sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Sigmund Freud - O Valor da Vida

Sigmund Freud - O Valor da Vida

A entrevista que reproduzo abaixo é, supostamente, a última dada por Sigmund Freud. Foi concedida em 1926 ao jornalista estudinedense George Viereck. Apesar de esta entrevista ter sido realizada em 1926 e Freud ter morrido 13 anos depois, não há relatos de outras entrevistas concedidas por Freud após 1926.

Em 1923, Freud foi diagnosticado com câncer na boca. Em 1926, já usava uma mandíbula mecânica e sentia dificuldade para falar. Isso talvez explique o fato de ele ter continuado a produzir material escrito (como "O Mal-Estar na Civilização", por exemplo), mas evitar falar. É possível também que esta seja a última entrevista que se conheça... Ou mesmo que esta não seja sua última entrevista, conforme se divulga. O que, na verdade, pouco importa.

O interessante é que este material foi considerado perdido por décadas, até que o boletim da Sigmund Freud Haus publicou uma versão condensada em 1976. O texto integral não fez muito sucesso na época, e pode ser lido no volume Psychoanalysis and The Future, uma edição especial do Journal of Psychology (New York, 1957).

A tradução para o português foi realizada por Paulo Cézar Souza.

O VALOR DA VIDA
Por George Viereck
Setenta anos ensinaram-me a aceitar a vida com serena humildade.
Quem fala é o professor Sigmund Freud, o grande explorador da alma. O cenário da nossa conversa foi uma casa de verão no Semmering, uma montanha nos Alpes austríacos.
Eu havia visto o pai da psicanálise pela última vez em sua casa modesta na capital austríaca. Os poucos anos entre minha última visita e a atual multiplicaram as rugas na sua fronte. Intensificaram a sua palidez de sábio. Sua face estava tensa, como se sentisse dor. Sua mente estava alerta, seu espírito firme, sua cortesia impecável como sempre, mas um ligeiro impedimento da fala me perturbou.
Parece que um tumor maligno no maxilar superior necessitou ser operado. Desde então Freud usa uma prótese, para ele uma causa de constante irritação.
S. Freud: Detesto o meu maxilar mecânico, porque a luta com o aparelho me consome tanta energia preciosa. Mas prefiro ele a maxilar nenhum. Ainda prefiro a existência à extinção.
Talvez os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos que carregamos.
Freud se recusa a admitir que o destino lhe reserva algo especial.
- Por quê – disse calmamente - deveria eu esperar um tratamento especial? A velhice, com sua agruras chega para todos. Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, mais de setenta anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas – a companhia de minha mulher, meus filhos, o pôr do sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?
George Sylvester Viereck: O senhor teve a fama, disse que Sua obra influi na literatura de cada país. O homem olha a vida e a si mesmo com outros olhos, por causa do senhor. E recentemente, no seu septuagésimo aniversário, o mundo se uniu para homenageá-lo – com exceção da sua própria Universidade.
S. Freud: Se a Universidade de Viena me demonstrasse reconhecimento, eu ficaria embaraçado. Não há razão em aceitar a mim e a minha obra porque tenho setenta anos. Eu não atribuo importância insensata aos decimais.
A fama chega apenas quando morremos, e francamente, o que vem depois não me interessa. Não aspiro à glória póstuma. Minha modéstia não e virtude.
George Sylvester Viereck: Não significa nada o fato de que o seu nome vai viver?
S. Freud: Absolutamente nada, mesmo que ele viva, o que não e certo. Estou bem mais preocupado com o destino de meus filhos. Espero que suas vidas não venham a ser difíceis. Não posso ajudá-los muito. A guerra praticamente liquidou com minhas posses, o que havia poupado durante a vida. Mas posso me dar por satisfeito. O trabalho é minha fortuna.
Estávamos subindo e descendo uma pequena trilha no jardim da casa. Freud acariciou ternamente um arbusto que florescia.
S. Freud: Estou muito mais interessado neste botão do que no que possa me acontecer depois que estiver morto.
George Sylvester Viereck: Então o senhor é, afinal, um profundo pessimista?
S. Freud: Não, não sou. Não permito que nenhuma reflexão filosófica estrague a minha fruição das coisas simples da vida.
George Sylvester Viereck: O senhor acredita na persistência da personalidade após a morte, de alguma forma que seja?
S. Freud: Não penso nisso. Tudo o que vive perece. Por que deveria o homem construir uma exceção?
George Sylvester Viereck: Gostaria de retornar em alguma forma, de ser resgatado do pó? O senhor não tem, em outras palavras, desejo de imortalidade?
S. Freud: Sinceramente não. Se a gente reconhece os motivos egoístas por trás de conduta humana, não tem o mínimo desejo de voltar a vida, movendo-se num círculo, seria ainda a mesma.
Além disso, mesmo se o eterno retorno das coisas, para usar a expressão de Nietzsche, nos dotasse novamente do nosso invólucro carnal, para que serviria, sem memória? Não haveria elo entre passado e futuro.
Pelo que me toca estou perfeitamente satisfeito em saber que o eterno aborrecimento de viver finalmente passará. Nossa vida é necessariamente uma série de compromissos, uma luta interminável entre o ego e seu ambiente. O desejo de prolongar a vida excessivamente me parece absurdo.
George Sylvester Viereck: Bernard Shaw sustenta que vivemos muito pouco, disse eu. Ele acha que o homem pode prolongar a vida se assim desejar, levando sua vontade a atuar sobre as forças da evolução. Ele crê que a humanidade pode reaver a longevidade dos patriarcas.
- É possível, respondeu Freud, que a morte em si não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer.
Assim como amor e ódio por uma pessoa habitam em nosso peito ao mesmo tempo, assim também toda a vida conjuga o desejo de manter-se e o desejo da própria destruição.
Do mesmo modo com um pequeno elástico esticado tende a assumir a forma original, assim também toda a matéria viva, consciente ou inconscientemente, busca readquirir a completa, a absoluta inércia da existência inorgânica. O impulso de vida e o impulso de morte habitam lado a lado dentro de nós.
A Morte é a companheira do Amor. Juntos eles regem o mundo. Isto é o que diz o meu livro: Além do Princípio do Prazer.
No começo, a psicanálise supôs que o Amor tinha toda a importância. Agora sabemos que a Morte é igualmente importante.
Biologicamente, todo ser vivo, não importa quão intensamente a vida queime dentro dele, anseia pelo Nirvana, pela cessação da "febre chamada viver", anseia pelo seio de Abraão. O desejo pode ser encoberto por digressões. Não obstante, o objetivo derradeiro da vida é a sua própria extinção.
Viereck: Isto é a filosofia da autodestruição. Ela justifica o auto-extermínio. Levaria logicamente ao suicídio universal imaginado por Eduard von Hartamann.
S.Freud: A humanidade não escolhe o suicídio porque a lei do seu ser desaprova a via direta para o seu fim. A vida tem que completar o seu ciclo de existência. Em todo ser normal, a pulsão de vida é forte o bastante para contrabalançar a pulsão de morte, embora no final resulte mais forte.
Podemos entreter a fantasia de que a Morte nos vem por nossa própria vontade. Seria mais possível que pudéssemos vencer a Morte, não fosse por seu aliado dentro de nós.
Neste sentido acrescentou Freud com um sorriso, pode ser justificado dizer que toda a morte é suicídio disfarçado.
Estava ficando frio no jardim.
Prosseguimos a conversa no gabinete.
Vi uma pilha de manuscritos sobre a mesa, com a caligrafia clara de Freud.
George Sylvester Viereck: Em que o senhor está trabalhando?
S. Freud: Estou escrevendo uma defesa da análise leiga, da psicanálise praticada por leigos. Os doutores querem tornar a análise ilegal para os não médicos. A História, essa velha plagiadora, repete-se após cada descoberta. Os doutores combatem cada nova verdade no começo. Depois procuram monopoliza-la.
George Sylvester Viereck: O senhor teve muito apoio dos leigos?
S. Freud: Alguns dos meus melhores discípulos são leigos.
George Sylvester Viereck: O senhor está praticando muito psicanálise?
S. Freud: Certamente. Neste momento estou trabalhando num caso muito difícil, tentando desatar os conflitos psíquicos de um interessante novo paciente.
Minha filha também é psicanalista, como você vê...
Nesse ponto apareceu Miss Anna Freud acompanhada por seu paciente, um garoto de onze anos, de feições inconfundivelmente anglo-saxonicas.
George Sylvester Viereck: O senhor já analisou a si mesmo?
S. Freud: Certamente. O psicanalista deve constantemente analisar a si mesmo. Analisando a nós mesmos, ficamos mais capacitados a analisar os outros.
O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. Os outros descarregam seus pecados sobre ele. Ele deve praticar sua arte à perfeição para desvencilhar-se do fardo jogado sobre ele.
George Sylvester Viereck: Minha impressão, observei, é de que a psicanálise desperta em todos que a praticam o espírito da caridade cristão. Nada existe na vida humana que a psicanálise não possa nos fazer compreender. "Tout comprec'est tout pardonner".
Pelo contrário! – bravejou Freud, suas feições assumindo a severidade de um profeta hebreu. Compreender tudo não é perdoar tudo. A análise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também o que podemos evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância com o mal não e de maneira alguma um corolário do conhecimento.
Compreendi subitamente porque Freud havia litigado com os seguidores que o haviam abandonado, por que ele não perdoa a sua dissensão do caminho reto da ortodoxia psicanalítica. Seu senso do que é direito é herança dos seus ancestrais. Una herança de que ele se orgulha como se orgulha de sua raça.
Minha língua, ele me explicou, é o alemão. Minha cultura, minha realização é alemã. Eu me considero um intelectual alemão, até perceber o crescimento do preconceito anti-semita na Alemanha e na Áustria. Desde então prefiro me considerar judeu.
Fiquei algo desapontado com esta observação.
Parecia-me que o espírito de Freud deveria habitar nas alturas, além de qualquer preconceito de raças que ele deveria ser imune a qualquer rancor pessoal. No entanto, precisamente a sua indignação, a sua honesta ira, tornava o mais atraente como ser humano. Aquiles seria intolerável, não fosse por seu calcanhar!
Viereck: Fico contente, Herr Professor, de que também o senhor tenha seus complexos, de que também o senhor demonstre que é um mortal!

S. Freud: Nossos complexos são a fonte de nossa fraqueza, mas com freqüência, são também a fonte de nossa força.

Viereck: Imagino quais seriam os meus complexos!

S. Freud: Uma análise séria dura ao menos um ano. Pode durar mesmo dois ou três anos. Você está dedicando muitos anos de sua vida à “caça aos leões”. Você procurou sempre as pessoas de destaque para a sua geração: Roosevelt, o Imperador, Hindenburg, Briand, Foch, Joffre, Georg Bernard Shaw...

Viereck: É parte do meu trabalho.

S. Freud: Mas é também sua preferência. O grande homem é um símbolo. A sua busca é a busca do seu coração. Você está procurando o grande homem para tomar o lugar do seu pai. É parte do seu “complexo do pai”.

(Neguei veementemente a afirmação de Freud. No entanto, refletindo sobre isso, parece-me que pode haver uma verdade, ainda não suspeitada por mim, em sua sugestão casual. Pode ser o mesmo impulso que me levou a ele. Gostaria, observei após um momento, de poder ficar aqui o bastante para vislumbrar o meu coração através dos seus olhos. Talvez, como a Medusa, eu morresse de pavor ao ver minha própria imagem! Entretanto, receio ser muito informando sobre a psicanálise. Eu freqüentemente anteciparia, ou tentaria antecipar suas intenções).

S. Freud: A inteligência num paciente não é um empecilho. Pelo contrário, às vezes facilita o trabalho.

(Neste ponto o mestre da psicanálise diverge de muitos dos seus seguidores, que não gostam de excessiva segurança do paciente sob o seu escrutínio).

Viereck: Por vezes imagino se não seríamos mais felizes se soubéssemos menos dos processos que dão forma a nossos pensamentos e emoções. A psicanálise rouba a vida do seu último encanto, ao relacionar cada sentimento ao seu original grupo de complexos. Não nos tornamos mais alegres descobrindo que nós todos abrigamos o criminoso e o animal.

S. Freud: Que objeção pode haver contra os animais? Eu prefiro a companhia dos animais à companhia humana.

Viereck: Por quê?

S. Freud: Porque são tão mais simples. Não sofrem de uma personalidade dividida, da desintegração do ego, que resulta da tentativa do homem de adaptar-se a padrões de civilização demasiado elevados para o seu mecanismo intelectual e psíquico. O selvagem, como o animal, é cruel, mas não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança do homem contra a sociedade, pelas restrições que ela impõe. As mais desagradáveis características do homem são geradas por esse ajustamento precário a uma civilização complicada. É o resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura. Muito mais desagradáveis são as emoções simples e diretas de um cão, ao balançar a cauda, ou ao latir expressando seu desprazer. As emoções do cão (acrescentou Freud pensativamente) lembram-nos os heróis da Antigüidade. Talvez seja essa a razão por que inconscientemente damos aos nossos cães nomes de heróis com Aquiles e Heitor.

Viereck: Meu cachorro é um doberman Pinscher chamado Ajax.

S. Freud: (sorrindo) Fico contente de que não possa ler. Ele certamente seria um membro menos querido da casa, se pudesse latir sua opinião sobre os traumas psíquicos e o complexo de Édipo!

Viereck: Mesmo o senhor, Professor, sonha a existência complexa demais. No entanto, parece-me que o senhor seja em parte responsável pelas complexidades da civilização moderna. Antes que o senhor inventasse a psicanálise, não sabíamos que nossa personalidade é dominada por uma hoste beligerante de complexos muito questionáveis. A psicanálise torna a vida um quebra-cabeças complicado.

S. Freud: De maneira alguma. A psicanálise torna a vida mais simples. Adquirimos uma nova síntese depois da análise. A psicanálise reordena um emaranhado de impulsos dispersos, procura enrolá-los em torno do seu carretel. Ou. modificando a metáfora, ela fornece o fio que conduz a pessoa fora do labirinto do seu inconsciente.

Viereck: Ao menos na superfície, porém, a vida humana nunca foi mais complexa. A cada dia alguma nova idéia proposta pelo senhor ou por seus discípulos torna o problema da condução humana mais intrigante e mais contraditório.

S. Freud: A psicanálise pelo menos, jamais fecha a porta a uma nova verdade.

Viereck: Alguns dos seus discípulos, mais ortodoxos do que o senhor, se apegam a cada pronunciamento que sai da sua boca.

S. Freud: A vida muda. A psicanálise também muda. Estamos apenas no começo de uma nova ciência.

Viereck: A estrutura científica que o senhor ergueu me parece ser muito elaborada. Seus fundamentos – a teoria do “deslocamento”, da “sexualidade infantil”, do “simbolismo dos sonhos”, etc... – parecem permanentes.

S. Freud: Eu repito, porém, que nós estamos apenas no início. Eu sou apenas um iniciador. Consegui desencavar monumentos soterrados nos substratos da mente. Mas ali onde eu descobri alguns templos, outros poderão descobrir continentes.

Viereck: O senhor ainda coloca a ênfase sobretudo no sexo?

S. Freud: Respondo com as palavras do seu próprio poeta, Walt Whitman: “Mas tudo faltaria, se faltasse o sexo” (“Yet all were lacking, if sex were lacking”). Entretanto, já lhe expliquei que agora coloco ênfase quase igual naquilo que está “além” do prazer – a morte, a negociação da vida. Este desejo explica por que alguns homens amam a dor – como um passo para o aniquilamento!Explica por que os poetas agradecem a

Whatever gods there be,
That no life lives forever
And even the weariest river
Winds somewhere safe to sea.

(“Quaisquer deuses que existam/Que a vida nenhuma viva para sempre/Que os mortos jamais se levantem /e também o rio mais cansado/Deságüe tranqüilo no mar”).

Viereck: Shaw, como o senhor, não deseja viver para sempre, mas à diferença do senhor, ele considera o sexo desinteressante.

S. Freud: (sorrindo) Shaw não compreende o sexo. Ele não tem a mais remota concepção do amor. Não há um verdadeiro caso amoroso em nenhuma de suas peças. Ele faz brincadeira do amor de Júlio César – talvez a maior paixão da História. Deliberadamente, talvez maliciosamente, ele despe Cleópatra de toda grandeza, reduzindo-a a uma insignificante garota. A razão para a estranha atitude de Shaw diante do amor, para a sua negação do móvel de todas as coisas humanas, que tira de suas peças o apelo universal, apesar do seu enorme alcance intelectual, é inerente à sua psicologia. Em um de seus prefácios, ele mesmo enfatiza o traço ascético do seu temperamento. Eu posso ter errado em muitas coisas, mas estou certo de que não errei ao enfatizar a importância do instinto sexual. Por ser tão forte, ele se choca sempre com as convenções e salvaguardas da civilização. A humanidade, em uma espécie de autodefesa, procura negar sua importância. Se você arranhar um russo, diz o provérbio, aparece o tártaro sob a pele. Analise qualquer emoção humana, não importa quão distante esteja da esfera da sexualidade e você certamente encontrará esse impulso primordial, ao qual a própria vida deve a perpetuação.

Viereck: O senhor, sem dúvidas, foi bem sucedido em transmitir esse ponto de vista aos escritores modernos. A psicanálise deu novas intensidades à literatura.

S. Freud: Também recebeu muito da literatura e da filosofia. Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas. É surpreendente até que ponto a sua intuição prenuncia as novas descobertas. Ninguém se apercebeu mais profundamente dos motivos duais da conduta humana, da insistência do princípio do prazer em predominar indefinidamente. O Zaratustra E diz: “A dor grita: Vai! Mas o prazer quer eternidade Pura, profundamente eternidade”. A psicanálise, pode ser menos amplamente discutida na Áustria e na Alemanha do que nos Estados Unidos, a sua influência na literatura é imensa, porém, Thomas Mann e Hugo von Hafmannsthak muito devem a nós. Schnitzler percorre uma via que é, em larga medida, paralela ao meu próprio desenvolvimento. Ele expressa poeticamente o que eu tento comunicar cientificamente. Mas o Dr. Schnitzler não é apenas um poeta, é também um cientista.

Vieireck: O senhor não é apenas um cientista, mas também um poeta. A literatura americana está impregnada da psicanálise. Hupert Hughes Harvrey O’Higgins e outros se fazem de seus intérpretes. É quase impossível abrir um novo romance sem encontrar referência à psicanálise. Entre os dramaturgos, Eugene O’Neill e Sydney Howard têm profunda dívida para com o senhor. “A The Silver Cord”, por exemplo, é simplesmente uma dramatização do complexo de Édipo.

S. Freud: Eu sei e apresento o cumprimento que há nessa constatação. Mas tenho receio da minha popularidade nos Estados Unidos. O interesse americano pela psicanálise não se aprofunda. A popularização leva à aceitação superficial sem estudo sério. As pessoas apenas repetem as frases que aprendem no teatro ou na imprensa. Pensam compreender algo da psicanálise porque brincam com seu jargão! Eu prefiro a ocupação intensa com a psicanálise, tal como ocorre nos centros europeus. A América foi o primeiro país a reconhecer-me oficialmente. A “Clark University” concedeu-me um diploma honorário quando eu ainda era ignorado na Europa. Entretanto, a América fez poucas contribuições originais à psicanálise. Os americanos são julgadores inteligentes, raramente pensadores criativos. Os médicos nos Estados Unidos e ocasionalmente também na Europa, procuram monopolizar para si a psicanálise. Mas seria um perigo para a psicanálise deixá-la exclusivamente nas mãos dos médicos, pois uma formação estritamente médica é, com freqüência, um empecilho para o psicanalista É sempre um empecilho, quando certas concepções científicas tradicionais ficam arraigadas no cérebro estudioso.

(Freud tem que dizer a verdade a qualquer preço! Ele não pode obrigar a si mesmo a agradar a América, onde está a maioria de seus admiradores. Apesar da sua intransigente integridade, Freud é a urbanidade em pessoa. Ele ouve pacientemente cada intervenção, não procurando jamais intimidar o entrevistador. Raro é o visitante que deixa sua presença sem algum presente, algum sinal de hospitalidade! Havia escurecido. Era tempo de eu tomar o trem de volta à cidade que uma vez abrigara o esplendor imperial dos Hasburgos. Acompanhada da esposa e da filha, Freud desceu os degraus que levavam do seu refúgio na montanha à rua, para me ver partir. Ele me pareceu cansado e triste, ao dar o seu adeus).

S. Freud: Não me faça parecer um pessimista (disse ele após o aperto de mão). Eu não tenho desprezo pelo mundo. Expressar desdém pelo mundo é apenas outra forma de cortejá-lo, de ganhar audiência e aplauso. Não, eu não sou um pessimista, não, enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores! Não sou infeliz – ao menos não mais infeliz que os outros.

(O apito de meu trem soou na noite. O automóvel me conduzia rapidamente para a estação. Aos poucos o vulto ligeiramente curvado e a cabeça grisalha de Sigmund Freud desapareceram na distância).

Comentário "Duas Notas" e reflexões sobre o crack... Debates psicanaliticos

Compartilho com vocês algo que escrevi no contexto da pós-graduação em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes, e com a ajuda de meu esposo e melhor interlocutor, Luís Fernando. Trata-se de um comentário ao texto lacaniano "Duas Notas sobre a Criança", que pode ser lido na íntegra aqui: http://acpsicanalise.org.br/index.php?option=com_content&view=a...
O primeiro comentário que Lacan faz neste texto, que resume o que é primordial considerar no atendimento à criança, é que o sintoma da criança responde ao que há de sintomático na estrutura familiar. A criança carrega consigo uma série de desejos inconscientes dos pais, de ideiais e projeções que, inevitavelmente, serão frustrados. Pais psiquicamente saudáveis saberão, em algum grau, que embora esses seus desejos sejam constituintes da criança e lhe dêem vida, ela não irá satisfazê-los, sob pena de adoecer.
Lembremos que sintoma não é doença. Na medicina, sintoma “significa algo que não vai bem, algo de anormal e bizarro, uma alteração de função e alerta de doença”. A psicanálise nos ensina que o sintoma é o representante da verdade. E Lacan frisa que esta verdade que o sintoma encobre é a do casal, dos adultos que criam esta criança. É aí que está a doença, no mundo dos adultos – a criança, que tem uma estrutura egóica mais frágil, carrega o sintoma que encobre a doença localizada alhures.
Conclusão lógica: os pacientes em tratamento deverão ser os adultos, não a criança. A transformação familiar possibilitada pela análise tem o poder de fazer desaparecer o sintoma da criança – os adultos, mais amadurecidos psicologicamente, com mais acesso à linguagem, têm maior abertura à intervenção terapêutica, têm mais condições de acessar tais verdades. Isto é mais difícil de acontecer quando o sintoma que toma a criança corresponde à subjetividade da mãe, quando ela é submetida ao papel de corresponder às fantasias da mãe e não é reconhecida como um sujeito com desejo próprio. A ausência real do pai pode facilitar esta tomada da criança pela mãe, mas Lacan deixa claro que é em termos de função paterna que a mediação deve acontecer, ou seja, que o pai deve estar presente no discurso da mãe mediando esta relação de modo que o filho possa realizar o objeto a, o objeto de desejo da mãe e, ao mesmo tempo, concretizar seus próprios desejos, correspondendo e também se libertando dos desejos dos pais. A função paterna garante a relação terciária em contraposição à dual, que é uma relação sem saída, de submissão da criança aos desígnios da mãe.
Quando o sintoma é somático, Lacan afirma que o desconhecimento da verdade perturbadora é garantido ao máximo, pois não há questionamento quando o que acomete o filho não é uma dor emocional, mas um órgão, uma disfunção fisiológica. Na nossa cultura, não nos vemos responsáveis pelo que se passa no nosso corpo, é como se ele nos fosse alheio e independente, restando ao médico cuidar e restaurar. Diante da criança doente, que não sara, todos se sentem vítimas.
Na segunda nota, Lacan aponta algo muito importante: a função que sustenta e mantem a família conjugal é a transmissão de uma constituição subjetiva do sujeito através de um desejo parental. A subjetividade humana se constitui pela referência constante ao pai e à mãe, ou a quem possa cumprir tais funções - e esta é uma função que, ao contrário da sobrevivência biológica, só pode ser garantida na família, nas suas diversas formações. A função materna, que fala de cuidados e interesses particularizados, de inclusive demandar à criança que realize a presença do objeto a; e a função paterna, de encarnação da Lei e de inserção na cultura, na civilização.
No atendimento a adolescentes usuários de drogas, questiono-me constantemente acerca deste uso enquanto sintoma familiar. Esta leitura das Duas Notas, entretanto, me suscita uma reflexão deste tema de forma mais ampliada; arrisco aqui, portanto, uma análise que chamarei de social da questão do uso de drogas por adolescentes.
Interessa-me particularmente pensar a respeito do crack, uma vez que, seguindo a reflexão lacaniana, ele ocupa uma função como a de um sintoma somático, aquele que garante maximamente o desconhecimento da verdade geradora de sofrimento. O crack é uma droga que as famílias, a mídia, os usuários concordam que “domina” quem a usa. De fato, seu grande poder de dependência faz com que o usuário tenha seu repertório de vida rapidamente restrito à obtenção e uso, mas isto não significa que não haja subjetividade mesmo aí onde reina o entorpecimento.
Será que podemos pensar que o adolescente usuário de crack é o elo mais frágil da sociedade que é quem na verdade está adoecida? Pensemos a função materna e paterna nem termos de estruturas sociais. Penso que que cumpre o lugar da função materna sejam, por exemplo, os serviços de saúde e de assistência social. Será que estes serviços conseguem dar uma atenção amorosa e particularizada ao adolescente que os procuram, e depois o permite romper com as suas expectativas afirmando seus próprios desejos? Em minha prática, não percebo que a saúde, a assistência social ou a educação consigam desenvolver programas na perspectiva do próprio adolescente, de modo que ele possa se sentir acolhido. As ações voltadas a este público parecem sempre ter em conta a visão do adulto sobre a adolescência, sendo marcadas por seus preconceitos e equívocos de comunicação. O atendimento ao adolescente usuário de drogas, por exemplo, costuma ter o foco do fim do uso e a tal valorização da vida. Que serviço tem condições de acolher este comportamento como uma comunicação e se por a escutar o jovem verdadeiramente despido de pressupostos para depois propor intervenções e aceitar que ele as cumpra - ou não? Entendo que esta seria uma função primordial, calcada na função materna, destes serviços, que lhes dariam a possibilidade de dar um lugar para o adolescente em sofrimento.
As estruturas judiciais estão no papel da função paterna na sociedade, o Conselho Tutelar, os centro de socioeducação. Mas também estes só podem ser eficazes se puderem desenvolver uma relação amorosa com o adolescente que gere o sentimento de que obedecer é melhor que não obedecer. Para que a função paterna seja exercida, o filho precisa se sentir querido pelo pai e admirá-lo, ou a Lei que ele introduz se torna algo a ser combatido. As experiências exitosas de socioeducação são as que conseguem, muito além de punir, apoiar o adolescente a fazer parte de uma comunidade, e aprender que abrir mão de algumas vantagens em nome da coletividade é bom. De toda forma, estas experiências exitosas são a minoria, porque a ideologia de individualismo e da felicidade a qualquer custo marcam mais.
A adolescência tem sido a moratória de vida em que os desejos dos adultos são depositados. O status de sujeito que tudo pode realizar (pela maturidade de seu corpo e psiquismo), mas não tem os compromissos do mundo adulto, é invejado e desejado pelos próprios adultos. Entretanto, a partir do momento em que o adolescente decifra o desejo recalcado dos adultos e o realiza, ele é repreendido, excluído. Talvez neste dilema esteja a chave para uma abordagem mais honesta do problema. Entretanto, há um arcabouço ideológico bastante conciso para que a sociedade - adultos e adolescentes - continuem a declarar guerra ao crack e a não refletir a respeito. Cultivar a ideia de que o crack é um ente autônomo ("combater as drogas") compactua com o não querer saber sobre o desejo de quem decide usá-lo. Propagar o plano de que o tratamento para o dependente de crack começa pelo isolamento compactua com a desresponsabilização de todos pelo uso - inclusive do próprio usuário. Apoiar as intervenções religiosas (como é o senso comum e como inclusive alguns governantes tem feito) dá a entender que não há resolução humana para o problema.
Advogo aqui que a solução para o problema do crack passa por repensar as estruturas sociais que recebem o usuário (escola, fórum, saúde etc) de modo que elas possam cumprir suas funções tendo em vista as necessidades do adolescente. Que estes sujeitos possam ser reconhecidos como cidadãos com direito a políticas públicas específicas e atenciosas. E me parece muito apropriado que os ensinamentos da Psicanálise inspirem estas políticas.


Bibliografia

CALIGARIS. A adolescência. Publifolha. São Paulo, 2000.
CECHINNATO. Psicanálise dos pais In: Pulsional Revista de Psicanálise, anos XIV/XV, nos 152/153, 42-69
FERREIRA e PIMENTA. O sintoma na medicina e na psicanálise - notas preliminares. In: Revista Med Minas Gerais, 2003:13(3) p221-8.
LACAN. Duas notas sobre a criança. In: Ornicar? n 36, 1986.
 
cred:lacosocial.ning.com/profile/KarllaBeatrizWiezzer 

Aquisição da Linguagem ... debates psicanaliticos


 
Em 1500 Pero Vaz de Caminha escreve assim, falando sobre o descobrimento do Brasil, uma escritura que declara oficialmente (certidão de nascimento do Brasil) as terras brasileiras."Easy segujmos nosso caminho per este mar delomgo ataa terça feira doitauas de páscoa que foram xxj dias dabril que topamos alguus synaaes de tera seemdo da dita jlha segundo os pilotos deziam obra de bjc lx ou lxx legoas. os quaaes hera muita camtidade deruas compridas a que os mareantes chama botelho e asy Outras aque tambem chama Rabo dasno.Eaaquarta feira segujmte póla manhãã topamos aves aque chama fura buchos. e neeste dia aoras de bespera ouuemos vista de terá primeiramente dhuu gramde monte muy alto. e Redomdo e doutras serras mais baixas ao sul dele e de terra chãã com grandes aruoredos ao qual monte alto ocapatam pos nome o monte pascoal" (Bagno, 2008, p 165) Entendo que há mudança na linguagem, senão estaríamos ainda saindo do grunhido. Pensando na ontogenia que segue o mesmo percurso da filogenia, como bem disse Freud, então a linguagem transgride. Contudo como a linguagem do infante transgride e se estrutura em uma outra forma que não a do enunciado? Bom temos que entender que este infante é inserido na linguagem do significante, caso contrario teriamos que aceitar que isto é natural e não cultural. Então produzir cadeia significante é prática do humano e anterior ao vivente (aquele que vivencia). Concordo com Mitrá quando diz que o universo da comunicação é dividido. Contudo o babuíno também tem linguagem corporal, pois ao "arreganhar" os dentes para seu semelhante também passa uma mensagem, mas isto é enunciado. O que difere o humano dos outros animais é a enunciação e aí o humano deixa de ser animal e passa a sujeito da enunciação, ou deixa de ser vivente e passa a experiente. Quando uma mulher entra no consultório vestida de forma erotizada e toda de preto e ao ser perguntada sobre a forma de se vestir e de chegar, ela responde que “não sabe”, mas teve vontade de colocar aquela roupa. Entendo que há uma linguagem, contudo esta linguagem sai do enunciado e passa a enunciação quando busca ser escutada e insiste para isto. Então a demanda de escuta ou de trabalho na práxis do analista, procura quem escuta e fale deste lugar de enunciação. Neste ponto deixa de ser dia-logo e passa a com-versa, ou seja, não são mais dois saberes (dia-logo) e sim um só saber (com-versa) o saber deste que fala e o analista interpreta. Mas pra que linguagem corporal? Se o humano sabe falar e isto é bem mais prático e eficiente para a enunciação, como para o enunciado. Algumas pessoas dizem que a linguagem corporal é o corpo falando (“o corpo fala”). Fala sim, mas é pela boca e não por expressão corporal. Quero perguntar a Mitrá se falar, no sentido mesmo da palavra, é verbalizar ou produzir palavras? De vivente a experiente, de pessoa que produz enunciado a sujeito da enunciação, como pruduzir uma forma, não falo aqui do conteúdo ou a singularidade da cadeia e sim da mesma forma de linguagem que se repete nos sujeitos. Entendo que há significantes que são ofertados (holding-winnicott), e que alguns sejam aceitos e então transmitidos e produzem a linha familiar e então talvez aí sejam inseridos os viventes e mostrem a possibilidade de mostrar e esconder ao mesmo tempo (carta roubada). Então aí o sujeito é produzido e produz ao mesmo tempo, ou seja, é instituído e passa a instituir esta forma de linguagem. Contudo para este sujeito que agora ascende a ordem do significante, antes não existia esta linguagem. Se pensarmos no partilhado a linguagem do significante e sua forma é anterior ao sujeito, mas como se antes não havia sujeito, então é anterior só ao vivente. Contudo a linguagem significante é paralela em evento ao surgimento do sujeito do privado, pois um forma o outro. São distintos, mas um não existe sem o outro. Como venho expressando, neste texto, um infante é então iniciado na forma da linguagem inconsciente a partir de um significante ofertado - “a partir deste outro primordial, que através de seu desejo, o "insere" em uma cadeia discursiva...” (Josué) Então deve haver significantes, vindo do outro, que a partir destes significantes este sujeito vai construindo sua cadeia que chamo de conteúdo singular. Chegamos agora a prática analítica. Há um inconsciente estruturado como linguagem, então qual a intencionalidade do analisando ao falar para o analista? Quando a mensagem tem intenção de ser decifrada? Entendo que é quando este sujeito encontra um alguém que escuta esta linguagem que insiste. Esta demanda simbólica deste um que interpreta a mensagem de um grande Outro (Outrão). Quando esta mensagem tem endereçamento, pois a medida que este interpreta o desejo vai sendo apresentado e representado. Um desejo que alivia, pois desejo é demanda de algo e falar alivia a tensão, mesmo que seja falando sem falar ou falando desta sujeição pelo significante.
 
cred Comentário de Paulo César Pacheco 
 
lacosocial.ning.com

Temas em debate I castração

Neste dia, tentei articular a categoria de análise - castraçao - de Freud com o conceito de Ideologia, em Marilena Chauí;
Em síntese: a castraçao pode ser entendida como "contorno e borda da pulsão" em que a sublimação dos instintos seria uma das modalidades de defesa contra as pulsões. Segundo Freud, a humanidade progrediu com o sacrifício dos instintos, ou seja, a sublimaçao dos instintos operou o desenvolvimento da cultura. O preço que pagamos pela civilização é uma perda da felicidade pela intensificação do sentimento de culpa. Toda neurose oculta sentimentos inconscientes de culpa que fortificam os sintomas usados como punição.
Sobre o conceito: a funçao da Ideologia seria a de alienar o sujeito da existência das divisões sociais como divisões de classes.
À guisa de conclusão: Da mesma maneira que o "sintoma aliena o sujeito da castração", a ideologia aliena o homem da exploraçao.

Discussão no GE, 31/05/10, sobre ÉTICA

Pedrinho Guareschi (2009) explicita que a Ética resulta das práticas e das relações sociais e se constitui numa crítica à moral dominante. Aponta que se for consolidada a partir da lógica dialética analética poderemos contribuir para a transformação das relações sociais de produção dos bens materiais e imateriais. Continuo me perguntando sobre a relação deste conceito com o do "divã ético" discutido no ano passado pelo Josué Cruz. Guareschi afirma que a ética se constrói a partir do discurso. Cruz (2009) pontua que o processo analíto se dá a partir do discurso, pois alí quem fala não sabe do que fala. Conclui que esse processo dá existência ao inconsciente, despertando o analisante do sono acordado. Neste sentido, dá para concordar com Guareschi de que "fora da comunicação não há salvação"... e finalizar com Cruz: o analisante precisa "falar daquilo que diz respeito a um saber não sabido". Daí sua provocação: "No divã se conversa! Mas trata-se de uma conversa específica, pautada numa ética, sustentada no (e pelo) divã. Divã ético!


cred. lacosocial.ning.com

Sobre o rigor - texto do Psicanálise e/ou...

Sobre o rigor - texto do Psicanálise e/ou...

Segundo Antônio Quinet, em seu livro As 4+1 condições da análise, foi a partir de um texto escrito por MoustaphaSaphouan e alguns colaboradores que os princípios de funcionamento do passe foram votados e adotados em 1969 pela Assembleia Geral da Escola Freudiana de Paris. E o referido texto estava sustentado nos princípios apresentados por Lacan em sua Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola.  Apresento Saphouan desta maneira afim de lhe dar crédito, pois meus apontamentos tomam como principal apoio dois textos desse autor. O primeiro, datado de 1988, é o livro A transferência e o desejo do analista. O segundo, de 2007, é o artigo Sobre a distinção lacaniana entre a psicanálise terapêutica e a psicanálise didática, publico no livro Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão, nos seminários.
                Conforme Saphouan apresenta em seu artigo, nos textos publicados no Anuário da escola Freudiana de Paris, Lacan definia a sua concepção do funcionamento de sua escola. E nesses textos Lacan estabeleceu uma diferença entre a psicanálise didática “pura” e a psicanálise terapêutica, qualificada de “aplicada”. E essa diferença sustenta-se no argumento de que a psicanálise didática recusa qualquer relaxamento de seu rigor, ao qual a psicanálise terapêutica convidaria.
                Saphouan relata uma lembrança que remonta a década de 1960. Ao receber um pedido de análise por parte de um jovem médico, em função do que escutara, perguntou-se se não se trataria de uma melancolia incubada. Consultou Lacan a respeito, e teve como resposta o seguinte: “é o tipo de demanda que não devemos hesitar em aceitar”. Tal resposta confirma, segundo Saphouan, a posição lacaniana frente à condição terapêutica da psicanálise, que acarreta responsabilidades a serem assumidas pelo psicanalista. Mas de que se trataria o rigor ao qual Lacan se refere a respeito da análise didática?     
                É nesse contexto que recorremos à primeira referência a Saphouan. A respeito da incerteza reinante a respeito do fim da análise, ele cita Lacan, em seu artigo Do sujeito enfim em questão: “não seria melhor conceber a psicanálise didática como a forma perfeita na qual se esclareceria a natureza da psicanálise simplesmente: ao fazer-lhe uma restrição? Essa é a inversão que antes de nós não veio à cabeça de ninguém. Contudo ela parece impor-se. Pois, se a psicanálise tem um campo específico, a produção terapêutica justifica aí curtos-circuitos, até mesmo comedimentos; mas se existe um caso para proibir qualquer redução semelhante, deve ser o da psicanálise didática”.Saphouan faz questão de esclarecer. “Entendamos: a ‘inversão’ não repousa numa virtude ou pureza própria à psicanálise didática. Trata-se, antes, de uma regra metodológica, que consiste em suspender a preocupação terapêutica”.
                Seria então a suspensão da preocupação terapêutica o rigor ao qual a análise didática não poderia relaxar. Seguindo Saphouan, a questão não reside no fato de que aqueles que vêm a análise afim de se tornarem analistas sejam feitos de um metal diferente daqueles que recorrem a análise afim de se curar. A questão é que tanto uma demanda quanto a outra revelam-se subordinadas a outro fim, que pode ser descrito como uma possibilidade para o sujeito ver o que há no fundo de sua angústia. E é do movimento dessa experiência que a análise didática não deve se desviar em relação à preocupação terapêutica.
                Lacan chega a afirmar que alguém mal inspirado poderia suspeitar que a formação do analista é o que a psicanálise teria de mais defensável a apresentar.Quinet nos lembra que, para Freud, toda psicanálise é terapêutica. E que com Freud aprendemos que a própria análise do analista é a condição para o exercício da psicanálise. Já para Lacan, ainda com Quinet, toda análise é didática quando levada a seu término, pois ela produz um analista. Isso porque o processo analítico pode conduzir o sujeito a um ponto em que de analisante ele vira analista.
                Retomemos a questão do rigor. Saphouan afirma existirem dois tipos de análise. Um tipo que se dirige ao eu, que comporta uma série de noções, tais como: parte sadia do eu, aliança terapêutica, fim de análise como identificação com o analista. E outro tipo que se dirige ao sujeito do desejo inconsciente. Saphouan considera rigorosa aquela análise que “procede de uma justa apreciação do desejo ou da fantasia inconsciente e da dinâmica que ele põe em ação: angústia, defesa, acting out, etc”.
                Baseando-se no contraste de ter feito supervisão tanto com Lacan quanto com vários outros colegas, Saphouan relata qual a concepção de Lacan da formação ou da transmissão da psicanálise em geral. Lacan não procurava ensinar como conduzir uma análise. Ele deixava com que cada um agisse o melhor que pudesse, de maneira que cada um tinha a incumbência de averiguar se estava suficientemente preparado, ou se o acúmulo de indícios, tais como: contratransferências, intervenções que visam atenuar a culpa, o levavam a perceber que já era hora de retomar a sua análise. De forma que, para Lacan: “formar um analista era, acima de tudo, dar todas as oportunidades para que algo da ordem do analista se realizasse”.
                O curioso é que, embora todos concordem que o analista deve levar sua análise até o fim, ninguém, antes de Lacan se preocupou em esclarecer de se trata esse fim. E mesmo Lacan, com todo seu esforço, fracassou nessa tentativa. O dispositivo oferecido por Lacan para ter notícias a respeito desse fim, o passe, foi um fracasso. Quem diz isso é Saphouan, o mesmo que escreveu os princípios de funcionamento do passe em 1969. Contudo, isso não aponta para um equívoco de Lacan, que inutilizaria essa experiência acumulada. O que se impõe é que a questão do fim de análise deve ser reconsiderada, “sobretudo se admitirmos a parcela de desconhecido que há em toda escolha, bem como em toda decisão – exceto nos casos em que a presença da fantasia é maciça”.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

OS QUATRO CAVALEIROS DO APOCALIPSE (TERAPIA)






 
Uma figura metafórica sempre tenebrosa e muito utilizada, em especial no cinema, é a dos quatro cavaleiros do Apocalipse, que espalham terror e destruição por onde passam.
 
Aproveitando a metáfora, gostaria de pensar nos quatro principais inimigos de um relacionamento conjugal, ou seja, queria partilhar, a partir de minha experiência clínica de consultório e de minha experiência como palestrante de encontros de casais, quais são os principais elementos que destroem um relacionamento, em especial o relacionamento conjugal.
 
Creio que o primeiro cavaleiro do apocalipse destruidor dos relacionamentos no casamento é a má comunicação.
Embora este tema já tenha sido amplamente explorado por estudiosos da área e até best-seller em prateleiras de livrarias (Homens são de Marte...), ainda continua sendo um dos inimigos principais de um relacionamento.
 
Paul Watzlawick em seu clássico livro “A Pragmática da Comunicação Humana” citando Gregory Batenson dizia que se chutamos uma pedra ao caminhar, isso é transmissão de energia, mas se chutarmos um cão, isso é comunicação, em virtude da imprevisibilidade da resposta do outro e conclui: ‘Não é possível não se comunicar’, em se tratando de seres vivos. Todo o tempo estamos comunicando algo – mesmo com nosso silêncio.
 
A questão não é se comunicamos ou não, mas COMO comunicamos algo. Tenho atendido centenas de casais que tem demandas legítimas um em relação ao outro no casamento, mas que não sabem comunicar isso de forma funcional.
Como a esposa que demanda carinho de seu marido (algo bom), mas que comunica isso em forma de cobranças (algo ruim), fazendo com que o marido sinta-se controlado (algo pior) e acabe afastando-se ainda mais da esposa (algo destruidor).
 
Assim uma má comunicação transforma algo bom em algo destruidor para o relacionamento. 
Exemplificando: ‘O marido, ao sair do trabalho no final de expediente, encontra um amigo e fica conversando, não percebendo que as horas passam.
A esposa, em casa, fica aflita com a demora do marido – porque espera que ele chegue para ter o carinho dele – liga para o celular do esposo e diz bruscamente: ‘Onde você está?’
O marido sente isso como uma cobrança e ao invés de informar o ocorrido, devolve um: ‘Já estou indo para casa’.
Ela se ressente ainda mais e, quando ele chega em casa, ela que queria tanto o carinho dele, o recebe friamente, ou com afirmações genéricas tipo: ‘Ninguém deixa a esposa em casa sozinha para ficar pelos bares com os amigos, especialmente sabendo que ela precisa dele’.
Já o esposo interpreta isso não como um pedido de acolhimento e carinho e sim como cobrança de participação nas tarefas e entra por outro atalho dizendo: ‘Eu já tenho muito trabalho e preocupações em meu emprego e tenho o direito de me divertir’.
 
E assim o diálogo vai se deteriorando cada vez mais e se afastando de suas intenções originais que eram a demanda de carinho, atenção, afeto e cuidado com o outro. O COMO comunicamos é fundamental para o relacionamento.
 

O segundo cavaleiro do apocalipse nos relacionamentos é, sem dúvida, o desligamento da família de origem.
Jay Halley diz que ‘não podemos estar casados com duas pessoas ao mesmo tempo’, referindo-se à idéia que, se não nos ‘divorciarmos’ plenamente de nossas famílias de origem e iniciarmos a construção de algo novo com nosso cônjuge, jamais nos sentiremos realizados nos nossos relacionamentos conjugais.
 
Muitas são as razões pelas quais as pessoas relutam em tornarem-se plenamente independentes dos pais ou da família de origem.
 
Pode ser por insegurança, uma auto-estima debilitada, mas o mais comum é que pais tenham dificuldade de ‘soltarem’ seus filhos para estes desenvolverem uma nova família porque viveram toda a vida em função dos filhos e a saída destes pode ameaçar a relação do casal que, após 25, 30 anos de vida comum, se vêem como estranhos em relação ao outro – desenvolveram mundos independentes e apoiados na relação parental – não na conjugal.
 
Não penso aqui em casais que tem dificuldades de relacionamento com os progenitores de um ou de ambos os cônjuges, mas em famílias realmente fusionadas, que não conseguem estabelecer limites neste relacionamento com a família de origem e onde constantemente sofrem interferências dos pais, que continuam tratando os filhos como se fossem adolescentes.
 
O princípio milenar bíblico: deixar pai e mãe continua muito válido em nossos dias, confirmam os terapeutas familiares.
 
Somente quando você pode deixar a família de origem e partir nesta maravilhosa aventura de construção de um relacionamento a dois, é que você pode colocar em prática toda sua criatividade (construir algo novo) e tornar-se co-participante no mandato cultural de “crescer” e multiplicar-se e tornar-se mais semelhante da imago dei, de um Deus criador e criativo.
 
O terceiro cavaleiro do Apocalipse nos relacionamentos é a infidelidade. Não somente a infidelidade sexual, embora esta seja, em geral, a mais destruidora de todas, mas também a infidelidade de compromisso de prioridade do relacionamento.
 
Muitos não traem o cônjuge com uma outra pessoa, mas o traem priorizando ou dando mais importância a outras coisas em detrimento do relacionamento.
 
São situações expressas em termos populares como: ‘sou apaixonado pelo meu time de futebol’; ‘o meu trabalho vem antes de tudo’; ‘não sei porque ele(a) tem tantos ciúmes de meus amigos (meu hobby)’; ‘se eu não for à igreja e ficar no domingo com meu marido/esposa sinto que Deus vai me reprovar’....
Na verdade são todas expressões que ocultam uma só verdade: algo é mais importante que o relacionamento conjugal.

Tecnicamente os terapeutas familiares denominam este elemento de ‘Preferida’ e o mesmo está na gênese de muitos rompimentos conjugais.
 
Algumas vezes a pessoa que tem a ‘Preferida’ não se dá conta que isso está deteriorando o relacionamento conjugal porque acredita que a ‘Preferida’ é algo bom.
 
‘Trabalho 12 horas por dia para proporcionar mais conforto e bem estar para minha família’, afirma o empresário. Ele nem se apercebe que agindo assim está priorizando o seu tempo para o emprego e sendo infiel com aqueles a quem ama e quer o melhor.
 
Quando a ‘Preferida’ é outra pessoa e a infidelidade deslizou para o campo sexual, é necessário se rever todo o relacionamento, pois se um dos cônjuges é capaz de buscar intimidade com alguém de fora é porque realmente algo na intimidade a dois (o mais profundo do relacional) não vai bem.
 
Também será necessário o exercício do perdão – que é mais difícil para quem não vive uma relação com Deus e sentiu-se também perdoado um dia. Um excelente livro sobre o perdão é o do psiquiatra Fábio Damasceno.
 
Finalmente o quarto cavaleiro do Apocalipse é o individualismo. Este venerado ‘deus’ do nosso século, exaltado nos cultos à globalização, é talvez o mais destruidor de todos os quatro elementos relacionais.
 
Cada vez mais se torna difícil a sociedade em geral e os relacionamentos em particular pensarem em termos de NÓS.

A ideologia dominante de mercado incentiva que cada pessoa deve buscar o que é bom para si, não se importando muito se isso vai agradar ou não o outro.
 
Um princípio do neoliberalismo é que tudo é relativizado em função do indivíduo.
O juízo moral se define em termos de prazer/desprazer individual (creio que este é um perverso desvirtuamento do princípio freudiano) e os princípios universais de direitos humanos estão cada vez mais sendo reduzidos ao conceito de ‘prazer biológico’.
‘Se seu cônjuge não te dá o ‘prazer’ sexual que você esperava dele(a), troque por um modelito mais competente, afinal você ‘merece’ realizar todas suas fantasias’.
 
Os relacionamentos tornaram-se descartáveis como os produtos e o compromisso passa a ser redefinido como contrato transitório enquanto as partes obtenham vantagens.
 
Torna-se fácil trocar de cônjuge com as leis pró-divorcistas; difícil é investir e tentar buscar acordos que satisfaçam ambas as partes – o NÓS!
 
Lembro, metaforicamente, das palavras de Jesus que dizem que fácil e largo é o caminho que conduz à perdição e difícil e estreito é o caminho que conduz à vida.
 
Realmente é sempre mais difícil tentar e tentar e tentar de novo estabelecer algo bom com o cônjuge – bom para ambos!
 
Mais fácil é: se o outro pensa diferente de mim, vou ‘encontrar’ alguém que me entenda!
 
Pobre ilusão do mercado. O mercado quer pessoas que se comprometam só com ele mesmo.
 
Que melhor para uma multinacional que o empregado jovem, solteiro e disponível, querendo crescer em sua carreira, que se dispõe a trabalhar 12 a 15 horas por dia e que nem tem ninguém em casa para reclamar e que possa vir a disputar este quinhão de dedicação.
Ainda mais, sem um compromisso o jovem e ambicioso empregado pode ser remanejado a qualquer hora, para qualquer lugar do planeta.
 
É prezado leitor, nosso sistema econômico conspira contra a família e por isso apóia o divórcio fácil, a liberação geral de toda e qualquer expressão sexual (já não se precisa nenhum compromisso para se ter sexo) e tudo que facilite o individualismo.
 
Ser adulto, solteiro(a), acima de 30 anos e bem posicionado profissionalmente é a aspiração da maioria dos adolescentes de hoje.
 
Casamento é palavra estranha e ‘ficar’ é a palavra de ordem.
 
Rüdiger Safranski, um filósofo alemão contemporâneo, autor de “O mal ou o drama da liberdade” nos alerta dos perigos de uma sociedade escravizada pelo mercado e que não estabelece regras morais para seu seguimento.
 
Certamente existem outros elementos que conspiram contra e destroem os relacionamentos, mas creio que estes quatro são os mais alarmantes.
 
Necessitamos de ações preventivas e terapêuticas e, neste sentido, creio que a Igreja está em uma posição privilegiada, pois semanalmente pode instruir centenas de fiéis sobre princípios de um relacionamento saudáveis, gerando uma sociedade mais sólida e saudável, ao invés de discursos de uma espiritualidade desencarnada, individualista e servil ao ‘deus’ mercado.
 
Creio que não é por acaso que a Bíblia compara o relacionamento conjugal com a relação entre Cristo e sua Igreja. Ele quer se comunicar, íntima e profundamente com ela; Ele precisou ser abandonado pelo Pai para entregar-se e morrer por ela; Ele permanece fiel, mesmo quando ela se mostra infiel e ele quer formar com ela o novo céu e a nova terra para desfrutarem juntos de um lugar onde não há dor, nem pranto (Apocalipse 21:9).
 
Prof. Carlos “Catito” Grzybowski
Psicólogo – Terapeuta familiar – CRP 08/1117

HOMOSSEXUALIDADE: A PESSOA DO HOMOSSEXUAL EM SUAS CONEXÕES SISTÊMICAS





 
 
"Eu passei muito tempo, aprendendo a beijar
Outros homens, como beijo meu pai.
Eu passei tanto tempo pra saber que a mulher
Que eu amo, que amarei, será sempre a mulher,como é minha mãe.
Como é minha mãe, como são seus temores
Meu pai, como vai?
Diga a ele que não se aborreça comigo
Quando me vir beijar outro homem qualquer
Diga a ele que eu, quando beijo um amigo
Estou certo de ser alguém como ele é:
Alguém com sua força pra me proteger
Alguém com seu carinho pra me consolar
ALGUÉM COM OLHOS E CORAÇÃO BEM ABERTOS PRA ME COMPREENDER "
Gilberto Gil
Convite:
Convido todos vocês, a partir desta canção, a abrirem corações e olhos para compreendermos um pouco mais sobre a dinâmica inter-relacional da pessoa com uma identidade sexual homossexual;
1. QUANDO O DESEJO CONTRARIA O GÊNERO E A FÉ
Acompanhar semana após semana, pessoas que chegam até mim em franco sofrimento por desejar pessoas do mesmo sexo, tem me obrigado a um exercício de ampliação perceptual e conceitual acerca da homossexualidade. Ainda que pertençam a uma instituição religiosa e carreguem ao lado do desejo toda uma compreensão sobre o "pecado" de seu desejo, e suas terríveis conseqüências, tal realidade não consegue barrar a força desse desejo. O mais das vezes, a "culpa" decorrente da consciência religiosa do "erro", consegue ser tanta, que a própria relação dessas pessoas com Deus, vai sofrendo um lento e gradual processo de afastamento. Outra consciência também sofrida de carregar é a da vida dupla: grande parte desses "desejantes" ocupam "cargos" e "papéis" nessas instituições religiosas, logo, vivenciam tal experiência de uma forma um tanto quanto esquizofrenizante: sabem que estão em "erro", não conseguem e por vezes nem o desejam sair deles, assim como também se acham realizados no exercício de suas funções.
Alguns deles, tentaram experiências heterossexuais, que redundaram no exercício de um fracasso: por mais que tentassem "chamar o desejo" para dentro da relação, ele jamais aí se localizou. Tais relações se "arrastavam" ao longo do tempo baseadas no companheirismo e no coleguismo, porém sem a devida "carga erótica" E o depois? Ah! Quanto dissabor, ter de "explicar" que "fulana" é ótima, gente boa, mas "nosso relacionamento" não deu certo! Os "irmãos" casamenteiros ficam indóceis: pronunciam-se, censuram e acusam com muita "propriedade", pois o "par" demonstrava ser um "casal ideal"!
2. CONHECENDO ALGO SOBRE A REALIDADE SISTÊMICA - RELACIONAL DA PESSOA HOMOSSEXUAL
Tomando por base algumas noções contidas no Processo de Compreensão Sistêmica das Relações e nos conceitos contidos na Socionomia Moreniana,e relacionando-os com algumas evidencias clínicas, podemos lançar algumas luzes sobre a pessoa do homossexual.
Enfocando a MATRIZ DE IDENTIDADE, incluindo aí o SISTEMA FAMILIAR dessas pessoas,bem como seu contexto relacional mais amplo, encontramos alguns pontos que precisarão ser levados em conta:
- em todas as famílias em questão, o subsistema marido - mulher apresenta "fissuras" no âmbito do desejo entre os cônjuges. Essas pessoas cresceram em uma "matriz familiar", com expressões de um profundo "desencontro" entre os cônjuges;
- também o subsistema pais e filhos apresentam fragmentações comprometedoras: a "falta" de um pareamento diferenciador, protetor e de um modelo identificatório é totalmente visível. A figura do "pai", em sua função paterna, mostra-se francamente comprometida: no caso da pessoa homossexual masculina ou ele "morreu"(morte real), ou se ausentou do processo relacional com o filho (pouco efeito, fez a 'figura substitutiva"). Já uma pessoa homossexual feminina o pai do "desejo", ou se encontrava "apaixonado" quase que exclusivamente, por outra/outro (ás vezes é a mãe, amante, a irmã, o irmão) ou expressa seu "desdejo", por essa filha ou mesmo "sumiu" da responsabilidade familiar. Gravíssima também é a situação em que essa menina teve em seu pai a figura de um abusador sexual ou emocional;
- fora do Sistema Familiar vale ainda a pena um certo olhar sobre as relações sociais primeiras dessas pessoas. Algumas delas, apresentaram precocemente em suas primeiras relações de trocas com seus amiguinhos, os sinais de um "desejo" estranho pelo amiguinho do mesmo sexo, fato que, se identificado pelo grupo, gerou rotulações, com apelidos pejorativos e discriminatórios do tipo : " o gayzinho, bicha, boiola etc.", cresceram debaixo desses títulos, sofreram e "calejaram" essas feridas.
- já na adolescência, tais conflitos parecem tender a um certo apaziguamento: eles acharam seus "pares". Na busca das "tribos" de pertencimento, é muito comum que rapidamente o adolescente homossexual, encontre o "outro" e depois vários "outros" adolescentes homossexuais, que sem dúvida saberão "acolher" e "prescrever" o "novo código" de comportamento desses "iniciados" no mundo das relações homossexuais.
3. COM OLHOS E CORAÇÕES ABERTOS
Se a nossa disposição como Psicólogos Cristãos é a de "abrirmos a nossa alma ao faminto e fartarmos a alma aflita", como assim o disse " a boca do Senhor", cujo registro temos em Isaías 58:10-14, teremos de abrir nossos corações e mentes.
Nosso olhar precisa acolher, amar e assim buscar "reparar as brechas" relacionais dessas pessoas com a dinâmica do desejo homossexual.
O rumo de tal atuação, é algo que, creio eu, absolutamente não caberá a nós direcionarmos, mas crendo no fantástico e efetivo método terapêutico de Jesus: era justamente sua atitude não condenatória e acolhedora, que servia de "start" de mudança na vida de todos os que precisavam rever suas práticas pessoais e a ele acorriam. Que Ele nos guie continuamente, e concluo fazendo minhas as palavras do Senhor, registradas em Isaías 58:11-12: "O Senhor te guiará continuamente e fartará tua alma em lugares secos, e fortificará teus ossos. Serás como um manancial cujas águas nunca faltam. Os que de ti procederem edificarão os LUGARES ANTIGAMENTE ASSOLADOS, E LEVANTARÁS OS FUNDAMENTOS DE GERAÇÃO EM GERAÇÃO; CHAMAR-TE-ÃO REPARADOR DE BRECHAS, E RESTAURADOR DE VEREDAS COM MORADIAS".
Amém.
------------------------------
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Fátima Fontes é psicóloga e psicodramatista em São Paulo

HOMOSSEXUALIDADE NO MEIO CRISTÃO


 
 
"Não existe provavelmente outra palavra (homossexualidade) em nossa língua que seja um símbolo tão grande de controvérsia e que provoque tão rápidas reações emocionais." Gary Collins, psicólogo evangélico em "Aconselhamento Cristão" (Edições Vida Nova)
"A homossexualidade é um problema tão inflamável no momento dentro da comunidade cristã que tudo o que for dito será severamente criticado - e provavelmente por uma boa razão." Richard J. Foster, escritor evangélico em "Dinheiro, Sexo e Poder"(Ed. Mundo Cristão)
Por que abordar esse assunto?
Se o amigo leitor se sente pouco confortável ao deparar com artigo sobre tema tão polêmico, tem toda a minha simpatia. Não é, certamente, agradável, lidar com assuntos como este que podem, até mesmo, causar alguma perturbação. Mas é necessário. Se não, corremos o risco de, por um lado, alimentar opiniões originadas mais de preconceitos mundanos do que de um estudo sério da Bíblia e, por outro, de nos sentirmos desorientados frente ao modo como os meios de comunicação abordam a questão.
Porém mais importante de tudo é confrontar nossas posições com o ensino de Jesus tendo em vista que não estamos tratando de um "tema" abstrato mas sim de pessoas reais que lutam, que sofrem, que têm qualidade e defeitos como quaisquer outras.
É conveniente ter em mente que as atitudes com relação à sexualidade, em geral, têm oscilado - e é o que ocorre ainda em nossos dias - entre um extremo repressivo em que tudo o que se relaciona a sexo é considerado impuro, sujo, imoral, etc. e outro em que se defende uma total "liberação", uma entrega sem resistência a qualquer impulso ou desejo.
Como a Bíblia vê a questão?
Assim, nossa primeira preocupação deve ser a de procurar entender o que as Escrituras nos dizem a respeito e, nisso, elas são claras: as relações homossexuais constituem pecado. Textos como Lev. 18:22; 20:13: Rom. 1: 26-27; I Cor. 6: 10 e I Tim. 1: 9-11 não deixam margem a dúvida. Cabem, no entanto, algumas considerações. Acompanhando a tradição de importantes teólogos do passado, existe uma tendência a distorcer o ensinamento bíblico no sentido de exagerar a gravidade da condenação desse tipo específico de pecado (como, aliás, é feito com quase tudo o que se refere à sexualidade). Essa tradição está fortemente contaminada por idéias estranhas à visão judáico-cristã, idéias provenientes de correntes religiosas (como é o caso do Gnosticismo) que viam tudo que se refere ao corpo - a sexualidade acima de tudo - como inerentemente mau. Agostinho, por exemplo, escreveu que "nada degrada tanto o espírito masculino quanto a atração por mulheres e o contato com seus corpos" .
E que dizer das passagens de Levíticos onde se lê que pessoas que praticam relações homossexuais devem ser executadas? Vejamos o que escreve a respeito Alan Brash, pastor presbiteriano neozelandês, em seu livro ""Encarando Nossas Diferenças - as Igrejas e Seus Membros Homossexuais" (Ed. Sinodal) : ""Outras partes do Código de Santidade proíbem toda uma série de outras coisas que, ao que sabemos, não são levadas a sério por nenhum cristão moderno - por exemplo, comer carne contendo sangue, usar roupa feita de dois tipos de fibra ou designar para o sacerdócio alguém que tenha qualquer defeito físico, mesmo que seja uma sobrancelha torta." (...) Isso inevitavelmente levanta a seguinte questão: como é possível determinar que um versículo na presente passagem deve ser considerado como tendo autoridade divina, ao passo que se rejeita tantos outros versículos adjacentes como sendo inaplicáveis para nós hoje?"
Mas as relações homossexuais (sodomia) são também relacionadas pelo apóstolo Paulo entre os pecados graves, que podem excluir seus praticantes de herdar o reino de Deus (I Cor. 6: 9 e 10). Entra em jogo aqui uma questão séria quanto à forma de interpretar a Bíblia. Uma interpretação literal, desconectada do contexto mais amplo da mensagem redentora de Jesus, pode levar a nos distanciarmos do que Deus quer nos transmitir especificamente, a cada um de nós, em cada situação específica. Assim, tomar essa passagem como uma condenação radical e absoluta a todo indivíduo com inclinações ou práticas homossexuais pode estar longe do que Deus expressa no conjunto do Novo Testamento e levar a atitudes pouco caridosas para com pessoas que precisam mais de acolhimento do que de condenação. Mais explicitamente: a condenação contida neste e noutros textos similares dirige-se aos comportamentos homossexuais como Paulo os conhecia em seu tempo e em determinadas sociedades mas não abrange todas as pessoas que hoje classificamos como homossexuais. Para entender esse ponto, é preciso ter em mente o tipo de ambiente em que viviam os cristãos aos quais o apóstolo se dirige em suas cartas, ambientes em que se cometiam toda a sorte de impurezas e torpezas as quais eram não somente praticadas mas até mesmo aprovadas. (Rom. 1:32). Aplicando essa visão aos nossos dias, teríamos que fazer distinção entre as formas de comportamento homossexual (como também heterossexual) nitidamente pervertidas - e, infelizmente as vemos com certa frequência e merecendo destaque e aprovação dos meios de comunicação - e aquelas que envolvem, por exemplo, a pequena porcentagem de indivíduos transexuais, para os quais a possibilidade de mudança é praticamente nula ( estes são, como disse, minoria, pois há bastantes indícios de que homossexuais de outras categorias podem mudar).
Do ponto de vista tanto teológico quanto psicológico, esse ponto é extremamente importante porque a condenação, além de produzir sofrimento inútil , é um forte obstáculo à mudança.
Vale a pena mencionar que há praticamente unanimidade entre os autores evangélicos que tratam do assunto, por diferentes que sejam suas posições teológicas, quanto à necessidade de uma atitude acolhedora e não condenatória por parte das comunidades cristãs no que se refere aos homossexuais, como, de resto, a todos quantos precisam do perdão e do amor incondicional de Deus (e que somos todos nós).
Mas não se trata de uma concessão à imoralidade?
Alguns dos homossexuais com mais visibilidade nos meios de comunicação de fato têm atitudes provocativas, imorais e até caricatas. É preciso, contudo, cuidado para não generalizar; não representam se não uma minoria. Não há dúvida de que vivemos em um mundo cujas fronteiras entre o que é decente e o que é indecente vão se tornando indistintas. Isso é verdade para a sexualidade como também para muitas outras áreas. Os cristãos podem e devem manifestar-se com relação a tais condutas não como quem julga e critica de uma posição superior mas na qualidade de quem - em obediência a seus Senhor - tem interesse pelos demais e pode testemunhar que existe uma forma de vida muito mais plena, que é aquela que Ele veio nos dar.
Que têm a dizer a psiquiatria e a psicologia?
Desde 1973, os principais manuais que estabelecem os critérios psiquiátricos de classificação das doenças mentais excluíram a homossexualidade da relação de transtornos patológicos, isto é, não a consideram mais uma doença que deva ser tratada mas sim uma opção equivalente à heterossexual. A questão, contudo, ainda é bastante polêmica e vale a pena observar que , há poucos dias, um dos psiquiatras que mais se bateu pela modificação dos critérios diagnósticos em 1973, o Dr. Robert Spitzer, causou sensação nos meios médicos e psicológicos ao anunciar que estava modificando seus pontos de vista, uma vez que suas pesquisas indicavam que número substancial de homossexuais mudaram de orientação sexual após passarem por psicoterapia. A controvérsia é ainda mais intensa entre os psicólogos, na medida em que a maior parte destes profissionais se filiam a correntes que sustentam posições bastante conflitantes entre si quanto á natureza humana e o que se considera normal e saudável.
De qualquer forma, creio ser importante mencionar que vários estudiosos do tema, entre os quais o Dr Martin Seligman , Professor e Diretor de Treinamento Clínico em Psicologia da Universidade da Pennsylvania, EUA, insistem em que existem diversos tipos de homossexualidade, variando desde uma tendência leve por parte de pessoas normalmente heterossexuais, até o transexualismo, que afeta a identidade sexual do indivíduo,
levando- a sentir-se, desde tenra idade, como uma mulher presa em um corpo masculino, ou vice-versa. Para Seligman, "De toda a nosologia, o transexualismo é o distúrbio mais profundo. Não conheço outro problema psicológico tão intratável." Em sua opinião, o problema surgiria de uma perturbação no desenvolvimento do feto, ocorrida entre o segundo e o quarto mês de gravidez e relacionada ao funcionamento das glândula secretoras do hormônio masculino do feto. Esses hormônios, além de conduzirem o desenvolvimento dos órgãos masculinos, têm um efeito psicológico independente ao produzirem a identidade sexual. Enfatizo, novamente, que se trata de pequena porcentagem dentre o total de pessoas com tendências e comportamentos homossexuais. Se isso é assim, e há fortes indícios de que seja, precisamos cuidado quando discutimos a homossexualidade porque existe grande risco de, ao manifestar pontos de vista conflitantes, estarmos nos referindo a coisas diferentes. ] ] ] Como se vê, a questão é difícil e requer que, ao considerá-lo, busquemos o amor, a mansidão e a humildade produzidos pela presença do Espírito. Creio que vale a pena encerrar com as palavras de Richard Foster, em seu livro já citado: "Se não podemos concordar com a escolha da prática homossexual, tampouco podemos jogar fora a pessoa que fez tal escolha. Não; ficaremos ao seu lado, sempre prontos a ajudar, sempre prontos a apanhar os cacos se as coisas caírem aos pedaços, sempre prontos a levar a aceitação e o perdão de Deus." O Rev. Zenon Lotufo Jr. é pastor da IPI e analista transacional. É coordenador do Núcleo São Paulo Oeste do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos e do curso de Especialização em Aconselhamento Pastoral que o CPPC patrocina, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de S. Paulo. É também presidente do Ministério Jeame de Assistência Integral à Criança e ao Adolescente Carentes e de Conduta Infracionária.

Anamnese, um início da história

A ANAMNESE, por Anavera H. Lisboa PDF Imprimir e-mail

 

Na rotina diária dos consultórios, a anamnese é uma questão ainda incompleta e insatisfatória. Um indivíduo apresenta-se buscando ajuda e tratamento, alguém que seja capaz de resolver sua demanda em saúde e, acima de tudo, um ser humano que o ouça. Nesse primeiro contato inicia-se uma relação - momento de avaliação do tratamento a ser realizado, orçamento e anamnese.
A questão é o que se consegue desta relação e o que se faz a partir daí. Na anamnese, as perguntas não devem funcionar como parte de mais uma técnica a seguir ou metodologia a ser aplicada - apesar do seu inquestionável e conhecido valor, pois ela ( a anamnese) comporta dimensões muitas vezes inesperadas. A maneira de abordar o paciente é muito importante.
Partindo das observações e relatos sobre a insatisfação desta relação "profissional-paciente", faz-se necessário repensar uma prática mais humana dos profissionais de saúde, promovendo saúde de maneira integral. A anamnese é recordar o que foi esquecido - trazer à memória - e sabe-se que há um processo para este rememorar.
A memória não é cronológica nem linear e sim um conjunto de experiências que ocorreram em espaço e tempo diversos do presente. Nela, o passado vem à tona como força subjetiva, ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante. Imagens do passado são suscitadas pelo momento vivido no presente e expressas através de signos também utilizados no presente como vocabulário, gestos, olhares.
O momento que movimenta esta memória é a anamnese, que deve ser solene e descontraída. De um lado, o profissional de saúde - entrevistador - é encarado como o dono do saber, uma autoridade acadêmica, e de outro o paciente - entrevistado -, que concorda em desnudar sua história diante de pessoas normalmente desconhecidas, desencadeando muitas vezes sentimentos e emoções fortes que devem ser tratados com cuidado.
Então, o papel do profissional que busca informações e dados deve ser cauteloso, pois muitas vezes aproxima-se, tangencia, o papel do psicólogo, pelo fato de trabalhar com percepções individuais. E um indivíduo que se dispõe a falar da sua vida para outros, sendo ao mesmo tempo estranhos e cúmplices em um projeto comum, cria um laço de presença, de tal forma que põe em movimento os sentidos corporais e espirituais que são próprios desta relação - envolvimento e cumplicidade. É necessário reconhecer um espaço familiar, íntimo, que traga um sentimento de segurança, um "querer fazer" para levar adiante o exercício da ajuda.
Mas, para que profissional e paciente deixem de ser indivíduos estranhos, estabelecendo um início de história, com todas as emoções que esse momento pode suscitar, é necessário saber fazer o outro falar, saber ouvir o que é dito e assim ver a história ser recontada, revivida. Ver a história do paciente é torná-la visível, e isto torna material ao alcance das mãos, assim produz sentido.
Ouvir é um sentido fisiológico e basta certa integridade biológica, associada a um bom desempenho neurofisiológico de funções. Escutar é outra coisa. É um ato psicológico, uma disposição interna de acolher signos, ora claros, ora obscuros, e buscar alcançar algum registro que viabilize trocas, admitindo espaço para o subjetivo. Não significa haver dissolução de um no outro e sim que haja reconhecimento do "território" do outro, sua verdade de vida, garantindo a ética do entrevistador, seu lugar, permitindo-o fazer a história, fazer um acontecimento, uma interação.
Essa anamnese permite ao entrevistado a reformulação de sua identidade, se apercebendo "criador da história", questionando elementos de sua vida individual e social, passando a ser sujeito e percebendo sua parcela, sua responsabilidade. A maioria dos pacientes têm dificuldade de se expressar. Cabe ao profissional criar uma "oportunidade" para abrir os sentimentos, iniciativa motivada pelo desejo de ser instrumento de ajuda para aquele indivíduo. Então, como se aproximar do outro ou com que se aproximar?
Primeiro como ser humano, com debilidades, como criatura esculpida pela história pessoal de minha vida. A visão do mundo determina profundamente a bagagem que é trazida ao encontro do outro. Enxergar o mundo sem possibilidade de melhoras torna a atitude negativa ou de pouca importância. Em segundo, com um objetivo a ser alcançado, respeitando o paciente sem impor uma forma de ver as coisas, concebendo a saúde plena como objetivo principal - incluindo espírito, emoções, pensamentos, forças, paixões físicas etc -, comprometendo-se em colaborar com o outro.
Ver, então, no outro, uma pessoa que sofre não apenas a dor local - motivo de sua procura - mas muitas vezes a dor da alma, sofrimento material, pobreza de espírito, solidão e sentimento de não ser querido. E levá-lo a acreditar que há soluções, que há esperança. Considerar sempre o paciente como prioridade absoluta durante o atendimento e permitir que ele perceba isso, mesmo que o tempo disponível seja menor que o ideal. Tornar a anamnese não apenas um momento de colher dados, sinais e sintomas, mas sim fazer deste um lugar onde se vive a memória e cria-se um acontecimento que também faz história.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Anavera Heringer Lisboa, cirurgiã-dentista, clínica-geral,
especialista em Saúde Pública pela Faculdade de Farmácia da UFMG

Religião neurótica, cristãos nervosos

Religião neurótica, cristãos nervosos


Pode parecer um tanto estranho e até incoerente, mas temos que admitir que nós cristãos conhecemos pouco da graça de Deus. A cada dia somos mais convencidos dessa realidade. É estranho porque basicamente o cristianismo é fundamentado na teologia da graça de Deus, a qual afirma que o Eterno, misericordiosamente, nos amou e enviou o Seu filho Jesus cristo para a nossa salvação (João 3:16). Deduz-se daí que toda a ação amorosa de Deus em torno do ser humano é permeada pela graça, que etimologicamente significa “favor imerecido”, ou seja, não há em nós absolutamente nada que possa atrair o mínimo do cuidado de Deus. Somos imerecedores de qualquer bênção dos céus, mesmo aquelas que consideramos comuns, como a bênção de respirar ou a bênção de ver a luz do sol a cada manhã.
Não é curioso que sendo toda a história da salvação permeada pela graça divina conheçamos tão pouco desse atributo de Deus? Talvez a explicação para isso esteja no lado oposto da graça, onde mora o legalismo. O legalismo é uma forma de ver a vida e também uma forma de se relacionar com Deus e com as pessoas. Trata-se de uma proposta de vida baseada em pressupostos de justiça própria: a idéia é que as atitudes de justiça por parte do indivíduo concederão a ele direitos em relação às bênçãos de Deus e à vida melhor que Ele pode nos dar. Sendo assim, a pessoa legalista experimentará um sentimento interior de possuir crédito junto ao Todo Poderoso.
De forma prática, a proposta do legalismo funciona assim: a pessoa aprende que quanto mais reta for sua vida, maiores serão as bênçãos que ele alcançará. Então ele passa a tentar agradar a Deus com atitudes que entende serem de acordo com os princípios bíblicos aprendidos. No entanto ele descobre que isso nem sempre isso é possível em função de suas limitações e de sua natureza pecaminosa. A partir daí ele começa a experimentar uma culpa interior por ser pecador, por desagradar a Deus, por sentir-se em débito com o Eterno e por achar que a qualquer momento Deus irá castigá-lo. Sendo assim ele se esforça ainda mais para cumprir os preceitos bíblicos a fim de agradar a Deus. Como não consegue, passa a experimentar uma culpa maior ainda, além de um sentimento de inadequação. Começa a pensar que Deus já não o ama como antes e que a qualquer momento poderá perder a sua salvação. A sua religião se torna neurótica e o indivíduo passa a viver sob o peso insuportável de um julgamento interior (de si mesmo) e exterior (da lei). Este é o momento perigoso em que duas coisas podem acontecer: ou a pessoa se desequilibra emocionalmente, passa a viver vida dupla e se torna um cristão problemático ou abandona a fé e carrega culpa para o resto de sua vida. Esta é a razão pela qual o número de pessoas ligadas à fé cristã que estão internadas nos hospitais psiquiátricos é muito grande.
Precisamos retornar à mensagem da graça de Deus, que diz que o Eterno nos aceita como nós somos, que nos ama do mesmo jeito a cada dia, que nos abençoará tão somente pela sua misericórdia e não em função de nossas ações. Entender a graça de Deus significa entender que o Eterno não reagirá às nossas ações, mas somos nós que reagimos às suas ações de amor e de cuidado constante. Se servimos a Deus, se procuramos viver de forma íntegra, se procuramos agradar a Deus com o nosso viver, não é porque achamos que isso atrairá as bênçãos dos céus sobre nossas vidas, mas agimos assim como uma resposta de amor a um amor maior.
Precisamos de uma fé que nos tire da pressão ao invés de aumentar o peso sobre nossos ombros. Talvez precisemos ouvir do Eterno as mesmas palavras que o apóstolo Paulo ouviu em determinado momento de sua vida: “A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa a fraqueza” (2 Coríntios 12:9). Talvez isso aquiete os nossos corações e nos torne pessoas mais tranqüilas.

cred.