quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Contratransferencia

Contratransferência em psicoterapia e psiquiatria hoje*

Contratransferencia en psicoterapia y psiquiatría hoy


Jacó ZaslavskyI; Manuel J. Pires dos SantosII
IPsiquiatra, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Psicanalista, Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA) e International Psychoanalytic Association (IPA). Professor e supervisor colaborador, Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Faculdade de Medicina, UFRGS, e Centro de Estudos Luís Guedes, Porto Alegre, RS. Editor, Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. Mestre em Psiquiatria, Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas, UFRGS, Porto Alegre, RS
IIPsiquiatra, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e ABP. Psicanalista, SPPA e IPA. Professor e supervisor colaborador, Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Faculdade de Medicina, UFRGS, e Centro de Estudos Luís Guedes, Porto Alegre, RS. Mestre em Psiquiatria, Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas, UFRGS, Porto Alegre, RS

Correspondência



RESUMO
Os autores procuram demonstrar que, embora ainda existam diferenças entre as diversas escolas teóricas da psicanálise, uma estreita área de convergência emergiu relativa à utilidade da contratransferência como elemento técnico para compreender o paciente.
A contratransferência está incluída na técnica psicanalítica, seja com a denominação original (contratransferência propriamente dita), seja em algum conceito correlato que a inclui como identificação projetiva, campo analítico, role-responsiveness, enactment (encenação), intersubjetividade e terceiro analítico, personagem e histórias possíveis, etc.
Tornou-se um conceito a partir do qual outros conceitos se constroem. Seu significado não se prende apenas à técnica, no entanto. A teoria psicanalítica muda a partir dele, tornando-se uma teoria da dupla, ou do vínculo, isto é, dos fenômenos que ocorrem no par analítico, e não mais apenas no paciente. Há, nesse sentido, uma mudança do próprio paradigma, na medida em que os fatos agora se referem não mais a um indivíduo, mas a uma interação entre dois indivíduos, só sendo compreendida enquanto produto daqueles dois. O que era uma psicologia de um torna-se uma psicologia do vínculo que une dois.
É enfatizado como este elemento da técnica pode ser útil em psiquiatria, psicoterapia e psicanálise. A utilização da medicação, sua aceitação ou não e a aderência ao tratamento podem ser compreendidas de forma mais completa se o psiquiatra usar de seus sentimentos e buscar entender o vínculo que se estabeleceu entre ele e seu paciente, seja ele psicótico, borderline ou neurótico.
Os autores concluem que a contratransferência não se refere apenas aos sentimentos do terapeuta na sessão, mas significa a utilização, de forma ampla, da subjetividade do próprio analista/terapeuta/clínico para a compreensão mais ampla e profunda do seu paciente, de um modo mais completo, por abarcar não somente fenômenos visíveis à superfície, mas, principalmente, por incluir sentimentos e significados que jazem no âmago inconsciente de cada indivíduo, ocultos, obscuros, mas determinantes e definidores de seu comportamento.

Descritores: Contratransferência, identificação projetiva, técnica psicanalítica, psicoterapia.

RESUMEN
Los autores buscan demostrar que aunque todavía haya diferencias entre las diversas escuelas teóricas del psicoanálisis, una estrecha área de convergencia ha emergido, relativa a la utilidad de la contratransferencia como elemento técnico para comprender al paciente.
La contratransferencia está incluida en la técnica psicoanalítica, sea con la denominación original (contratransferencia propiamente dicha), sea en algún concepto correlato que la incluye como identificación proyectiva, campo analítico, role-responsiveness, enactment, intersubjetividad y tercero analítico, personaje e historias posibles, etc.
Se hizo un concepto a partir del que otros conceptos se construyen. Sin embargo, su significado no se agarra solamente a la técnica. La teoría psicoanalítica cambia a partir de él, haciéndose una teoría de la dupla, o del vínculo, eso es, de los fenómenos que ocurren en el par analítico y no solo en el paciente. Hay, en ese sentido, un cambio del paradigma mismo, en la medida en que los hechos ahora se refieren no más a un individuo, pero a una interacción entre dos individuos, solo siendo comprendida en tanto que productos de aquellos dos. Lo que era una psicología de uno, se hace una psicología del vínculo que une a dos.
Se enfatiza como este elemento de la técnica puede ser útil en psiquiatría, psicoterapia y psicoanálisis. La utilización de las medicinas, su aceptación o no, la adhesión al tratamiento, pueden comprenderse de forma más completa si el psiquiatra usa de sus sentimientos y busca entender el vínculo que se estableció entre él y su paciente, sea él psicótico, limítrofe o neurótico.
Concluyen que la contratransferencia no se refiere sólo a los sentimientos del terapeuta en la sesión, pero significa la utilización, en forma amplia, de la subjetividad del propio analista/terapeuta/clínico para la comprensión más amplia y profunda de su paciente, de un modo más completo, por abarcar no sólo fenómenos visibles a la superficie, pero, principalmente, por incluir sentimientos y significados que yacen en el cerne del inconciente de cada individuo, oculto, oscuro, pero determinante y definidor de su comportamiento.

Palabras clave: Contratransferencia, identificación proyectiva, técnica psicoanalítica, psicoterapia.



INTRODUÇÃO
Uma característica inegável da psicanálise contemporânea é a preocupação com seu aspecto relacional ou vincular, consubstanciada pelo seu interesse pelo par analítico interagindo. O encontro analítico passou a ser observado e estudado como uma relação que produz um impacto emocional mútuo, no qual ocorrem trocas de informações, ou seja, comunicações, em nível verbal e não-verbal, intencionais ou não. Refletir sobre a transferência contemporaneamente significa preocupar-se com o que é transmitido sobre o funcionamento mental do paciente e, eventualmente, do analista, isto é, de sua contratransferência, através do que ocorre na relação paciente-analista, no nível consciente, mas, principalmente, inconsciente1. O interesse pela compreensão, utilização e abordagem da contratransferência em psicanálise, psicoterapia e psiquiatria tem sido objeto de nosso interesse nos últimos anos1-7.
A contratransferência permite que o analista escute, através de seus sentimentos, não só o que o paciente diz, mas, mais ainda, o que ele não diz, por ignorá-lo no plano do consciente. Cruz Roche8 reafirma esta evolução do objeto psicanalítico dizendo que "o observador (analista) é agora um participante" (p. 20). Como destacou Alvarez9, os aspectos inconscientes do paciente poderiam não estar somente em seu inconsciente reprimido: "essas partes ou sentimentos ausentes poderiam, algumas vezes, estar bem mais longe, nos sentimentos de outra pessoa" (p. 12).
A contratransferência "era a Cinderela da técnica psicanalítica, e suas outras qualidades somente puderam ser vistas após sua transformação em princesa"10 (p. 96). Ela está incluída na técnica psicanalítica, seja com a denominação original (contratransferência propriamente dita), seja em algum conceito correlato que a inclui como identificação projetiva, campo analítico, role-responsiveness, enactment (encenação), intersubjetividade e terceiro analítico, personagem e histórias possíveis, etc. Tornou-se um conceito a partir do qual outros conceitos se constroem. Seu significado não se prende apenas à técnica. A teoria psicanalítica muda a partir dele, tornando-se uma teoria da dupla, ou do vínculo, isto é, dos fenômenos que ocorrem no par analítico, e não mais apenas no paciente. Há, nesse sentido, uma mudança do próprio paradigma, na medida em que os fatos agora se referem não mais a um indivíduo, mas a uma interação entre dois indivíduos, só sendo compreendidos enquanto produto daqueles dois. O que era uma psicologia de um torna-se uma psicologia do vínculo que une dois.
No centro desta questão, acha-se o conceito kleiniano de identificação projetiva, que serviu de fundamento para a ampliação da noção de contratransferência, a partir, principalmente, das idéias de Bion. A partir dele, diversos autores, em ambos os lados do Atlântico, vêm se ocupando, no campo da observação clínica, do desenvolvimento e aprofundamento da compreensão das relações que se estabelecem entre paciente e analista durante o encontro analítico.

CONTRATRANSFERÊNCIA, PSICOTERAPIA E PSICANÁLISE
Desde o artigo seminal de Paula Heimann11 sobre a contratransferência como uma criação do paciente, isto é, que os sentimentos do analista, na sessão, são determinados em alguma medida por aquele, este conceito impôs-se, de forma gradual, ao arsenal técnico da psicanálise e das psicoterapias dela derivadas.
O enfoque de Racker12,13 para a contratransferência é mais sistemático, global e profundo. Este autor chamou a atenção para as manifestações conscientes e inconscientes e caracterizou a contratransferência indireta e diretaª e a identificação concordante e complementarb do analista, enfatizando seu uso como importante instrumento para a compreensão das relações de objeto do paciente e para a formulação das interpretações.
Numa série de trabalhos, Grinberg14-17 ocupa-se com uma reação específica provocada no analista, quando esse se coloca como receptor passivo da projeção maciça que o paciente faz de seus próprios objetos internos. Este autor identificou um tipo específico de expressão da contratransferência, no qual o analista pode ser levado, inconscientemente, a adotar um papel ativo, em que o paciente tenta colocá-lo através do uso maciço de identificações projetivas. Grinberg denominou-a de contra-identificação projetiva. Esta parece se aproximar qualitativamente da descrição de contratransferência complementar, proposta antes por Racker.
Já em 1961, os Baranger, partindo dos pressupostos de Paula Heimann e Racker sobre a contratransferência, lançam um novo conceito, o de "campo psicanalítico". O campo dinâmico é definido como "uma situação de duas pessoas indefectivelmente ligadas e complementares enquanto está durando a situação e involucradas num mesmo processo dinâmico. Nenhum membro dessa dupla é inteligível dentro da situação sem o outro"18 (p. 129).
Esses autores dizem que "tanto a observação direta como os trabalhos que cada vez mais aprofundam o estudo da contratransferência, os meios inconscientes de comunicação que se desenvolvem na situação analítica e os significados latentes das comunicações verbais implicam um conceito muito mais distinto e amplo da situação analítica, onde o analista, apesar de sua neutralidade, intervém como parte integrante do processo". Salientam que a situação bipessoal terapêutica, com a organização básica do campo, desaparece em função do "encobrimento de situações tri e multipessoais, de clivagens múltiplas em contínuo movimento"18 (p. 130).
Neste contexto, a fantasia básica de uma sessão não é o mero entendimento da fantasia do analisando pelo analista, mas algo que se constitui em uma relação da dupla. Não basta reconhecer a existência desta fantasia do par; devemos entender melhor sua natureza. Isto implica numa mudança de enfoque. Em primeiro lugar, não é suficiente ter um enfoque teórico adequado e estar livre de bloqueios intelectuais. Em segundo, trata-se de um contato profundo com uma pessoa de estrutura distinta. A estrutura de uma dupla se constitui pelo interjogo de identificações projetivas e introjetivas, com seu corolário de contra-identificações. A situação analítica deve ser administrada a fim de limitar o fenômeno da contra-identificação projetiva, para que o processo não fracasse.
Alguns anos mais tarde, Baranger19, ao abordar o que se passa na mente do analista desde a escuta até a interpretação, enfatiza que a escolha do momento de interpretar (ponto de urgência) deve levar em consideração o que está se passando dentro do "campo intersubjetivo", que engloba ambos os participantes. Chama a atenção para o fato de que, algumas vezes, durante o processo, a intersubjetividade do diálogo analítico pode se tornar "invisível e inaudível", formando-se uma espécie de segunda estrutura.
O conceito de "campo" amplia de modo notável aquele da relação paciente-analista postulado por Freud e, posteriormente, por Melanie Klein, pois é extensivo a toda a situação analítica, conseqüentemente ao setting e à técnica, possibilitando uma visão mais ampla. As idéias de Baranger e Baranger18 sobre a caracterização da situação analítica como "campo bipessoal" são bastante atuais, com muitos pontos de contato significativos com outros analistas da atualidade.
Autores norte-americanos, como Ogden20-23, e europeus, como Ferro24-30, descrevem fenômenos semelhantes, com nomenclaturas variadas, quando levam em conta os fenômenos do campo analítico. O que parecem ter em comum é a idéia de um espaço subjetivo construído pela dupla paciente/analista, onde se desenvolvem os fenômenos inconscientes e para onde são trazidos os fenômenos conscientes, dando características próprias a cada processo analítico.
Delineia-se, assim, a intersubjetividade que emerge da dupla e por ela poderá ser transformada, a partir da capacidade própria de observação do par, pela formação de um terceiro analítico. O matiz individual, entretanto, não é suprimido, pois cada componente dessa dupla possui personalidade distinta e papel diferente a ser exercido e vivenciado, inconscientemente, a partir da recriação do passado e do presente na mente de cada um, mantendo-se o foco sobre as vivências do paciente21,23.
Esse aspecto inter-relacional do campo é enfatizado por Ferro24,28 não como algo que deva ser, necessariamente, sempre interpretado, mas que, invariavelmente, configura meio fértil de onde poderão emergir mudanças e transformações. Tal compreensão parece estar apoiada no que tanto Bion31,32 quanto Ferro25-27 (baseado em Bion) entendem por transformação como objetivo terapêutico do campo, que constitui o espaço no qual poderão ocorrer transformações das fantasias transgeracionais do paciente e do analista, num movimento contínuo de mútuo aprendizado. Seguindo essa direção, Ferro26,29,30 propõe uma escuta baseada na noção de personagem e dos papéis assumidos por cada um na sessão, como meio de narrar todas as histórias possíveis de se desenvolverem no inconsciente do paciente e no campo analítico e como um dos fatores de cura na gênese do sofrimento.
A posição contratransferencial, como salienta Faimberg, não depende apenas da transferência do paciente, apesar deste representar um papel essencial. Esta autora lembra que "o círculo vicioso resultante da ausência psíquica"33 (p. 88) da dupla pode ser melhor compreendido a partir da posição contratransferencial do analista, quando este desenvolve a função de "escuta da escuta" da própria interpretação, conforme já interpretada pelo paciente.
Embora ainda existam diferenças entre as diversas escolas teóricas do pensamento psicanalítico, uma estreita área de convergência emergiu relativa à utilidade da contratransferência como elemento técnico para compreender o paciente, conforme salienta Gabbard34. Há um reconhecimento de que um aspecto inevitável da análise é que o paciente tentará fazer do analista objeto de transferência. Também a contratransferência do analista envolverá uma criação conjunta de contribuições do paciente e do analista, que pode refletir o mundo interno do paciente. Entretanto, diferentes escolas discutem a forma de utilizá-la na prática clínica.
Recentemente, um número significativo de trabalhos35-38 foi publicado, revisando a conceituação da contratransferência na América Latina, na América do Norte e na Europa. Esses trabalhos, mesmo examinando o tema sob diferentes enfoques críticos, corrobora a idéia de Gabbard34 sobre uma área comum de convergência: sua importância clínica. A tendência de maior utilização da contratransferência também vem se verificando na supervisão psicanalítica, conforme pesquisa realizada recentemente5,7.

Numa síntese, no que se refere à situação atual (anos 90 em diante) do estudo da contratransferência, Manfredi39 distingue cinco tendências de abordagens da questão:
- a contratransferência não é mais considerada como uma criação unicamente do paciente, por ignorar a transferência do analista;
- é problemático diferenciar a contratransferência normal da patológica (os dados à disposição do analista não permitem, quase sempre, uma diferenciação);
- para alguns autores40, só o tolerar a contratransferência já seria suficiente, dada, aqui, a dificuldade da diferenciação dos sentimentos envolvidos na dupla;
- deveríamos, mais sábia e humildemente, fazer também a rota inversa: procurarmo-nos no paciente, e não só procurá-lo em nós;
- a questão do confessar ou não, ou confessar/revelar até quando/quanto, os sentimentos contratransferenciais despertados (aqui, há tantos argumentos pró quanto contra).
O que Manfredi enfatiza é que a questão segue em aberto e ocupando um papel central nos debates teórico-clínicos em psicanálise na atualidade.

CONTRATRANSFERÊNCIA E PSIQUIATRIA
Por outro lado, e mais recentemente, vem se estabelecendo um movimento de aproximação entre a psicanálise e a neurociência41. Os estudos das bases cerebrais dos fenômenos inconscientes, realizados por neurocientistas, vêm revelando os fundamentos neurais dos processos psíquicos descritos desde o início da psicanálise. Dentre esses, a relação estabelecida via comunicação inconsciente pré-verbal entre a mãe e o bebê vem demonstrando que a regulação afetiva entre ambos é essencial para o amadurecimento de estruturas cerebrais do bebê42. Tal regulação/comunicação afetiva é armazenada como memória procedural (inconsciente), que segue e mantém vias neurais diferentes daquelas utilizadas pela memória explícita (consciente e verbal), não desenvolvida ainda no bebê. A memória procedural é ausente de conteúdos, envolvida na aquisição de seqüência de ações43.
Stern44 (2000), baseando-se em observações e estudos da interação mãe/bebê, afirma que, nas psicoterapias dinâmicas, são construídos e organizados dois tipos de conhecimento, de representações e de memórias: o explícito (consciente, simbólico) e o (acima citado) procedural (inconsciente, não-simbólico, não-verbal), o qual é denominado de conhecimento relacional implícito. Tal conhecimento, essencial na psicologia do desenvolvimento dos bebês antes da aquisição da linguagem, é a base da interação e da comunicação do bebê com a mãe. "Uma vasta lista de conhecimentos implícitos a respeito das muitas maneiras de estar com os outros", diz Stern, "continua ao longo da vida, inclusive muitas das maneiras de estar com o terapeuta, que chamamos de transferência" (p. 199, grifo nosso).
Tais conclusões, aqui apenas esboçadas, confirmam o que a teoria psicanalítica (a partir de Melanie Klein e Bion) vem afirmando desde as décadas de 40 e 50 sobre a comunicação pré-verbal, inconsciente e primitiva entre a criança e sua mãe. Confirmam o que a técnica psicanalítica pós-freudiana afirma sobre a forma de melhor compreender a transferência: "Muito da nossa compreensão da transferência surge por intermédio da nossa compreensão de como nossos pacientes agem sobre nós, para que sintamos coisas pelos mais variados motivos (...), como atuam inconscientemente conosco na transferência, tentando fazer com que atuemos com eles. (...) Se trabalhamos apenas com a parte que é verbalizada, nós não levamos realmente em conta as relações objetais que estão sendo atuadas na transferência, por exemplo, a relação entre a mãe não-compreensiva e o bebê que se sente incapaz de ser compreendido, e é isso que forma a base de sua personalidade"45 (p. 164, grifo nosso). O que Joseph, uma analista kleiniana, está dizendo é que o adulto retém na (para a neurociência) memória procedural a relação de objeto primária, e sua manifestação só é apreensível pelo analista através da ação na transferência, e não através da fala. O analista, pelo seu lado, só pode captar tal transferência pela sua contratransferência, isto é, pelo que é levado a sentir como ação do paciente sobre ele. Ou seja, não há palavras nessa comunicação, pois tratam-se de vivências primitivas pré-verbais. Apenas ao tornar consciente - portanto, pensar - o que sentiu (isto é, captar pelo pensamento, passando, portanto, à memória explícita, verbal), pode então o analista interpretar ao paciente o que está se passando entre os dois.
Assim, temos hoje não apenas o estudo psicanalítico da comunicação inconsciente feita pelo paciente ao analista (o fenômeno transferência/contratransferência), tendo por modelo básico a repetição em ato das relações primitivas do bebê, como também um modelo novo, que se acrescenta àquele anterior, baseado nos estudos da neurociência (os tipos de memória - e de conhecimento - que surgem dessa interação inicial, não-verbal, e que se mantêm por toda a vida).
A própria psiquiatria, amplo senso, não pode mais prescindir do conceito: o paciente psiquiátrico é mais compreensível em suas reações e interações com seu médico e com a equipe que o atende a partir das reações que desperta em uns e outros. A utilização da medicação, sua aceitação ou não e a aderência ao tratamento podem ser compreendidas de forma mais completa se o psiquiatra usar de seus sentimentos e buscar entender o vínculo que se estabeleceu entre ele e seu paciente, seja ele psicótico, borderline ou neurótico. Deste modo, contratransferência não se refere apenas aos sentimentos do analista na sessão, mas significa a utilização, de forma ampla, da subjetividade do próprio analista/terapeuta/clínico para a compreensão mais profunda do seu paciente. De um modo mais completo, abarca não somente fenômenos visíveis à superfície, mas, principalmente, inclui sentimentos e significados inconscientes de cada indivíduo, ocultos, obscuros, mas determinantes e definidores de seu comportamento.
Dessa forma, o psiquiatra contemporâneo não pode ignorar a importância da utilização e da consulta aos próprios sentimentos em relação ao paciente. Alguns aspectos do paciente só poderão ser compreendidos a partir da consulta aos sentimentos mobilizados no psiquiatra. O mal-estar sentido por esse, ao atender um deprimido que pouco fala, pode ser uma forma (verbalmente) muda de expressão do medo que o paciente tem de não resistir ao sofrimento depressivo e tentar suicidar-se. Ele comunica esse medo ao seu terapeuta de forma inconsciente, não-verbal. Também de forma inconsciente, esse medo é captado e sentido como mal-estar pelo psiquiatra, que o compreenderá não como um sentimento apenas seu, mas algo construído pela interação de ambos para expressar uma emoção inconsciente do paciente.

MATERIAL CLÍNICO E DISCUSSÃO
Um interessante exemplo extraído de uma experiência de supervisão6 poderá ilustrar a utilidade da contratransferência no andamento de uma psicoterapia analiticamente orientada. Um jovem e dedicado psicoterapeuta, que residia numa cidade do interior do estado (RS) e se deslocava semanalmente para Porto Alegre a fim de fazer sua especialização em Psicoterapia de Orientação Analítica e atender alguns de seus pacientes, apresentou o seguinte material clínico numa supervisão.
A paciente em questão encontrava-se em psicoterapia há 1 ano e meio, com duas sessões semanais com duração de 45 minutos. Havia procurado tratamento por se sentir triste ao ver sua vida paralisada. Concluíra seu curso superior, porém, sentia muita dificuldade em iniciar sua carreira profissional e assumir responsabilidades. Passava boa parte do tempo "ensaiando" como poderia trabalhar ou conseguir fazer alguma atividade. Uma dificuldade semelhante se verificava em relacionamentos amorosos, que passaram a ser evitados após algumas iniciativas mal-sucedidas, devido à sua conduta excessivamente controladora e agressiva. Havia um forte apego à mãe e uma hostilidade defensiva em relação ao pai, com quem evitava maior aproximação.
O psicoterapeuta vinha mostrando a forte ligação que a paciente tinha com os pais, especialmente com a mãe, e seu medo de crescer e separar-se dos mesmos. Interpretava os desejos transferenciais da paciente de obter respostas rápidas e diretas como forma de obter gratificação infantil e, com isso, produzir pouca mudança no tratamento, evitando a separação do psicoterapeuta, que um dia iria ocorrer.
Após 1 ano e meio, a paciente havia alcançado uma melhora considerável, conseguindo seu primeiro trabalho, o qual levava muito a sério e com dedicação. Paralelamente, iniciou um relacionamento com um namorado, com quem passou a ter uma convivência intensa e que, invariavelmente, fazia com que suas características controladoras e agressivas aflorassem, sendo freqüentemente objeto de exame na psicoterapia.
O psicoterapeuta, por sua vez, havia manifestado na supervisão certo cansaço com os deslocamentos semanais (viagens à capital) para dar continuidade à sua formação, que se encontrava em fase bastante adiantada, próxima do final. Manifestava espontaneamente sua gratidão com a supervisão e o curso, que haviam influenciado seu crescimento e aprendizado. No entanto, lamentava-se em relação à perda temporária de sua qualidade de vida devido aos constantes deslocamentos, às horas dedicadas ao estudo e às preocupações com seu futuro profissional. Simultaneamente, passou a ficar preocupado com a proximidade do término de sua formação, com o retorno em definitivo à sua cidade de origem e com a interrupção ou encerramento da psicoterapia que realizava com a paciente na capital, já que sentia que não conseguiriam atingir na plenitude os objetivos propostos. O tema fora abordado na supervisão, e havíamos chegado a um consenso de que ele seguisse o trabalho psicoterápico e ficasse atento para os constantes acionamentos que a paciente fazia no sentido de acelerar o processo e de obter respostas e resultados rápidos, como já ocorrera no passado. Combinamos que talvez o momento mais indicado para comunicar à paciente sobre a interrupção e suas razões para tal procedimento seria mais próximo do final do ano, portanto, uns 2 ou 3 meses antes, a fim de que pudessem examinar o tema com a devida antecedência.
A paciente, por sua vez, manifestava ansiedade em relação às consideráveis mudanças que havia feito em sua vida, conseguindo trabalhar e namorar e passando a referir fortes preocupações com sua ainda reduzida receita para se manter. Além disso, sua mãe, com quem mantinha uma conta bancária conjunta, por vezes exagerava nos gastos, comprometendo parte dos seus ganhos.
Numa determinada sessão, angustiada com a questão financeira, a paciente propôs a redução da freqüência das sessões, que o terapeuta não hesitou em aceitar. Na supervisão, o terapeuta de imediato reconheceu que algo havia acontecido naquela sessão que o deixara sentindo um mal-estar (frustração) e, logo, relacionou com o fato de ter aceitado a redução das sessões sem que tivesse sentido que o tema havia sido suficientemente examinado, como costumeiramente fazia.
A discussão do caso e da conduta adotada nos fez pensar que a paciente acionara-o a tomar decisões precipitadas (um enactment, conforme descrito por Jacobs46), como já havia tentado fazer no passado, mas, neste momento, encontrara um respaldo no terapeuta, amparado no seu cansaço pelo deslocamento, na proximidade do término do curso e em certo grau de insatisfação com sua qualidade de vida, que contrastava momentaneamente com a da paciente. Vimos que se sentira pressionado a agir e dar algo imediato à paciente. Lembramos, como hipótese a ser investigada, de que a angústia da paciente com sua "reduzida receita" pudesse representar a comunicação de sua percepção inconsciente sobre sua incerteza quanto às condições pessoais de prosseguir sozinha no caminho iniciado por ambos, após a futura interrupção. Por outro lado, também parece ter ocorrido, por meio do uso de identificação projetiva da paciente, uma contra-identificação projetiva do psicoterapeuta (nos termos de Grinberg) com as angústias de separação daquela. Ou, de acordo com Racker, poderíamos dizer que ocorreu, na contratransferência, uma identificação complementar com partes do self da paciente (angústia de separação do objeto). O fato de a redução das sessões ter partido da paciente parece ter trazido um alívio ao psicoterapeuta em ter que comunicá-la sobre a decisão de retornar para sua cidade de origem após a conclusão do curso e o conseqüente término do tratamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não por casualidade, alguns autores10,33,39 ao discutirem esse tema, referem-se a ele como o problema da contratransferência; isto é, ao lado do reconhecimento do avanço imensurável na técnica e na teoria psicanalíticas, a contratransferência segue com questões sem resposta, sendo um campo instigante, embora difícil, de estudo. Manfredi, ao delinear as tendências atuais de debate e estudo da contratransferência, não se refere a autores como Thomas Ogden ou Antonino Ferro, autores atuais que contribuem, de forma bastante criativa e consistente, ao estudo da técnica que refere-se a esse tema. Por outro lado, Manfredi ateve-se principalmente, em seus comentários, às questões técnicas, sem referir-se às teóricas, como as (já citadas acima) contribuições atuais dos estudos empíricos da relação mãe/bebê e da neurociência. Não aborda também as questões relativas às outras denominações da contratransferência nas diversas escolas (como, por exemplo, o enactment e a abordagem da perspectiva da intersubjetividade, ambas da psicologia do ego americana) e as implicações de tais diferenças. Como se vê, há ainda muito a pesquisar, discutir e aprender sobre a contratransferência.

REFERÊNCIAS
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* Versão modificada do trabalho apresentado na mesa-redonda "Psicoterapia e Psicanálise em Psiquiatria", no XXII Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado em outubro de 2004 na cidade de Salvador, BA.
a Racker12 (p. 109) define a contratransferência indireta como a transferência do analista em relação à "totalidade" de objetos que, de modo indireto, são transferidos ao paciente (por exemplo, familiares, amigos, grupos). E a contratransferência direta se refere às respostas do analista em relação diretamente ao paciente (p. 113).
b Para Racker13 (p. 126-27), a contratransferência direta se divide em: identificação concordante, que se baseia na introjeção e projeção, na ressonância do externo no interno, ou seja, quando o ego do analista se identifica com o ego do paciente; e identificação complementar, em que o analista se identifica com uma parte não desejada do self do paciente ou com o superego.



Correspondência
Maria da Graça Motta
Rua Florêncio Ygartua, 271/605
90430-010 - Porto Alegre - RS
E-mail: mgmotta@terra.com.br

Recebido em 03/10/2005
Revisado em 26/10/2005
Aprovado em 01/11/2005

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