistas pós-freudianos, como se verá a seguir.
No capítulo inicial sobre a história e as origens da psiquiatria infantil,
Ajuriaguerra (1985) informa que seus precursores foram educadores, como o
beneditino Ponce de Léon que, no século XVI, escreveu os primeiros ensaios sobre
a educação de surdos-mudos. No século XIX, Seguin e Pestalozzi trouxeram
contribuições sobre o trabalho educativo com crianças retardadas e idiotas, seguido
24
de Esquirol e Claparède em 1898, em uma perspectiva mais ampla da psiquiatria
geral. Além do trabalho educativo, a psiquiatria infantil teve, desde seu início, uma
abordagem pluridimensional, encontrando-se na encruzilhada de diversas
disciplinas, tais como: pediatria, neurologia, pedagogia, sociologia, psicologia.
As contribuições da pesquisa psicanalítica para a clínica com crianças
decorreram dos trabalhos de Anna Freud, Melanie Klein, Winnicott a partir de 1935.
Além da psicanálise, a psiquiatria infantil se enriqueceu com a psicologia genética de
Piaget e Wallon.
O capítulo dedicado à psicose infantil comporta as descrições da
esquizofrenia infantil, a partir dos trabalhos de H. Poter, em 1933, e do autismo
infantil descrito por L. Kanner em 1943. Todavia, é interessante a afirmação de
Ajuriaguerra de que são encontrados com freqüência tipos de sentimentos delirantes
e episódios confuso-oníricos infantis, embora se discuta a existência de delírios
sistematizados na criança, é conjetura não verificada.
A curiosidade é que não há qualquer menção à paranóia na criança. Com
respeito à psicose infantil, a encruzilhada de diversas disciplinas é verificável tanto
em Ajuriaguerra, quanto em outros autores que contribuem para o Manual de
psiquiatria infantil. A despeito da amplitude das investigações e descobertas
psicanalíticas mencionadas naquela publicação, a psicanálise é referida como uma
prática que aborda a perspectiva do desenvolvimento do indivíduo, afirmação
contraposta às pesquisas de Freud e Lacan.
Essa ausência de especificidade da paranóia na criança é também
encontrada nos psicanalistas pós-freudianos, conforme demonstra a resenha
elaborada por Michel Ledoux (1984), Conceptions psychanalytiques de la psychose
25
infantile, na qual o autor destaca nos pós-freudianos, após examinar treze autores,
diferentes orientações psicanalíticas sobre o tema.
Nessa resenha, menciona particularmente a esquizofrenia, o autismo e a
debilidade, cujos sintomas são mais claramente manifestos e, portanto, passíveis de
um diagnóstico preciso. O autor, quando se refere à psicose infantil de forma mais
ampla, descreve-a no singular, em suas relações com a família, a pulsão, as
fantasias parentais, a sociedade e a cultura.
Essa perspectiva, que de certo modo se coaduna com aquela encontrada
pela psiquiatria infantil, é corroborada por Lacan, guardadas as devidas diferenças,
quando este se refere à psicose infantil. Sua Allocutions sur lês psychoses de l’enfat
(2001), de 1967, fornece elementos fundamentais que constituem indicações muito
precisas para uma pesquisa sobre a psicose infantil. Dentre eles, destaca-se a
psicose assistida nas instituições, a questão da liberdade, a angústia, o gozo, a
identificação e, sobretudo, as devastações sofridas pela criança em decorrência da
resposta ao lugar de objeto que seu corpo pode ocupar na fantasia materna.
Essas sugestões de Lacan foram tomadas a sério por diversos psicanalistas
que investigam e acolhem a psicose infantil, como se pode notar nos trabalhos de
Rosine e Robert Lefort, Maud Mannoni e nas publicações dos grupos de pesquisa
europeus e americanos que compõem os Institutos do Campo Freudiano, tais como:
Rede Cereda, Réseau International D’instituitions Infantiles (RI 3), Antenne 110, Le
Courtil, Diagonal hispanohablante, P.I.P.O.L, Núcleo de pesquisa em psicanálise
com crianças do Instituto de psicanálise e saúde mental de Minas Gerais.
A extensão desses trabalhos é muito ampla e um comentário mais
elucidativo sobre a riqueza dessa temática ultrapassaria os limites desta dissertação.
26
Retornando a Lacan, encontra-se a afirmação reiterada de que a paranóia
não é verificável na criança, embora a psicose infantil revele matizes cada vez mais
surpreendentes e se apresente mesclada por construções delirantes e sintomas
corporais que se manifestam claramente, conforme asseveram as publicações mais
recentes. Essa é também uma questão que possibilitaria uma outra pesquisa e que
ultrapassaria os limites desta investigação.
2.2 A LINHA DIVISORA EM FREUD
A obra de Sigmund Freud, criador da psicanálise, escrita no período de 1894
a 1938, encontra-se impressa – a referência é dos livros publicados em português -
em 23 volumes.
Considerando a precocidade e amplitude dos artigos de Freud que tratam do
tema da paranóia, optou-se por agrupar esses artigos em três grandes momentos e
demarcar-lhes as diferenças. É oportuno assinalar que nessa obra vasta é
assinalável um ponto de torção, representado pelo estabelecimento do conceito de
pulsão de morte em 1919-20, promotor de uma mudança significativa na construção
teórica da psicanálise freudiana e sua incidência nos artigos escritos posteriormente
à data.
O primeiro registro da paranóia em Freud (1977) surge no Rascunho H, de
1895, no qual a paranóia é descrita por Freud como um modo patológico de defesa
do aparelho psíquico, diante de representações inconciliáveis com o eu e que são
projetadas para o mundo exterior. Esse modo patológico de defesa foi encontrado
por Freud também na histeria, na neurose obsessiva e na confusão alucinatória. No
Rascunho K (1977), de 1896, examina o sintoma primário que é formado pela
27
desconfiança. O elemento básico é o mecanismo da projeção, mas na paranóia a
repressão se faz após um pensamento complexo e consciente que implica a recusa
da crença.1
No período de 1893 a 1906, Freud irá pouco a pouco esclarecer os modos de
defesa e recalque, distinguindo progressivamente daqueles apresentados pela
neurose obsessiva, pela histeria, pela paranóia e pela demência precoce.
O que chama a atenção nos artigos que compõem esse primeiro momento é
que, embora Freud utilize a palavra etiologia e descreva uma experiência primária
dos sintomas, o sentido desse termo difere daquele tomado pela psiquiatria. Ele
situa a etiologia como causa sexual, tal como encontra na Análise de um caso de
paranóia crônica e nas Novas pontuações sobre as neuropsicoses de defesa, de
1896. Segundo Freud (1969, p.183), “na etiologia da paranóia encontram-se as
mesmas vivências sexuais da primeira infância da histeria e neurose obsessiva”.
O conceito de defesa que está presente desde os primórdios das descobertas
freudianas será retomado e relido nos dois tempos do ensino de Lacan. Destaca-se
a leitura que este conduz, em 1959, do Cap. VII do Projeto para uma psicologia
científica, quando demonstra que, no início da vida de uma pessoa, as oposições
entre princípio do prazer e princípio de realidade acarretam a defesa como um
fundamental elemento de ligação, de algo que pode ser identificado pela
consciência. Nos processos internos, o sujeito recebe apenas sinais de prazer ou
pena. O objeto hostil, a dor, só é sinalizado na consciência, quando faz o sujeito
soltar um grito que, por sua vez, cumpre a função de descarga. Com isso, Lacan
(1997) demonstra que a defesa começa a existir antes do recalque, e vem constituir
um paradoxo da relação ao real, posto que o inconsciente não revela outra estrutura
1 Na obra de Freud, o termo “Verdrängung”, traduzido por repressão, significa recalque
28
senão a da linguagem. A dor e o grito surgem como traço, sinal diferencial entre
prazer e realidade, mas situado fora do inconsciente, no real.
O segundo marco diferencial sobre a paranóia na obra freudiana pode ser
encontrado em 1911 (1969), nas Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico
de um caso de paranóia (Dementia paranoides) - análise da autobiografia de Paul
Daniel Schreber. Nesse momento, Freud (1969) apresenta argumentos sobre a
paranóia que, por sua relevância, foram reexaminados e ampliados em seus artigos
subseqüentes, assim como por diversos autores psicanalíticos. Esses elementos
possuem o mérito de jamais serem apenas descritivos e a análise dessa
autobiografia tornou-se, segundo o desenvolvimento que lhe conferiu Lacan, o
primeiro paradigma sobre o tema da paranóia demonstrado pela psicanálise.
As tentativas de interpretação, que têm como referência esse texto ímpar,
apóiam-se no que Freud nomeia sua “técnica psicanalítica habitual”. Utilizando-se
dessa técnica, indício de um procedimento padrão, ele parte das declarações
delirantes do paciente e se deixa guiar por sua frase, sua “maneira paranóica de
expressão”, assim como pela causa ativadora da enfermidade, que na paranóia é
situada na manifestação da libido homossexual e na defesa projetiva contra esse
desejo. No caso de Schreber, os objetos desse desejo foram o médico Fleschsig e
Deus. A luta inicial “contra a realização de desejo assintótica” (FREUD, 1969, p.68)
sucumbe na metamorfose d’A mulher de um Deus absoluto, e os sintomas decorrem
da luta de Schreber contra seus impulsos. A emasculação tornava-se consoante
com a Ordem das coisas.
Em outros momentos de seu artigo, Freud reafirmará que a etiologia sexual é
óbvia na paranóia e que esse desejo se manifesta em uma gramática própria,
demonstrada no sexo masculino em três proposições: “eu não o amo”; “eu o odeio”;
29
“ele me odeia”, desdobrada em “ele me persegue”. Portanto, os delírios de
perseguição decorrem da percepção externa de ser amado e, nessa gramática,
Freud diferencia três manifestações delirantes: os delírios de ciúme contradizem o
sujeito; os delírios de perseguição contradizem o predicado; a erotomania, contradiz
o objeto.
As projeções delirantes dos quatro delírios principais - perseguição,
erotomania, ciúme e megalomania - surgem em consonância com essa gramática
subjetiva e constituem para Freud a característica principal da formação de sintomas
na paranóia.
Freud situa na paranóia a fixação da libido entre o auto-erotismo e o
narcisismo, a megalomania e o desligamento progressivo da libido anteriormente
investida em outras pessoas. Esse movimento é silencioso e só é inferido por
acontecimentos subseqüentes, o que conduz Freud a demarcá-lo como um
mecanismo essencial e regular de toda “repressão”, 2 não sem advertir que o que foi
internamente abolido retorna desde fora, indicativos de outro mecanismo diverso da
repressão. Ao mencionar este outro mecanismo, Freud utiliza o termo alemão
Verwerfung, mas cujo emprego difere da tradução e da precisão que Lacan confere
posteriormente.
É ainda importante a afirmação freudiana de que a paranóia “deve ser
mantida como um tipo clínico independente” (FREUD, 1969, p.100), apesar de notar
em alguns casos a presença de características esquizofrênicas. Ele conclui seu
artigo ratificando as duas teses principais sobre a teoria da libido “nas neuroses e
nas psicoses” (p.104) que desenvolverá posteriormente nos textos metapsicológicos:
Neurose e psicose e A perda da realidade na neurose e na psicose. Deve-se
2 Escrita entre aspas no texto em português (1969b, p.90)
30
ressaltar que no pós-escrito às Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico
de um caso de paranóia (Dementia paranoides) Freud faz um breve comentário
sobre a ligação entre as crenças delirantes e sua relação com a mitologia, já tratada
anteriormente, e à qual ele acrescentará novos elementos em artigos subseqüentes.
Podem ser reunidos nesse segundo momento os Artigos sobre
metapsicologia, de 1915, nos quais Freud trabalhará intensamente os conceitos de
inconsciente, pulsão, recalque. Destacam-se, nesse momento, três artigos: Luto e
melancolia (1969), no qual, em decorrência do trabalho sobre os investimentos
libidinais e as identificações regressivas que formam o núcleo do supereu, ele dirá
que os impulsos hostis contra os pais surgem na paranóia como o cerne dos delírios
de perseguição.
O segundo destaque é Um caso de paranóia que contraria a teoria
psicanalítica da doença (1969). O interesse maior desse artigo é que se trata de um
caso de paranóia feminina que permite a Freud a confirmação do conceito formulado
em sua análise de Schreber, da ligação entre paranóia e homossexualismo. Esse
artigo permite a Freud articular ainda as fantasias sexuais, a inércia psíquica e a
fixação (adesividade da libido), e trabalhar o tema das fantasias primevas e o papel
preponderante da mãe, ou sua representante, no delírio, como uma personagem
observadora, perseguidora hostil e malévola. Freud menciona o ruído acidental, que
desempenha o papel de fator provocador nessa fantasia, uma variante da causa
acidental mencionada anteriormente e que mereceu várias considerações
interessantes.
Outro artigo representativo desse período é Sobre o narcisismo: uma
introdução, no qual a ênfase recai no trabalho sobre a diferença sexual, a função de
ideal, a diferença entre libido do eu e do objeto, e onde ele dirá que encontra “a
31
freqüente acusação da paranóia por um dano ao ego e frustração dos ideais”
(FREUD, 1969, p.118). A voz do supereu manifesta-se nos “delírios de ser notado ou
vigiado”, que constituem sintomas prevalentes nas “doenças paranóides” (p.112),
além de voltar a destacar a libido de natureza homossexual, verificada nos delírios.
O terceiro marco diferencial da paranóia, na obra freudiana, encontra-se em
quatro artigos e um verbete, situados depois de 1919. O que motivou o agrupamento
é que, nesses artigos, a paranóia aparece mencionada de forma mais genérica, ao
mesmo tempo em que Freud enuncia claramente a dúvida quanto aos efeitos
promovidos pela psicanálise no tratamento da psicose.
No artigo Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no
homossexualismo, de 1922, Freud (1969, p.273) diferencia três graus de ciúme:
competitivo ou normal; projetado; delirante. Este último é encontrado nas formas
clássicas da paranóia e ocorrem como defesa contra os impulsos homossexuais. Ele
afirma que ”os casos de paranóia não são sensíveis à investigação analítica” e, em
seguida, cita dois fragmentos de paranóia que lhe permitem reafirmar que os
paranóicos projetam o que não desejam reconhecer em si próprios e que as
fantasias homossexuais constituem o cerne desse tipo de ciúme. O interesse maior
recai no trabalho dos “sonhos paranóicos” e ele diz que: “Um sonho pode
representar uma fantasia histérica, uma idéia obsessiva ou um delírio” (p.278).
No verbete Psicanálise, em 1926, Freud (1969) é categórico ao afirmar que a
influência da psicanálise no tratamento da demência precoce e da paranóia é
duvidosa.
Na Conferência XXXIII, em 1932, Feminilidade (1969), menciona a libido
dirigida à mãe na forma de fixação pré-edipiana, verificada nos casos de paranóia de
ciúmes em mulheres.
32
Em O humor, de 1927, Freud (1969) afirma que as idéias de perseguição se
formam precocemente e persistem por longo tempo sem se manifestarem, até
surgirem como resposta a um determinado acontecimento precipitante e específico.
Encontra-se aqui uma variante da abordagem da causa acidental mencionada
anteriormente.
Nesse artigo de 1927 - trata-se de uma suposição - encontram-se alguns
elementos que resultaram na investigação posterior de Lacan sobre as psicoses fora
do desencadeamento e sobre o conceito de desencadeamento a partir do encontro
com um significante no registro simbólico, o que representou uma contribuição
decisiva para o estudo do tema.
Nessa breve resenha da obra de Freud, há que se destacar o termo
“repressão” que, como foi mencionado anteriormente, passa a ser colocado entre
aspas a partir de 1915 ou destacado como uma outra modalidade de repressão, a
repressão primária, um rechaço de certos desejos. Não se encontram na obra de
Freud, em português, maiores esclarecimentos sobre esse emprego, mas parece
fundamental comentá-lo, pois constituiu motivo de pesquisa de outros autores,
principalmente Jacques Lacan.
Trata-se do termo alemão Verwerfung, que foi destacado por Lacan, em seu
primeiro ensino, como um conceito diferencial na clínica da psicose. O conceito de
Verwerfung é utilizado por Freud (1969) desde As psiconeuroses de defesa, de
1894, nas quais o eu rechaça (verwirft) a representação insuportável. Lacan
enfatizará a Verwerfung como responsável pela repressão primária, pois é
necessário considerar um mais além da repressão que primitivamente a constitui
(MALEVAL, 2002). Freud emprega essa palavra, em épocas diferentes,
descrevendo-a das seguintes maneiras: 1. como um juízo do eu gerando uma
33
ruptura com a realidade impossível de assumir. 2. como rechaço das fantasias
incestuosas da puberdade. 3. associada à transferência negativa, como sinônimo de
repressão. 4. como fundamento da consciência moral. 5. como fundadora de uma
culpabilidade originária articulada à noção de supereu.
Jean-Claude Maleval (2002), dentre outros autores, dedica em sua tese La
forclusión del nombre del padre uma extensa investigação do termo, esclarecendo
que se trata de uma palavra originalmente advinda da filosofia de Brentano,
demarcando ainda as diferenças e analogias entre o emprego freudiano e lacaniano.
Para Freud, o sentido do termo era diversificado e extenso, não necessariamente
utilizado para tratar da paranóia e da psicose, enquanto para Lacan, era restrito à
psicose, à conotação jurídica atribuída à palavra em francês o que lhe permite a
tradução por forclusão de um significante primordial, chamado por ele, dentre outros
nomes, de Nome-do-Pai.
A paranóia surge muito cedo na obra freudiana como investigação, mas
demarcando um limite com a psiquiatria através do termo etiologia, considerada
como sexual segundo o criador da psicanálise. Entre Freud e Lacan, o conceito de
Verwerfung é o que parece demarcar o limite das distintas concepções da paranóia.
Evidentemente, são termos representativos, e não se pode restringir a amplitude de
duas grandes obras a dois conceitos, pois se trata apenas de exemplos colhidos nos
pontos de interseção dentro da abrangência oferecida pelas construções
psicanalíticas desses dois autores.
Outro exemplo da Verwerfung como um limite conceitual entre Freud e Lacan
foi a leitura e o contraponto conduzidos por este em torno do caso “O homem dos
lobos” em História de uma neurose infantil (1976) e comentado em mais de uma
publicação para Freud. Trata-se de um caso de neurose obsessiva, entretanto,
34
curiosamente, Lacan (1985, p.21) afirma no Seminário As psicoses que o texto
desse caso clínico é sem ambigüidades e que “O homem dos lobos testemunha
tendências e propriedades psicóticas na curta paranóia que fará entre o fim do
tratamento de Freud (...)”. Essa clínica é exemplar, pois dela Lacan extrairá o
conceito de “Verwerfung” para demarcar que “tudo que é recusado na ordem
simbólica, reaparece no real” e fazer do conceito um marco diferencial entre a clínica
da neurose e da psicose.
2.3 O DIVISOR DE ÁGUAS EM LACAN
O trabalho de Jacques Lacan é constituído por sua tese de doutorado em
psiquiatria, artigos diversos e artigos reunidos em duas publicações mais
abrangentes, Escritos (1998) e Outros Escritos (2001), além das lições de seu
ensino publicadas em 24 livros, parte dos quais estão publicados em português,
compreendendo o período de 1934 a 1978.
A formalização dos conceitos lacanianos sobre a psicose decorre das
reflexões e mudanças efetuadas nos dois momentos de seu ensino, que são
demarcados por epistemologias diversas, sendo a primeira estruturalista, seguida da
topologia e da lógica. A clínica da psicose, na perspectiva lacaniana, é trabalhada
diversamente através de três paradigmas, dois quais dois estão situados no campo
da literatura, o que lhe franqueou articulações com o estilo, a letra, a obra. Schreber,
Lol. V. Stein - personagem de um romance da escritora francesa Marguerite Duras -
e o escritor irlandês James Joyce, são exemplos que permitiram a Lacan extrair e
demonstrar lições clínicas. (NAVEAU, 2004)
35
Demarcado em dois momentos distintos, cuja datação nem sempre é precisa,
o ensino lacaniano foi diferenciado em dois algoritmos, segundo o que esclarece a
exposição de Miller (2003). No primeiro, a referência é a lingüística estrutural, na
qual o trabalho recai sobre as relações entre o significante e o significando. O
inconsciente é história, portanto expressão do conjunto dos efeitos de sentido Há um
período intermediário, no qual alguns artigos representam um momento de torção e
passagem, tais como: tais como: L’angoisse (2004); Los nombres del padre (2005);
Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise. O segundo algoritmo, situado
“mais além do inconsciente”, marca uma barra, uma separação entre o real e tudo o
que seria sentido e saber. A neurose seria representativa do primeiro ensino, e a
psicose, do segundo.
Se a referência inicial é o inconsciente estruturado como uma linguagem,
haveria três organizações clínicas - neurose, perversão e psicose - portanto
estruturas subjetivas distintas. A paranóia seria representativa de uma das
manifestações da psicose, e esta estrutura seria diferenciada das demais pela
presença da forclusão, da Verwerfung, como diz em 1956:
De que se trata quando falo da Verwerfung? Trata-se da rejeição de
um significante primordial em trevas exteriores, significante que
faltará desde então nesse nível. Eis o mecanismo fundamental que
suponho na base da paranóia. Trata-se de um processo primordial de
exclusão de um dentro primitivo, que não é o dentro do corpo, mas
aquele de um primeiro corpo de significante (LACAN, 1985, p.174)
Nesse período, ele enuncia algumas questões importantes: 1. na paranóia, diferente
da esquizofrenia, há uma relação de alienação imaginária do eu. 2. tomar o
imaginário pelo real é o que caracteriza a paranóia. 3. a injúria é um termo
destacado como essencial na fenomenologia clínica da paranóia.
No Seminário A ética da psicanálise, de 1959, Lacan (1988) fará articulações
sobre a crença e a descrença no sujeito paranóico, que serão retomadas em 1964,
36
no Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, tal como se vê na
lição de 10.06.64.
No fundo da própria paranóia, que nos parece no entanto toda
animada de crença, reina esse fenômeno de Unglauben. Não é não
crer nisso, mas a ausência de um dos termos da crença, do termo em
que se designa a divisão do sujeito. (LACAN, 1985, p.225)
A articulação da crença, da descrença e da escritura resultam em uma
importante reflexão sobre a letra, a palavra e o corpo, que encontrarão no Seminário
Le sinthome, de 1975, seu desenvolvimento mais expressivo, posto que o sujeito é
concebido como um efeito do real.
No Seminário Los nombres del padre (2005), de 1963, e em R.S.I. (1974,
p.23), de 1974, trabalhará a incidência da voz, do olhar do Outro, e o congelamento
do desejo para o sujeito paranóico. A redefinição de sintoma como “o que, do
inconsciente, pode se traduzir por uma letra” franqueará os desenvolvimentos
posteriores, necessários à construção do terceiro paradigma clínico - James Joyce.
O segundo algoritmo lacaniano encontra-se ainda em processo de
formalização pelo Campo Freudiano, mas decorre das vias abertas pelos Seminários
Mais, ainda (1985) e Le sinhome (2005). Mais especificamente reúne as idéias
contidas nos seminários 18 até 24. O conceito de inconsciente é modificado e a
psicanálise lacaniana passa a ser definida como uma experiência do real.
Na resenha e comentários sobre as contribuições lacanianas elaborados por
Éric Laurent (1995), o autor assinala que de 1936 a 1976, a cada dez anos, houve
no ensino de Lacan, uma reformulação sobre as psicoses. Nesse vasto período,
destacam-se seminários ou momentos nos quais são localizados artigos
fundamentais: O Seminário 3, As psicoses (1985), no qual ele trabalha a noção de
inconsciente estruturado como uma linguagem, introduz o termo desencadeamento
e a concepção de descontinuidade, posto que o significante é descontínuo. Nos
37
Escritos, em 1958, o texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose (1998), no qual a questão preliminar é o conceito de forclusão do
significante Nome-do-Pai e seus efeitos como dano que o sujeito tenta inutilmente
reparar. Acrescenta-se que as observações de Lacan sobre o jogo da coação a
pensar e sobre o pensar em nada, investigado no relato de Schreber, trazem
importante desenvolvimento para o entendimento do mecanismo do delírio e o
pensamento inconsciente.
Laurent destaca o período de 1964 a 1969 como muito rico em textos sobre a
psicose, sublinhando que é no Seminário 11 que se encontra a primeira referência
de Lacan sobre a psicose infantil em um novo enfoque, a partir do posicionamento
da criança psicótica como resposta à fantasia de sua mãe.
Os Seminários proferidos em torno de 1976 produzem nova orientação que
permite repensar formas diversas de estabilização nas psicoses. Se a lingüística
serviu para trabalhar o laço entre os primeiros significantes, a topologia, por outro
lado, surgiu nesse período como instrumento para pensar o significante sozinho. O
Um da exceção, que fixa um gozo como letra e, nesse sentido, dispensa o Outro da
linguagem. Essa mudança não se faz de modo aleatório. Trata-se, como diz Maleval
(2002, p.133), de “um esforço de rigor para captar de forma cada vez mais fina a
definição de estrutura do sujeito”.
O conceito de paranóia e de psicose acompanha esse vasto movimento
teórico e ainda se faz presente como ponto de reflexão em Lacan, no Seminário
XXIII, quando afirma que o “imaginário, simbólico, real” são de uma só e mesma
consistência e é no que consiste a psicose paranóica”. Autores diversos, de
diferentes países, têm procurado trabalhar essa questão. Mazzucca (2000) indaga
tanto a significação no real, que leva ao trabalho sobre a paranóia, quanto indaga
38
sobre a continuidade, a solda dos três registros. Por outro lado, Naveau (2002)
argumenta que a paranóia ficaria ausente da lógica do nó borromeano porque a
paranóia supõe uma hierarquia, uma ordem, e a topologia dos nós se opõe à lógica
do significante.
Esse debate será retomado nos capítulos seguintes, porém se conclui, da
breve pesquisa teórica exposta neste capítulo, que os conceitos psicanalíticos não
podem ser tomados isoladamente. Devem ser considerados tanto em Freud, quanto
em Lacan, no contexto histórico em que foram pensados, assim como no incessante
trabalho de leitura, de inscrição retroativa, trabalho que a psicanálise nomeia a
posteriori, que é uma das traduções possíveis do termo freudiano, Narchträglich. O
tempo, aqui, não é cronológico, mas da lógica do inconsciente, lógica subjetiva.
Em uma ampliação da perspectiva, a psicose, e não apenas a paranóia, será
tratada no último ensino de Lacan como conceito que faz parte de um dos vetores
que conduzirão mais além do inconsciente, e por isso mesmo, tomada como limite,
ponto de passagem, travessia teórica para uma dimensão inédita da psicanálise. A
paranóia será então reexaminada por vários autores à luz do segundo tempo do
ensino de Lacan.
39
3 O COGITO PARANÓICO: “EU PENSO, LOGO ELE GOZA” - E OS
CONCEITOS LIMITES
No início de um dos capítulos de seu livro de memórias, Schreber diz:
Dizem que eu sou paranóico e dizem que os paranóicos são pessoas
que relacionam tudo a elas. Nesse caso, eles se enganam, não sou
eu que relaciono tudo a mim, é ele que relaciona tudo a mim, é esse
Deus que fala sem parar no interior de mim mesmo por meio de seus
diversos agentes e prolongamentos. (LACAN, 1985, p.157)
O cogito paranóico, modo de pensar privilegiado na paranóia, tem no
testemunho de Schreber um exemplo bastante contundente. Jacques-Alain Miller
(1996, p.158) escreve a frase que foi colhida e citada no título deste capítulo. Devese
ressaltar o termo certeza como aquele que “permitiu a Lacan esclarecer o cogito
cujo segredo é uma forclusão”. A certeza do delírio, da interlocução delirante,
manifesta-se em gozo carregado de significação, absoluta, infinita, presente no
testemunho de algo que tomou a forma da palavra e fala ao sujeito. O mundo perde
sua neutralidade, não há lugar para a contingência, para o acaso, e tudo faz signo
para o sujeito.
Percorrer a significação do delírio e esclarecer o fenômeno psicótico e seu
mecanismo foi o ponto de partida do extenso trabalho de investigação lacaniana,
situado tanto na tese de doutorado de Lacan sobre as relações entre paranóia e
personalidade, publicada em 1935, quanto nas indagações advindas da conclusão
dessa tese e que se encontram nos artigos de 1946, 1948, dentre outros.
Em data um pouco anterior a 1935, houve um encontro de Lacan com o
surrealismo francês, mencionado no artigo De nossos antecedentes, no qual há uma
retrospectiva dos trabalhos que acompanharam sua entrada em análise e sobre a
40
tese que se desenvolveu sob a rubrica “conhecimento paranóico”, mencionando os
nomes de Dali e Crevel, além da paranóia crítica.
A esse respeito, deve-se registrar que, em 1930, o pintor Salvador Dali define
sua pintura construída através do que nomeia “método paranóico-crítico”, sobre o
qual desenvolverá vários artigos. Dali (1994, p.3) descreve um “método espontâneo
de conhecimento irracional baseado em fenômenos delirantes”, no qual pretende
sistematizar seus delírios concebendo a paranóia como ”exaltação orgulhosa de mim
mesmo”. Nesse sentido, visava a vigência do sonho em vigília, além da exploração,
organização crítica e ativa do pensamento paranóico no campo da arte. Em uma
crônica publicada recentemente, Herbert Waschberger (2005) menciona o elogio de
Dali à tese de Lacan e indaga as repercussões desse encontro para o início das
elaborações lacanianas sobre a paranóia.
Vinte anos após a tese, o trabalho mais extenso de Lacan sobre a psicose
privilegia ainda indagações sobre a paranóia. O livro de memórias de Paul Daniel
Schreber, publicado em 1903, e o trabalho já desenvolvido anteriormente por Freud,
em 1909, subsidiaram algumas hipóteses essenciais sobre esse tema - dentre elas o
conceito de forclusão e de desencadeamento.
No último ensino, surge uma outra leitura da psicose, problematizada mais
amplamente, sob uma perspectiva decorrente de outra axiomática, no recurso à
lógica, à topologia, a outro conceito de inconsciente e de sujeito, a outro interlocutor
e outra obra: a do escritor irlandês James Joyce. O pensamento encontra seu limite.
Freud considerou, ao longo da construção psicanalítica, cinco temas
diretamente relacionados com a paranóia: o conceito de defesa; o mecanismo do
recalque; a teoria do narcisismo e da libido; a eleição homossexual do objeto; a
perda e a reconstituição da realidade. Lacan, a partir do Seminário 3, desenvolve os
41
temas: os fenômenos elementares, mas diferenciados dos fenômenos propostos
anteriormente por Clèrambault; a forclusão do Nome-do-Pai; os transtornos da
linguagem; as formas de desencadeamento; as construções delirantes; a
emergência de “A mulher” ; a transferência do sujeito psicótico.
A autobiografia de Schreber, publicada em 1903, destinou-se, por vontade de
seu autor, à contribuição valiosa para a pesquisa científica. Segundo palavras
extraídas do extraídas do prólogo de sua autobiografia:
Creio que poderia ser valioso para a ciência e para o conhecimento das
verdades religiosas possibilitar, ainda durante a minha vida, quaisquer
observações da parte de profissionais sobre meu corpo e meu destino
pessoal. (SCHREBER, 1995, p.23)
Freud (1969, p.33) justifica seu interesse por esse livro único afirmando, em
1911, que “um relatório escrito ou uma história clínica impressa podem tomar lugar
de um conhecimento pessoal do paciente”. A autobiografia contém elementos que
permitem situar tanto os principais temas pesquisados por Freud e Lacan sobre a
paranóia, quanto subsidia observações sobre a analogia entre crença delirante e
mitologia, desenvolvidas por Freud em seu pós-escrito e retomado em outros
trabalhos posteriores. Portanto, a contribuição valiosa almejada por Schreber
ultrapassa o âmbito do caso clínico e se estende ao campo do mito, da crença, da
cultura.
Quando discute a causalidade essencial da loucura nas Formulações sobre a
causalidade psíquica, em 1946, Lacan (1998, p.163) reafirma, a propósito do debate
sobre sua tese, que “não podemos esquecer que a loucura é um fenômeno do
pensamento”. Seguindo as hipóteses freudianas, a causalidade da paranóia foi
localizada inicialmente por Lacan na identificação narcísica, na qual a relação com a
imagem reúne a alienação de um Eu primordial e o sacrifício suicida. Lacan
estabelecia assim a analogia e a diferença entre o estatuto original do sujeito, como
42
capturado pela imagem do outro, e a estrutura fundamental da loucura. Miller (1998,
p.258) teceu considerações em torno dessa questão lacaniana, de que “o narcisismo
é a paranóia e, nesse sentido, vale para todo sujeito”.
Ainda segundo Miller (2003), em Schreber tem-se a referência de que o
pensamento é gozo, considerando que o incessante pensar está vinculado a uma
cogitação articulada, cujo ponto de basta é demarcado por instantes limitados que
dão lugar ao pensar em nada, breves momentos de silêncio que no caso de
Schreber faz cessar a réplica. O silêncio surge como função de corte que tem por
efeito apaziguar a interlocução delirante.
O cogito paranóico na obra de Lacan pode ser lido em dimensões diferentes,
tributárias das modificações nas concepções de sujeito, portanto, de inconsciente e
gozo desenvolvidas ao longo de seu ensino. Isso equivale a considerar a paranóia e
os tratamentos propostos ao gozo nos três registros: Imaginário, Simbólico e Real.
Lo simbólico, lo imaginário y lo real (2005) foi o título de uma palestra
proferida por Lacan (2005) em 1953, na qual aborda pela primeira vez essa tríade de
nomes aos quais dedicará, por aproximadamente três décadas, um trabalho de
revisão conceitual até a época de seu último ensino. Considerar a paranóia na
diversidade dessa perspectiva permite situar a evolução de um conceito, seus limites
e demarcar-lhes os pontos de passagem.
Entretanto, há em Lacan o que Miller nomeia de “paradigma constante”, que
deve ser considerado, ou seja, o sujeito não pode ser conceituado sem a
dependência ao discurso do Outro. Trata-se de um princípio que repercute sobre
diversos níveis da teoria psicanalítica, mesmo quando Lacan (2003) privilegia em
seu trabalho o resíduo de uma operação significante, que é o objeto a.
43
Considerando esse paradigma, examina-se na paranóia o estatuto do sujeito, do
Outro, do objeto e do sintoma.
3.1 O IMAGINÁRIO
O momento histórico no ensino de Lacan, no qual a investigação recai
preferencialmente sobre o registro imaginário pode ser situado entre a publicação de
sua tese e o artigo sobre agressividade, de 1935 a 1948. A pesquisa do estádio do
espelho e o estudo dos conceitos de identificação e alienação especular, dentre
outros situam a paranóia na perspectiva do narcisismo freudiano e das hipóteses
sobre a agressividade, expressão da alienação imaginária do eu, reafirmada até o
Seminário 2, em 1955.
Esse eu é o outro do espelho imaginário, o eu ideal, simultaneamente amado
e odiado, que foi investigado por Lacan em sua tese através do caso de Aimée. No
Seminário 3, ele tentará cernir a dimensão desse diálogo com o outro, destacando o
valor central da indagação “Quem fala?” na paranóia. Isto porque essa pergunta
ressurge de diversas maneiras em alguns sujeitos, como resposta marcada pela
certeza: nos delírios querelantes, nos delírios de ciúme e perseguição, nos quais o
significante é tomado no sentido material e as palavras ganham um significado
especial; quando a fórmula verbal se repete, repisa numa insistência estereotipada;
ou na certeza do conhecimento paranóico que se faz pela via da rivalidade e do
ciúme.
A imago foi o operador privilegiado do registro imaginário e do encontro com a
imagem do duplo, representado pelo eu ideal. O imaginário tem dois caminhos: o
primeiro, a estrutura formal do eu e a paixão narcísica; e o segundo, lugar de
44
retorno. Na psicose, retorna vindo de fora, nas interpretações delirantes paranóicas,
no corpo despedaçado do sujeito esquizofrênico, e sobretudo na captação da
imagem na dialética das identificações. Imagem que, na psicose, toma consistência
de realidade.
Em 1948, no Seminário sobre A agressividade em psicanálise, Lacan (1998)
desenvolve sua Tese IV em torno do argumento de que a agressividade
corresponde a um modo de identificação narcísica e que esta determina a estrutura
formal do eu. Nesta enfatiza, por um lado, a paranóia de autopunição na qual o ato
desfaz a construção delirante, e por outro, situado no ponto culminante da reação
agressiva, enfatiza o kakon obscuro, ou seja, a destrutividade dirigida à imagem do
duplo. Essa paixão desvairada seria mediadora e ao mesmo tempo realizaria a
opressão imposta pelos imperativos do supereu. Nesse período, o tratamento ao
gozo, conforme indicado por Lacan, e os casos clínicos estudados pareciam indicarlhe,
localiza-se na passagem ao ato e nas diversas formas que a reação agressiva
pode assumir para o sujeito paranóico.
A incidência do supereu como um imperativo que oprime e coage o sujeito foi
verificada por Lacan desde o tempo de sua tese, na esfera dos fenômenos impostos.
Em 1959, no Seminário A ética da psicanálise, foi problematizada como uma
questão fundamental que faz parte dos princípios do prazer e realidade postulados
por Freud, até constituir-se nos paradoxos da ética, pois participa das questões que
constituem o bem e mal para um sujeito. No último ensino, Lacan volta a indagar a
voz como uma das faces do objeto, que na psicose não é destacada do campo do
Outro. Ele trabalha tanto a voz do supereu quanto instiga o analista a considerar a
voz do Outro a que ele dá corpo.
45
O capítulo relativo ao supereu e sua participação nessa estrutura é
importante, mas considerado em sua vastidão, ultrapassaria os limites do tema aqui
tratado, motivo pelo qual será apenas em breves momentos mencionado.
O estádio do espelho, terreno inicialmente privilegiado do imaginário, é
trabalhado por Lacan na diferença entre organismo e corpo visual, e seus avatares
perceptivos, mas marcado por uma função vital, pois a “imagem corporal à qual o
sujeito se identifica tem valor de vida”. (MILLER, 2004, p.59)
Entretanto, para Schreber a regressão imaginária e a fragmentação da
identidade, produtos da forclusão, surgem na revelação da própria morte que fora
anunciada nos jornais. A morte do sujeito marca em determinado momento a relação
de Schreber com seus semelhantes. O gozo concebido por Lacan, como especular
e narcísico, pode ser lido principalmente nos fenômenos de corpo apresentados na
psicose.
Quando posteriormente Lacan revisita o estádio do espelho e mais
amplamente o imaginário pela perspectiva do registro simbólico, do significante
Nome-do-Pai, desvela a mortificação intrínseca da regressão imaginária, signo de
um gozo mortífero com a imagem. Com isso, modifica os limites conceituais de
narcisismo trabalhado nessa época e as hipóteses que lhe eram correlatas.
A regressão imaginária e a erotização delirante da imagem, produtos da
forclusão, encontram na frase de Schreber - ”Um cadáver leproso conduzindo um
outro cadáver leproso” - um testemunho eloqüente. Nesse instante, o gozo passa a
ser concebido por Lacan como especular e narcísico, lido principalmente nos
fenômenos de corpo apresentados por Schreber.
Miller (1998, p.261), em seu Seminário Los signos del goce, tece comentários
pertinentes sobre a releitura do imaginário conduzida por Lacan até o final de seu
46
ensino, dos quais particulariza-se a expressão “paranóia dirigida”: “quando o nome
da insígnia era imago, Lacan considerava a psicanálise como uma ‘paranóia
dirigida’. Essa expressão se justifica porque uma psicanálise examina, faz esgotar o
valor das diferentes identificações ideais que incidiram na história do sujeito.
Acrescenta-se que no final do Seminário de 1960, A transferência, Lacan dirá que o
trabalho de luto é um dos elementos que antecede e conduz ao final de uma
análise; luto das identificações, dos ideais, das perdas reais - marcas dos traços
que foram um a um percorridos na experiência analítica.
A partir do Seminário Mais ainda e nos textos em torno de 1972, Lacan (1985)
irá decompor a questão do que faz o Um, a identificação, e destacar outro estatuto
do objeto a, quando esclarece que sob o hábito do corpo há o objeto e o que faz
esse corpo agüentar-se como imagem é o resto. A releitura promovida no registro do
imaginário se insere no movimento maior do trabalho conceitual da psicanálise
lacaniana, como se verá a seguir. A identificação se dirigirá a um nome, e o
pensamento incluirá seu limite de comunicação no gozo do corpo, na impossibilidade
de escrever a relação sexual.
3.2 O SIMBÓLICO
A partir de 1955-58 e da referência fornecida pela dupla noção de significação
do falo, Lacan distingue progressivamente as noções de eu ideal e ideal do eu.
Nesse período, que alcança o Seminário de 1962, A identificação, a causalidade
significante é atribuída ao simbólico, o operador é o falo, e a fantasia, passível de
representar a conjunção das funções simbólica e imaginária. O drama da loucura
situado na relação do homem com o significante encontra-se desenvolvido no artigo
47
De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. Esse artigo foi
escrito na mesma data que o Seminário 3: As Psicoses, no qual o conceito de
forclusão do significante Nome-do-Pai será um dos fundamentos conceituais
demonstrados no desencadeamento. A função Nome-do-Pai opera como ponto de
basta na ordem simbólica, pois é o significante que detém o deslizamento infinito da
cadeia. Quando há forclusão do S1, a metáfora delirante vem substituir a metáfora
paterna. Com isso, Lacan demonstra que a psicose é determinada pelo significante.
Miller (1996) destaca alguns aspectos fundamentais do texto de Lacan que
devem ser brevemente comentados:
1. a psicose é uma estrutura, noção básica que dará suporte às construções
lacanianas que virão em seguida;
2. a importância dos esquemas: O esquema L demonstra um sujeito diante
das questões propostas por sua existência. O esquema R, o sujeito e o jogo dos
significantes. O esquema I, a dupla curva da hipérbole e assíntota, através da qual
demonstra que o estado terminal da psicose não é o caos petrificado. Os esquemas
representam um segundo momento na obra de Lacan, e talvez o mais decisivo no
tempo do primeiro ensino, que consiste em trabalhar, esquematizar as articulações
entre o Simbólico, o Real e o Imaginário.
3. a transferência como fator que precipitou o sujeito Schreber na psicose,
questão que não constitui um ponto pacífico, pois o próprio Lacan acrescenta a esse
respeito novas indagações. A transferência erotômana ou persecutória faz parte do
tratamento do sujeito psicótico, particularmente no paranóico, e representa um
elemento importante na direção do tratamento, como se verá a seguir.
Foi preciso que historicamente Lacan ultrapassasse o debate com a dialética
hegeliana, que marcou o estudo da paranóia na perspectiva do estádio do espelho,
48
para iniciar o período de referência à lingüística estrutural, particularmente à noção
de inconsciente estruturado como uma linguagem e de sujeito do inconsciente. Esse
foi o marco decisivo para a ênfase atribuída ao registro do simbólico nesse período.
A leitura do Caso Schreber foi essencial para o estudo da psicose a partir do
estudo desenvolvido por Freud, em 1909, sobre a autobiografia de Paul Daniel
Schreber. Alguns capítulos dessa autobiografia são comentados ao longo do
desenvolvimento das hipóteses lacanianas no Seminário 3. Nessa época, é
prevalente a questão fálica, o Nome-do-Pai, de onde decorrem as diferenças entre
gozo fálico e gozo do Outro, e o determinismo simbólico do desencadeamento. Há
na psicose o encontro com Um pai que promove o surgimento dos fenômenos
elementares: neologismos, delírios, alterações da linguagem. Lacan modifica a lista
proposta por Clérambault porque na perspectiva da psicanálise, ao examinar a
noção de inconsciente estruturado como uma linguagem, considera os fenômenos
elementares em outra epistemologia, outra causalidade.
No Caso Schreber é destacada a relevância da escrita para o sujeito psicótico
como possibilidade no tratamento de um gozo que o invade e o abandona. A escrita,
que será repensada no tempo de seu segundo ensino, foi considerada desde essa
época por Lacan:
A introdução da categoria de sujeito pelo psicanalista leva, em
primeiro lugar, a considerar o texto psicótico como ficção e
distribuição de gozo, e, em segundo, valorizar essa função do texto,
não como uma exibição de identificações, mas, propriamente falando,
como um esvaziamento do gozo. (LAURENT, 1995, p.189)
Lacan (1985, p.20) inicia a construção do Caso Schreber no Seminário 3
apontando a decifração champollionesca que Freud opera nesse livro único,
traduzindo-o e com isso revelando um idioma esquecido. Entretanto, alerta que o
“sujeito psicótico ignora a língua que fala”. Se o inconsciente permanece excluído
49
para o sujeito é porque ele aparece no real. Esse é o efeito da Verwerfung, do que é
recusado na ordem simbólica.
Indaga o papel central da alucinação verbal na paranóia e empenha-se por
descrever a natureza do delírio, pois no conteúdo do tema delirante de Schreber
sobre os nervos e raios divinos haveria uma analogia com as estruturas de troca
interindividual da economia intrapsíquica. As palavras adquirem uma significação
irredutível e a frase, plena de neologismos, nos quais se observam os fenômenos de
intuição delirante – a língua fundamental na qual a palavra do enigma traduz uma
experiência particular - e a fórmula, que é demonstrada nas repetições, na
insistência estereotipada, no ritornelo.
Para Clérambault, o “eco do pensamento” era considerado um dos
fenômenos do automatismo mental que Lacan interpreta como uma perturbação do
enunciado com a enunciação, pois verifica que enquanto o sujeito paranóico é
pródigo em enunciados, ele não pode lidar com a enunciação, com os lapsos e por
esse motivo eles vêm de fora. O trânsito da mensagem para o código e do código
para a mensagem fica destruído, impossibilitado devido à forclusão. Segundo Lacan
(1999), os fenômenos de vozes substituem essa deficiência. Não há na psicose um
Outro do qual o sujeito receba sua própria mensagem invertida. Portanto os lapsos,
os tropeços, os mal-entendidos, os engodos da linguagem não dividem o sujeito.
É nesse ponto que Lacan comenta de outro modo a estrutura do discurso
paranóico, na gramática de três tempos que justifica o delírio de perseguição: “não
sou eu que o amo”; “eu não o amo, eu o odeio” ; “ele me odeia” . Ele diferencia o
delírio de ciúme paranóico - marcado pelo gozo maléfico vindo do Outro - da
erotomania - no delírio de ser amado - mas enfatiza o ponto em comum entre esses
dois delírios que é a certeza como postulado fundamental.
50
No fundamento da paranóia “alguma coisa tomou a forma de palavra falada,
que lhe fala” (LACAN, 1985, p.52), como anteriormente Freud construíra no
movimento de negação e projeção, extraindo os três tempos da gramática do
testemunho de Schreber.Entretanto a partir de 1958, nos artigos sobre psicose que
compõem os Escritos, Lacan estabelece uma diferenciação, pois em vez de
privilegiar o mecanismo de projeção enfatizado por Freud e pelos pós-freudianos,
trabalha a resposta que vem no real.
A posição de exterioridade dessa fala demonstra que a palavra forcluída no
registro do simbólico reaparece no real como uma significação que não remete a
nada, mas que, ao mesmo tempo, diz respeito ao sujeito. Lacan aponta uma relação
específica do sujeito com um saber que o persegue, pleno de certeza, mas que por
não haver do lado do sujeito nem falta nem divisão subjetiva, faz repercutir como
Unglaube, a descrença, o inacreditável. Evidentemente, há o inacreditável do lado
da neurose, mas este é de outra natureza, surge como encontro marcado com a
tiquê, como demonstra o belo exemplo citado por Freud no artigo de 1935, Um
distúrbio de memória na Acrópole.
Na psicose, o Outro que está excluído na dimensão do campo simbólico
reaparece no real, e em decorrência dessa exclusão, surge como gozo do Outro e
adquire então sua materialidade real, absoluta. Em Schreber, o fenômeno do gozo
aparece como algo que o invade e o dilacera. A resposta subjetiva é um urro terrível.
Em outros momentos, surge para o sujeito como alternância entre a obrigação de
pensar, que corresponderia à alienação, intercalada pelo pensar em nada, tentativa
sempre fracassada de separação. Curiosamente, também se verifica na psicose um
apelo à castração, mas que não pode se realizar no registro simbólico e se reitera
51
incessantemente no real, num eterno presente, justificativa das passagens ao ato.
(MILLER, 1998)
Essa exclusão fundamental, Freud a havia trabalhado em outros termos como
uma presença ou ausência da Bejahung, afirmação primeira, correlacionada a uma
inclusão do significante, e a Ausstossung, o exercício do princípio da realidade, que
diferencia simbólico e real. Esse juízo de existência simbólico inscreve a castração
no lugar do Outro, segundo a leitura e a tradução promovidas por Lacan dos termos
freudianos. O mecanismo da psicose, a Verwerfung, exclui toda a possibilidade de
uma elisão significante, portanto, de uma Bejahung/Ausstossung. A forclusão vem
demonstrar o lançamento para fora do não assimilável da primeira inscrição, o não
funcionamento do juízo de existência na psicose e, ao mesmo tempo, permite
localizar as formas de desencadeamento. Vale ressaltar que a diferenciação
promovida por Lacan entre as formas de exclusão neurótica e psicótica foi
fundamental para a psicanálise, porque diferente da neurose, a forclusão psicótica é
irreversível e impede a reapropriação do sentido. Ao sujeito psicótico resta a
alternativa da compensação imaginária ou a metáfora delirante.
O Nome-do-pai conceituado por Lacan (1998, p.564) em De uma questão
preliminar a todo tratamento possível na psicose, faz referência aos mitos freudianos
do Édipo, Totem e Tabu e acarreta para alguns autores uma conotação religiosa, a
do Pai da ordem simbólica. A forclusão na psicose incide diretamente sobre esse
significante, o Nome-do-Pai, provocando “um furo correspondente no lugar da
significação fálica”. Schreber demonstra que na ausência do pai simbólico há o
encontro com o pai real, fora da lei, o Deus terrível gozador, presente na temática do
delírio. Ao furo no Outro corresponde o dano representado pela expressão
“assassinato d’almas”.
52
Quando está escrito no campo do Outro, o Nome-do-Pai permite ordenar o
universo do sentido, estabelecendo vínculos entre significante e significado, une o
desejo à lei e impede a busca infinita de sentido. As primeiras formalizações desse
conceito indicam um significante portador de uma interdição sobre o gozo primordial
e gerador da culpa original. Se esse significante está forcluído, como ocorre na
estrutura psicótica, a lei paterna não pode ser enunciada e a resposta subjetiva será
a metáfora delirante, que vem compensar a ausência da metáfora paterna
(MALEVAL, 2002). A carência fálica será suprida pelos neologismos, interpretações
delirantes, palavras impostas e pelo empuxo-à-mulher.
Nesse período, Lacan aponta a devastação proveniente do pai, quando este
não opera a função fálica, e por isso é tomado em sua vertente real, como
demonstram os delírios de Schreber dirigidos ao médico Flechsig e a Deus. O efeito
de empuxo-à-mulher, a feminização, ou seja, a crença delirante na metamorfose que
em Schreber é traduzida como transformação em mulher de Deus, vem demonstrar
os efeitos da devastação na psicose, como uma das conseqüências da forclusão do
Nome-do-Pai (ALVARENGA, 2003). Com respeito a Schreber, quando a feminização
se impôs ao sujeito, foi recebida alternadamente com horror, depois como
compromisso, por fim transformando-se em decisão irreversível, motivo de redenção
do universo. Esses momentos progressivos de solução subjetiva são apontados por
Lacan em 1955 como resposta à carência fálica.
Ainda nesse artigo, De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose, assinala o início do conceito de desencadeamento situando-o no encontro
com Um-pai, ou seja, o significante em posição terceira ao eixo a-a’, como esclarece
Lacan (1998, p.584), ”no encontro com um pai real, não forçosamente o pai do
sujeito”, um encontro capaz de provocar o desastre crescente do imaginário, que só
53
será estabilizado na metáfora delirante. A nota de página 42 é interessante porque
convoca uma dúvida e deixa uma questão: no momento do desencadeamento, o
significante se solta ou se desencadeia no real? A topologia desenvolvida alguns
anos depois por Lacan tentará responder a essa questão.
O encontro não é com o pai simbólico, mas com um elemento real que surge
fora do simbólico, esclarece Maleval (2002, p.277), acrescentando o surgimento de
uma opacidade inquietante e angustiante, acompanhada da incapacidade de lidar
com a enunciação. O autor justifica sua afirmação no detalhado exame que faz do
desencadeamento em Schreber, deixando uma nota e uma recomendação de
François Leguil. A nota diz da hipótese de que o desencadeamento pode
representar a precipitação de um tempo lógico, um “momento de concluir” do sujeito,
e deixa a recomendação de que é importante o exame particular de cada “conjuntura
dramática na qual se revela o que estava forcluído”. É um momento marcado
geralmente pela perplexidade e por formas variadas de angústia e horror. Nesse furo
da linguagem verifica-se, por vezes, o processo de substituição que se faz pela
metáfora delirante ou pela sucessão de interpretações delirantes.
Em 1945, Lacan apresenta o artigo O tempo lógico e a asserção de certeza
antecipada, no qual trabalha o sofisma de três tempos de possibilidade da lógica do
significante: a modulação do tempo - que promove a asserção subjetiva - o instante
de ver, o tempo para compreender e o momento de concluir, verificável nas
diferentes estruturas clínicas. Sem desenvolver o tema, que ultrapassaria os limites
da presente dissertação, evoca-se a frase de Lacan, que parece pertinente para a
questão da psicose e da paranóia:
O juízo assertivo manifesta-se aqui por um ato. O pensamento
moderno mostrou que todo juízo é essencialmente um ato e,aqui, as
contingências dramáticas só fazem isolar esse ato no gesto da saída
dos sujeitos. (LACAN, 1998, p.208)
54
A hipótese formulada por Maleval parece justificar-se principalmente porque
Leguil menciona com alguma freqüência o desencadeamento e as passagens ao ato
na paranóia como uma forma de precipitação da asserção subjetiva.
O desencadeamento veio ocupar um outro lugar com Lacan, cuja noção se
diferencia daquela encontrada em Freud, de que a acumulação dos traumas
produzia, num determinado momento, a explicitação de uma psicose. Nesse sentido,
enfoca a perspectiva do Outro, que permite acentuar a noção de descontinuidade do
significante.
Éric Laurent, em 1995, cita dentre outros, o exemplo de desencadeamento da
psicose de uma mulher que trabalhava em um restaurante e ouviu um homem
pronunciar algumas frases que ela não entendeu, dentre as quais se destacava “(...)
que ela era uma ninfa das águas”. Ela havia anteriormente consultando dicionários à
procura do sentido das palavras, pois o sentido se perdera. Há nesse momento um
longo remanejamento de várias palavras, como por exemplo: ninfa, que para ela
assumiu o significado de empregada. Ela tentava encontrar um sentido associando
inclusive às lembranças infantis, mas que tinham o estatuto de resposta que se
articulava no lugar de uma pergunta impossível de formular: “Quem sou eu?”
(LAURENT, 1995, p.116). Esse fragmento clínico demonstra o enorme trabalho de
remanejamento significante pela via da metáfora delirante promovido por esse
sujeito.
Verifica-se na paranóia que o sujeito faz consistir o Outro e o gozo no
determinismo simbólico em que a falta de um significante no Outro resulta na
reconstituição de um pai real na ordem do mundo. A suplência paranóica se fará
pela criação de um discurso similar ao “Discurso do Mestre”, mas o que prevalece é
a solução pela metáfora delirante. O sujeito paranóico cria um S2 e demonstra que o
55
”pensamento é a condição do gozo e o saber significante, meio de gozo” (MILLER,
2004).
A paranóia pareceu, à primeira vista, adequar-se bem à leitura feita nesse
período que, segundo alguns autores, é marcado pela “teoria clássica do
desencadeamento” (MILLER, 2004, p.48. Nesta, a psicose responde a um sistema
binário, demonstrando a ausência ou presença de um único significante, o Nome-do-
Pai e da dimensão pacificante do Outro. O gozo é, assim, tratado pelo delírio, que é
pensado como metáfora de substituição.
De maneira similar ao que sucedeu anteriormente - a pesquisa do registro do
simbólico franqueou a releitura do imaginário, do estádio de espelho, do narcisismo,
modificando-lhes os limites - os conceitos estabelecidos por Lacan neste período,
tais como os fenômenos elementares, a metáfora paterna, a forclusão do Nome-do-
Pai, o Outro, o sintoma, o desencadeamento, o corpo serão revistos. A mudança de
perspectiva representada pela introdução progressiva do conceito de objeto a e de
real modifica a leitura desses conceitos, cujos limites se ampliam para abranger os
sintomas de outra ordem, as faces contemporâneas da psicose e da clínica em
geral.
A paranóia ressurge, curiosamente, representando um conceito limite entre
três vertentes do ensino lacaniano e, na condição de desafio, instiga novas
indagações.
3.3 O REAL
O conceito de real foi trabalhado em vários momentos do ensino de Lacan,
dentre os quais se destaca: O primeiro, nos anos 50, no qual o real é concebido em
56
duas acepções que levam em conta o inconsciente estruturado como uma
linguagem, portanto dependente de sua apreensão pelo simbólico. O último ensino,
em que o real é situado mais além do inconsciente, há algo distinto do sentido e do
saber. (MILLER,2003)
Em 1963, Lacan (2005) profere a única lição de seu Seminário Introdução aos
Nomes-do-Pai. As indicações fornecidas pelo próprio autor nessa lição e os
comentários de Miller mostram o passo que representou o livro anterior, A angústia,
de 1962, que foi considerado por diferentes autores um ponto de torção na teoria
lacaniana, pois a partir deste Seminário, dois movimentos se abrem em seu ensino:
por um lado, a angústia como via de acesso ao objeto a demarcado pelo significante
que sempre falha; por outro, vereda em direção ao real como inacessível, ao que
não é significante.
Naquele Seminário, demonstra que a não-extração do objeto a é correlata a
tudo saber, e que esse objeto do qual o sujeito psicótico não pode se separar o
assedia nas vozes e no olhar. Lacan irá situar a voz na origem do supereu e
considerá-la na psicose um objeto essencial.
Quando examina os Nomes-do-Pai, no plural, formula ainda um problema
sobre o sujeito situado em um ponto anterior à pergunta e indaga o Outro como o
lugar onde isso fala. Esse problema lhe permite dar início à pesquisa sobre o Nome
e a pluralização dos Nomes-do-Pai. Essa pesquisa, que vincula os Nomes-do-Pai
aos objetos a, estabelece novas bases para a abordagem da psicose, com a noção
de gozo não localizado. (MALEVAL, 2002)
Laurent (1995) assinala que o período de 1964 a 1969 foi muito rico em
artigos sobre as psicoses. Destaca a relevância das contribuições sobre psicose
infantil sob um novo enfoque, sobretudo no Seminário 11, no qual Lacan traz uma
57
nova hipótese concernente ao posicionamento da criança psicótica, articulada à
fantasia de sua mãe, além de demarcar as diferenças entre debilidade e psicose. É
também nesse momento que elabora a noção de debilidade como posição
discursiva e incluída na dimensão do psicótico. Lacan escreve poucos artigos sobre
psicose infantil, mas sua contribuição é decisiva para fomentar as pesquisas nesse
campo, como atestam o trabalho de vários autores contemporâneos.
No artigo de 1966, Présentation des mémoires d’un névropathe, Lacan
(2001) opõe o sujeito do significante ao sujeito do gozo, afirmando que essa
diferenciação permite uma definição mais precisa de paranóia. Além disso, esclarece
a questão do conhecimento paranóico, associando-o às modulações da estética e
evocando para isso o exemplo do pintor surrealista Salvador Dali (tradução nossa).
Portanto, há uma retomada do comentário sobre a estética surrealista, considerando
outra variante, a arte, como tentativa de organização do pensamento. A
diferenciação entre saber e conhecimento é, nesse momento, muito relevante.
Em 1969, em O avesso da psicanálise (1991), a produção dos quatro
discursos indica uma estrutura que ultrapassa a palavra e demarca uma diferença
importante: as relações fundamentais não poderiam se manter sem a linguagem,
mas o discurso, ele o prefere sem palavras, motivo pelo qual o escreve como
matemas. Nesse Seminário, localiza o ponto de onde extraiu a função do objeto
perdido na obra freudiana, no limite do saber, ou seja, na repetição do gozo. Esse
seminário é incluído no segundo tempo do ensino de Lacan porque trata do mais de
gozar como um lugar fora do simbolizado, pois o gozo não respeita os limites da
linguagem.
O Seminário 20, Mais, ainda, de 1972, demarca um momento muito
importante ao estabelecer as fórmulas da sexuação e as escrituras de “A mulher” e a
58
não relação sexual. O real como impossível evidencia-se cada vez mais em seu
ensino. As fórmulas da sexuação reduzem o mito edipiano à lógica única da
castração, nas quais os matemas formalizam uma lógica que opera no campo do
inconsciente. Esse Seminário traz uma questão sobre o gozo feminino que uma
mulher experimenta, mas sem o saber, e sobre o corpo necessário ao gozo, posto
que este o afeta. Parafraseando Aristóteles - “o homem pensa com sua alma” –
Lacan (1982, p.150) diz que “a alma é o que se pensa a propósito do corpo”. A
escritura da lógica da sexuação permite incluir um corpo e o gozo como apoio ao
pensamento.
Progressivamente, nesse período Lacan trabalha conceitos que servem de
passagem no seu ensino: o primeiro, de uma forclusão restringida, que se apóia no
Nome-do-Pai e no –Φ, para uma forclusão generalizada, que recai sobre o objeto a.
Na forclusão generalizada, a resposta do real não pertence ao campo do Outro,
mas tem função de ex-sistência. O sintoma é privilegiado como um termo inscrito no
real e que opera essa passagem.
O Seminário 22, R.S.I, de 1974, é dedicado ao nó borromeano, no qual ele
define, além dos conceitos de Real, Simbólico e Imaginário, a noção de ser falante e
a função do sintoma. Se o sintoma é função matemática, o inconsciente pode se
traduzir por uma letra. Com isso, a noção de inconsciente adquire nova leitura, o pai
como modelo de uma função redimensiona também a noção de Verwerfung, pois a
diversidade dos nomes permitirá suplências efetivas demonstráveis principalmente
na psicose.
Seu comentário sobre a paranóia é muito importante, pois constitui uma
releitura do primeiro momento de seu ensino: “a paranóia é um grude imaginário. É a
voz que sonoriza, o olhar que se faz prevalente, é um caso de congelamento de um
59
desejo” (LACAN, 1974, p.57). No imaginário, o grude é o gozo da presença
constante dos objetos voz e olhar, dos quais o sujeito psicótico não consegue se
separar.
No Seminário seguinte, Le sinthome, de 1975, Lacan (2005, p.132) pronuncia
uma frase surpreendente sobre o real e que deve ser destacada: “Eu intitulei uma
coisa que escrevi A coisa freudiana. Mas quanto ao que chamo o real, eu inventei
porque isso se impôs a mim”. (tradução nossa)
No capítulo dedicado à invenção do real, Lacan esclarece que o nó
borromeano permite ilustrar a diferença entre a realidade, o real e o sentido, além de
justificar sob esse aspecto o pensamento, posto que o novo conceito de real próprio
à psicanálise o refaz:
Eu não penso que a psicanálise seja um sinthoma. Eu penso que a
psicanálise é uma prática cuja eficácia, apesar de tudo tangível
implica que eu faça o que se chama meu nó, a saber, esse nó triplo
no quadro. É nisso que suspendo por esse terceiro que se distingue
da realidade e que chamo o real. É nisso que eu não posso dizer eu
penso, pois que é um pensamento ainda fechado, em último termo,
enigmático. (LACAN, 2005, p.135)
Lacan propõe um novo conceito de sintoma, escrito com nova grafia, pois
considera que um sintoma é letra e que por isso pode permanecer fora do discurso,
ou seja, fixar um gozo sem o Outro. O sinthoma nessa dimensão escreve uma exsistência.
“Essa modificação constitui um esforço de Lacan para escrever em um só
traço o significante e o gozo” (MALEVAL, 2002, p.130). O recurso à topologia, aos
nós borromeanos lhe permite alçar a estrutura subjetiva representada pelo
enlaçamento diverso dos três registros - Real, Simbólico e Imaginário - e designar o
que operou como quarto nó. Lacan (2002), em um determinado momento de seu
Seminário, comenta que o curioso é que o nó constitui um apoio ao pensamento.
A partir desse Seminário, o sintoma demarca novas dimensões da clínica. O
sintoma é a forma típica e paradoxal de tratamento subjetivo do gozo na neurose,
60
enquanto para o sujeito psicótico mostra-se como impossibilidade de tratar o real do
gozo. Nesse período, Lacan estuda uma terceira forma de tratamento - as outras
duas foram a metáfora delirante e a compensação imaginária - que é a suplência
restringida, ou seja, construção de um nome, um significante qualquer que
diferencia a identidade do sujeito e que Lacan propõe como o ego. (RECALCATI,
2003)
Vários autores assinalam que a escritura, a letra, no ato criador de James
Joyce, é analisada por Lacan como forma de suplência de uma estrutura subjetiva
que não apresentou desencadeamento, mas que demonstra seu sintoma fora do
inconsciente. O nome criado por Joyce, “Stephen Dedalus”, constitui um modo de
suplência ao pai ausente e forcluído. Lacan, entretanto, faz novo uso do conceito de
ego, que terá para o escritor uma função particular, de corretor, ao enlaçar Real e
Imaginário. O nó borromeano muda, assim, o sentido de escritura, e esta, torna-se
um fazer que dá suporte ao pensamento. “Se o ego é dito narcísico é porque em um
certo nível, há alguma coisa que suporta o corpo como imagem”. (LACAN, 2005,
p.150)
Com respeito à paranóia, duas observações surpreendentes têm dividido os
autores que até o momento se dedicaram a desenvolvê-las: 1. a estrutura da
paranóia é representada como um nó de trevo, no qual os três registros estão em
continuidade e possuem uma mesma consistência. 2 O conceito de personalidade
escrito 40 anos antes, em sua tese de doutorado, é relido como um quarto nó que
enlaçaria as três personalidades restantes. Lacan então deixa uma indagação: se o
nó assim constituído seria paranóico. Dentre os autores que trabalham essa questão
na atualidade, alguns merecem destaque:
61
A hipótese sustentada por Maleval (2002) é interessante, pois segundo a
interpretação desse autor, o sujeito se confunde com a instância paranóica do eu e
demonstra que não se separou do gozo. Pierre Naveau (2004) considera outra
hipótese, a de que a paranóia estaria ausente da lógica dos nós borromeanos
porque apresenta uma hierarquia do significante que é incompatível com a noção
dos nós, o que contraria a afirmação lacaniana. Por outro lado, Mazzucca (2002)
opõe o sintoma joyceano ao sintoma paranóico e trabalha a noção de continuidade
entre os três registros, própria da paranóia, e a oposição ao conceito de ex-sistência
que se expressa, ao contrário, pelos nós soltos.
Sem entrar no mérito das questões debatidas nem indagar as respectivas
conclusões de cada autor, pois ultrapassaria o tema desta dissertação, considera-se
que a diversidade dos trabalhos suscitados pelo Seminário 23 e o caráter não
conclusivo das investigações mencionadas constituem exemplo de um debate que
ainda não alcançou sua última palavra. Verifica-se apenas que a psicose é a
referência do último ensino de Lacan, tal como a neurose foi para o primeiro ensino.
Constata-se, entretanto, que a paranóia em sua face contemporânea, através dos
sujeitos e dos limites conceituais, indaga mais uma vez a psicanálise.
O exame do conceito de paranóia na obra de Lacan demonstrou um percurso
através dos momentos que demarcaram a evolução mais geral do corpo teórico da
psicanálise na perspectiva lacaniana. Nesse sentido, os três marcos fundamentais -
Imaginário, Simbólico, Real - foram uma escolha e uma referência possível. São,
como o diz Miller (1998, p.434), “vias régias” da psicanálise. Se para Freud a via
régia foi o imaginário, para Lacan, no fim de sua obra, o real é o caminho claramente
indicado e do qual resta extrair conseqüências. A topologia lacaniana irá considerálos
como nomes e abordá-los em suas diversas configurações.
62
Ainda segundo Miller (1998), há que se reconhecer a inspiração de Lacan no
estilo aristotélico de investigação, pois seu método consiste em se aproximar de um
problema e examiná-lo sempre de um novo ângulo, ou formular de outro modo o
mesmo problema. O conceito de paranóia percorre a pluralidade de perspectivas
presentes na experiência analítica, assim como sofre alterações em decorrência da
mudança de axiomática. A modificação dos conceitos psicanalíticos introduzidos
pela via régia do real abre assim espaço para uma nova dimensão da psicose.
Verifica-se, no percurso lacaniano através dos registros Imaginário, Simbólico,
Real uma contribuição fundamental para a indagação sobre o pensamento que
sempre ocupou o campo da filosofia. A psicose é apenas um dos muitos caminhos
através do qual essa questão é percorrida.
63
4. A PSICOSE ORDINÁRIA
A psicose ordinária foi o título da terceira de uma série de conversações
realizadas na França por psicanalistas europeus do Campo Freudiano.
Particulariza-se a seqüência que abrange: 1. Conciliábulo de Angers, em 1996, que
debateu os “Efeitos de surpresa na clínica das psicoses” 2. Conversação de
Arcachon, de 1997, que discutiu Casos raros, os inclassificáveis da clínica 3.
Convenção de Antibes, de 1999, sobre Psicose ordinária, três momentos de
investigação fecunda sobre a psicose e a clínica psicanalítica contemporânea.
O caminho percorrido pelas três Conversações vai da surpresa ao caso raro e
ao caso comum delineia um percurso que desloca para primeiro plano a clínica da
psicose. Antes de ser comunicação de conceitos estabelecidos, trata-se de debates
sobre os casos clínicos a partir dos quais os conceitos se evidenciam. As
Conversações se ocupam ainda de vários problemas que parecem representar um
tempo para compreender a complexidade do último ensino de Lacan e nesse labor a
orientação lacaniana reavalia hipóteses formuladas anteriormente.
O último ensino de Lacan (2005) franqueou uma dimensão original na
invenção de um real próprio à psicanálise, diferenciado do real da ciência, passível
de ser demonstrado, mas que ao mesmo tempo está fora do domínio da palavra,
embora se manifeste como sintoma para os seres vivos. Essa dimensão é figurada
no nó borromeano. No último ensino, há o trabalho em torno do ato de nomeação, o
ato de dar um nome, evidenciando o nó como suporte do sujeito, da escritura do
ego, do uso lógico do sinthoma e de outra escrita do inconsciente.
O depoimento de Eric Laurent no artigo on-line Chomsky com Joyce é
contundente porque noticia o terror provocado pela novidade, pela tiquê que foi o
64
encontro, em 1975, com o Seminário Le sinthome (2005), que enunciava o avesso
de conceitos estabelecidos no artigo de 1955, De uma questão preliminar a todo
tratamento possível da psicose (1998). Dentre os vários exemplos, podem ser
citados: em lugar do Nome-do-Pai, os nomes comuns da língua passam a se
encarregar do gozo. Os neologismos são lidos como letra presa em uma trama de
singularidades, como o trabalho demonstrado na leitura conduzida por Lacan no
texto de Joyce. As Conversações de 1996 a 1999 procuram, segundo parece,
atravessar o segredo do nome, segredo com o qual Lacan instiga a prática
psicanalítica desde a primeira lição do Seminário Os Nomes-doPai.
Na psicose ordinária, o sujeito se serve dos nomes como instrumento, mas
ao mesmo tempo, permite localizar os sinais da forclusão, por vezes sutis e
emblemáticos. Em oposição à psicose extraordinária, como a de Schreber, a
Convenção de Antibes pesquisou a psicose mais modesta, a ordinária, comum,
compensada, suplementada, não desencadeada, medicada, em terapia, em análise,
que apresenta sinthomas e formas diversas de desligamentos e religamentos do
Outro, conexões entre R.S.I.
A proposta do nome veio de Miller durante um debate nessa Convenção e
diante da proposta do prefixo neo, que conduziria às neo-psicoses. Ele faz objeções
às neo-psicoses e demarca a diferença entre as psicoses extraordinárias e
ordinárias. Laurent esclarece que se trata da psicose de massa decorrente de S de
A barrado, ou seja, a época onde o Outro não existe, mais compatível com o estado
atual da civilização, na qual falta um truque para gerir a falta de sentido e na qual
predominam normas muito diversificadas.
65
O termo psicose ordinária mereceu, em data posterior, um comentário
interessante de Bernard Lecoeur (2003) em seu artigo Note sur da psychose
ordinarire”:
Ordinarius consiste em uma introdução de uma certa ordem. Não
aquela que engendra a lei, [...] mas os ditos, desde que tomados
como index de trocas de palavras. Assim, o ordinário da psicose
poderia visar essa experiência [....] de destacar, a partir de uma certa
distribuição dos ditos, um ponto fazendo função de dizer mas sem
repartição, única garantia contra a confusão dos sujeitos na língua.
(LECOEUR, 2003, p.25, tradução nossa)
Vale comentar o fragmento do parágrafo anterior que diz “um ponto fazendo
função de dizer, mas sem repartição”, pois indica que uma certa ordem da
linguagem é considerada. O sujeito não se encontra fora da linguagem, mas situado
entre o enunciado e a enunciação, embora essa posição não implique para ele a
divisão subjetiva. Operar com a repartição significa fazer incidir o falo simbólico, pois
somente o falo permite aos sujeitos a repartição sexual, questão intransponível para
o sujeito psicótico. Trata-se, então, de servir-se da linguagem comum ou usar um
objeto, uma veste, uma função, um lugar, que de algum modo operem como
conectores entre Real, Simbólico, Imaginário.
Nessa experiência, o fazer, uma outra face do agir, ocupa em alguns
exemplos clínicos um lugar interessante. Essa constatação foi verificada em
algumas clínicas nas quais os sujeitos psicóticos, diante da falha, inventam um
truque para administrar os fenômenos de significação pessoal, o sentido gozado ou
a fuga de sentido. Surgem formas clínicas inéditas ou recobertas por soluções
sintomáticas, toxicômanas, por sintomas corporais, experiências místicas ou simples
modos de vida. Por vezes, observa-se no quotidiano dos sujeitos apenas instantes
de desligamentos do Outro, uma repetição de algo que volta sempre ao mesmo
66
lugar e, por não encontrar acolhida nas expressões da linguagem, surge no corpo ou
como letra ou como ato.
O título da Convenção abarca três temas muito amplos: O neodesencadeamento
ou as novas formas de desencadeamento, que correspondem à
soltura daquilo que fazia a função de capitonagem para o sujeito, resultando nos
desligamentos, religamentos do Outro: a neo-conversão, que abrange os fenômenos
de corpo não interpretáveis de forma clássica; a neo-transferência ou as manobras
da transferência nas novas formas de psicose.
Essa Conversação, tal como sucedeu com as anteriores, traz vários exemplos
clínicos entremeados de hipóteses, discussões, questões em aberto e um debate
final. Nelas, examina-se a questão da psicose através da aporia psicanalítica, ou
seja, as indagações, os pontos delicados de passagem, a ausência de saída
transformada em passagem. Não se trata da comunicação objetiva de conceitos
estabelecidos, mas de um dispositivo adequado para extrair conseqüências dos
tesouros da clínica, dos achados que causam surpresa ou enigma.
É oportuno um breve esclarecimento sobre uma prática específica do Campo
Freudiano que por vezes é difícil traduzir, verter para outra linguagem que é a
Conversação. Segundo Miller (2005), há necessidade da conversação “quando se
verifica que o Outro não existe, que é uma ficção do laço social”. Sobre o tratamento
da psicose, Laurent (2003, p.17) diz que “uma espécie de conversação sobre o gozo
na psicose é fundamental. Se há um real em jogo na experiência analítica, a
conversação opera um recorte sobre o que faz nome para um sujeito. De acordo
com Miller (2005, p.256), quando Lacan passou do Nome-do-Pai ao pai do nome,
precisou trabalhar a passagem do simbólico ao real. “A nominação vem a ser o
problema de saber como a conversação pode ligar-se ao real”. Nesse sentido, a
67
nominação é variada e pode apenas consistir em tocar o outro ou isolar um
significante da cadeia.
Conforme se depreendeu dos capítulos anteriores, o último ensino de Lacan
promoveu mudanças conceituais muito profundas no seio da psicanálise,
decorrentes da mudança de axiomática final. É oportuno examinar os efeitos da
mudança de axiomática quando se considera a psicose. A inexistência do Outro
pode ser verificada na psicose ordinária e em diferentes tipos clínicos, dentre os
quais particulariza-se no momento: o enigma, o sintoma, o inconsciente e o
tratamento do gozo em cada caso particular. É importante não confundir os tipos
clínicos da psicose – paranóia, esquizofrenia, melancolia e mania – com as questões
próprias a cada subjetividade.
Segundo Miller (2005), em Pièces detachées, é a partir do Seminário 20 que
Lacan interroga a definição do inconsciente estruturado como uma linguagem,
conceito que pode ser encontrado em seu ensino desde 1953, em Função e campo
da fala e da linguagem em psicanálise. Em Mais ainda (1985), introduz a importância
da deriva do gozo e propõe o matema como compatível com o discurso analítico
capaz de atingir o real do corpo e do inconsciente. Nesse Seminário, é destacado
ainda como elemento o significante Um, encarnado na alíngua como algo indeciso
entre o fonema, a palavra, a frase, mesmo todo o pensamento.
Essa mudança dá lugar a um novo conceito de sintoma. Não se trata de
simples mudança ortográfica, mas de uma mudança de sentido, pois ele pretende
abordar o real na experiência analítica, o real que não tem ordem nem sentido.
Nesse ponto de redução da linguagem não há nada a fazer para analisá-lo, no
mesmo sentido em que se traduz o sintoma no simbólico. A aparentemente simples
68
mudança ortográfica escreve as novas perspectivas de tratamento para o sujeito
psicótico, e descortina para o analista uma clínica até então insuspeita.
O sintoma está dentro da linguagem, da comunicação, das interpretações,
das operações de deciframento, como o definiu Lacan: é uma formação do
inconsciente, tal como o sonho, os lapsos, o chiste, a fantasia, seguindo as
concepções freudianas que concebera a formação de compromisso e a formação
substitutiva.
O sinthoma, não se pode curá-lo. Está fora do inconsciente, no campo do
real, e seu uso é lógico, encontrável na lógica do nó borromeano, nas operações de
ligação dos registros Real, Simbólico, Imaginário. O sinthoma é demonstrável porque
é a face positiva da não relação sexual, ou seja, se não há relação sexual, o
sinthoma denuncia essa falha. Na segunda metáfora lacaniana, a própria língua se
incumbe do gozo, o que acarreta uma questão sobre esse processo ao mesmo
tempo em que indica uma falha irremediável. Miller demonstra que no decorrer de
seu ensino Lacan examinou esse paradoxo e, especificamente com respeito à
psicose, indagou com insistência o ponto de basta, de detenção do gozo. Este
constitui, segundo Laurent (2005), a questão chave da abordagem lacaniana das
psicoses, e que será trabalhada ao final deste capítulo.
4.1 SE O OUTRO NÃO EXISTE...
No Seminário 23, Lacan convocou o enigma do sujeito James Joyce como um
exemplo de psicose discreta, não desencadeada e que se manteve estável pela
criação da obra literária e do ego que suporta não apenas o corpo como imagem,
mas também opera em uma função muito particular como um modo de ligação, pois
69
é um pronome que pode vir a ocupar o lugar de um nome, servindo de conector
entre Imaginário e Simbólico, na falha desse enlaçamento. Lacan (2005) afirma
nesse Seminário, que pelo artifício da escritura se restitui o nó borromeano.
Portanto, há uma função reparatória do enlaçamento de R.S.I. que faz suplência
para esse sujeito.
Essa função reparatória, entretanto, não pretende obliterar uma falha. Em O
Outro que não existe e seus comitês de ética, Miller (2005) lembra que o trabalho
lacaniano, em diferentes momentos, propõe um broche – é o termo que ele emprega
– na dissimetria entre significante e significado. No primeiro momento, o broche foi o
grande Outro; no segundo, foi o discurso, o saber; no terceiro, foi o nó borromeano
que acarreta, participa da desaparição do Outro. A presença desse broche,
diversamente nomeado na obra de Lacan, assinala a clivagem do espaço semântico
e sua conseqüência para as diferentes clínicas.
Em seus comunicados na abertura e no fechamento do Conciliábulo de
Angers, Miller (1997) faz observações muito importantes sobre a clivagem do espaço
semântico de onde emerge o enigma. O enigma põe em questão a relação entre
significante e significado, evidencia sua não relação e instaura uma dupla
temporalidade para o sujeito, que se encontra diante de duas questões: isso quer
dizer e o que isso quer dizer - que tem por resultado demonstrar um ponto de
interseção entre neurose e psicose. Do lado da neurose, o enigma do gozo surge na
indagação o que isso quer dizer? - provoca surpresa e propõe uma questão ao
desejo. Do lado da psicose, há uma resposta e aparente diversidade: uma
significação da significação, ou um vazio de significação, a perplexidade, mas por
mais diversificadas que sejam essas respostas, trazem uma marca única, que é a
certeza. O sujeito psicótico sabe o que isso quer dizer.
70
Se o Outro não existe, não há uma estrutura prévia ao sujeito, mas uma forma
de tratamento do gozo particular a cada um, o que é demonstrado nas escolhas
subjetivas que conduzem a uma determinada estrutura. O que está em questão é o
tratamento particular que cada sujeito propõe ao gozo que o assedia. Com isso, há
uma sutil passagem do tipo clínico ao caso particular, mas sem desconsiderar as
duas vertentes dessa questão.
A letra, a escrita e alíngua são possibilidades desse tratamento e indicam
respectivamente: a letra, como o que não serve para ser lido; a escrita, quando
ressalta a discrepância entre significante e significado; e alíngua, que são os sons
ou palavras anteriores à linguagem, a língua particular, primeira, mas que não serve
para a comunicação. O exemplo maior desse tratamento encontra-se na escrita de
James Joyce, que “parece não se render ao imaginário da literatura e demonstra a
pura relação à língua” (MANDIL, 2003, p.131). Na tese do autor sobre o escritor
irlandês, assinala que Joyce subverte a dimensão da leitura, pois não opera a
tradução deixando o leitor confrontado com o enigma, com a dimensão real,
impossível da linguagem.
O comentário de Miller assinala que em Joyce o sinthoma é compensação de
uma carência paterna, que o determina em lugar entre a carência do pai e a
esquizofrenia de sua filha. A linguagem não foi ordenada pelo Nome-do-Pai, questão
retroativamente lida pelo aparecimento do sinthoma que para esse sujeito foi
traduzido em arte. Entretanto, Miller argumenta que o sinthoma nem sempre é letra
ou arte, mas pode ser qualquer coisa, provisória, frágil, ordinária, comum.
Essa qualquer coisa provisória a exemplifica Philippe Lacadée (2005, p.207)
no fragmento clínico de uma mulher esquizofrênica, cujo neologismo, “eu sou
geladeirada”, demonstrava que a linguagem não lhe servia para aparelhar o gozo.
71
No tratamento, ela inventa um órgão fora do corpo, um certo uso do secador de
cabelo, “objeto metonímico extraído a partir da mãe e portador do barulho e do calor
do Outro”. Segundo o autor, ela se servirá dele e o fará funcionar como um
sinthoma, suporte de uma neolinguagem.
O enigma mostra seus efeitos no campo da linguagem do sujeito psicótico,
pois o esforço de invenção em seu trabalho com a deriva dos significados, os
investimentos singulares próprios a cada um trazem algo anterior à comunicação.
Segundo Miller (1997, p.338), “a aprendizagem da escritura quebra o verde paraíso
das homofonias infantis” e acarreta uma questão para a tradução e aprendizagem
da língua. Enquanto a linguagem do sujeito neurótico é submetida à norma, coube
ao sujeito psicótico comunicar os fenômenos de neologismos, interlocução delirante,
apartados da linguagem comum, com os quais se confronta, e a impossibilidade de
traduzi-los para um código que tenha um ordenador comum.
Quando a significação fálica e o Nome-do-Pai desaparecem, o sujeito é
invadido por fenômenos inomináveis - misturas de palavras, ruídos em um novo
código, vozes que impõem atos inquietantes - que “infectam e parasitam as funções
standard da linguagem” e as relações entre código e mensagem introduzem sem
cessar novos usos das palavras (LAURENT, 2003, p.12). O sujeito, confrontado com
o furo na cadeia simbólica propõe seu tratamento, verificado por Lacan na primeira
clínica, de contenção desse excesso de gozo pela via do Outro. Se a estabilização é
promovida pela metáfora delirante, então a emergência do real vem denunciar uma
discordância, uma inadequação entre Simbólico e Imaginário.
A existência do Outro permite ler, em uma determinada perspectiva, a falta da
função paterna (Po) que dá lugar às alucinações e perturbações da linguagem:
fenômenos elementares, transtornos da palavra e da enunciação, pensamentos
72
impostos, idéias delirantes. A falta fálica, Φo, por outro lado, dá lugar às idéias
delirantes ligadas ao corpo e ao sexo: automutilações, passagens ao ato,
disfuncionamento corporal, perda enigmática do sentimento de vida, mortificação do
gozo. O desenvolvimento da pesquisa lacaniana informa que esses fenômenos
decorrentes da forclusão do Nome-do-Pai assinalam não só o desencadeamento
psicótico, mas também as psicoses fora do desencadeamento, o que repercute nas
formas ordinárias da psicose, comparecendo sob outra perspectiva na psicose
ordinária.
Se o Outro não existe e não oferece garantia porque falta irremediavelmente
um significante em seu campo, a hierarquia dos três registros se modifica. Real,
Simbólico e Imaginário são elementos de igual consistência tratam-se de nomes
indistintos, como o demonstra Jean-Claude Milner (1983), em Los nombres
indistintos. O enigma do gozo experimentado como surpresa e excesso acarreta
para o sujeito a alternativa de fazê-los funcionar de outra maneira. As formas de
tratamento pelo nome se tornam diversas, ocasiões nas quais o sujeito convoca o
analista com um apelo específico. Trata-se de ajudar o sujeito, a se fazer um nome,
ou de traduzir os códigos de mensagem e mensagens de código que o atravessam,
considerando o princípio da indeterminação, pois o nome pode fixar o sujeito apenas
por um certo período do tempo. (LAURENT, 2003)
Como exemplo desse tratamento de se fazer um nome, Laurent evoca o
tratamento efetuado pelo escritor irlandês na produção de uma língua nova que,
como sinthoma, encontra-se fora do Outro, apoiada não na verdade do inconsciente,
mas no saber. A essa modalidade de invenção ele designa, curiosamente, com o
nome de sublimação.
73
A sublimação foi para Freud um dos destinos da pulsão, mas implica um
paradoxo, pois não há atividade sexual nem retorno do recalque na sublimação. A
libido poderia ser dessexualizada, questão que é examinada por Lacan quando
considera que o fato de falar implica por si só a sublimação, e que a sexualidade
humana é constituída em torno de uma falta central. Tal como o exemplo do oleiro
que constrói o vaso em torno de um vazio, analogia estabelecida muito cedo por
Lacan - a arte é construída em torno desse vazio de gozo (MILLER, 1998). O
tratamento de “se fazer um nome” do sujeito psicótico corresponderia a uma
construção similar, um trabalho de invenção, de criação em torno de um vazio
central. O modelo do nó borromeano não afasta essa analogia, pelo contrário,
parece enfatizá-la e demonstra que cada sujeito propõe enodamentos sintomáticos
específicos, mas ao mesmo tempo permite considerar o realismo das estruturas e
distinguir, através dos entrelaces dos nós, a paranóia da esquizofrenia e da
melancolia.
4.2 A DIALÉTICA ENTRE TIPOS CLÍNICOS E PSICOSE ORDINÁRIA
Os dois momentos do ensino de Lacan evidenciam a polaridade entre sujeito
do gozo e sujeito do significante; promovem questões diversas tais como se orientar
exclusivamente pelo falo e pela forclusão ou indagar o que faz a conexão entre
R.S.I., assim como a clínica na perspectiva do real e dos aparelhos de gozo. A
clínica contemporânea ainda traz psicoses clássicas, como o demonstram as
conversações mais recentes do Instituto do Campo Freudiano, realizadas em junho
deste ano, nas quais o desencadeamento demarca precisamente o momento de
ruptura absoluta separando um antes e um depois na história de vida do sujeito, ou
74
formas que apresentam desligamentos progressivos do Outro, tal como foi
assinalado por Laurent na Conversação de Arcachon.
Entretanto, mesmo as psicoses que indicam um desencadeamento evidente
apresentam-se curiosamente com outros recursos, como por exemplo, uma riqueza
simbólica até então insuspeitada, tal como demonstrado nas apresentações de
pacientes no Hospital Raul Soares em Belo Horizonte, durante o ano de 2005. Em
casos de psicoses melancólicas e esquizofrênicas contemporâneas verifica-se a
passagem do nome comum para o nome próprio, transformação que opera como
conector entre os elos de uma cadeia. Essa mudança no estatuto do nome pode
servir para cerzir os órgãos fora do corpo sem passar pela linguagem. Se ex-sistir,
como ensina Lacan, é estar fora, mas em referência a algo, essa noção é adequada
ao corpo do sujeito esquizofrênico. Na melancolia surgem as pequenas
identificações, mas que valem como pontos de basta do gozo.
A psicose ordinária compreende clínicas fora do desencadeamento ou de
desencadeamento discreto, que foram tomadas inicialmente na década de 90 como
casos raros ou inclassificáveis e trazem questões relativas aos limites da teoria
clássica. Limites que por vezes provocam discussões e falta de acordo entre
diversos autores consultados, mas que indicam tanto amarrações diversas entre
R.S.I. quanto soluções sinthomáticas e formas de repetição que não incidem no
significante, mas no real.
A Convenção de Antibes discute três manifestações clínicas da psicose na
perspectiva da psicose ordinária, ou seja, as novas formas de desligamentos ou
religamentos do Outro. Todavia, para diferentes autores as questões aí apontadas
não constituem pontos pacíficos, pelo contrário, há motivo para argumentos sobre
determinadas questões que devem ser ressaltados.
75
4.2.1 Esquizofrenia
No sujeito esquizofrênico os órgãos estão fora do corpo, não há o recurso da
palavra para ligá-los e ele denuncia, pela via da ironia, a inexistência do Outro. É
preciso não conduzi-lo a esse ponto no tratamento, principalmente quando aparece
recoberto por fenômenos psicossomáticos ou pela prática artística. A posição do
analista no tratamento é a de secretário do alienado, sustentando tanto a criação do
lado do objeto quanto da escritura do caso. O religamento, o saber-fazer com o
corpo despedaçado, está a cargo do sujeito e constitui uma alternativa à metáfora
delirante.
4.2.1.1 Debates sobre a esquizofrenia
Lacan discute três hipóteses sobre a esquizofrenia: A primeira, do sujeito
excluído do imaginário porque haveria predomínio do gozo auto-erótico do ser. Na
segunda, todo simbólico é real, a palavra se confunde com a coisa e o sujeito não se
defende do real pelo simbólico. A terceira, do sujeito esquizofrênico situado fora do
discurso, em nenhum laço social, porque não pode utilizar nenhuma defesa contra o
gozo.
Miller sublinha que o estatuto primitivo do corpo só é secundariamente
construído pela imagem. O corpo primitivo é constituído por peças avulsas, as zonas
erógenas demarcadas por Freud, sobre as quais incidiriam as pulsões parciais. A
linguagem costura, alinhava essas peças avulsas conferindo-lhes um sentido e
destino.
76
Sobre a ironia, Miller esclarece em Clínica irônica que esta não pertence ao
Outro, é do sujeito e vai contra o Outro. Com a ironia o sujeito esquizofrênico
reafirma que o Outro não existe, e o resultado é encontrar-se sem defesa diante do
real impossível de suportar. Ela faz parte do problema com que se defronta o sujeito
para se contrapor ao esforço na realização de tarefas aparentemente comuns com
seu corpo - mover as pálpebras, defecar, andar, olhar - que requerem, como o autor
assinala em A invenção psicótica, a criação de amarrações corporais.
Em um exemplo de Jacques Borie, na Conversação do Instituto do Campo
Freudiano, a simples atividade da ducha matinal era para o sujeito impossível. Ela
dizia: “tenho a impressão que o jato de água é feito de agulhas penetrantes das
quais devo me proteger. Isso não desliza sobre e pele, mas quer penetrar”. (p.37,
tradução nossa)
Em um exemplo de Jean-Pierre Deffieux (2003, p.13) na Conversação de
Arcachon, aos 8 anos o sujeito sofre um espancamento violento em um
acontecimento que quase lhe custou a vida. Suas palavras sobre a cena foram: “não
sei se doeu muito” – essas palavras guardam similaridade com o ocorrido a Joyce.
Nos debates que trabalharam esse exemplo, essa frase é destacada, pois
demonstra o quanto o sujeito encontra-se fora de seu corpo, abandonado pelo
Outro.
Indaga-se esse corpo despedaçado e vazio que parece desafiar as ligações
possíveis. O que se propõe para as questões que a clínica do sujeito esquizofrênico
desvela é a leitura cuidadosa de um parágrafo de Notice de fil en aiguille, de Miller,
nos Anexos do Seminário 23 de Lacan, quando comenta:
O corpo é para Aristóteles, sublinha Lacan em Encore, modelo do um.
Mas esse um é o indivíduo, isto é o um sozinho. E Lacan vem se
interrogar sobre a origem verdadeira do significante Um. A resposta
está aqui, nesta página do Sinthome, que sugere que o copo poderia
ser o modelo, ou seja a origem imaginária, não do um sozinho, que é
77
significante, marca, traço, corte, mas do um a mais, que é o conjunto
vazio. O que equivale simplesmente a dizer que o corpo existe como
saco de pele, vazio, fora e ao lado de seus órgãos. (Miller, 2005, p.
214, tradução nossa)
Supõe-se que esse corpo, expressão do conjunto vazio, é aquele que o
sujeito esquizofrênico apresenta à clínica, mas sem que a linguagem escave o real,
e no tratamento, de certo modo, será alinhavado pelo ego, como o pronome que
vale por qualquer nome. Com respeito a essa questão, Laurent esclarece no artigo
on-line, Chomsly com Joyce, que a verdadeira consistência do corpo não é a do
saco, mas da corda, pois a linguagem é para Lacan um órgão-sintoma que faz
orifícios e borda para cada um desses orifícios, o que permite incluir os circuitos
pulsionais, desde que se considere que a pulsão permanecerá parcial.
4.2.2 Melancolia
Para a melancolia, a Convenção discutiu o termo suplência intercrítica, que
consiste na superidentificação intercrítica aos papéis sociais. Essa forma de
suplência foi descrita anteriormente na psiquiatria clássica por Tellembach, e traduz
uma vontade de apagamento do nome próprio, do fechamento do furo da forclusão.
Nos pré-melancólicos é verificado pelas palavras do sujeito que mais do que ser
ninguém é, sobretudo, um se querer ser ninguém que leva o melancólico a elaborar
essa superidentificação. É uma identificação ao ser literal do traço significante e não
à sua função de representação. Esses traços são copiados, não pela via do ideal do
eu, mas pela norma social, como uma coleção de sentenças superegóicas que
conferem uma coesão imaginária ao sujeito pré-melancólico.
Essa forma de suplência foi traduzida por Freud (1969, p.40) em 1915, no
artigo Luto e melancolia com a frase composta por ele que mereceu
78
desenvolvimento importante a partir do trabalho de diferentes autores na psicanálise:
“a sombra do objeto caiu sobre o ego e este pode, daí por diante, ser julgado [...]
como um objeto abandonado”. Nesse artigo, há uma observação interessante sobre
a melancolia, como ferida aberta e o esvaziamento contínuo de investimento libidinal
resultando na morte do ego identificado ao objeto.
4.2.2.1 Debates sobre a melancolia
Há três questões prementes para o debate sobre a melancolia: a infinitização
do tempo, que foi muito trabalhada no último Congresso da AMP; o empuxo à morte;
a presença da melancolia nas identificações diversas que os sintomas
contemporâneos descortinam. No Seminário L’angoisse, Lacan chama a atenção
para a ultrapassagem do limite, a janela do mundo atravessada pelo ato suicida
melancólico, e propõe que se indague o significado desse ato no qual o sujeito faz o
retorno à sua posição de exclusão fundamental, o deixar cair o corpo próprio, na
qual o ser encontra-se alojado no objeto a. A identificação ao objeto trará ao
melancólico a realização na passagem ao ato, de ser rejeitado, ejetado fora de cena.
Miller (1996, p.193) alerta que, de certa maneira, esse “curto-circuito
melancólico prolonga-se no neurótico, cujo desejo é menos decidido”, pois a pulsão
de morte é inerente ao ser falante, e lança uma pergunta irônica: “a instância da letra
mata a coisa?”. A pergunta desafio talvez encontre uma pequena resposta
exatamente nas formas de identificação que os imperativos sociais contemporâneos
propõem.
Em um exemplo clínico de Hervé Castanet (1998, p.19), colhido na
Conversação de Arcachon, o sujeito melancólico traz seu depoimento: “vivo no
79
nevoeiro”. “Ficar imóvel é deter o movimento do tempo” e “quero ser um cadáver
para qualquer um [...]”. Segundo Castanet (p.126), na extensa discussão do caso,
“fazer-se cadáver para alguém” constitui sua estratégia para se defender da perda
do sentimento de vida, a palavra vazia como declinação do nevoeiro, o gozo em
suspenso, nunca simbolizado, descrevendo o eterno presente no qual o sujeito se
encontra.
A esse respeito, Recalcati traz uma contribuição interessante ao tecer
considerações sobre uma certa modalidade de rechaço do luto, que em vez de dar
lugar a uma clara posição melancólica, produz, ao contrário, uma dissipação do
desejo em um gozo dessubjetivado, anônimo, reciclado, ordinário, trabalhado por
Lacan, no discurso capitalista. Nesse sentido, o rechaço do luto como variante da
posição melancólica é verificável e encontra-se comentada com mais freqüência
tanto pela arte quanto pela filosofia, sendo mais comum e menos situável dentro dos
sintomas contemporâneos.
4.2.3 Mania
A segunda discussão do Conciliábulo de Angers problematizou, a partir de
exemplos clínicos, a questão da morte do sujeito e o argumento de Eric Laurent
(2005). Estabeleceu a diferença entre a morte do sujeito em Schreber, que
representa paradoxalmente a reconciliação, o fim de sua luta, uma saída terapêutica
radical, através da qual o sujeito encontra seu lugar no mundo, e a morte do sujeito
na mania. Nesta, a excitação maníaca e a melancolia constituem faces de uma
mesma moeda. Laurent lembra que Lacan não repete o mesmo modelo da
psiquiatria clássica, mas nas transformações que produz na teoria psicanalítica
80
reformula a oposição entre mania e melancolia. O tema da morte do sujeito não
pode ser considerado fora da economia do gozo e da moeda de dupla face
representada pela melancolia-mania.
Em prosseguimento ao debate, Miller argumenta que a morte do sujeito está
presente no ato psicótico, um ato marcado pela certeza, e que na mania há uma
intensificação do gozo preso à língua, realizando um gozo sem o freio da gramática,
com uma aceleração da pulsão de morte. O que funcionaria como grade, parapeito
do sentido seriam as homofonias verbais, portanto alíngua.
Se o maníaco evita a pontuação, o ponto de capitonagem, indaga-se o
estatuto do sujeito na mania, pergunta com a qual o debate é encerrado. (tradução
nossa).
Exatamente devido a essa pergunta sobre o estatuto do sujeito, a observação
de Lacan no primeiro capítulo do Seminário Le sinthome, de que a elação maníaca
conhecida desde a psiquiatria clássica está presente na última obra de Joyce, a
saber, Finnegans Wake, merece uma atenção especial. Ele não afirma que o sujeito
era maníaco, mas sim o tratamento conferido à palavra na obra literária. No caso de
Joyce, através da vertigem, da perplexidade provocada pelo texto, no manejo
incessante das homofonias que incidem fora do inconsciente. Essa questão que se
configura de grande importância só pode ser abordada superficialmente nesta
dissertação.
Dois psicanalistas da Escola Brasileira de Psicanálise, Sergio Laia (2001) em
Os escritos fora de si e Ram Mandil (2003) em Os efeitos da letra, contribuíram em
suas teses de doutorado para esclarecimento dessa questão, dentre outras, na
abrangente pesquisa sobre a leitura da obra de James Joyce por Lacan. Ram Mandil
(2003, p.21) percorre “os possíveis estatutos que uma letra pode adquirir”, a
81
perplexidade e “intradução”, mas também fonte de um novo estilo literário por Joyce.
Sergio Laia (2001, p.224) trabalha a hipótese do sujeito “amarrar a própria loucura,
enfrentando com rigor e como poeta [...] a dimensão real da palavra imposta à sua
vida”.
4.2.4 Paranóia
As seções clínicas de Clermond-Ferrand, Dijon e Lyon argumentam que a
paranóia foi a psicose de referência para Kraepelin e Freud, além do lugar central
ocupado no primeiro ensino de Lacan. A clínica adequar-se-ia mais facilmente à
teoria clássica do desencadeamento, pois o sujeito paranóico, na perspectiva do
primeiro ensino de Lacan, está inclinado a fazer consistir o Outro e o Pai em sua
vertente real, criar a ordem no universo pela extensa produção delirante. A função
do Outro é pacificante na paranóia e, diante de sua falha, cabe ao sujeito remanejar
esse laço rompido através da interpretação delirante. A mudança de axiomática
lacaniana, ou seja, a inexistência do Outro e a mudança do discurso do mestre, que
favoreciam uma solução pela via significante, para o discurso da ciência, modifica o
tratamento do gozo que se faz mais pela letra do que pela significação. Os
desencadeamentos tornam-se discretos, os fenômenos elementares são quase
ausentes e a utilização de alíngua permite a coexistência do Real e do Simbólico.
A seção clínica discute os limites da paranóia porque as variantes dos
desligamentos do Outro, tomados como metonímicos, se opõem ao
desencadeamento clássico, considerado metafórico. O segundo argumento é que,
pelo viés do Outro que existe, há um ponto de início, de ruptura na cadeia,
verificável na clínica, o que não ocorre quando se considera que falta um significante
82
no campo do Outro e que as modalidades de tratamento do gozo não surgem de
forma mais demarcáveis no tempo.
4.2.4.1 Debates sobre a paranóia
Os trabalhos de Lacan sobre a paranóia no segundo momento de seu ensino
são surpreendentes, pois ele retoma o conceito de personalidade de sua tese de
doutorado em outra perspectiva da lógica e da topologia. No Seminário 23, ele
corrige o título da tese, afirmando que psicose paranóica e a personalidade são a
mesma coisa, ou seja, Imaginário, Simbólico e Real possuem a mesma consistência
e estão em continuidade. Ele interroga o quarto nó, se este seria também uma
personalidade, e lança uma questão que foi muito trabalhada por diferentes autores.
Lacan novamente promove um amplo debate sobre a paranóia e instiga um trabalho
que ainda não alcançou sua conclusão.
Schejtman e Mazzuca argumentam que para abordar a questão da paranóia é
preciso interrogar não a significação da significação, mas a significação no real,
considerando o nó de trevo de Lacan, ou seja, que os três registros constituem um
único nó, portanto não são três círculos ligados, mas um mesmo fio que dá três
voltas, soldados, em continuidade. Os autores lembram com Lacan que, se algo exsiste,
é precisamente por não estar acoplado, ligado, tal como ocorre com o sintoma
de Joyce. A função de ex-sistência opõe-se a qualquer classe de união entre os três
registros, portanto “a ex-sistência do sintoma, que como quarto termo vem ligar
borromeanamente os outros três, impede o sintoma psicótico” (p.133). Os autores
propõem a diferença: de um lado, a função de ex-sistência e o pai como sinthoma;
de outro, o sintoma psicótico e a irrupção do Simbólico no Real.
83
Pierre Naveau (2004, p.205) argumenta que com relação ao nó borromeano
não há hierarquia e as três dimensões se situam no mesmo plano. Não há relação
que faça laço entre Real, Simbólico e Imaginário, salvo através do nó. A lógica do nó
é então oposta à lógica do significante, ou seja, do ponto. “Quando se considera o
nó, não há primeira nem última palavra”. Em decorrência desse contexto, a paranóia
está ausente da lógica do nó porque ela supõe uma hierarquia. Mas o autor apóia
seu argumento na noção da paranóia como essencialmente imaginária, na
continuidade entre a imagem do outro e o eu paranóico, argumento que remete aos
primórdios do ensino lacaniano que parece divergir do conceito de personalidade
proposta no Seminário 23.
Indaga-se a clínica naquilo que o sujeito apresenta de sua experiência mais
contundente. Ao contrário da fuga do sentido, encontra-se nos casos de paranóia,
extraordinárias ou ordinárias, um excesso de sentido, e desse excesso o sujeito traz
seu testemunho.
Alexandre Stevens (2005, p.50), no artigo L’effort pour traduire um regard,
apresenta um exemplo muito curioso de psicose desencadeada. O sujeito
encontrava-se torturado por um delírio de ciúmes, ao lado da manutenção da
instância crítica, porque afirmava que não tinha provas da infidelidade de sua
esposa. Seu delírio interpretativo feito da paixão pelo ciúme é construído a partir de
uma pergunta: “os outros casais são verdadeiramente felizes?”. O autor afirma que o
sujeito se apresenta dividido, não no sentido da neurose, mas dividido entre duas
personalidades que constituem a divisão de seu nome Tonino Crochet: o novo
Crochet, um sujeito monolítico e tirânico oposto ao o primeiro Tonino, vulnerável,
tímido, menos autoritário, mas que são personalidades que não o impedem de
84
manter os laços sociais com a sua família, seu trabalho e obter o reconhecimento da
comunidade onde vive.
Se a paranóia comporta personalidades distintas, mas em continuidade, em
R.S.I., como menciona Lacan, é preciso distinguir a persona, não no sentido em que
o ator atribui ao papel que representa e do qual pode se separar, e o sujeito
paranóico, que encarna as personalidades, tal como esse caso permite elucidar,
pois constitui, segundo as palavras de Alexandre Stevens, uma divisão muito real.
Essa divisão muito real, se a questão pode ser formulada nesses termos, foi
sustentada como um das possibilidades de manejo dessa clínica na retradução
permanente das interpretações, tornando-as menos fixas. O autor verifica que houve
um apaziguamento progressivo das interpretações do sujeito no decorrer de seu
tratamento.
Lacan, em uma conferência na Itália, em 1972, fornece uma pista muito
interessante sobre sua retomada da noção de personalidade, quando diz que “o
essencial é que a personalidade é a maneira de qualquer um subsistir face a esse
objeto pequeno a” (p.52). Nessa palestra, a personalidade é situada como resposta
ao objeto.
Na Conversação de Arcachon, Laurent adverte para a diferenciação entre o
conceito de personalidade empregado por Lacan e o sentido que lhe confere a
“Psicologia do Ego”. Para aquele autor, a clínica continuísta permite distinguir a
topologia de superfície, ou seja, “sobre o que o sujeito se arranca do modo de
anonimato, que ele pode atingir?” e com isso, indagar o fundo sobre o qual se
inscreve a psicose, propondo então uma investigação sobre o fundo e a forma, a
personalidade e o Outro. Ele lembra ainda que a personalidade, portanto a forma e
fundo, foram muito trabalhados no ensino de Lacan através dos seguintes exemplos:
85
A maneira como Antígona reentra bem viva em sua morte, e se
desfaz no fundo; a maneira como o herói sadiano entra bem vivo na
natureza; a maneira como, no fim de “Subversão do sujeito” o
budismo faz uma múmia que regressa à natureza; a maneira como a
coitada da Sygne de Claudel, que por salvar o papa não pode senão
calar a boca, ingressou bem viva na vontade do Outro e acaba se
dissipando no nevoeiro. (LAURENT,1998, p.124)
Conforme se infere através desses exemplos, o tema sobre a topologia de
superfície abre um campo importante de investigação que inclui o conceito de
personalidade inerente à paranóia, mas que pode ser aplicável a uma temática mais
ampla, pois parece tratar do sujeito identificado a tal ponto com a forma que
desaparece no nevoeiro, entra vivo na dimensão da morte.
Assim, o debate sobre a paranóia adquire novos matizes e estimula
indagações, sobretudo diante das personalidades não necessariamente paranóicas
que a religião e a literatura não cessam de apresentar e que são corroboradas pelas
modalidades de laços sociais contemporâneos. Nesse sentido, o terceiro debate do
Conciliábulo de Angers menciona tanto a reabilitação de delírios histéricos como
resposta aos efeitos de sugestão em massa, quanto os movimentos de massa
desencadeados por paranóicos notórios ou seitas paranóicas.
Há ainda que se insistir na diferenciação, por vezes difícil, do conceito de
personalidade no campo da psicologia ou mesmo das modalidades psicanalíticas
norte americanas, do conceito lacaniano, principalmente considerando as
demarcações feitas ao longo de seu ensino e que culminam no seminário Le
sinthome, no qual a personalidade é uma modalidade específica e básica de nó
borromeano.
86
4.3 A DIREÇÃO DA CURA
Laure Naveau assinala que entre as duas últimas Conversações houve um
conjunto de trabalhos que promoveram a passagem do enlaçamento R.S.I. para os
trabalhos com a língua e indaga os desdobramentos da Convenção de Antibes no
sentido de melhor precisar as conseqüências da direção da cura do sujeito
psicótico. Evidentemente, essas questões ainda não se esgotaram e, pelo contrário,
constituem um campo de pesquisa bastante amplo.
Seguindo essa indagação, encontra-se nos trabalhos mais recentes de Eric
Laurent (2005) sobre O Nome-do-Pai entre realismo e nominalismo, ao lado de
outros artigos sobre o mesmo tema, dentre eles Interpréter la psychose au quotidien,
que foi um dos temas da recente Conversação do Instituto do Campo Freudiano,
realizada em Paris, em junho de 2005, indicações muito instigantes para a direção
da cura nos casos de psicose ordinária.
Laurent (2005, p.10) argumenta que a interpretação é sem standard, mas
não sem princípio. O princípio “não há metalinguagem” se evidencia e é aplicável
especialmente à psicose quotidiana porque toca diretamente o lugar do Outro, que
na perspectiva da topologia é um lugar moëbiano. Ele lembra que o inconsciente
intérprete é evidenciado pela psicose através das palavras impostas e do
inconsciente a céu aberto que trabalha sem cessar, um gozo que vem do corpo
próprio como ocorre na esquizofrenia, e o gozo mal que vem do Outro na
interpretação paranóica. O nome próprio pode ser bem sucedido na tarefa de ligação
significante-significado, de tal maneira que a tradução exacerbada pode se deter. A
operação é de corte.
87
Laurent (1996, p.98) retoma o argumento de Miller em Interpretação pelo
avesso, pois há duas práticas distintas: uma prática interpreta à maneira do
inconsciente e seu operador é o Nome-do-Pai, na outra, o caminho é ao avesso do
que trabalha o inconsciente, ou seja, considera que S1 absorve, devora sempre S2.
Portanto, no exemplo de Joyce, não há separação entre o que ele disse e o que
queria dizer. Não há separação entre enunciado e enunciação.
Retornando ao artigo de Laurent mencionado anteriormente, na direção da
cura da psicose, não se deixa um sujeito delirar até o esgotamento, como ocorre
com o maníaco ou paranóico. O ato de conferir um nome pode tocar o outro, como
na frase tu és isso, que reenvia pela homofonia em francês à morte da coisa. Nesse
sentido, as passagens ao ato, auto ou hetero agressivas, constituem também uma
maneira, aparentemente paradoxal, de dar um nome. A coisa pode ser morta (tuée)
quando encarnada no próprio sujeito ou em qualquer outra pessoa. Nessa situação,
o que o sujeito diz é tão importante quanto o que ele faz.
O exemplo possível, extraído da clínica particular, é de um sujeito psicótico
que tentava traduzir com o nome light em frases pequenas, condensadas: estou light
ou está tudo light, pronunciadas logo após suas passagens ao ato, sua maneira
particular de traduzir, interpretar a precipitação que o acometia.
Ainda segundo Laurent, é preciso encontrar os elementos não standard que
possam operar como corte, pontos de detenção do Outro, um momento no qual ele
não pensa em nada, não diz nada, um momento que inclui a pausa, o silêncio.
Finalmente ele lembra que a interpretação-corte, interpretação como separação do
Outro, é compatível com a segunda clínica de Lacan, e que engloba a primeira
clínica. Essa sugestão de Laurent é, no mínimo, curiosa, quando se considera que
alguns autores enfatizam a dissimetria entre as duas clínicas.
88
Esses argumentos adquirem uma relevância maior quando se considera nas
psicoses ordinárias que a topologia das ligações entre R.S.I., como foi evidenciado
por Lacan, a letra, o nome ou o ego na esquizofrenia e nas situações nas quais o
corpo está em questão; o ego, a letra, a personalidade para o paranóico e a super
identificação aos papéis sociais, indicados pela clínica do melancólico, parece, à
primeira vista, operarem uma conjunção entre R.S.I. Evidentemente, não se pode
esquecer que na paranóia há continuidade e não ligação entre os três registros e
que a pesquisa do conceito de personalidade retomado por Lacan propõe
questões inovadoras.
Entretanto, a interpretação pelo avesso, que visa exatamente o sinthoma,
indica que a operação analítica privilegia o corte, a separação do Outro. Verifica-se
que na direção da cura pode haver um duplo movimento, do lado do sujeito e do
lado do ato analítico.
Indaga-se então, a partir desse duplo movimento de conjunção-separação
inaugurado pelo ato analítico, o analista se fazer parceiro-sintoma e não parceirosaber,
como ensina Miller na Convenção de Antibes. Há que se considerar também
a advertência feita por ele de que o analista pode ser rejeitado como objeto intruso e
de que alingua não é instrumento de comunicação, mas bricolagem particular de
cada sujeito.
Desde a tese de doutorado, Lacan interrogava a questão da transferência na
psicose, o estatuto do amor nessa estrutura, considerando o laço erotomaníaco e o
narcisismo que envia o sujeito ao duplo de sua própria imagem. Em seguida, Lacan
indica a leitura do empuxo-à-mulher como realização de um gozo no corpo, resposta
ao impossível da simbolização do sexual pela via fálica. Num terceiro momento, a
questão da transferência será recolocada sobre os diversos tratamentos do gozo,
89
privilegiando a vertente dos signos, das insígnias traçadas no corpo, dos modos de
vida, mais que o sentido da linguagem. As conexões possíveis entre os três registros
serão indicadas pelo sujeito ou pelo ser falante em cada caso particular.
Em uma publicação sobre o tema Pertinences de la psychanalyse appliquée,
que reuniu diversos trabalhos do Campo Freudiano, particulariza-se o artigo de
Jean-Pierre Deffieux (2003), Le sujet paranoïaque et le transfert en instituition, no
qual o autor diferencia a transferência que tem lugar nas práticas institucionais, e
propõe manejos diversos, mas como uma mediação, um tempero, uma regulagem
nos transbordamentos da transferência e a invenção de um laço social mais
pacificado do psicótico com seu meio.
Portanto, para os sujeitos psicóticos a transferência estará incluída na direção
da cura, nos manejos diversos que o trabalho particular trará. O conceito de
transferência na psicose é completamente diverso daquele empregado na neurose.
É preciso lembrar que na gênese da transferência está o significante do desejo do
Outro, o desejo de saber. O rechaço do inconsciente na psicose não exclui o lugar
do analista, apenas lhe determina outro lugar onde um tratamento será
eventualmente possível.
O Campo Freudiano continua na atualidade o trabalho de investigação sobre
o tema da psicose ordinária porque é importante aprender com a experiência do real:
as peças avulsas que destacamos de seu uso natural constituem os objetos a
presentes na vida contemporânea, com o uso do gozo, a costura das peças avulsas
do corpo, do sinthoma, da invenção de um substantivo qualquer na condição de
nome próprio, da letra. Essa experiência reexamina o paradigma constante, o sujeito
e o Outro, na perspectiva do último ensino de Lacan.
90
5 A PSICOSE É QUESTÃO DO SUJEITO E DO FALASSER
(PARLÊTRE)
A questão do sujeito e do falasser (parlêtre) se insere em uma oposição
intrínseca, representativa dos dois momentos do ensino de Lacan e que merece ser
discutida como temática que conclui esta dissertação. Para isso, será trabalhada em
torno de três perspectivas, alternativa possível diante da diversidade de opções que
o tema sugere.
O conceito de sujeito em psicanálise foi indicado por Freud como sujeito do
inconsciente e retomado por Lacan no inconsciente estruturado como uma
linguagem, como sujeito representado pelos significantes, representação da qual
resta o objeto a, resto irredutível à significação. O sujeito sem substância, efêmero,
subtraído do campo do Outro acarreta de várias maneiras a mudança de estatuto em
relação ao real, simbólico e imaginário. Portanto, o sujeito é evanescente, vazio,
uma função pontual. A falta a ser do sujeito é determinante para os intercâmbios
com a moeda do desejo, pois o destino do humano está ligado ao signo de ser e
como existência o sujeito é constituído desde o início como divisão.
O método empregado por Lacan na investigação que resulta na teoria da
prática psicanalítica faz dialogar os conceitos com seus opostos, contrapondo: a falta
e o ser, sujeito e falasser, sintoma e sinthoma, verdade e gozo, dentre outros. O
sujeito será inscrito no discurso sem palavras, como seqüência algébrica nos quatro
discursos, e topologicamente representado como estrutura espacial pela Banda de
Moëbius. No último ensino, mais precisamente a partir do Seminário R.S.I. até o final
da obra lacaniana, surge o termo que se contrapõe ao sujeito que é o falasser, termo
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que decorre do Um do corpo, essencial quando se considera o tempo, a duração e o
campo do real.
Para percorrer a questão enunciada no capítulo, optou-se por examiná-la sob
ângulos diversos mencionados anteriormente, que são: 1. Um comentário sobre o
artigo Produzir o sujeito?, localizado no capítulo Estrutura e psicose do livro
Matemas I (1996) de Jacques-Alain Miller. 2. Uma releitura lacaniana do adjetivo
Unerkannt. 3. Uma reflexão sobre o verbete Forclusão de Jean-Claude Meleval
escrito para o Congresso de 2006 da AMP.
5.1 PRODUZIR O SUJEITO?
Em termos gerais, o argumento de Miller (1996) no capítulo Estrutura e
Psicose pode ser assim resumido: para os sujeitos, quaisquer que sejam as
estruturas, há a sujeição, uma alienação ao significante. Na neurose, a dependência
ao campo significante é demarcada por um duplo movimento de alienação e
separação do Outro. A separação do Outro é para o sujeito psicótico uma tarefa
complexa, porque a falta a ser que permitiria esse movimento e que produz um
sujeito a partir da causa do desejo é objetada pelo sujeito psicótico. Há o fracasso
da metáfora paterna, de modo que o sujeito psicótico surge como resposta do real. A
clínica psicanalítica das psicoses consiste em estudar essas respostas do real.
Miller (1996) evoca um exemplo da clínica de crianças relatada por Rosine
Lefort para demonstrar que a castração, que participa da produção do sujeito
psicótico, ocorre como castração real, e não simbólica, quando em um certo instante
do seu tratamento a criança tenta cortar o próprio órgão com uma tesoura. Nesse
exemplo, o objeto a é puro real, não está incluído na castração imaginária e não
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funciona como causa do desejo. Os sujeitos psicóticos tentam, cada um à sua
maneira, remediar tanto o fracasso da função fálica, portanto da metáfora, quanto a
emergência do real. E ele conclui “a psicose é questão do sujeito – pois ela assim
mesmo nos conduz aos confins de sua produção” (p.160). O que seriam os confins
de uma produção subjetiva nessa estrutura?
A partir do Seminário X, Lacan opera uma torção radical no conceito de
objeto, diferenciando várias de suas manifestações, e introduz várias faces do objeto
a. Se na neurose o objeto participa da produção do sujeito cuja falta, castração e
angústia se estendem do significante ao corpo, na psicose o objeto não pode ser
destacado do campo do Outro. É condição para que o Outro se diferencie do Um a
queda do objeto de seu campo.
Na psicose o objeto permanece do lado do sujeito como presença opaca e
constante, diversamente interpretado, mas sempre acarretando o signo, sinal no
real. Essa presença é verificada na voz e no olhar que participam da temática dos
delírios, alucinações e dos imperativos que comandam as passagens ao ato e se
configuram muitas vezes como única possibilidade de separação do gozo do Outro.
Os testemunhos psicóticos enunciam o peso dessa presença.
Lacan (1985) descobre, a partir do Seminário Mais ainda, uma outra função
importante do objeto a: como resto, lixo, letra, como efeito do discurso que faz
passar do ser para o ter, este verbo em sua conotação jurídica, fazer algo com, uma
reciclagem, um uso do objeto, com o qual o sujeito pode demarcar uma relativa
separação do gozo avassalador. O ato psicanalítico pode contribuir para o sujeito
encontrar destinos diversos para a letra, uma função de ponto de basta em uma
cadeia infinita; pode criar a chance da bricolagem das peças avulsas do corpo, e por
esse caminho cerzir um corpo despedaçado. Entretanto, é preciso cautela, pois tanto
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Schreber quanto Joyce ensinaram que podem produzir, fazer algo, escrever,
inventar - sem o psicanalista.
A produção do sujeito psicótico, conforme foi descrito anteriormente, percorre
os registros Imaginário, Simbólico, Real, nos quais o estatuto do Outro e do sujeito
se modificam em cada um desses nomes. Parece que a passagem do ser ao ter,
fora do campo fálico, é o aspecto prevalente daquilo que se pode colher no ensino
de Lacan sobre os confins da produção de um sujeito nessa estrutura. Há que se
considerar e aprender com o objeto a para além da função causa do desejo ou
objeto do gozo, mas como resto, levando em conta o lugar privilegiado que o objeto
ocupa na sociedade contemporânea.
Produzir o sujeito a partir da deriva pulsional, do real, do objeto a como resto
implica a partícula reflexiva. O sujeito se produz com as conseqüências possíveis
ensinadas diversamente por Schreber, Joyce ou pelo sujeito que na apresentação
de pacientes diz: “eu me criei a mim mesmo a partir da ordem de Deus”. Há,
portanto, criação ou invenção produzida de maneiras diferentes do lado do ser e do
lado do ter.
O trabalho sobre o gozo do corpo, o sintoma como acontecimento de corpo,
delineado por Lacan em seu último ensino e desenvolvido por Miller (1998) a partir
de 1986, em Los signos del goce, e do Seminário de 1998, La experiência de lo real
em la cura psicoanalítica, aborda o corpo afetado pelo acontecimento contingente,
que mantém em relação ao significante um desequilíbrio permanente, um excesso
de excitação. Afetos diversos que podem se configurar como angústia ou traumas
atingem o ser falante, portanto estão fora do inconsciente, do outro lado da divisão
subjetiva, onde há corpo.
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É preciso lembrar que na tradução do Seminário 20 de Lacan (1985) para o
português, o título Mais, ainda, recobre o título original, Encore, passível de ser lido
em duas vias: como “mais, ainda” e servindo-se da homofonia permitida pelo idioma
francês, “no corpo”. Nesse Seminário, Lacan esclarece que o ser só existe na
linguagem pelo corte que esta opera no real e demonstra que o ser é o real no
simbólico.
O ser falante está inscrito como Um do corpo, como corpo próprio, mas não
como unidade corporal. O gozo Uno apresenta versões diversas: gozo
masturbatório, o gozo da palavra, situado fora da comunicação, e o gozo da
sublimação. A particularidade do gozo Uno é que especifica o sinal do S1 sozinho.
Evoca-se, a título de exemplo, a paranóia, quando indica duas vertentes: a
do sujeito, na articulação simbólica dos delírios de negação – de perseguição, de
ciúme, erotomaníaco - que foram estudados por Freud e Lacan como manifestações
de diferentes paranóias e a vertente do ser falante em suas modalidades de gozo,
tal como o gozo do corpo em Schreber, como signo da presença real do que há da
existência da relação sexual.
Lacan esclarece na lição de 10 de Maio de 1977, no Seminário 24: “O Um
dialoga só, posto que recebe sua própria mensagem de forma invertida. É ele quem
sabe e não o suposto saber”. Com isso ele indica um saber do Um, diverso do saber
do Outro. O sujeito psicótico se serve dessa modalidade de saber fora da
comunicação, conforme indicaram os exemplos precedentes, e que se verificam no
emprego de alíngua, nos limites da estrutura indicados pelo ser falante.
No decorrer de sua obra, Lacan ultrapassa a acepção de produzir o sujeito
como efeito do significante para abranger os sentidos da produção ex-nihilo, como
criação, na qual o real está implicado, para além da escritura e da relação com o
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nome do autor. No Seminário 17, afirma que só o discurso pode produzir, ordenar,
mas no último ensino essa afirmativa parece um pouco modificada, pois as
vicissitudes do corpo e do sintoma ampliam a vertente discursiva. A psicose
ordinária, como se discutiu anteriormente, apresenta formas diversas de conecção
entre real, simbólico e imaginário, com ordenamento fora do discurso.
5.2 UNERKANNTE EM LACAN
Em 1975, em Resposta a uma pergunta de Marcel Ritter na introdução a uma
sessão de trabalho realizada em Estrasburgo, Lacan (1994) resgata um adjetivo que
aparece uma única vez empregado na obra freudiana, na Interpretação dos sonhos,
mas cuja importância deve ser redimensionada principalmente porque Lacan o faz
retornar no Seminário 23 proferido nesse mesmo ano.
Marcel Ritter pergunta sobre o termo traduzido como desconhecido e
articulado à questão do umbigo do sonho, um ponto de falha na rede significante.
Ele indaga se é um real pulsional, não simbolizado.
Lacan responde que não se trata de real pulsional, mas diz que a pulsão está
ligada aos orifícios corporais. É indicada por Freud uma constância que passa pelos
orifícios do corpo, um elemento de real, um real como conseqüência da
impossibilidade do simbólico, designativa do ponto limite de uma análise, que surge
no umbigo do sonho e nas produções imaginativas.
Esclarece que a expressão ser falante é outra designação de inconsciente, na
qual o ser se encontra excluído de sua própria origem. Por isso Freud encontrou no
sonho esse estigma comum a todo vivíparo, uma cicatriz no corpo que faz nó. O
prefixo Un, em alemão, designando a impossibilidade, o limite, o impossível de se
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reconhecer, foi trabalhado por Lacan em termos da lógica como o que não cessa de
não se escrever, que constitui a própria essência do nó borromeano.
No Seminário 23, Le sinthome, Lacan (2005, p.149) indaga a relação de
Joyce com o corpo próprio, estendendo o caráter imperfeito dessa relação a todos
os seres humanos, porque o inconsciente ignora aquilo que ultrapassa o significante,
ignora o que se passa no corpo. Segundo Lacan, “a antiga noção de inconsciente, o
Unerkannt se apóia na nossa ignorância do que se passa em nosso corpo” (tradução
nossa).
Nesse mesmo Seminário, no anexo final, encontram-se comentários sobre
termos diversos elaborados por Miller sob o título Notice de fil em aiguille. No tópico
número 6, De Schreber à Joyce, há considerações sobre a expressão deixar cair da
relação com o corpo próprio, essencial na psicose de Schreber, encontrada também
nas modalidades de passagens ao ato e na defenestração melancólica. Miller indaga
sobre o que cai nesses casos clínicos, argumentando que não é o sujeito do
significante, que é sem substância, mas o sujeito enquanto seu ser está alojado no
objeto a, e conclui dizendo que o corpo está necessariamente à parte.
Esse corpo à parte é evidenciado principalmente nas psicoses, portanto não
há sujeito, mas o ser falante e o corpo próprio no limite irredutível, infranqueável,
limite do real.
5.3 FORCLUSÃO
Para dialogar com o verbete Forclusão, escolheu-se uma das definições na
vasta pesquisa efetuada pelo autor sobre esse conceito, colhida no livro de Jean-
Claude Maleval La forclusión del Nombre del Padre :
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A forclusão é um conceito dinâmico que põe em relevo os recursos
criativos do psicótico e abre novas possibilidades de tratamento,
porque destaca as capacidades destes sujeitos para elaborar
suplências. (MALEVAL, 2003, p.23)
O verbete escrito por Maleval para a publicação que aborda o tema do
próximo Congresso da AMP é instigante porque trabalha aspectos diferenciais e com
isso aclara o conceito de forclusão, considerado nos dois ensinos de Lacan.
Abrange as psicoses ordinárias, que ele qualifica de fenômeno decorrente da
elevação ao zênite do objeto a, posição do objeto que, por produzir modificações no
ideal, repercute sobre a clínica contemporânea. Propõe perguntas desafiadoras e
tece considerações muito pertinentes sobre o tema.
Maleval participou dos debates que compuseram as conversações citadas no
capítulo quatro desta dissertação. Portanto, pode-se supor que a redação do verbete
constitua outro tempo de sua elaboração sobre a passagem do Nome-do-Pai do
singular ao plural e seus efeitos para a clínica da psicose.
Ele enfatiza a diferença entre a forclusão restrita e a forclusão generalizada -
o delírio psicótico do delírio comum, daqueles que não são psicóticos. O delírio
psicótico se deve à forclusão do Nome-do-Pai, escrito (P0), enquanto a forclusão
generalizada, que sublinha o vazio do Outro, é transestrutural e se escreve (A
barrado). Por esse motivo, porque falta um significante no campo do Outro, o sujeito
é convidado a reparar essa falta através do amor, do sintoma, da fantasia, do sonho,
do delírio, dentre outras vias.
Maleval menciona a noção de clínica continuísta, que teve lugar na
Conversação de Arcachon. Essa noção admite uma gradação no interior do capítulo
das psicoses, mas alerta para o fato de não haver a mesma gradação entre neurose
e psicose. Lembra ainda que os tipos clínicos são mais sensíveis às mudanças
sociais do que as estruturas subjetivas, por isso deduz que as mutações
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sintomáticas são verificadas na clínica contemporânea e que não se encontra a
mesma correspondência nas estruturas subjetivas. Destacam-se duas perguntas
dentre outras formuladas por Maleval: 1. As mudanças sociais induzem as mutações
subjetivas? 2. A psicose ordinária é suscitada pela emergência do Outro que não
existe?
Uma reflexão sobre essas perguntas conduz a alguns textos que talvez sejam
esclarecedores. Freud, em mais de um artigo, tratou o lugar do pai como portador da
interdição do incesto, fundamental para a economia psíquica, tanto quanto para o
edifício social e religioso (LAURENT, 2005). No artigo Les complexes familiaux dans
la formation de l’individu, Lacan (2001) diz que o Complexo de Édipo não se funda
fora de uma determinação social, questão que é retomada por Miller no comentário
sobre esse artigo. Esclarece que a imago paterna é encarregada da função de ideal
e que aí se funda o Nome-do-Pai lembrando ainda que Lacan aponta na
estruturação da neurose contemporânea o declínio da imago paterna, de modo que
a estrutura sofre os efeitos não apenas das mudanças sociais, mas também da
mudança discursiva. A questão é instigante, pertinente e atual, mas prosseguir em
seus desdobramentos ultrapassaria os limites desta dissertação.
No artigo mencionado anteriormente, Laurent aborda a mudança produzida
por Lacan em seu último ensino, quando funda o pai na posição de exceção, pois
denuncia o fracasso, o limite da função. A esse respeito, extrai do Nome-do-Pai três
atributos: o Nome-do-Pai é uma função – não define um universal ontológico –
define um impossível. Conclui então que o utilitarismo social com freqüencia
esconde o fracasso do Nome, questão amplamente justificada pelos exemplos que
constam no artigo e que comentam o termo parentalidade, as novas constituições e
utopias familiares.
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Diante desses argumentos, constata-se que efetivamente o sujeito
contemporâneo denuncia a forclusão generalizada, ou seja, o real, o impossível em
jogo através da produção de novos sintomas com o efeito de suplência que Lacan
considerou, desde seu Seminário R.S.I., como indispensável para reparar a
dissociação do nó borromeano. Esse é o motivo pelo qual ele justifica, nesse
Seminário, a pluralização dos Nomes-do-Pai. Acrescenta-se que a forclusão restrita
ou generalizada será verificada diante da produção literária e do caso clinico, nas
construções de cada caso particular.
Quanto à suplência, conforme foi exposto anteriormente, encontra-se na obra
de Lacan com empregos diferentes: no imaginário, pelas identificações e idéias,
como metáfora delirante no registro simbólico, e suplência do nó borromeano
através do nome. Deve-se destacar que na lição de 13.05.75 do Seminário 22,
Lacan (1974) esclarece que essa nominação diz respeito ao nome comum, que no
imaginário faz inibição ao simbólico, tal como a reta infinita ou a inibição que tem o
pensamento para com o nó. O simbólico demarca a suplência pela via do sintoma e
no real, a angústia.
Quanto à psicose ordinária, não se trata de um novo tipo clínico decorrente de
S de A barrado, embora a mudança de axiomática e o emprego da topologia
promovidas por Lacan tenham franqueado a possibilidade de abordá-la dessa forma.
Quando o lugar do Outro é circunscrito, o que não tem nome dentro do círculo pode
ser escrito como S de A barrado. Isso que não tem nome aparece como gozo. Esse
esclarecimento de Laurent (2003) é capital para situar a tarefa de tratamento do
gozo conduzida por alguns sujeitos psicóticos.
A psicose ordinária ocupa um capítulo no qual as soluções encontradas pelo
sujeito para fazer frente à falta irremediável de um significante no campo do Outro
100
acentuam as formas singulares de amarração dos três registros. Uma tentativa de
ordenar uma existência, em um lugar fora, mas ao mesmo tempo ligado. Portanto,
uma ex-sistência adequada à psicose, mas também curiosamente adequada às
normas contemporâneas.
As questões em jogo são muito pertinentes e Maleval as atualiza através do
verbete Forclusão. Verifica-se, entretanto, que o debate sobre o termo permanece,
principalmente tendo em vista as indagações decorrentes do último ensino de
Lacan.
101
6 CONCLUSÃO
O percurso no tema Da paranóia à psicose ordinária implicou várias
travessias na pesquisa teórica empreendida sobre o tema da psicose. A primeira
delas, situada no breve histórico do conceito de paranóia no âmbito da psiquiatria
clássica que antecedeu cronologicamente o surgimento da psicanálise. Em seguida,
os conceitos de paranóia e psicose se inserem no desenvolvimento mais amplo do
corpo teórico psicanalítico. As hipóteses que resultaram na edificação das
formulações de Freud encontraram em Lacan seu leitor mais instigante que tomou
nas mãos a tarefa de conduzir uma descoberta demonstrando seus efeitos como
prática através da aporia intrínseca ao próprio campo.
Foi possível vislumbrar, nesse percurso, as epistemologias que lhes deram
suporte e percorrer o método que cada um desses grandes nomes empregou no
esforço de construção de uma das áreas mais recônditas e temidas da experiência
humana.
Nesta dissertação, a vereda histórica de um conceito se impôs, mas a
psicanálise ensina que o tempo não é linear e se inscreve subjetiva e
topologicamente. Coube a Lacan trazer para a psicanálise a solidariedade entre
tempo e pensamento, verificável em vários conceitos, dentre eles a psicose.
A causa da psicanálise ocupa o lugar de agente em um discurso sem
palavras é o que demonstra os dois momentos do ensino de Jacques Lacan, que
resultaram na passagem da estrutura como simbólica para a estrutura como real.
Nesses momentos, encontra-se a cada passo o diálogo com Freud, com a filosofia e
com vários campos do conhecimento. O edifício conceitual se transforma diante da
alteração da perspectiva e a psicanálise convida à leitura renovada.
102
As obras de Sigmund Freud e Jacques Lacan, mais do que uma contribuição
para a história da loucura, escrevem um capítulo essencial para a teoria mais ampla
do sujeito e do objeto, sem descuidar dos efeitos produzidos pelas transformações
sociais e culturais, sem deixar de indagar seu porvir.
A psicanálise de orientação lacaniana também ensina que o momento de
concluir é geralmente propício para a extração de conseqüências situáveis em um
tempo lógico. Principalmente quando se trabalha em torno de um real que produz
seu próprio desconhecimento.
103
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