quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O real na psicose

O real na psicose

The real in psychosis

Le réel dans la psychose


Maurício Castejón Herrmann1
Instituto de Psicologia - USP



RESUMO
Este artigo discute a noção de real na psicose, a partir das formulações de Lacan sobre o tema, presentes no Seminário 3 - As Psicoses, no Seminário 20 - Mais, Ainda e no texto Televisão. Considerando-se que a concepção de real tem uma indicação clínica, a hipótese que se formula é a de que a noção de real trabalhada no Seminário 20, Mais, Ainda representa uma continuidade da concepção de real desenvolvida no Seminário 3, As Psicoses.
Descritores: Psicanálise. Lacan, Jacques, 1901-1981. Psicose.

ABSTRACT
This article will discuss the notion of real in the psychosis based on the Lacanian theory. It will present what Lacan formulated about the theme in Seminar 3 - The Psychoses to, afterwards, refer to Seminar 20 - Even More, and also to the text Television. The conception of real brings with it a clinical indication. The hypothesis formulated is that the notion of real worked in the Seminar - Even More still represents a continuity in the conception of real worked in the Seminar - The Psychoses.
Index terms: Psychoanalysis. Lacan, Jacques, 1901-1981. Psychosis.

RÉSUMÉ
Cet article discutera la notion de réel dans la psychose à partir des formulations de Lacan sur le thème présenté dans le séminaire 3, "Les psychoses" et dans le séminaire 20 "Encore", et aussi dans le texte "Télévision". Si on considère que la conception du réel a une indication clinique, on formule l'hypothèse que la notion du réel traitée dans le séminaire "Encore" répresente une continuité de la conception du réel traitée dans le séminaire "Les psychoses".
Mots-clés: Psychanalise. Lacan, Jacques, 1901-1981. Psychose.



O Real na Psicose
A reflexão que se segue é produto de leituras do Seminário 3, denominado As Psicoses (Lacan, 1955-1956/1985) e do Seminário 20, cujo título é Mais, ainda (Lacan, 1975/1985), a partir das quais a questão trabalhada foi o modo como Lacan desenvolveu a noção de real na psicose e sua decorrente concepção de tratamento. Esperava, no início das leituras, encontrar, nos respectivos seminários, conceitos específicos à clínica das psicoses. Mas esta expectativa foi parcialmente frustrada, pois, ao contrário do Seminário - As Psicoses, dedicado às psicoses e tendo as neuroses como seu contraponto, o Seminário - Mais, Ainda não contém qualquer articulação explícita sobre a noção de real na psicose (grifo meu). No entanto, a leitura do Seminário - Mais, Ainda é capital para um aprofundamento na questão que aqui se coloca, pois apresenta uma indicação clínica importante que, conforme a hipótese que se apresenta, condiz com uma continuidade ao que foi trabalhado, teoricamente, no Seminário - As Psicoses.
Para dar início a essa reflexão, segue-se uma citação de Lacan do texto Televisão:
Certamente a gramática é aqui suporte para a escrita e, para tanto, ela testemunha de um real, mas de um real, como se sabe, que permanece enigma enquanto na análise o móvel pseudo-sexual daí não se sobressair, ou seja: o real que, por só poder mentir ao parceiro, se inscreve como neurose, perversão ou psicose. (Lacan, 1974/1993, p. 24)
De qual real se trata na psicose? A citação acima referida, antes de nos dar qualquer indicação explícita de uma noção de real na psicose, serve-nos melhor como enigma, como estímulo para acompanharmos este texto que incide sobre o percurso de leitura de Lacan e também sobre a clínica psicanalítica das psicoses.
As primeiras reflexões teóricas que se seguem advêm do Seminário denominado As Psicoses, de Jacques Lacan (1955-1956/1985). O que se apresenta é uma síntese da posição freudiana no que diz respeito às questões teóricas e clínicas da psicose e o modo como Lacan nos orienta quando ele leva a cabo uma posição ética bastante difundida: a psicanálise não pode recuar diante da psicose.
O ensino de Freud nos revela que a clínica não é uma experiência pura, mas sim, estruturada de modo artificial, constituída pelo testemunho ou segredo que o paciente faz ao analista e o decorrente manejo da transferência que o último realiza. É no contexto da clínica que se introduzem os três registros: do simbólico, do imaginário e do real. De forma sintética, serão apresentadas breves definições2 desses três registros. O registro do simbólico condiz com um sistema de representações calcado na linguagem, por meio de signos e significações possíveis que determinam o sujeito do inconsciente e a faculdade de simbolização. O registro do imaginário é utilizado por Lacan com o intuito de definir um lugar ao eu, com os seus fenômenos de ilusão, captação e engodo. O registro do real está vinculado a uma noção de "realidade" fenomênica, impossível de ser representada.
No caso da psicose, no início do ensino de Lacan e como veremos adiante, tem-se que a noção de real está também relacionada com aquilo que foi rejeitado e, portando, excluído do registro do simbólico. É o conjunto dos três registros e a relação entre eles que define a idéia de estrutura clínica.
No Seminário - As Psicoses, Lacan (1955-1956/1985) propõe um retorno a Freud. Este último aborda a psicose, transpondo a lógica do tratamento da neurose para o da psicose, o que resulta em uma leitura da psicose a partir dos referenciais do simbólico. Lacan nos indica um outro caminho: cabe à psicanálise teorizar a clínica da psicose para além do registro do simbólico e, assim, distinguir a clínica da neurose da clínica da psicose. O ponto de partida é uma indagação acerca da relação do sujeito com a realidade e a distinção do modo como se dá essa relação na neurose e na psicose. Na neurose, parte da realidade psíquica é elidida do sujeito, mas continua a se fazer ouvir, por meio de uma significação particular, própria da ordem simbólica.
Na neurose, é no segundo tempo, e na medida em que a realidade não é plenamente rearticulada de maneira simbólica no mundo exterior, que há no sujeito fuga parcial da realidade, incapacidade de enfrentar essa parte da realidade, secretamente conservada. Na psicose, ao contrário, é realmente a própria realidade que é em primeiro lugar provida de um buraco, que o mundo fantástico virá em seguida cumular. (Lacan, 1955-1956/1985, p. 57)
Lacan insiste em avançar em seu ensino, no sentido de verificar qual é o mecanismo de formação do sintoma. Retoma a contribuição de Jean Hyppolite sobre a Verneinung, o ponto de origem da simbolização e aponta para a necessidade de distinguir os conceitos de Verneinung e Bejahung. Lacan afirma que "no inconsciente tudo não é somente recalcado, isto é, desconhecido para o sujeito após ter sido verbalizado, mas que é preciso admitir, atrás do processo de verbalização, uma Bejahung primordial, uma admissão no sentido do simbólico, que pode ela própria faltar" (Lacan, 1955-1956/1985, p. 21). Trata-se da Bejahung pura, passível ou não de se concretizar, e na qual se produz uma primeira dicotomia, pois aquilo que recai nesta primeira simbolização terá destinos diferentes do que aquilo que recai sob a primazia de uma Verwerfung primitiva. Nesta última, ocorre um fenômeno de exclusão, uma recusa do sujeito de algo para a ordem simbólica, no caso, a ameaça da castração.
Um exemplo é o caso clínico do Homem dos Lobos de Freud.. Ao brincar com sua faca, ele corta o seu dedo, que fica preso à sua mão somente por um pedaço de pele. Não quis falar sobre isso à sua ama, à qual confiava suas experiências. Que valor atribuir ao fato de não poder falar sobre isso? "A relação que Freud estabelece entre esse fenômeno e esse especialíssimo não saber nada da coisa, (...) traduz-se por isto: o que é recusado na ordem simbólica ressurge no real" (Lacan, 1955-1956/1985, p. 22). O fenômeno alucinatório se dá pelo reaparecimento, no real, daquilo que não pôde ser simbolizado, ou então, recusado pelo sujeito.
A descoberta freudiana também nos aponta para a impossibilidade de conferir ao homem uma natural adequação à realidade. Freud põe em relevância o fato de que a organização da sexualidade humana se dá, exclusivamente, pela ordenação da constituição bissexual humana à ordem simbólica da cultura. É isto o que o complexo de Édipo quer dizer.
Assim, quando se busca responder à questão do fenômeno psicótico, entende-se que se trata
de uma emergência na realidade de uma significação enorme que não se parece com nada - e isso, na medida em que não se pode ligá-la a nada, já que ela jamais entrou no sistema de simbolização -, mas que pode, em certas condições, ameaçar todo o edifício. (Lacan, 1955-1956/1985, p. 102)
No exemplo de Schreber, conforme a leitura de Lacan, a significação rejeitada tem relação com a bissexualidade primitiva, já trabalhada por Freud em "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade". Lacan nos indica que se trata da função feminina em sua significação simbólica essencial.
Na neurose, esta pulsão feminina aparece nos distintos pontos de simbolização prévia e encontra eco na solução de compromisso do sintoma. É o recalque e o retorno do recalque. Na psicose, em seu início, o não simbolizado reaparece no real, por meio de respostas do lado de uma Verneinung inadequada ou, em outros termos, insuficiente. "O que se produz tem o caráter de ser absolutamente excluído do compromisso simbolizante da neurose, e se traduz em outro registro, por uma verdadeira reação em cadeia ao nível do imaginário (...)." (Lacan, 1955-1956/1985, p. 104). O estudo de Schreber ilustra a sua dialética imaginária e a decorrente relação especular do sujeito com o mundo.
Uma exigência da ordem simbólica, por não poder ser integrada, (...) e acarreta uma desagregação em cadeia, uma subtração da trama na tapeçaria, que se chama delírio. Um delírio não é forçosamente sem relação com um discurso normal, e o sujeito é bem capaz de nos participar, e de se satisfazer com isso, no interior de um mundo em que toda comunicação não foi rompida. (Lacan, 1955-1956/1985, p. 105)
Uma outra questão se coloca: Como o sujeito psicótico fala de seu delírio? Quem é que fala? O neurótico se reconhece na medida em que o Outro é também reconhecido. O sujeito neurótico recebe a mensagem de forma invertida. O Outro está reconhecido no discurso da alteridade. "É essencialmente essa incógnita na alteridade do Outro que caracteriza a ligação da palavra no nível em que ela é falada ao outro" (Lacan, 1955-1956/1985, p. 49). Na fala do sujeito neurótico há reciprocidade. No caso da psicose, o que é indicada é uma relação especular do sujeito psicótico com o mundo.
Lacan trabalha esta questão a partir de uma apresentação de paciente feita por ele num hospital parisiense. Ela estava voltando do açougue quando encontrou um vizinho, julgado por ela como um rapaz de hábitos levianos. Ao se encontrarem, a paciente disse: "Eu venho do salsicheiro." Foi neste momento que ela escutou a palavra "porca", que segundo ela, foi dita pelo vizinho. Trata-se, aí, de uma mensagem que o sujeito recebe de forma invertida? Lacan se indaga: "Porca, o que será isso? É uma mensagem com efeito, mas não será antes a sua própria mensagem?" (Lacan, 1955-1956/1985, p. 61). O importante é pensar que, de fato, a palavra "porca" tenha realmente sido ouvida, advinda do real.
Quem será que fala? Já que há alucinação, é a realidade que fala. Isso está implicado em nossas premissas, se afirmamos que a realidade é constituída de sensações e percepções. Não há ambigüidade nisso, ela não diz: Eu tive o sentimento de que ele me respondeu: "porca" (...). (Lacan, 1955-1956/1985, p. 62)
É o real que fala. A paciente recebe do outro a sua própria fala, num jogo de replique, no toma lá, dá cá.
Avançando mais na teoria, é afirmado que a realidade só pode ser concebida como uma trança de significantes. Esta realidade, neste momento do ensino de Lacan, organiza- se pela presença do significante "o nome-do-pai", significante porta-voz da ordem simbólica da cultura. É no complexo de Édipo que é ofertado a cada um de nós a possibilidade de passarmos por uma provação, um atravessamento, sendo sua realização final a assujeição à lei simbólica. Na psicose, o sujeito se coloca à margem desta provação, ou dito de outra forma, o acesso à realidade, articulada à trama de significantes da ordem simbólica, não se realiza. Há algo que lhe falta, o significante Nome do Pai.
Pode-se afirmar que uma estrutura clínica se define a partir do modo pelo qual o sujeito articula/define/ordena a sua posição de sujeito em relação ao jogo dos significantes. Na neurose, o sujeito habita a linguagem, ao passo que, na psicose, o sujeito é habitado pela linguagem. Por conseqüência, "instaura-se no sujeito psicótico uma relação de exterioridade diante da realidade da linguagem". (Lacan, 1955-56/1998) fala do "ponto de basta" como algo primordial para a experiência humana. Para pensar a neurose, lança mão de uma metáfora, no caso, a idéia do point de capiton como ponto de articulação, de amarração entre os três registros, o simbólico, o imaginário e o real na linguagem. O point de capiton permite uma articulação entre significante e significado capaz de construir sentidos possíveis a uma fala, quando se coloca um ponto final na frase. O sentido se constrói retroativamente e pode ser compartilhado em função do fato de que é próprio da linguagem compartilhar sentidos possíveis. Na psicose, este point de capiton não se faz presente.
O point de capiton é determinante para se pensar a experiência humana e enfatiza o valor da descoberta freudiana quanto à provação advinda do Complexo de Édipo. Neste sentido, a conseqüência da ausência do significante o "nome-do-pai", na psicose, permite-nos afirmar que significante e significado estão divididos e que o sujeito psicótico se concentra no significante. O delírio assume um sentido particular, em sua certeza e em sua perplexidade.
Não, é num outro registro que é preciso abordar o que se passa na psicose. Eu não sei o total, mas não é impossível que se chegue a determinar o número mínimo de pontos de ligação fundamentais entre o significante e significado necessários para que o ser humano seja dito normal, e que, quando eles não estão estabelecidos, ou afrouxam, produzem o psicótico. (Lacan, 1955-1956/1985, p. 304)
Tendo em vista as colocações acima podemos voltar novamente à clínica e nos perguntarmos: qual uso o psicótico faz de sua produção delirante? Há significação? Sem dúvida que sim. Qual? O sujeito não sabe, apesar de ela vir em primeiro plano. A significação, para o psicótico, coloca-se no plano da compreensão, mesmo se o que se compreende não pode ser articulado, nomeado, inserido pelo sujeito em um contexto em que se explicite tal compreensão. É neste ponto que Lacan critica a Psicopatologia de Jaspers e denuncia o fato de que é impossível, para o analista, compreender a produção delirante do sujeito psicótico.
O delírio se coloca de forma distinta da linguagem comum através da figura de linguagem denominada neologismo (o uso de palavras novas ou antigas com sentido novo). Lacan sugere dois tipos de fenômenos onde se projeta o neologismo: a intuição e a fórmula. No que se refere à intuição, é-lhe atribuída um caráter pleno, uma perspectiva nova como se fosse uma descoberta fundamental: é a alma da situação. Há, também, o tipo de significação que não se remete a nada - fórmula -, que se repete com uma estereotipia constante. De acordo com Lacan,
essas duas formas, a mais plena e a mais vazia, param a significação, é uma espécie de chumbo na malha, na rede do discurso do sujeito. Característica estrutural a que, já na abordagem clínica, reconhecemos a assinatura do delírio (Lacan, 1955-1956/1985, p. 44).
É na economia do discurso descrita acima, na relação do sujeito com a significação, que se permite distinguir o delírio como um fenômeno elementar, como uma indicação para a formulação do diagnóstico psicanalítico.
Para concluir esta reflexão acerca do Seminário - As Psicoses, pode-se afirmar que a clínica da psicose nos interroga: de qual real se trata? Questão que traz consigo uma ambigüidade. Fala-se, de um lado, acerca de uma concepção teórica sobre o real da psicose, descrita anteriormente, advinda dos fenômenos clínicos com os quais o psicanalista se depara. De outro lado, temos na mesma concepção teórica uma indicação clínica importante, capaz de orientar o psicanalista na direção do tratamento da clínica da psicose. O analista, a testemunha e o secretário do alienado são expressões que nos indicam uma posição clínica, uma direção possível ao tratamento das psicoses. No tratamento da neurose o sujeito suporta uma neurose de transferência e a interpretação. Na psicose, o analista não compreende e também não remete o sujeito psicótico à impossibilidade do simbólico. O analista busca, sim, testemunhar, sustentar significantes do sujeito psicótico capazes de dar contorno ao real, capazes de dar contorno a este sujeito que vive às bordas da loucura e que pode, a qualquer momento, despencar no furo da psicose.
Entende-se a indicação clínica do Seminário - As Psicoses, acima trabalhada, como o ponto de partida para se pensar o manejo da transferência na clínica da psicose. Nesta, o analista sustenta os significantes do sujeito tendo como princípio ético o respeito àquilo que o próprio paciente traz na transferência. O analista não interpola o sujeito psicótico com as suas "compreensões" ou o remete à impossibilidade do simbólico, pois se entende o delírio como uma cura (grifo meu) do sujeito psicótico. O delírio é visto como o modo particular do sujeito psicótico lidar com a própria castração e, assim sendo, relembra-se o fato de que a ética da psicanálise não preconiza a remoção do "sintoma delírio", mas sim, a possibilidade de ressignificação desta experiência delirante, na transferência, como direção de tratamento psicanalítico da psicose.
Observa-se a experiência clínica e percebe-se que o manejo da transferência descrito no Seminário - As Psicoses, seguido à risca, pode trazer à tona outros significantes do sujeito pertinentes para a sua estabilização ou, conforme os termos já utilizados, significantes pertinentes para dar contorno àquilo que não foi simbolizado e que retorna no real. É no próprio delírio do sujeito psicótico que se encontra algo sobre a sua verdade pessoal.
No momento, cabe verificar a maneira pela qual a idéia de real é trabalhada por Lacan no Seminário - Mais, Ainda. Como se coloca a noção de real neste seminário? E a noção de gozo? Real e gozo se articulam por meio da topologia3? Assim, como entender, do ponto de vista teórico, estes outros significantes que emergem do sujeito psicótico no manejo da transferência? É neste contexto que Lacan introduz a topologia? Neste sentido, poderíamos entender o recurso da topologia como uma fundamentação teórica importante para se pensar a seqüência de significantes que dão contorno ao real? A topologia nos serve também como uma indicação clínica?
A noção de gozo, e longe de esgotar o que Lacan nos ensina quanto a este tema, traz algumas considerações, sobre a diferença entre o gozo fálico e o gozo do ser.
Lacan afirma que o gozo do ser é comandado pelo supereu, tendo o mesmo como o seu imperativo: "Goza!" (Lacan, 1975/1985, p. 11). É da ordem do gozo do ser que podemos entender o que Freud desenvolveu acerca da pulsão de morte. Este gozo do ser nos dá a condição de refletir sobre a clínica, sobretudo quando entendemos certos fenômenos clínicos, tais como certos momentos subjetivos em que uma análise parece não avançar. O que faz este analisante permanecer nestas repetições? Como entender este fenômeno clínico, já teorizado por Freud nos artigos da técnica? Ora, vemos no gozo do ser o caminhar, como algo da ordem do não querer saber sobre isso, apesar do gozo permanecer aí ... mais, ainda. O lugar do gozo do ser é o lugar das repetições.
Tal concepção de gozo é também trabalhada por Lacan em termos de topologia.
Nesse espaço do gozo, tomar algo de circundado, de fechado, é um lugar, e falar dele, é uma topologia. Num escrito que vocês verão publicado como ponta de meu discurso do ano passado, creio demonstrar a estrita equivalência de topologia e estrutura. Se nos guiamos por isto, o que distingue o anonimato disso de que falamos como gozo, isto é, o que ordena o direito, é uma geometria. Uma geometria é a heterogeneidade do lugar, quer dizer que há um lugar do Outro. Desse lugar do outro, de um sexo como Outro absoluto (...). (Lacan, 1975/1985, p. 17)
Mais adiante, no Seminário - Mais, Ainda, Lacan relaciona a noção de real com a topologia. Ele o faz no momento em que trabalha a noção de verdade e de saber sobre a verdade. Teoriza acerca da experiência analítica, ao formular a idéia de que a análise é uma experiência que busca um saber sobre a verdade. No caso, a verdade, ao contrário do mandamento jurídico, de dizê-la toda, na experiência analítica pode ser somente dita pela metade, pelo semi-dizer. "(...) toda a verdade, é o que não se pode dizer. É o que só se pode dizer com a condição de não levá-la até o fim, de só semi-dizê-la" (Lacan, 1975/1985, p. 124). Tal impossibilidade, a oposição ao mandamento jurídico, explica-se pelo fato de que é o gozo do ser que dá este limite, gozo este que pode ser elaborado a partir do semblante do analista. Mas vamos, no momento, nos ater à equivalência de gozo do ser e real, por meio da topologia.
Apresentamos duas citações de Lacan:
O real só se poderia inscrever por um impasse de formalização. Aí é que eu acreditei poder desenhar seu modelo a partir da formalização matemática, no que ela é elaboração mais avançada que nos tem sido dado produzir da significância. Essa formalização matemática da significância se faz ao contrário do sentido, eu ia quase dizer a contra-senso. (Lacan, 1975/1985, p. 125)
(...) a formalização da lógica matemática, tão bem feita para só se basear na escrita, não poderá ela nos servir no processo analítico, no que ali se designa isso que invisivelmente retém os corpos? (Lacan, 1975/1985, p. 125)
Lacan aponta para o fato de que a topologia nos serve na medida em que ela assume o caráter de formalização dos limites, dos pontos de impasse de uma análise, ou, conforme Lacan, "os becos sem saída que mostram o real acendendo ao simbólico" (Lacan, 1975/1985, p. 126). O recurso da topologia é enfatizado, pois ela transmite justamente aquilo que se quer dizer: "A forma não sabe mais do que ela diz. Ela é real, no sentido em que mantém o ser na sua taça, mas cheia até a boca. Ela é o saber do ser. O discurso do ser supõe que o ser seja, e é o que mantém" (Lacan, 1975/1985, p. 162). Para Lacan, é a matematização que toca o real, conforme o discurso analítico. Real este que não se compatibiliza com o conhecimento tradicional ou científico, mas sim, com a fantasia inconsciente. Aqui, o real é entendido como o mistério do corpo falante.
Neste momento, cabe retomar o que foi trabalhado, anteriormente, acerca do manejo da transferência na psicose, a partir do Seminário 3 - As Psicoses, porque o que se pretende verificar é a hipótese de que esse manejo possa ser sustentado teoricamente com a contribuição, apresentada por Lacan, no Seminário 20, Mais, ainda. A idéia de secretário do alienado, da testemunha, invalida a indicação clínica proposta no Seminário - Mais, Ainda?
O recorte clínico que se segue pretende ilustrar a hipótese teórica debatida neste artigo. João4 (nome fictício), ao longo de seu tratamento, produziu alguns significantes importantes. No início do tratamento dizia sofrer de "assistite". Quando indagado a respeito deste neologismo, João o decompunha em duas partes, oferecendo, inclusive, uma definição bastante original de sua paranóia. "Tite" significa inflamação e "assistir" se relaciona com ser assistido, olhado. "Assistite", portanto, tinha para ele um significado bastante próprio, o de ser assistido de modo imperativo. Com muito sofrimento, explicava que as pessoas, na tentativa de estabelecer laço social, o invadiam. Sentia-se penetrado, sem qualquer possibilidade de proteção diante do olhar do outro. Em uma certa ocasião, foi-lhe perguntado se era possível inventar uma palavra ou um nome que pudesse barrar a sua "assistite". Depois de muitos meses, João foi capaz de criar a seguinte frase: "Temos que impor os nossos obstáculos e acalentar as nossas tristezas."
Um novo significante se abre: o ódio. Após esta frase, houve um giro importante em sua trajetória clínica. João saiu de sua posição de vítima dos olhares dos outros para uma outra posição subjetiva. Começou a questionar certas imposições de pessoas de seu convívio e a evitar uma certa submissão e fragilidade. Era capaz de responder aos gracejos dos outros com segurança, defendendo-se dos mesmos com agressividade. Dizia que não gostava de sentir "assistite". Era capaz de discriminar as chacotas que lhe causavam "assistite", sentir ódio e se defender. Após algum tempo, notou-se que João se entristeceu. Sua produção delirante diminuiu consideravelmente. Já não se ouvia mais a palavra "assistite", no entanto, ele parecia triste e cabisbaixo. Em um determinado momento disse para ele que também me sentia triste ao vê-lo assim. Tal intervenção teve um efeito importante. João, gradativamente, recuperou o seu modo animado de ver a vida, passou a sair mais do seu quarto e, assim, aumentar o seu ânimo, seja nos atendimentos, seja também no convívio com os outros.
Ao se utilizar a clínica como referência, nota-se que o artifício da topologia vem, justamente, ao encontro do que Lacan propõe como testemunha ou secretário do alienado. A noção de topologia ou matematização do real nos permite teorizar certos fenômenos clínicos. Ora, na situação clínica acima descrita, o analista que conduz tratamento de psicóticos sustentou certos significantes, na transferência, conforme a indicação clínica do Seminário - As Psicoses. Tais significantes foram capazes de dar contorno ao real. Ao longo desse tratamento, percebeu-se que o paciente passou por um período de ódio e tristeza5, conforme foi ilustrado no caso acima. O que está em jogo? Um manejo equivocado? Ou, então, uma indicação clínica importante acerca deste momento do tratamento, que pode ser entendido como um momento de separação, inerente ao próprio processo analítico?
Lacan inicia o Seminário - Mais, ainda, com neologismos do tipo: issopira, issouspira. O real, o inconsciente, pira, suspira. A topologia do real inclui em seu modelo aquilo que Lacan denominou como amódio, ou seja, uma formalização da experiência analítica em que amor e ódio são componentes esperados no percurso de uma análise. A noção topológica do real nos serve como referência teórica para sustentarmos a clínica, o manejo da transferência do secretário do alienado. Trata-se de uma aposta na insistência da trajetória clínica. Afinal, sabe-se que ao longo das análises os apelos de nossos analisantes se tornam cada vez mais primitivos. O analista pouco experiente pode comover-se com estes apelos e cair nas armadilhas da transferência.
Para finalizar, vale apontar para o fato de que a teorização do real em termos de topologia não é exclusividade de uma certa estrutura clínica. Tal ponto é trabalhado por Lacan no Seminário - Mais, Ainda:
Há relação de ser que não se pode saber. É dele, então, em meu ensino, que interrogo a estrutura, no que esse saber - acabei de dizer isto - impossível é, por isso, proibido. É aqui que jogo com o equívoco - esse saber impossível é censurado, proibido, mas não o é se vocês escreverem conveniente o inter-dito, ele é dito entre palavras, entre linhas. Trata-se de denunciar a que sorte de real ele nos permite ter acesso. (Lacan, 1975/1985, p. 162)
Coloca-se ênfase na questão do lugar da estrutura. A topologia está aí, está dada, articulada com a noção de real. Quando Lacan interroga o lugar da estrutura e articula esta questão com qual sorte de real se permite ter acesso, mantém coerência com o que trabalhou no Seminário - As Psicoses. Neste último, ele denuncia a diferença existente entre neurose e psicose, ao afirmar que a definição de uma estrutura clínica se dá, também, pelo modo como o sujeito articula a sua posição diante do jogo dos significantes e determina, também, a particularidade do manejo da transferência para cada estrutura clínica. A estrutura clínica indica como os registros do real, simbólico e imaginário se articulam. Assim, podemos afirmar que a concepção topológica de real oferecida no Seminário - Mais, Ainda é universal, mas o seu modo de acesso está, sim, determinado pelas particularidades de cada estrutura clínica que navalhou o corpo e suas decorrentes concepções de manejo da transferência, trabalhadas desde o início do ensino de Lacan.

Referências
Hermann, M. C. (2001, abril). A clínica do acompanhamento terapêutico. Revista Insigh: Psicoterapia e Psicanálise, 11(116).        [ Links ]
Lacan, J. (1985). O Seminário. Livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-1956)        [ Links ]
Lacan, J. (1985). O Seminário. Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1975)        [ Links ]
Lacan, J. (1993). Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1974)        [ Links ]
Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-1958)        [ Links ]
Roudinesco, E., & Plont, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]


Recebido em 09.06.2004
Aceito em 06.08.2004



1 Doutorando em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, psicanalista, acompanhante terapêutico, Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP e professor de Teorias da Personalidade da Faculdade de Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo. Endereço eletrônico: mauhermann@uol.com.br
2 As breves definições apresentadas foram extraídas do Dicionário de Psicanálise elaborado por Elisabeth Roudinesco e Michel Plont (1998).
3 É válido esclarecer que a noção de topologia desenvolvida por Jacques Lacan se deu anteriormente à publicação do Seminário 20, tal como se apresenta no texto"De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" (Lacan, 1957- 1958/1998). Em nota de rodapé, acrescida em 1966, Lacan apresenta o esquema L e o esquema R conforme o modelo da banda de Moebius. Nesta referência, há considerações sobre o recurso da topologia, mais precisamente acerca da idéia de que nada pode ser mensurável e, portanto, retido na estrutura e que a própria estrutura se reduz, assim como o real, à noção de corte.
4 Este caso já foi apresentado em outro artigo, cujo título é "A Clínica do Acomp anhamento Terapêutico" (Herrmann, 2001).
5 Lacan trabalha a idéia da tristeza em Televisão (Lacan, 1974/1993).

 

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