quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O uso da interpretação na clínica do amadurecimento

O uso da interpretação
na clínica do amadurecimento*
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 588-601, dezembro 2008
Elsa Oliveira Dias
Pensando a prática clínica, em especial, a interpretação, à luz
da teoria do amadurecimento, Winnicott propõe 1) que o uso da
interpretação, no sentido tradicional, isto é, referida aos conteúdos
reprimidos, fique limitado aos casos em que já há o estabelecimento
do eu unitário e de uma realidade psíquica pessoal e 2) uma
redescrição da função, do sentido e do uso da interpretação como
parte do procedimento terapêutico, assinalando os riscos que lhe são
inerentes.
Palavras-chave: Winnicott, interpretação, diagnóstico, psicose
* Este estudo foi inicialmente preparado para uma palestra no 7º Encontro do Curso de
Especialização em Psicoterapia Psicanalítica da USP, em outubro de 2003, e foi substancialmente
alterado para esta publicação.
589
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 588-601, dezembro 2008
Introdução
Não apenas na psicanálise, mas na história do pensamento e das culturas,
a interpretação destina-se à revelação de um sentido latente ou oculto,
seja num texto, numa figuração ou no próprio comportamento humano.
Como a psicanálise freudiana é concebida como uma ciência de investigação
do inconsciente, e entende o sintoma como manifestação do conflito
inconsciente entre o desejo e a censura, nada mais natural e pertinente,
portanto, do que o fato de a interpretação estar no centro do trabalho psicanalítico,
como o método, por excelência, de trazer à luz “as várias modalidades
do conflito defensivo”, tendo em vista, em última análise, “o
desejo que se formula em qualquer produção do inconsciente” (Laplanche
e Pontalis, 1967, p. 318).
O que se espera do tratamento analítico é que a interpretação feita pelo
analista do sentido latente dos conflitos, atualizado na relação transferencial,
muitas vezes na forma da resistência, acabe por desmanchar as soluções
de compromisso que constituem os distúrbios psíquicos. Embora,
naturalmente, a freqüência e o conteúdo das interpretações variem de caso
para caso, pode-se dizer, como Laplanche e Pontalis o fazem no
Vocabulaire, que a interpretação caracteriza a própria tarefa analítica, e isso
vale para qualquer tipo de distúrbio com que o analista se defronte.
Os pré-requisitos para que se proceda à tarefa interpretativa, no campo
da psicanálise, são, portanto, a existência do inconsciente reprimido, dos
conflitos inconscientes, do desejo recalcado. Ora, enquanto para Freud
essas são formações estruturais, constitutivas do psiquismo humano, independentemente
de sua idade, trata-se, para Winnicott, de conquistas do
amadurecimento, que não podem ser presumidas no começo da vida – período
caracterizado pela extrema imaturidade do bebê e por sua situação de
dependência absoluta. É preciso que muitas conquistas fundamentais, no
sentido literal de serem os fundamentos, os alicerces da personalidade, sejam
realizadas, nos estágios iniciais, para que algo como um inconsciente
reprimido, conflitos de caráter instintual e a capacidade de desejar e de tolerar
frustrações possam fazer parte da vida psíquica do indivíduo.
ARTIGOS
R E V I S T A
L A T I N O A M E R I C A N A
DE P S I C O P A TO L O G I A
F U N D A M E N T A L
590
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 588-601, dezembro 2008
Pressupostos teóricos para o uso ou não-uso da interpretação na clínica
winnicottiana do amadurecimento
Para explicitar a diferença entre o pensamento de Winnicott e o da psicanálise
tradicional, juntamente com as implicações clínicas dessas diferenças, incluída
aí a questão do uso da interpretação, penso ser útil recorrer a dois pares de
distinção propostos por Winnicott:
1. À luz do processo de amadurecimento, é preciso distinguir entre o que
é profundo – referido ao intrapsíquico, quando já há um “dentro”, uma vida interna
pessoal, povoada de fantasias inconscientes e conteúdos reprimidos – e o
que é primitivo. “Um lactente necessita de um certo grau de amadurecimento para
tornar-se gradativamente capaz de ser profundo” (1957, p. 103). O que se passa
com um bebê, no início da vida, pertence ao âmbito do primitivo e não do profundo.
1 O termo “primitivo” não significa apenas mais primitivo, no tempo, do
que o profundo, conservando as mesmas características deste. Não: quando examinamos
o primitivo, não estamos no domínio do intrapsíquico – da realidade
psíquica pessoal – que se formará a seu tempo, mas no âmbito do interpessoal;
a rigor, nem mesmo do interpessoal, pois, no início, deve-se falar de inter-humano,
uma vez que nos estágios de dependência absoluta ainda não há propriamente
duas pessoas; o que há é o dois-em-um da unidade mãe/bebê. Nesse período,
as experiências do bebê, sobretudo no que se refere ao período de dependência
absoluta, são de natureza pré-verbal, pré-representacional e pré-simbólica. Isto não
significa nenhum déficit, devendo-se apenas à extrema imaturidade do pequeno
indivíduo.2
Para preservar a natureza específica do que é primitivo – e isso é essencial
tanto na teoria como nas implicações clínicas, no caso, no uso da interpretação
–, não se pode descrevê-lo com as mesmas categorias que regem a descrição dos
estágios mais adiantados, e que foram originalmente utilizadas, na psicanálise tradicional,
para o estudo das neuroses –, ou seja, para as dificuldades daqueles indivíduos
que, tendo já alcançado a integração numa identidade, possuem uma
1. Ou seja, talvez se possa dizer que, no início, o bebê ainda é raso, sem “profundidade”, não
tem passado, nem depósito; ainda não armazenou e muito menos recalcou experiências.
2. Tudo o que ocorre nesse período é esquecido, embora não perdido; isso, contudo, não implica
o inconsciente reprimido, pois ainda não há uma defesa tão sofisticada como uma repressão;
o que há é o inconsciente originário, que é a fonte de riqueza pessoal, a referência secreta
que jamais permite que o indivíduo seja inteiramente objetificado.
591
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 588-601, dezembro 2008
ARTIGOS
realidade psíquica interna, repleta de fantasias e conflitos. Tampouco se pode
cuidar clinicamente das dificuldades e dos distúrbios de caráter “primitivo” com
as mesmas técnicas que decorreram do estudo das neuroses, ou seja, supondo
que o indivíduo que ali está já tem a maturidade que é requerida para esse tipo
de experiência e consciência de si.
Nesse ponto – isto é, na necessidade de descrever e tratar o primitivo com
categorias que lhe são próprias – reside uma das críticas de Winnicott tanto a
Freud como a Melanie Klein, sobretudo no que diz respeito às respectivas teorias
desses autores sobre as psicoses. Ao afirmar, como o fez várias vezes ao longo
de sua obra, que uma boa psicanálise nem sempre se faz de boas
interpretações, Winnicott está reiterando a posição de que as dificuldades referentes
aos períodos primitivos não podem ser nem descritas nem tratadas com os mesmos
recursos terapêuticos concebidos para o tratamento desses distúrbios. Tudo
isso nos leva à importância atribuída por Winnicott ao diagnóstico: sendo essencial
a distinção entre primitivo e profundo, também a distinção entre neurose e psicose
é crucial para orientar o analista sobre o modo como ele irá conduzir o
tratamento.
2. A segunda distinção é entre psique e mente e ela constitui, a meu ver, uma
das mais férteis contribuições de Winnicott ao estudo da natureza humana em
geral. No indivíduo total, existem o soma e a psique. A psique é tudo o que não
é soma. Gradualmente, pela tendência inata à integração, psique e soma tendem
a reunir-se numa unidade, de modo a constituir a existência psicossomática. Onde
entra aí a mente? A mente é um aspecto da psique; mais precisamente, é um modo
de funcionamento do psicossoma, especializado para as funções intelectuais. Seu
ponto de origem, na saúde, se localiza na passagem da dependência absoluta para
a dependência relativa, quando a mãe inicia a fase de desadaptação. Isso significa
que existe todo um período primitivo da vida de um bebê em que ainda não
há participação das funções mentais. É a psique que trabalha, elaborando imaginativamente
todas as experiências que passam pelo corpo e tudo passa pelo corpo
nesse período primitivo, pois o amor materno é traduzido em cuidados físicos:
o bebê sente-se bem ou mal sustentado; sente que pesa, ou não, na mãe; sente a
aflição, a ansiedade, a tensão ou a calma desta; sente, enfim, no conjunto dos
cuidados, se ele cabe, com todas as exigências próprias de ser, no ambiente, se
ele pode, ou não, entregar-se aos cuidados e a ser. Tudo é registrado, mas o que
corre bem não chega ser notado. Quando tudo corre bem, ele não sabe que sua
continuidade de ser está sendo protegida, mas, se as coisas não vão bem, ele reage
à falha ambiental e isso interrompe a continuidade de ser. Todas essas experiências,
que estão sendo incorporadas como aspectos do si-mesmo, não são
passíveis de representação, e não podem, portanto, ser resgatadas mais tarde ao
R E V I S T A
L A T I N O A M E R I C A N A
DE P S I C O P A TO L O G I A
F U N D A M E N T A L
592
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 588-601, dezembro 2008
modo de uma recordação recalcada.3 Quando a mente começa a trabalhar, o bebê
já “aprendeu” muita coisa pela repetição das experiências; existe, portanto, um
“saber primitivo” que não é mental, mas constituído pela familiaridade com o
ambiente. É essencial, para a saúde psíquica do pequeno indivíduo, que as funções
mentais não sejam ativadas precocemente, o que chega a acontecer se o
bebê sentir necessidade de prevenir invasões ambientais potenciais. Isso também
é verdadeiro na clínica. Sobretudo quando um paciente se encontra num momento
regressivo, não se deve apelar para o funcionamento mental e é aí que se deve
ter cuidado com a interpretação.
A interpretação na clínica winnicottiana do amadurecimento
Não se pode dizer, da clínica winnicottiana, que a interpretação seja a característica
central da tarefa analítica. Tanto o papel do analista quanto o uso da
interpretação variam segundo a idade emocional do paciente. À luz de sua teoria
dos distúrbios psíquicos, Winnicott tece críticas ao uso da interpretação no sentido
tradicional e limita o seu uso a pacientes que já se estabeleceram como pessoas
unitárias. Mas o principal do que Winnicott faz é a redescrição do sentido
da interpretação e do seu uso no tratamento psicanalítico.
Grosso modo, pode-se dizer que a interpretação, no sentido tradicional, continua
a ser um recurso, não só apropriado como necessário, para aqueles indivíduos
cuja personalidade foi bem estruturada no início da vida. Tendo chegado a
uma realidade psíquica pessoal, povoada de fantasias e conflitos inconscientes,
além de conteúdos reprimidos que insistem em ressurgir – ou seja, que alcançaram
o “profundo” –, esses indivíduos sofrem devido às ansiedades que surgem
quando a instintualidade é despertada em meio às relações interpessoais. Isto se
aplica sobretudo aos casos de neurose. Aplica-se também às depressões reativas,
ou seja, às depressões que não vêm acompanhadas de complicações derivadas de
estágios mais primitivos. Nesse tipo de depressão, a tarefa terapêutica não difere
muito da análise da neurose, exigindo que o analista interprete a ambivalência,
ajudando o paciente a integrar, como um aspecto de sua natureza essencial,
3. É nesse período, por exemplo, que se constitui e se enraíza, pela experiência repetida da confiabilidade
ambiental, a ilusão de onipotência, que é o fundamento da crença, da capacidade
de acreditar em... Se não for enraizada nesse período, a crença jamais terá fundamentos seguros,
pois, mais tarde, nem mesmo a constatação ou verificação objetiva de fatos fornece o mesmo
tipo de asseguramento, a mesma capacidade de acreditar em...
593
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 588-601, dezembro 2008
ARTIGOS
a destrutividade que é inerente à impulsividade amorosa primitiva. O que difere,
na análise das depressões com relação às neuroses, não é tanto o uso ou não da
interpretação, mas o fato de que, “na transferência, a dinâmica mais poderosa está
no relacionamento a duas pessoas, baseado no que originalmente era o lactente
e a mãe” (1963a, p. 200) Ou seja, enquanto o paciente está tentando integrar a
destrutividade que faz parte da impulsividade instintual, que recém-começa a lhe
pertencer, de nada adianta – ao contrário, antecipa e sobrecarrega – levantar as
questões referentes às relações triangulares, pois o indivíduo deverá elaborar essas
conquistas, inicialmente, na relação dual. Além disso, a diferença da análise da
depressão consiste em que “a parte importante da terapêutica do analista no tratamento
da depressão é a sua sobrevivência” (ibid.), sobretudo quando, em virtude
do amadurecimento ocorrido em análise, idéias destrutivas começam a
dominar o setting analítico.
Contudo, mesmo nesses casos, Winnicott dirá que nada de muito útil pode
ser feito se não obtivermos cooperação inconsciente do paciente. Essa cooperação
só acontece se nosso procedimento básico, em geral silencioso, estiver calcado
na confiabilidade, que é, e deve ser, a principal característica do setting
analítico. Isso significa que uma pessoa razoavelmente estruturada precisa e deseja
ser analisada, desde que algumas coisas, ou princípios fundamentais, lhe sejam
providos e sejam mantidos, sem muito custo para o analista. “A psicanálise
não se resume a interpretar o inconsciente reprimido; é, antes, o fornecimento de
um contexto profissional para a confiança, no qual esse trabalho possa ocorrer”
(1970, p. 89).
Além de alguns aspectos básicos, que mal precisam ser mencionados, sobre
o que é ser confiável, a confiabilidade do analista e do setting terapêutico ganham
contornos diferentes segundo o grau de amadurecimento do paciente. O
paciente neurótico certamente não necessita, para sentir confiança no analista, do
grau estrito de adaptação que é exigido no tratamento das patologias psicóticas,
mas a confiança não será conquistada, ou pode ser perdida se, por exemplo, o
analista fizer interpretações baseadas mais em suas próprias necessidades – a de
ser brilhante, ou esperto, para espantar o sono, ou para defender-se, ou para provar
sua teoria – do que pela necessidade efetiva do paciente.
Ao falar do contexto de confiança necessário para obter cooperação inconsciente,
Winnicott está pensando não apenas no cuidado concreto que o analista
é capaz de oferecer – pontualidade, estar desperto e atento, ser ele mesmo, deixar-
se orientar pela necessidade do paciente etc. – mas também na prevenção de
alguns riscos pertinentes à tarefa interpretativa. Enumero alguns desses riscos:
a) o acima mencionado que consiste em o analista fazer interpretações baseado
mais em suas próprias necessidades do que na necessidade efetiva do paR
E V I S T A
L A T I N O A M E R I C A N A
DE P S I C O P A TO L O G I A
F U N D A M E N T A L
594
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 588-601, dezembro 2008
ciente. É neste ponto que cabe a afirmação de Winnicott (1963b) de que “um
objeto bom não é bom, para o bebê, a menos que seja criado por este”
(p. 165);
b) o de o analista antecipar interpretações, sem a paciência necessária de esperar
pelo sinal ou indício fornecido pelo paciente, indício que valida a comunicação
interpretativa. Essa antecipação não apenas impede que o próprio
paciente chegue criativamente ao entendimento necessário, como foi assinalado
no item anterior, como também dificulta que ele se aproprie de sua crescente
capacidade de comunicar a necessidade, inibindo assim o impulso
criativo. Mães muito treinadas em criar filhos assim como analistas experientes
são especialmente sujeitos a incorrer nesse erro. Diz o autor que, a não ser
quando o paciente está em regressão à dependência, é muito importante que
o analista não dê as respostas exceto se o paciente der indícios;
c) o de o analista pôr-se a interpretar “o material”, a “produzir interpretações”,
perdendo o contato com o paciente. O risco, aqui, é que ele se torne uma
máquina de interpretar e que toda a relação pessoal se perca.4 Para Winnicott,
assim como já para Ferenczi, uma década antes, a análise é sobretudo uma experiência
pessoal de encontro e de comunicação verdadeira, antes de ser uma
busca intelectual pelos significados que subjazem às lacunas inconscientes;
d) o de o analista, empolgado pelo nexo que produziu com o material, ou ansioso
por fazer o paciente compreender algo, se ponha a ensinar. A interpretação
deve ser o mais possível concisa, dando a direção sem fazer todo o caminho
e, sobretudo, evitando explicações:
Minhas interpretações são econômicas, pelo menos assim espero. Uma interpretação
por sessão me satisfaz, se está relacionada com o material produzido
pela cooperação inconsciente do paciente. Digo uma coisa, ou digo uma coisa
em duas ou três partes. Nunca uso frases longas, a menos que esteja muito cansado.
Se estou próximo do ponto de exaustão, ponho-me a ensinar. Ademais, na
minha opinião, uma interpretação que contém a expressão “além disso” é uma
sessão de ensino. (1962b, p. 153)
4. No relato que fez de suas duas análises, a inicial com Fairbairn e a segunda com Winnicott,
Harry Guntrip afirma que, embora Fairbairn tenha escrito que “a interpretação psicanalítica
não é terapêutica nela mesma, mas unicamente na medida em que exprime uma relação pessoal
de compreensão autêntica”, ele mesmo tornava-se, durante as sessões, segundo relato de
Guntrip, um analista protocolar, intelectual, preciso, que interpretava. No entanto, continua
Guntrip (1975), “quando, depois das sessões, discutíamos teoria, ele se soltava; então, ao conversarmos
face a face, eu encontrava um Fairbairn humano” (p. 387).
595
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 588-601, dezembro 2008
ARTIGOS
Quando o problema com que nos defrontamos em nosso trabalho clínico
teve origem nas etapas primitivas da vida, ou seja, quando o paciente é psicótico
ou está elaborando um aspecto psicótico de sua personalidade, de resto sadia,
e, sobretudo, quando ele regride à dependência, o que ele necessita não é de
interpretações, mas de manejo da ambientação clínica, da qual o analista faz parte,
uma vez que tudo o que pode ocorrer de importante, no sentido da cura, está
acontecendo num nível pré-verbal: a construção da crença na confiabilidade ambiental.
Uma interpretação, na linha tradicional, é não apenas desnecessária, como
prejudicial e desaconselhável, sendo prematura e invasiva, em não poucos sentidos:
primeiro, porque ao referir-se, pela interpretação, àquilo que o paciente, em
seu amadurecimento, ainda não chegou – conflitos inconscientes, voracidade,
ambivalência, ameaça de castração etc. –, o analista não só mostra desconhecer
a problemática real do paciente como extrapola a capacidade maturacional deste,
repetindo, provavelmente, o trauma original. Relatando o caso da moça que sonhou
com a tartaruga de casco mole (cf. 1962a), Winnicott diz que seria
perfeitamente correto interpretar a reação da paciente à sua partida para uma
viagem na linha do sadismo oral; no entanto, naquele momento, a paciente estava
se permitindo ser imatura e o que ela mais necessitava era regredir à dependência.
Caso tivesse feito essa interpretação, Winnicott (1962a) teria se
antecipado, de muito, à capacidade emocional da paciente e teria atrasado, senão
impedido, a regressão à dependência, em vias de ocorrer, de modo que teria sido
“um mau analista fazendo uma boa interpretação” (p. 228).5
A interpretação no sentido tradicional é desaconselhável, em segundo lugar,
porque o paciente, cuja inteligência permanece intacta, é impelido a compreender,
a fazer uso das funções mentais, antes de propriamente fazer o que mais necessita:
a experiência. O risco nesses casos é grande, uma vez que, como assinala
Winnicott (1967), a “interpretação fora do amadurecimento do material é doutrinação
e produz submissão” (p. 75).
5. Para facilitar a comunicação com seus pares, Winnicott usa a expressão já consagrada “sadismo
oral”, de cunho kleiniano, para referir-se ao impulso amoroso primitivo, que não é sádico
no sentido de Klein (como se o bebê estivesse impulsionado, pela constituição pulsional, para
a destruição dos conteúdos maternos), mas incompadecido (ruthless), devido à imaturidade que
não lhe permite saber da existência de algo externo a ele, e muito menos dos resultados, no
outro, e até no si-mesmo, de seu impulso excitado.
R E V I S T A
L A T I N O A M E R I C A N A
DE P S I C O P A TO L O G I A
F U N D A M E N T A L
596
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 588-601, dezembro 2008
Redescrição da tarefa interpretativa
Tendo perdido, na proposta winnicottiana, a univocidade de significado, a
interpretação serve a muitas funções, conforme a necessidade, mas pode-se dizer
que, se o analista não é mais o decifrador dos conteúdos inconscientes, mas
aquele cuja presença possibilita uma experiência de contato e de comunicação com
outro ser humano, então o sentido geral da prática interpretativa é a comunicação,
em nível verbal, com outro ser humano; essa comunicação, verbal, para ser
efetiva, está baseada em outra, silenciosa e profunda, a da confiabilidade.
Note-se, ainda, que a interpretação, na linha winnicottiana, não versa, precipuamente,
sobre as fantasias ou conflitos inconscientes, mas sobre o viver e
o não-viver, sobre sentir-se, ou não, vivo, sobre as experiências ou a incapacidade
de fazê-las. Essa distinção – entre os conteúdos do mundo interno e a experiência
ou não-experiência – não pode ser meramente abrangida pela polaridade
inconsciente/consciência, pois, na nova perspectiva aberta por Winnicott, há que
se levar em conta o inconsciente originário e, além disso, as várias dissociações
e cisões.
O primeiro objetivo da tarefa interpretativa, explicitado a seguir, é o mais
geral e abrangente; todos os outros são desdobramentos e variações desse primeiro.
Ao enumerar alguns desses objetivos, não pretendo, de modo algum, esgotar
suas inúmeras variações.
1. A interpretação visa, principalmente, fazer com que o paciente saiba em
que medida o analista está compreendendo o que está sendo comunicado. “Ao
interpretar acredito que o faço principalmente com o intuito de deixar o paciente
conhecer os limites de minha compreensão” (1968, p. 171). Num outro texto
(1989b), o autor se estende mais sobre o objetivo da interpretação:
Na forma mais simples, o analista devolve ao paciente o que este comunicou.
Pode facilmente acontecer de o analista achar isto uma ocupação fútil, uma
vez que, se o paciente comunicou algo, que sentido haverá em dizê-lo de volta,
exceto, naturalmente, pelo intuito de informar ao paciente que o que ele disse foi
ouvido e que o analista está tentando alcançar corretamente o sentido. // Fornecer
uma interpretação de volta dá ao paciente a oportunidade de corrigir os malentendidos.
(p. 164)
Naturalmente, isto só vale para o caso do analista que está disposto a corrigir
a sua interpretação. “Há analistas que aceitam tais correções, mas há também
aqueles que assumem uma posição inexpugnável, tendendo sempre a pensar
em resistência” (ibid.).
2. A interpretação, muitas vezes, faz parte do manejo. Isso pode ser ilustrado
por uma passagem da análise de Guntrip, relatada por ele mesmo, em seu artigo
597
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 588-601, dezembro 2008
ARTIGOS
“Minha experiência de análise com Fairbairn e Winnicott”, de 1975. O relato mostra
que Guntrip parece ter lutado a vida toda com o fato, e suas conseqüências,
de ter tido uma mãe incapaz de se relacionar, o que só ficou claro no decorrer
da análise com Winnicott. Fairbairn havia analisado a questão na linha de más relações
objetais edípicas internalizadas. Num certo momento, a conselho de
Fairbairn, que estava já muito doente, Guntrip foi procurar Winnicott para análise.
Na primeira sessão, Guntrip relatou o trauma primitivo relativo à morte de seu
irmão mais novo, cujas circunstâncias haviam sido completamente esquecidas e
sobre sua mãe, com quem tivera sempre a impressão de estar lutando o tempo
todo para que ela o levasse em conta. Ao final da sessão, Winnicott disse: “Não
tenho nada de especial para dizer ainda, mas, se não disser nada, você pode começar
a sentir que eu não estou aqui” (Guntrip, 1975, p. 401).
3. Há interpretações que visam comunicar, ao paciente, não apenas a compreensão
do analista, mas a disponibilidade deste em dar sustentação à situação
de fragilidade em que o paciente se encontra. Nesses casos, a interpretação, que
também faz parte do manejo, é não só necessária como essencial e urgente. De
novo Guntrip: numa sessão, posterior à citada acima, Guntrip diz ter começado
a sentir-se aflito pelo silêncio que reinava e ficou aliviado quando Winnicott
(1963c) se mexeu e disse:
Você começou a sentir medo de que eu o tivesse abandonado. Sente o silêncio
como um abandono. O lapso não é você esquecendo sua mãe, mas sua mãe
esquecendo você, e, agora, você reviveu isso comigo. Você está encontrando um
trauma ainda mais primitivo, que talvez você nunca recuperasse sem a ajuda do
trauma de Percy, que o repetiu. Você precisa recordar sua mãe abandonando você,
na transferência comigo.
É nessa mesma direção que vai a seguinte afirmação do autor, ao falar da
função de holding do setting analítico:
Ver-se-á que o analista está sustentando o paciente e isto toma muitas vezes
a forma de transmitir em palavras, no momento apropriado, algo que revele
que o analista se dá conta e compreende a profunda ansiedade que o paciente
está experimentando. (p. 216)
4. Através da interpretação, o analista esclarece o paciente sobre seu estado
atual, sobre sua posição no amadurecimento; torna mais clara a tarefa que verdadeiramente
lhe compete, na idade emocional em que se encontra,
desencarregando-o de outras com as quais ele foi impelido a defrontar-se, talvez
desde muito cedo. Isso pode envolver comunicar ao paciente que ele está doente
e precisa de cuidados. O reconhecimento: “Você ainda não está preparado para
isso”, ou “Você é ainda muito inexperiente nesse campo”, ou “Você gostaria de
tomar uma decisão a esse respeito, mas, no momento, qualquer decisão é preR
E V I S T A
L A T I N O A M E R I C A N A
DE P S I C O P A TO L O G I A
F U N D A M E N T A L
598
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 588-601, dezembro 2008
matura, pois você ainda não se conhece o suficiente” é uma comunicação, pelo
analista, de que ele reconhece a idade emocional do paciente – sua força ou fraqueza
de ego – e compreende sua situação no mundo, sem se assustar e sem urgência
de levá-lo adiante, de curá-lo.
O assinalamento, pela interpretação, daquilo que ainda não foi constituído,
é crucial no caso de pacientes que tiveram seu amadurecimento interrompido e
cuja problemática central está numa cisão ou dissociação de tipo falso si-mesmo.
Nesses casos, diz Winnicott (1960),
... fazemos mais progresso ao reconhecer a não-existência do paciente do que ao
trabalhar longa e continuadamente com o paciente na base de mecanismos de
defesa do ego. (...) Esse trabalho infrutífero só é encurtado com êxito quando o
analista apontar e especificar a ausência de algum aspecto essencial: “Você ainda
não tem boca”, “Você ainda não começou a existir”, “Fisicamente você é um
homem, mas não sabe, por experiência, nada sobre sua masculinidade”, e assim
por diante. Esses reconhecimentos de um fato importante, tornados claros no
momento exato, abrem caminho para a comunicação com o si-mesmo verdadeiro.
(p. 139)
5. Pela interpretação, o analista esclarece o paciente sobre a natureza da
necessidade específica que está implícita no que ele traz. No artigo “Retraimento
e regressão” (1954), em que descreve alguns episódios marcantes da análise
de B,6 Winnicott relata um momento em que o paciente está se dando conta de
jamais ter aceitado a morte do pai. Nessa semana, o paciente, que era médico, tinha
ficado muito perturbado com uma dor de cabeça, temporal e às vezes frontal,
mas diferente de qualquer outra que tivera antes, e que estava, por assim dizer,
do lado de fora da cabeça. Winnicott (1959) fez a seguinte interpretação: “A dor
fora da cabeça representa a sua necessidade de que lhe segurem a cabeça, o que
naturalmente ocorreria se a criança estivesse muito angustiada” (p. 353). De início,
isso não fez sentido para o paciente, mas, em seguida, ficou claro que a pessoa
que provavelmente lhe seguraria a cabeça, num momento desses, era seu pai,
e não a sua mãe. Isto é, “depois que seu pai morreu, não havia mais quem lhe
segurasse a cabeça, caso ele viesse a sofrer intensamente por alguma razão”
(ibid.). No final da sessão, o paciente lembrou-se, com surpresa, que havia passado
a tarde segurando a cabeça de uma criança; esta tinha sofrido uma cirurgia
6. Trata-se do paciente cujos últimos seis meses de análise são relatados no livro Holding e interpretação
(1986a).
599
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 588-601, dezembro 2008
ARTIGOS
e ele, como médico, achou que o que a criança precisava era que lhe segurassem
a cabeça.
Muitas outras coisas poderiam ser ditas sobre o importante tema da interpretação
na clínica winnicottiana. Creio, contudo, que os pontos que acabo de
abordar podem dar uma idéia acerca das modificações propostas por Winnicott,
para a tarefa psicanalítica, a partir de sua teoria do amadurecimento e, em particular,
no que se refere à interpretação. Todas elas, a meu ver, corroboram o acerto
de se afirmar que Winnicott lança as bases de um novo paradigma para o pensamento
e a prática da psicanálise.
Referências
GUNTRIP, H. Minha experiência de análise com Fairbairn e Winnicott. Natureza humana,
São Paulo, v. 8, n. 2, p. 383-411, 1975.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J-B. Vocabulaire de la psychanalyse. Paris: Presses
Universitaires de France, 1967.
WINNICOTT, D. W. (1954). Retraimento e regressão. In: Textos selecionados: da pediatria
à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000.
____ . (1958). Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago,
2000.
____ . (1949). Memórias do nascimento, trauma do nascimento e ansiedade. In: Textos
selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000.
____ . (1957). Sobre a contribuição da observação direta da criança para a psicanálise.
In: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
____ . (1959). Estudo de casos de crianças mentalmente doentes. In: A família e o
desenvolvimento do indivíduo. Belo Horizonte: Interlivros, 1980.
____ . (1960). Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self. In: O ambiente
e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
____ . (1962a). Dependência no cuidado do lactente, no cuidado da criança e na situação
psicanalítica. In: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1983.
____ . (1962b). Os objetivos do tratamento psicanalítico. In: O ambiente e os processos
de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
____ . (1963a). Os doentes mentais na prática clínica. In: O ambiente e os processos
de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
R E V I S T A
L A T I N O A M E R I C A N A
DE P S I C O P A TO L O G I A
F U N D A M E N T A L
600
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 588-601, dezembro 2008
____ . (1963b). Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos
opostos. In: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
____ . (1963c). Distúrbios psiquiátricos e processos de maturação infantil. In: O ambiente
e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
____ . (1965a). A família e o desenvolvimento do indivíduo. Belo Horizonte: Interlivros,
1980.
____ . (1965b). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas,
1983.
____ . (1965c). Um caso de psiquiatria infantil que ilustra a reação retardada à perda.
In: Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
____ . (1967). O brincar: uma exposição teórica. In: O brincar e a realidade. Rio de
Janeiro: Imago, 1975.
____ . (1968). O uso de um objeto e o relacionamento através de identificações. In:
Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
____ . (1970). A cura. In: Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
____ . (1971). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
____ . (1986a). Holding e interpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
____ . (1986b). Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
____ . (1988). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
____ . (1989a). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
____ . (1989b). A interpretação na psicanálise. In: Explorações psicanalíticas. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1994.
Resumos
(El uso de la interpretatión en la clínica de la maduración)
Pensando la práctica clínica y en especial la interpretación a la luz de la teoría
de la maduración, Winnicott propone: 1. que el uso de la interpretación en el sentido
tradicional, esto es, referida a los contenidos reprimidos, quede limitado a los casos
en los que ya existe el establecimiento del yo como unidad y de una realidad psíquica
personal; y 2. una redescripción de la función, del significado y del uso de la
interpretación como parte del procedimiento terapéutico, señalando los riesgos que le
son inherentes.
Palabras clave: Winnicott, interpretación, diagnóstico, psicosis
601
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 588-601, dezembro 2008
ARTIGOS
(L’utilisation de l’interprétation dans la clinique de la maturation)
Pensant la pratique clinique et, en particulier, l’interprétation à la lumière de la
théorie de la maturation, Winnicott propose 1. que l’utilisation de l’interprétation, dans
son sens traditionnel, c’est-à-dire, se référant aux contenus refoulés, se limite aux cas
où un moi unitaire et une réalité psychique personnelle sont déjà présents et 2. que la
fonction, le sens et l’utilisation de l’interprétation soient redécrits comme une part du
processus thérapeutique, en montrant les risques qui lui sont inhérents.
Mots clés: Winnicott, interprétation, diagnostic, psychose
(The use of interpretation in maturational clinical work)
Examining clinical practice and interpretation, especially in the light of the
theory of maturation, Winnicott posits that: 1. the use of interpretation, in its traditional
meaning, that is to say, as related to repressed contents, should be limited to individuals
who already have a self and a personal psychic reality and 2. the role, use and
meaning of interpretation should be redescribed as part of the therapeutic procedure,
with awareness of its inherent risks.
Keys words: Winnicott, interpretation, diagnosis, psychosis
Versão inicial recebida em novembo de 2007
Versão aprovada para publicação em outubro de 2008
ELSA OLIVEIRA DIAS
Psicanalista, doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
–PUC-SP (São Paulo, SP, Brasil), diretora de Ensino e Formação do Centro Winnicott de São
Paulo (São Paulo, SP, Brasil), autora de vários artigos sobre a psicanálise de D. W. Winnicott,
sobre filosofia e psicanálise em geral, e autora do livro A teoria do amadurecimento de
D. W. Winnicott (Rio de Janeiro: Imago, 2003).
Rua João Ramalho, 145/112
05008-000 São Paulo, SP, Brasil
Fone:(11) 3672-2831
e-mail: elsadias@uol.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário