sábado, 24 de março de 2012

O ciúme patológico

Resumo: O ciúme patológico é um grande problema com uma importância significativa para a psicologia, envolvendo muito sofrimento que ocorre associado a diversos transtornos. Ele se apresenta de formas bastante diferenciadas no ponto de vista psicopatológico, assim como idéias obsessivas e ou delirantes sobre infidelidade. O objetivo deste estudo é tentar traçar um limiar entre o que se conhece por ciúme normal e ciúme patológico e as suas associações com as mais diversas patologias a partir de um estudo de caso de um sujeito que cometeu crime passional, matando a própria esposa a facadas em praça pública. Ele é, portanto um estudo analítico e descritivo onde se pode observar que o ciúme, mesmo quando dentro de um quadro psicopatológico apresenta muitos outros elementos que não patológicos que contribuem diretamente para sua fomentação.
Palavras-Chave: Ciúme, ciúme patológico, transtorno, transtorno obsessivo-compulsivo, infidelidade.

1.0 Introdução

O ciúme é considerado uma das emoções mais vivenciadas pelos seres humanos que por suas características próprias é desencadeado por uma sensação de ameaça a um relacionamento pessoal ao qual o indivíduo tanto valoriza. Ele também é considerado um tipo de adaptação, que se desenvolveu juntamente com a evolução da espécie humana, como uma defesa contra ameaças de infidelidade e abandono.
O principal objetivo desse trabalho é traçar um limiar entre o que se pode descrever como ciúme normal e ciúme patológico, identificando as patologias que se associam a esse transtorno bem como outros indicativos que surjam no decorrer da pesquisa.
O desenvolvimento deste trabalho científico busca verificar e aprofundar a compreensão do ciúme patológico tendo como objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema tornando-o mais explícito.

2.0 Conceito

Em sua definição, no ciúme patológico inclui-se uma suspeita inexplicável direcionada à fidelidade do parceiro, modificando os pensamentos, sentimentos e comportamentos do indivíduo (Mullen PE., 1991).
O conceito de ciúme mórbido ou patológico, conhecido popularmente como Síndrome de Othello, inclui diversas emoções e pensamentos não racionais, além de comportamentos inaceitáveis e considerados até como bizarros onde se envolve um medo exagerado de perder o objeto de desejo para um rival, caracterizado pelo alto nível de desconfiança infundada, gerando um grave prejuízo nas relações pessoais e interpessoais.

2.1 A Síndrome de Othello

A Síndrome de Othello se define, para casos de ciúme patológico, por se referir ao personagem do escritor William Shakespeare “Othello”. Na tragédia narrada pelo escritor inglês, o personagem se encontra em um oceano de pensamentos duvidosos e fantasiosos de que sua mulher Desdêmona estaria traindo-o, dúvidas e fantasias essas alimentadas por outra pessoa, acabando assim por assassinar sua amada.
A Síndrome de Othello caracteriza-se justamente por esse desejo intenso de controle dos sentimentos e comportamentos do companheiro. Tendo dessa forma uma preocupação exagerada com os relacionamentos anteriores do outro, gerando dessa forma idéias repetitivas e obsessivas que não se dispersam. Esse medo exagerado e irracional de perder o outro acaba comprometendo todas as principais relações do sujeito. Alguns autores consideram que a característica principal desse tipo de ciúme seria o medo infundado, sem razão, e não na sua intensidade.
"Enquanto o ciúme ‘normal’ é transitório e baseado em motivos reais, o patológico é uma preocupação infundada e irracional, que pode ser a manifestação de diversos transtornos mentais" (Kast R., 1991;159:590)
O indivíduo que detém esse distúrbio experimenta as mais variadas sensações, como ansiedade, depressão, raiva, vergonha, humilhação, culpa, aumento do desejo sexual e o desejo de vingança, apresentando assim uma tendência enorme a atitudes violentas. Segundo Palermo (1997;18:374-83), a grande maioria dos casos de suicídio cometidos após um homicídio estão ligados ao ciúme patológico. Ressaltando que o ciúme patológico também pode estar associado a diversas doenças psiquiátricas.

2.2 Características do Ciúme Patológico

Sendo uma emoção humana comum e universal, torna-se difícil distingui-lo entre ciúme normal e patológico. Ele seria então um conjunto de emoções que são libertadas por sentimentos de ameaça à estabilidade, ou no mínimo à qualidade de um relacionamento muito valorizado. São muitas as definições de ciúme, mas com três elementos comuns:
1) Ser uma reação a uma ameaça;
2) Haver um rival real ou imaginário;
3) Visar a total eliminação dos riscos da perda do objeto valorizado.
(Mullen PE., 1990;24:17-28)
O ciúme é visto com diversas variações nas diferentes culturas e épocas. No século XIV, por exemplo, era relacionado à paixão, devoção e zelo e à necessidade de preservar um relacionamento importante, perdendo conotações pejorativas de possessividade e desconfiança.
Em sociedades monogâmicas ele é associado à honra e moral, sendo uma ferramenta de proteção à família, podendo ter como causa um imperativo biológico ou adaptação à necessidade de admissão da paternidade. A fidelidade feminina tinha e ainda tem uma ênfase exagerada, ao passo que a infidelidade masculina continua sendo comumente bem aceita. Mesmo nos tempos modernos, a manifestação ciúme é atribuída positivamente, visto como um sinal de amor e cuidado.
Autores como Mooney não consideram fundamental para o diagnóstico a crença exagerada da infidelidade, sendo o medo da perda do outro um aspecto muito mais importante, ou do espaço afetivo ocupado na vida deste. Já para outros a base do ciúme patológico estaria em sua irracionalidade, e não em seu caráter excessivo (Mooney, 1965). Havendo assim uma clara correlação entre baixa autoestima, e consequentemente a sensação de insegurança e, finalmente o ciúme.
O indivíduo com ciúme patológico seria dessa forma extremamente sensível e vulnerável e com um alto nível de desconfiança, com uma autoestima muito baixa, despertando como defesa um comportamento egoísta, agressivo e impulsivo. O potencial para atitudes violentas também é alto no ciúme patológico, o que desperta um enorme interesse na psicologia e na psiquiatria forense.
Kast (1991) afirma que, psicodinamicamente, enquanto no ciúme não-patológico deseja-se preservar o relacionamento, no ciúme patológico haveria o desejo inconsciente da ameaça de um rival. Na verdade, pouco se sabe sobre experiências e comportamentos associados ao ciúme na população geral. Haveria, entretanto, clara correlação entre baixa autoestima e ciúme.
Seeman (1979) sugeria a relação entre ciúme patológico e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), com abordagens terapêuticas comuns. Assim, pensamentos de ciúme seriam vivenciados como excessivos e irracionais ou intrusivos, podendo levar a comportamentos compulsivos como os de verificação e investigação. Segundo Seeman, enquanto no ciúme delirante o paciente está convencido da traição, o ciúme obsessivo caracteriza-se por dúvidas e ruminações sobre provas inconclusivas, em que certeza e incerteza, raiva e remorso alternam-se a cada momento. Há ainda preocupações excessivas sobre relacionamentos anteriores, os quais ocorrem como pensamentos repetitivos, imagens intrusivas e lembranças sem fim sobre o passado e seus detalhes. No entanto, essas distinções não são tão simples de serem distinguidas.

3.0 Metodologia

O estudo desenvolvido tem caráter qualitativo, descritivo e analítico, realizado a partir da aplicação de uma entrevista semi-estruturada, a partir de um estudo de caso onde o entrevistado pode discorrer livremente sobre o tema proposto e sem limite de tempo ou informações. Desta forma a presente pesquisa se propôs a fazer uma análise psicopatológica visando compreender os transtornos associados ao ciúme patológico bem como suas causas, procurando dessa forma traçar o limiar entre ciúme normal e patológico.
Antes do início da entrevista foi enviado um pedido de autorização ao PRESMIL (Presídio da Polícia Militar), no qual estava descrito o projeto a ser realizado. Os resultados obtidos se deram a partir da análise qualitativa dos dados da entrevista que fora aplicada a um sujeito do sexo masculino com idade entre 40 e 50 anos envolvido num caso de crime passional, bem como seu discurso e observação de seus comportamentos durante todo o tempo útil de entrevista.
O sujeito participante da entrevista recebeu as devidas orientações a respeito dos objetivos da pesquisa bem como toda sua metodologia, ficando ciente da possível publicação e discussão dos resultados em quaisquer meios científicos.

4.0 Resultados e Discussão

Diante dos dados coletados, alguns aspectos da entrevista podem ser utilizados para uma melhor compreensão da temática envolvida neste trabalho. O sujeito da pesquisa que fora entrevistado é um senhor com 52 anos de idade, residente no município de Lagarto-Se, que trabalhava como policial do Batalhão de Lagarto, onde desempenhava suas atividades.
O mesmo residia em residência própria onde moravam ele, os três filhos e a mulher que conhecera na mesma cidade e com a qual convivia a 7 anos.
O crime aconteceu no município de Lagarto-se em meados de agosto de 2005, numa tarde em plena praça pública. O sujeito tinha na época do incidente 50 anos de idade, utilizando como arma uma faca que fora comprada na feira do município, executando assim a sua esposa e companheira após uma grave discussão no mesmo dia da compra da arma do crime.

4.1 Concepção e Contradições Acerca do Ciúme

O sujeito durante a entrevista apresentou algumas contradições que destoavam de seu comportamento, onde mesmo depois de apresentar rituais de verificação e uma aguda desconfiança em relação à parceira, ele sustenta a idéia de não ser ciumento e que só o sente quando há evidências do fato.
[...]eu não sou o tipo desse homem, ciumento. A gente ciúma desde quando a gente vê algum motivo. (Entrevistado)
Foi observado então que existe uma forte negação da própria condição a fim de sustentar o comportamento delirante a cerca da traição visto que o sujeito tinha motivos concretos desde a confirmação por parte de sua parceira.
[...]é realmente eu tinha saído com um rapaz, já tem tempo que eu venho tendo caso com ele[...]  (Esposa)
A partir daí o observa-se que o do sujeito denota alguns elementos extra-comportamentais, onde segundo Kast (1991), no ciúme patológico haveria o desejo inconsciente da ameaça de um rival, desejo esse que aumenta os comportamentos de verificação e consequentemente a desconfiança exacerbada sobre os comportamentos do parceiro.
Acerca da apresentação de algumas contradições no relato do sujeito, foi observado que o mesmo acaba tendo idéias diferenciadas quanto ao próprio ciúme, sendo pra ele o ciúme algo causal, diretamente ligado ao comportamento da parceira, e ora se dissipando na evidência desses comportamentos. O sujeito passa então a relatar observações permeadas de idéias delirantes a fim de fomentar suas convicções a cerca da parceira.
Sendo o ciúme patológico uma suspeita inexplicável direcionada à fidelidade do parceiro (Mullen PE., 1991), então ele em sua concepção acaba sendo explorado a partir de objetos e situações concretas que acabam sendo subjetivisadas no delírio do sujeito.
[...]pensando que era urina né, no que passei a mão que cheirei eu senti aquele... aquele mau cheiro de virilha né, com Quiboa né, aí eu fiquei, mas como eu num tinha como provar, aí passou né aquela desconfiança entendeu? (Entrevistado)
Como afirmou Kast (1991; 159:590), enquanto o ciúme normal é transitório e baseado em motivos reais, o patológico é uma preocupação infundada e irracional. No objeto de estudo fora encontrado alguns sinais comportamentais patológicos de verificação e investigação, sendo que esses não se baseavam na realidade disposta mas em pensamentos infundados e fantasiosos caracterizando-se então um caso de ciúme patológico.

4.2 A Relação

Fora também observado que no relacionamento do sujeito com a companheira o ciúme se mostrava relacionado diretamente à honra e a moral, onde o sujeito mostra ressentimentos pelo fato companheira não estar cumprindo com os deveres de “esposa” e dona do lar.
[...]não é possível, eu fazer o que eu faço por ela e ela fazer tudo isso comigo, eu não mereço! Eu não achava que estava merecendo aquilo...” (Entrevistado).
Fazendo então alusão ao caso Dora (Freud, 1911/1976), o desprezo à própria masculinidade perderia por completo seu sentido e sua força "traumática" se convertida simplesmente em "passividade originária", desprovida dos "valores" advindos da situação sexual de grave aumento da libido e o elemento conflitante da traição em si.
“A sexualidade parece desempenhar um papel principal na patogênese da histeria como fonte de traumas psíquicos e como motivo para “defesa” – isto é, para reprimir idéias da consciência” (Breuer & Freud, 1895).
Ressaltamos dessa forma que o fruto da encenação do desejo, não tem que ser obrigatoriamente único e, sobretudo em se tratando de ciúme patológico, lembrando que em 1908 Freud já afirmava que "um sintoma histérico é a expressão de uma fantasia sexual inconsciente em parte masculina e em parte feminina”.
É interessante compreender que na obra em que Freud (1918/1978-85) recupera explicitamente a interpretação traumática da neurose, ele introduz a idéia de fantasias originais, como traços universais e indeléveis de satisfação, fomentando e dando apoio dessa forma aos delírios sobre a fidelidade da parceira.

4.3 Relação Triangular (Othello)

A Síndrome de Othello caracteriza-se neste caso pelo desejo intenso de controle dos sentimentos e comportamentos da companheira, mostrando dessa forma uma grande preocupação com todos os relacionamentos pessoais e interpessoais do parceiro. Preocupações essas que geram repetitivas e obsessivas que não se dispersam. Desta forma esse medo exagerado e irracional de perder o outro acaba comprometendo as principais relações pessoais e interpessoais do sujeito.
O caso então alude diretamente à Síndrome de Othello pela detenção de um caráter triangular, obsessivo e delirante, atentando assim para a oscilação da posição do sujeito em relação à companheira, a ele mesmo e ao “outro” fantasioso, que fora bem elucidado por Freud no caso Dora por Triângulos estes que Dora recria ocupando algumas vezes o lugar mais denegrido, e outras, o mais valorizado (Freud, 1985).
[...]quando eu enfiei o pênis dentro da vagina dela tava aquela melação aí chega me esfriei todo, fiquei assim acocado em frente a ela com as perna aberta só olhando pra vagina dela, aquela pataca, de quando o homem se realiza, chega sai de dentro né? (Entrevistado).
O sujeito então passa a experimentar sensações como ansiedade, raiva, vergonha, humilhação, culpa e até mesmo o aumento do desejo sexual, apresentando assim uma enorme tendência a atitudes violentas, atitudes estas como a compra do objeto (faca) com o qual o sujeito cometeu o crime.

5.0 Considerações Finais

Não obstante de alguns casos clínicos analisados no discorrer deste trabalho científico, onde o ciúme patológico se caracteriza por crenças infundadas e idéias delirantes para com a relação conjugal, o sujeito da pesquisa não se mostrou diferente sobre as questões que o estudo trata. Puderam ser observados rituais de avaliação e verificação por parte do objeto, rituais esses delirantes e obsessivos, confirmando algumas hipóteses tais como exemplo o aumento significativo da libido e da paixão em relação à esposa por conta da existência de um “outro”, seja ele real, ou imaginário.
A humilhação, a vergonha e a raiva são elementos que também se mostraram um importante catalisador do desejo na relação, onde o objeto deixou claro mostrar-se convalescente à idéia da existência do outro em relação à parceira, desejando inconscientemente a existência e a ameaça de um rival, repudiando o desligamento dessa relação (morte do relacionamento), o que acabou concretizando-se em morte real da parceira ao experimentar raiva e ansiedade extremas quando decide, num comportamento psicótico, esfaquear a própria esposa em praça pública. Dessa forma a morte inaceitável do relacionamento ora foi suprimida pela morte real do parceiro.
Pode ser observada no presente artigo a dificuldade de se traçar um limiar entre o ciúme normal e patológico por haver uma linha bem tênue entre elas, não podendo ser considerada a crença exacerbada e delirante sobre a infidelidade do parceiro como elemento único ou suficiente para se traçar esse limiar. Outros aspectos bem mais importantes como o espaço afetivo ocupado pelo parceiro bem como a irracionalidade da relação seria então o ponto crucial para esse tipo de patologia.
Desta forma o ciúme estaria muito mais comumente correlacionado às sensações de insegurança e de baixa auto-estima, onde o indivíduo estando exacerbadamente sensível e com alto nível de desconfiança acaba despertando comportamentos violentos e impulsivos como método de defesa para a manutenção do relacionamento que não somente os transtornos delirantes e fantasiosos que o sujeito é acometido.
Observou-se que em relação ao comportamento ciumento, é necessário se ater a muitos outros elementos, que não apenas a evidência de patologias, como por exemplo, as associações com transtornos obsessivos compulsivos (TOC) ou comportamentos delirantes para que um quadro de ciúme patológico seja caracterizado. Há uma importância muito grande de que o ciúme patológico na maioria dos casos venha a ser entendido e interpretado em suas bases epistemológicas, tratado tanto ao ser evidenciado como uma manifestação de um transtorno obsessivo compulsivo e suas idéias delirantes entre outros, ou mesmo quando não ficando clara a patologia dos comportamentos, abrindo um leque bem maior de possibilidades terapêuticas sendo que ele pode estar associado a um grande sofrimento mesmo que não se revele como patologia em sua sintomatologia.