sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Entre a recordação e o destino: a repetição

Entre a recordação e o destino: a repetição1

Entre el recuerdo y el destino: la repetición

Between rememberance and destiny: repetition


Norberto Carlos Marucco2
Associación Psicoanalítica Argentina
Endereço para correspondência



RESUMO
As repetições (agieren), o representado, o não-representado e o irrepresentável. Os conceitos de embrião pulsional e soterrado (verschüttet) constituiriam um “outro inconsciente” que se expressa na repetição como destino. Para abarcá-lo, o analista operará em sua “mente”, através de sua singularidade real, a capacidade de rêverie, seu inconsciente “não analisado”, inédito e a construção-conjectura histórica.
Palavras-chave: Destino; Representado; Não-representado; Irrepresentável; “Embrião pulsional”; O arcaico; O soterrado (verschüttet); Contratransferência; Capacidade de rêverie; Mente do analista.

RESUMEN
Las repeticiones (agieren), lo representado, lo no representado y lo irrepresentable. Los conceptos de embrión pulsional y lo soterrado (verschuttet) constituirían un “otro inconciente” que se expresa en la repetición como destino. Para abarcarlo el analista operará desde su “mente” a través de su singularidad real, su capacidad de rêverie, su inconciente “no analizado”, inédito, y la construcción-conjetura histórica.
Palabras clave: Destino; Representado; No representado; Irrepresentable; “Embrión pulsional”; Lo arcaico; Lo soterrado (verschüttet); Contratransferencia; Capacidad de revérie; Mente del analista.

ABSTRACT
Repetitions (agieren), the representable, the non-representable and the irrepresentable. The concepts of instinctive embryo and buried (verschuttet) have constituted an “other unconscious” which is expressed through repetition as a destiny. In order to approach it, the analyst will operate from his “mind” thorugh his true singularity, his capacity for rêverie, his “non analysed” unconscious, unprecedented and the historical construction-conjecture.
Keywords: Destiny; Representable; Non-representable; Irrepresentable; “Pusional embryo”; Archaic; The buried (verschuttet); Countertransference; Capacity for rêverie; Mind of the analyst.



Escrever sobre “Recordar, repetir e reelaborar na psicanálise e na cultura de hoje” implica o desafio de rever criativamente, a partir da realidade atual da psicanálise, as idéias que Freud elaborou nos tempos da grande carnifi cina que foi a guerra de 1914, tendo encontrado nesse horror alguns elementos valiosos para pensar a vida. É em torno dessas idéias que o Congresso “convoca-nos”, noventa e três anos depois, para pensar a psicanálise e refletir sobre o padecer do homem… em tempos de horrores semelhantes, que variam apenas nas formas de expressão. Berlim torna-se emblemática para este encontro que nos convida a “recordar – repetir – reelaborar”. Berlim nos diz que o destino pode ser mudado, não apenas pelo aparecimento da recordação, como também, e sobretudo, pela construção do novo, do diferente: abrir as portas, “derrubar muros”, apontar caminhos para a pulsão em suas possibilidades de transformação.
Por outro lado, numa perspectiva mais ampla, “recordação e repetição”, em suas combinações e alternâncias, definiriam características diferentes em cada cultura. A repetição traduz-se, também no social e no cultural, como efeito de um trauma que, ao não encontrar possibilidade de representação e elaboração, reaparece e se atualiza em um retorno ao mesmo, ao idêntico (De M’Uzan, 1978). Nos indivíduos e nas nações, uma repetição demoníaca acaba por assassinar o tempo. A sensação é que ele foi retido em alguns (muitos) países, não só nos mais pobres e nos menos tecnológicos, mas igualmente naqueles em que o conservadorismo das idéias ou a imposição de doutrinas políticas ou religiosas reforça ao máximo os bastiões da resistência a qualquer possível mudança.
Repetições marcadas pela “pulsão de morte” deixam um sulco em uma certa “naturalização” como destino: misérias que coexistem com opulências desmedidas; guerras étnicas ou fratricidas fomentadas à sombra por interesses obscuros; tendências terroristas que tentam se justifi car de um lado e de outro em uma sede infi nita de vingança; estado geral de desconfiança do outro, do semelhante; indiferença ou tolerância às piores ignomínias (opressão, exílio, tortura etc.). Tudo gera um aumento da marginalidade social (que se vai tornando “invisível” por ser tão evidente), da criminalidade, da violência extrema. Do mesmo modo, e com efeitos mais sutis e mais deletérios: a perversidade das lideranças, a perda das referências sociais, o ressurgimento de ideais culturais altruístas e de laços identificatórios culminam em intensas vivências de desamparo e exclusão social. É precisamente nesses “mais aquém” que se revela de modo particularmente contundente, na perspectiva psicanalítica, a força abalroadora da “pulsão de morte”, a sinistra “criatividade”, e sua tendência ao desligamento, capaz de gerar recursos novos e que a tudo arrasam, apagam e detêm. O “destino”, o que “está escrito”, como fundamento e verdade revelada, e que explica toda essa desgraça, trabalha como “letra morta” que desrealiza qualquer tentativa de escrever uma nova história. Na corrida em direção ao “destino prometido”, ou contra o oracular “destino sentenciado”, desencadeia-se a fúria da compulsão à repetição e abafa-se qualquer questionamento que possa dar lugar a um trabalho de re-elaboração ou de transformação. Diante dessas situações, a possibilidade de registro do trauma e de sua historicização culturaljoga um papel fundamental para deter a repetição e transformar o “destino”. A cultura dá mostras dessa necessidade quando, através de suas diversas manifestações, procura insistentemente recordar os fenômenos de violência social que a abalaram, ou ainda quando tenta reverter sua compulsão a repeti-los no presente, empregando seus melhores esforços contra as tendências destrutivas e os efeitos nefastos da desmentida patologia.
A inclusão dessa e de outras problemáticas da cultura constitui uma proposta substancial, um passo à frente na possibilidade de saldar uma dívida que, a meu ver, a psicanálise contemporânea tem com a cultura. Talvez porque ainda não sejamos capazes de definir claramente o papel que ela desempenha tanto na criação da subjetividade como na produção da patologia.
A psicanálise poderia oferecer essa contribuição dando continuidade à tradição iniciada por Freud com seus trabalhos sociais, que culminaram nos impactantes: “O mal estar na cultura” (1917/1986) e “Por que a guerra?” (1933/1986). É possível que as contribuições advindas deste Congresso constituam um avanço importante em direção a esse objetivo. Mas deixo para trás a analogia para circunscrever-me a meu ofício.
Este ensaio trata fundamentalmente do tema da repetição em sua concepção metapsicológica, clínica e técnica. A repetição junto à recordação, a repetição no lugar da recordação e, um pouco além, a repetição à maneira de um destino.
A repetição (agieren) inclui uma problemática que está no núcleo dos debates da psicanálise contemporânea: a do representado, do não-representado e do irrepresentável no psiquismo. No seio dessa problemática, e nos primórdios do nascimento do psíquico, inaugura-se a relação dialética entre a pulsão e o objeto. A repetição traria à luz as “marcas” dessa relação, com suas transformações, suas obstruções, sua articulação particular com o traumático e com aquilo que está além do trauma: o vazio, a ausência, o nada. Diante da impossibilidade de subjetivação desse agieren, o sujeito parece ficar agarrado ao destino, a esse tempo retido, coagulado na repetição daquelas “marcas” primeiras do que se poderia chamar de “psíquico-pré-psíquico” (Roussillon, 1991/1995), cristalizado nesse núcleo em que se condensam as configurações específicas da pulsão com as primeiras identificações, e onde se encontram as chaves daquilo que se expressa na clínica do “para além”. Clínica que produz os mais intensos “mal-estares” e os maiores obstáculos no processo da cura. É por isso que atribuo especial relevância à problemática da repetição e à sua expressão clínica como “destino”3 e considero fundamental sua valorização para “calibrar” os instrumentos da técnica.
Para efeito de uma maior clareza expositiva, organizei esta apresentação nos seguintes tópicos:
1. Metapsicologia da repetição: um novo retorno a Freud. O trabalho inclui aqui um “après-coup” sobre o conceito de repetição na obra freudiana desde a inclusão/integração das contribuições significativas de alguns pensadores pós-freudianos.
2. A repetição na clínica. As posições do analista
3. A transferência, a repetição, e a pessoa do analista
4. A repetição do arcaico e a mente do analista

1. Metapsicologia da repetição: um novo retorno a Freud
Transpostos os umbrais de um novo século e de um novo milênio, voltar a Freud não implica ortodoxia: seu texto é um pré-texto fundamental para uma confrontação impostergável de idéias a partir da atual psicanálise, e também para continuar avançando em nossa própria capacidade de pensá-lo com criatividade e uma certa audácia. Assim o fizeram Melanie Klein, Winnicott, Bion, Lacan etc. e, recentemente, os retornos particulares a Freud de Green, Laplanche, Pontalis, Rosolato, Bollas, Kernberg e de tantos outros que nos orientam para novas conexões, enlaces e articulações dos textos freudianos.
A metapsicologia é um lugar privilegiado para o debate das idéias da psicanálise. É lugar de acordos e de controvérsias, e possivelmente o melhor instrumento para a discussão dos problemas que nos coloca a clínica. Pensar a psicanálise contemporânea implica rever sua metodologia, a psicopatologia e, em particular, o trabalho do analista no exercício de sua função analítica e na sua inclusão como pessoa nesse “encontro de singularidades” que é o campo analítico. Avançar nessa prática e contribuir para o seu desenvolvimento como corpo conceitual passível de ser transmitido, explicado e debatido exige manter firme a “metapsicologia freudiana”. Esse é o elemento comum que nos orienta diante dos diferentes campos teóricos que às vezes se unem e às vezes se bifurcam.4
A primeira tópica freudiana estava enraizada e apoiada na teoria da representação, do desejo, da repressão e dos modos de retorno do reprimido. A teoria da cura, que se assentava na possibilidade de recuperação da recordação reprimida, encontra seu cume e, ao mesmo tempo, seu questionamento, nos anos 1914 e 1915. Nesses anos, Freud produz textos que são como aberturas: “Recordar, repetir e reelaborar” (Freud, 1914a/1986), “Introdução ao narcisismo” (1914b/1986) e “Luto e melancolia” (1917[1915]/1986). A importância dos dois últimos é que eles re-introduzem, de maneira evidente, o objeto, o outro, na constituição do psíquico. Essa inclusão do objeto amplia o campo teórico até então centrado na pulsão e em seus destinos. Aproveitando essa abertura, Green (1996) definirá o objeto como revelador da pulsão, e Laplanche (1989) o hierarquizará até atribuir-lhe a função de “criador” da pulsão (seu objeto fonte). Por último, no texto que retomamos aqui, “Recordar, repetir e reelaborar” (1914a), Freud inclui decididamente, como produto da observação clínica, o conceito de repetição, peça fundamental de seus desenvolvimentos teóricos posteriores. Seis anos depois, a repetição e sua insistência compulsiva encontram um lugar transcendente em “Para além do princípio do prazer” (1920/1986), em que Freud se confronta com os sonhos da neurose traumática. A repetição desloca-se de sua fixação ao prazer para o reencontro compulsivo com o efeito de um trauma sem representação. Em outras palavras, desloca-se para uma busca ativa (sem sentido aparente) do sofrimento.
Descrição plena de conseqüências, pois deu lugar à inclusão de um conceito-chave na psicanálise, a pulsão de morte, que não apenas aparece como uma reconceitualização da teoria pulsional, com também apresenta uma nova e, de certo modo, “dramática” concepção do psiquismo e sua atividade.O inconsciente sexual e signifi cante, fundado pela repressão, irá gradualmente perdendo seu lugar até então hegemônico, e os objetivos da cura não poderão mais se limitar exclusivamente à recuperação-desvelamento das recordações significantes.5 Além disso, a enfermidade não apenas remeterá a um fato histórico, mas se apresentará igualmente como potência atual. Desafiado pela clínica, Freud (1914a/1986) tentará primeiramente reconduzir ao passado o que aparece em “ato”: “fazer recordar”, tal como propunha em textos anteriores, quando imperava a lógica da representação. Sem dúvida, a clínica o levará a “fazer repetir”, deslizamento que é produto do surgimento da “compulsão do destino” (Freud, 1920/1986). Poderíamos defi nir esse achado clínico do seguinte modo: o deslocamento progressivo da repetição no sonho do desejo que se “realiza”; a repetição compulsiva na análise e na vida da dor do trauma.
O fracasso da tentativa freudiana de submeter essa pulsão em ato, dentro do campo da análise (apesar da criação forçada da neurose transferencial), foi fértil para a psicanálise. Levou à constatação de que essa pulsão se repete na vida, e não só com o analista. E isso implicava sérios riscos.6 Uma afirmação impõe-se na clínica da repetição: existe “algo” que não se pode recordar. O que é que resiste à recordação, à palavra, em suma, à representação? Trata-se, como diria vinte e três anos depois, de “[…] algo vivenciado numa idade precoce e logo esquecido, algo que a criança viu e ouviu na época em que ainda não era capaz da linguagem […]” (Freud, 1937b/1986, AE p. 268; SE p. 267) (itálicos meus). Nesse mesmo ano ele ratificou: “Através das análises individuais, verificamos que as impressões mais precoces, recebidas em uma época em que a criança tinha pouca capacidade de linguagem, exteriorizam-se, em algum momento, em efeitos de caráter compulsivo, sem que se tenha uma recordação consciente delas”. (itálicos meus) (Freud, 1937[1939]/1986, AE p.125, SE p. 130). De que tipo de inscrições ou marcas estamos falando? Auditivas? Visuais? Ou, mais genericamente, sensoriais? Em todo caso: são “significantes pré-lingüísticos”.
É à luz de “Construções em análise”, e numa última guinada a respeito do que a repetição já o havia interrogado em 1914, que Freud trará uma nova proposição clínica e técnica: a construção (quase a re-construção), que emerge como uma técnica superadora para chegar àquilo que, não podendo encontrar representação significante, repete-se em ato. (Adianto, neste ponto, que vou me referir à construção como um conceito teórico através do qual tentarei chegar a uma instrumentação técnica diferente da construção freudiana.)
Em síntese: o movimento atropelador da pulsão, quando se desprende como repetição em ato, requer reformulações da técnica que permitam ir além da incandescência do desejo e de seus representantes.
Faço uma pausa aqui para dar uma primeira descrição da clínica da repetição. Durante uma análise, surgirão diferentes tipos de repetição. Por exemplo, a repetição de fragmentos e ramificações do Édipo (Marucco, 1998). Este tipo de repetição permitirá a expressão da neurose histórica como potência atual. Assim, as pulsões de meta inibida (ternura, confi ança), geradas após a resolução do complexo de Édipo, se expressarão como repetição através da transferência positiva. Por outro lado, se repetirão, ao em vez de serem recordadas, as vicissitudes da rivalidade edipiana, ao mesmo tempo em que terão lugar as expressões repetitivas do sufocado amor edípico. O analista interpretará as vicissitudes dessa neurose histórica, ou neurose transferencial, em sua relação com o complexo de castração e dentro de um marco representativo. Ou seja, estamos numa repetição com deslocamento representacional.
Outro tipo de repetição deriva da teoria do narcisismo. Sua expressão clínica se dará nas “patologias narcisistas” que se apresentam como reedições do narcisismo ferido, das ofensas narcisistas. São tentativas de manter viva, através de sua eterna repetição, aquela “sonhada criança dos primeiros tempos” (Freud, 1920), que resiste a se transformar em uma lembrança agonizante (Marucco, 1978a). “Criança narcisista” que se instalará na transferência procurando interromper a cura ainda incompleta. Aqui, a interpretação transferencial e a construção da história esquecida e reprimida daquela criança mítica (recordações encobridoras) serão necessárias para impedir esta repetição “quase não representada”.
Por último, a repetição que acontece por efeito do que chamamos de “trauma psíquico/ pré-psíquico”, dessas marcas mnêmicas, “vivências do tempo primevo” (Freud, 1920/1986) que escapam a qualquer possível significação. Marcas que denominei “ingovernáveis” (Marucco,1980) por sua incapacidade de se ligarem ao processo secundário, e que, manifestando- se como repetições não-representáveis e irrepresentáveis, bloqueiam o acesso terapêutico. O conceito de neurose de transferência de “Recordar, repetir e reelaborar”, em que a repetição “podia” ser domada no cenário transferencial, dá lugar aqui à dor avassaladora movida pelas marcas mnêmicas ingovernáveis. Marcas que, desde o “para além do desejo”, reclamam alguma possibilidade de ligação para aquilo que se produziu antes do surgimento da linguagem. Não houve “tempo”, nem psiquismo suficientemente estruturado, para que “o traumático” fosse contido pela representação e incluído nos acertos do princípio do prazer e, assim, pudesse entrar nas trilhas significantes que o tornaram mais acessível ao trabalho analítico. A falta de representação e a compulsão à repetição do “trauma” parecem anular antecipadamente qualquer esforço de inclusão no campo da análise. A psicanálise as enfrentou e enfrenta ainda hoje; e o faz com um certo pessimismo em algumas posições, coincidindo talvez com o que Freud manifestou, em parte, em “Análise terminável e interminável” (1937a /1986). Temos aqui o entusiasta e audacioso incitador das várias expressões psicopatológicas no campo transferencial como forma de conseguir a cura. Ele se viu confrontado, não sem um certo dramatismo, com o reconhecimento dos limites de “sua” psicanálise. Seus limites: a pulsão de morte, o “indomável” da pulsão e o irrepresentável da castração. “Castração” como reconhecimento último da difi culdade de signifi car essa pulsão em ato. Seriam aquelas marcas mnêmicas ingovernáveis? O id pulsional fixado em um trauma, praticamente sem objeto? Estamos quase no terreno da repetição pura.
Podemos estabelecer um novo eixo paradigmático: um núcleo do psiquismo onde se alojariam o desejo e o trauma. Desejo e trauma: ponto em que os caminhos se bifurcam. Trauma quase originário, produto de uma inscrição sem palavras, coincidindo na clínica com uma repetição monótona, invariável, que é ao mesmo tempo uma re-petição (pedido de ajuda). Outra maneira de dizê-lo: o conceito – metáfora – de embrião da pulsão7 aproxima- nos do arcaico em psicanálise (tema que desenvolverei, em especial, no quarto tópico), mas do qual já surge agora uma pergunta:) O que é esse arcaico que se repete? Algo que surge no ato a partir da pressão regressiva para um estado anterior ao encontro com o outro? Ou algo que é produto da força intrusiva de um objeto que imprimiu a marca destrutiva do desligamento ali onde se deveriam abrir os caminhos para a possibilidade de representação? Estamos “longe” do inconsciente reprimido e, por outro lado, muito próximos do caldeirão do id. Será que essa zona psíquica em que se expressa a repetição em ato não nos habilitaria a falar de “outro inconsciente”? “Outro inconsciente” que oculta zelosamente o soterrado (verschüttet)8 mais “recôndito”. Poderíamos dizer, mais que “sepultado” (untergang) ou “aniquilado” (zugrunde gehen): “soterrado”9 por um mecanismo que ainda não somos capazes de descrever. Mas esse “soterrado” retorna. E Freud diz: “Todo o essencial foi conservado, mesmo o que parecia esquecido por completo; está, todavia, presente de algum modo e em alguma parte, só que soterrado, inacessível ao indivíduo”. E acrescenta: “[…] É apenas uma questão de técnica analítica que se consiga ou não trazer à luz, de maneira completa, o escondido”. (Freud, 1937b/1986, AE p. 262; SE p. 260) (itálicos meus). Isso sugere, no meu entender, a necessidade da criação de uma nova tópica e reformulações técnicas que permitam localizar esse “de algum modo e em alguma outra parte” onde se encontra o mais “recôndito”. Mais um comentário sobre esse tema: considero que o “soterrado”, em Freud, estaria próximo ao conceito de “embrião pulsional”, que, a meu ver, tem dois caminhos e, no melhor dos casos, uma opção. Os dois primeiros: a passagem ao ato e/ou ao soma. A opção, que é na realidade uma transação, estaria na possibilidade de que esse embrião pulsional pudesse alcançar o desejo e, disfarçado nele, manifestar-se como sintoma. Diante disso, o caminho aberto pela análise, como algo novo para o sujeito, é a criação, no encontro com o outro (analista), de novas representações envolvidas na dimensão do desejo. Em outras palavras, seria a possibilidade que a análise oferece de incluir a repetição do soterrado no reprimido do inconsciente.
No que se refere à repetição, já percorremos um longo caminho na psicanálise: desde a conceitualização freudiana até os desenvolvimentos (entre outros) de Winnicott, Lacan e, atualmente, de Green, Laplanche etc. A partir de diferentes modelos teóricos, esses diversos desenvolvimentos oferecem-nos instrumentos para nos aproximarmos do desentranhamento do núcleo oculto do psiquismo. Por exemplo: a partir das formulações de Lacan (1977), poderíamos indagar se, nesse ponto do soterrado, a tarefa analítica, ao invés do atravessamento do fantasma, não implicaria sua construção (já que teria sido justamente a impossibilidade de “construir o fantasma” que marcou estruturalmente o sujeito). Em uma linha de pensamento bem diferente, Winnicott (1991) trouxe, com as descrições dos fenômenos transicionais, a possibilidade de enunciar algum tipo de “conjectura representacional” capaz de deter a ação repetitiva da pulsão. Já as contribuições de Green (1990) sobre a relação intrusão/ausência do objeto aproximam-nos, no marco presença-ausência da relação analítica, da possibilidade de inverter os termos desse máximo de potência e mínimo de signifi cação com que defi ne o ato pulsional, em que o aumento da última conduziria à conseqüente diminuição da primeira. Laplanche (1996) parece localizar esse núcleo do psíquico (o soterrado) naquilo que descreve como a implantação de signifi cantes, produto da relação com um outro. Nesse sentido, sua posição se resumiria ao que ele desenvolve a partir de sua idéia de um plus de sexualidade inconsciente da mãe.
De minha parte, tento somar minhas aproximações a esse “soterrado” que, ao não encontrar significação, ficará preso à compulsão repetitiva encoberta e expressa pelo destino (tema sobre o qual me estenderei no próximo tópico). Quero apenas acrescentar o seguinte comentário: em princípio, por mais óbvio que pareça, considero relevante insistir em alguns perigos que ameaçam a tarefa analítica, especialmente ao se trabalhar sobre esta zona do psiquismo. Em primeiro lugar, o perigo de que o analista possa cair na tentação de oferecer um destino “melhor e diferente” daquele que se manifesta na repetição do soterrado. Em segundo lugar, e concomitante a esse, o perigo da tentativa de adaptação do paciente ao que o analista ou a cultura supõem ser mais “saudável” ou conveniente. E, por último, o risco de assumir, na análise, a posição do Outro, ao invés de tender à sua destituição. Em suma, avisos que nos advertem para o perigo dos “retornos” sugestivos na psicanálise (especialmente quando se força sua competição em “eficácia” e “rapidez” com outro tipo de psicoterapias). Não se trataria de “oferecimentos”, nem de adaptações, nem de se colocar no lugar do Outro; nem sequer da reconstrução material de um fragmento da história (porque, no que diz respeito a este tipo de repetição, ela nunca foi inscrita como tal). Adianto aqui, brevemente, o que desenvolverei nos próximos tópicos: diante do poder da sincronia atemporal da repetição em ato, considero que nosso melhor recurso é “a construção”, desde que seja feita fundamentalmente com as produções que emergem como repetição, no presente transferencial, daquilo faltante como história. Desta maneira, e utilizando a memória do processo analítico, o analista poderia ir instalando uma diacronia histórica libertadora na análise. Diacronia que é, sem dúvida, absolutamente singular para cada analisando.
Freud afi rma a propósito da construção do analista que é a convicção do paciente (à qual ele dá um valor equivalente ao da recordação) que pode mover e, ao mesmo tempo, captar uma mudança psíquica. Será que essa mudança viria da ligação que as palavras do analista introduzem na trama repetitiva do ato, do impacto afetivo que um trecho conjectual da história provoca no analisando? Ou será que inventar as origens de uma história como “produto” de tê-la revivido na análise pode levar a deter a repetição? Ou ainda, como outra opção, será que a possibilidade de figuração poderia trazer alguma signifi cação ao não representado? Em todos os casos, ao invés da reconstrução histórica da verdade material, haveria construção do novo, ou seja, a criação.
Concluo este tópico: a psicanálise contemporânea enfrenta o desafi o que representam as três classes de repetição: a “representativa” (edípica), a do “não representado” (narcisista) que pode adquirir representação, e a do chamado “irrepresentável” (marcas mnêmicas ingovernáveis que às vezes se disfarçam de destino). Diante desta última repetição, as posições do analista variam e oscilam entre considerar as “neuroses de destino” como limite ou como novo desafi o para a análise.

2. A repetição na clínica. As posições do analista
Tendo transitado o terreno das expressões psicopatológicas da neurose, da psicose e da perversão, a psicanálise contemporânea foi se introduzindo no campo das patologias narcisistas, das chamadas patologias borderline, da psicossomática, das adições etc. Nas últimas, trabalhando o conceito e o fato clínico nos estados-limite.
A clínica atual ainda apresenta os sintomas conhecidos: angústia, rituais obsessivos, fobias etc., em particular aqueles marcados pela dor da repetição: cada vez mais as pessoas chegam à análise perguntando pelo seu “destino”. Os que nos consultam formulam isso da seguinte maneira: por que tropeço sempre na mesma pedra? Por que, mesmo sabendo disso, não consigo evitar? Essas perguntas trazem implícita esta outra: por que o tempo de hoje é igual ao de ontem e será igual ao de amanhã? Faço um breve parêntese para uma refl exão: esse “assassinato do tempo” (Green, 2001) não seria, por acaso, um dos sintomas mais reveladores do adoecer do homem da cultura de hoje?10
Nesse caso, a consulta, hoje, não se expressaria apenas como busca do alívio para este ou aquele sintoma, mas também como tentativa (mais ou menos manifesta) de encontrar os porquês de uma maneira de viver que acaba sempre em sofrimento. Esse questionamento leva o indivíduo a buscar indícios que lhe permitam compreender essas marcas “soterradas”, isso que, fundido na própria raiz de seu ser, faz com que se perca no sem sentido do ato, do que se esconde em cada repetição compulsiva.
Voltando ao terreno da clínica, preciso explicar, ainda que brevemente, alguns aspectos da minha concepção de aparelho psíquico e, portanto, de meu trabalho terapêutico, em termos do que denominei zonas psíquicas (Marucco, 2002, 2005a, 2005b). Em minha formulação, cada uma destas zonas psíquicas remete a uma configuração particular na dinâmica da relação pulsão-objeto, e na clínica remete também a uma demanda particular da posição do analista como objeto, como “o outro” no marco da situação analítica. Sabe-se que essas zonas psíquicas inconscientizadas coexistem, em diferentes graus de predomínio, segundo as características da psicopatologia. Mas cada uma delas aparece, com características singulares, em diferentes momentos de uma análise (em todas as análises), determinando tanto as posições do analista como as próprias condições do campo analítico. Seria uma espécie de “tecitura” em que a zona do sonhar, ou seja, a zona do inconsciente reprimido, sexual e significante, convive com outras, por exemplo, a zona do narcisismo, isto é, da relação do ego com o ideal, e a zona de um inconsciente que já não é o inconsciente reprimido, e sim um inconsciente mais vinculado ao sentimento de culpa, à problemática da auto-estima e do sentimento de si. Outra zona psíquica corresponde ao que chamei de “o inconsciente das identificações”, em que o objeto, o Outro (com maiúscula) e o outro (com minúscula), é identificado no ego ou no superego. O processo de subjetivação, na primeira zona, implicará a tarefa de desvelar o significante e na segunda, a de aprofundar a análise da idealização, enquanto na zona da identificação será necessário o trabalho de desidentificar aquilo que foi identifi cado de forma patológica. Mais especificamente: a análise terá de descobrir os caminhos que levam a uma desidentificação capaz de devolver ao sujeito sua pulsionalidade, achatada ou mesmo apagada pelo excesso identificatório (identificações primárias passivas) (Marucco, 1978b). Um passo a mais e nos deparamos com a zona que se forma na relação do psiquismo com a castração e/ou com o mundo exterior. Trata-se, basicamente, de uma modalidade particular de estruturação psíquica constituída a partir do mecanismo da desmentida (verleugnung) que, junto com a cisão do ego, passa a ter um papel estrutural no psiquismo (Marucco, 1996).
Deixei para o final, a zona da repetição e da pulsão de morte por ser o centro deste ensaio. (Só quero deixar claro que a análise, para mim, transcorre no aparecimento das distintas zonas, em diferentes momentos do processo analítico). Quando a atemporalidade do inconsciente explica a essência mesma do eterno presente, a “via régia” de expressão do inconsciente será também o ato. Isso significaria, portanto, que podemos continuar pensando nossa via de ação terapêutica em termos de associação livre – regressão – recordação? No campo clínico, pressionado por essa compulsão demoníaca, a repetição em ato reclama ligação. Mas esta deve ser construída sobre a estrutura de um tecido psíquico feito de marcas coaguladas na ausência de um sentido. O analista é chamado então a deter essa circularidade da repetição em que o sujeito se perde de si mesmo. A recuperação da temporalidade perdida constituirá assim o verdadeiro porvir do sujeito. E, nisso, a posição do analista será fundamental: tudo dependerá da aposta pulsional (Marucco, 2006) que ele possa pôr em jogo.
Mas, vejam bem: entendo que as marcas desse destino assinalado pela repetição voltam na impulsão ascensional do soterrado. Através da pulsão emergente (Freud, 1920/1986), o soterrado é “arrastado” – diríamos, “atraído” – por elementos do inconsciente reprimido, onde são enlaçados pelo desejo. Por esta via, o desejo é utilizado para mascarar e, ao mesmo tempo, manter oculto o “sujeito da repetição”. O antigo destino repetitivo que “ascendeu” ao campo do reprimido adquire, assim, uma significação sintomática disfarçada: fobias, obsessões etc., acessíveis, dessa maneira, a um certo trabalho analítico. Por sua vez, a repetição “pura” (comandada pela pulsão de morte, quase no campo do pré-psíquico, sem alcançar os significantes reprimidos), expressa-se em um tempo paralisado que, na sucessão de atos, constitui uma permanente reiteração de um presente atemporal. Mas não é só isso: a repetição “pura”, aquele “embrião pulsional” que só se descarrega em atos, ou no soma ou como destino, produz algo mais: arrasta em sua descarga significantes do reprimido, levando ao empobrecimento do psiquismo. A repetição pura, lentamente, vai silenciando o capital representativo, até emudecê-lo. Green (2001) define muito bem: há pacientes que, por falta de análise, podem morrer antes do tempo, ou ser condenados ao silêncio. Eu acrescentaria que, na melhor das hipóteses, são condenados ao transbordamento delirante. Talvez isso ajude a esclarecer minha proposta da aposta pulsional do analista como a última tentativa de ligação, assim como a necessidade, com estes pacientes, da criação do “tecido psíquico” perdido.
Sem isso, o tempo é “assassinado” e “crescem” as marcas que só encontrarão expressão no ato ou em uma “maneira de ser” na vida. A partir daqui, a cura analítica não será apenas rememoração, mas, sobretudo, a recuperação nos atos daquilo que não se pode recordar.
O desafio da clínica nessa zona é saber como produzir “recordação” onde há “memória amnésica” (Green, 1990); e como desfazer o que a repetição estrutura, à maneira de um destino, para que o paciente possa, pela força da pulsão de vida, transformar seu presente e seu futuro em algo diferente. Embora não se disponha ainda de uma metapsicologia que descreva cabalmente essa expressão psíquica particular para determinar sua técnica de abordagem, devemos buscar um esboço de representabilidade para uma possível subjetivação da repetição pura. Essa é uma tarefa analítica por excelência. De que outro modo isso poderia ser feito a não ser através da construção conjectural de um tipo de “história” que ajude a desentranhar o soterrado (verschüttet) que surge no ato? Vocês entendem minha insistência no soterrado (verschüttet)?
Sabemos que, durante o processo de uma análise, o analista decifrará a associação livre através de sua atenção flutuante. Mas, nos momentos de “pura repetição”, é justamente o “instante de quebra” particular de sua atenção fl utuante que possibilita o surgimento, no próprio inconsciente, de algo capaz de dar representação a esse recôndito que se oculta quando se expressa na repetição. Evocada na mente do analista, a construção vai sendo feita, no meu entender, a partir dos diferentes momentos de subjetivação que se produziram no curso da história do processo de análise, de cuja memória o analista é o depositário. Assim, a construção deixará exposto esse trecho da vida que tinha ficado na pré-história do psiquismo, fixado, por assim dizer, no instante do trauma, impedindo a possibilidade de subjetivação. Nestas considerações, é particularmente importante atentar ao fato de que, embora seja o analista que formule a construção, o sentido capaz de deter a imposição de um destino (hermenêutica) é aquele que, na apropriação dessa história e com sua convicção particular, o paciente lhe outorga.
A análise deveria, então, não apenas rearmar o “tecido psíquico” (Marucco, 1998) que a repetição, comandada pela pulsão de morte, esgarçou (com seu poder de desligamento), mas também trabalhar junto ao paciente para criar essa trama capaz de conter aquilo que não pode adquirir significação. Isso iria constituindo uma trama psíquica que, ao funcionar como “tecido de contato”, serve como anteparo aos embates da compulsão traumática. (Marucco, 2006).
Insisto: o melhor suporte para a implementação desses recursos técnicos, a única força que pode “reanimar” esse tempo retido pela repetição do trauma, o analista encontrará em sua própria aposta pulsional. Trata-se, em suma, de incluir na dimensão da cura a presença do analista, envolvido com todo seu ser e todo seu saber na tarefa analítica. Poderíamos dizer ainda, com toda sua “alma e vida”. Em certa medida, isso está vinculado também ao tema da singularidade real do analista (Marucco e cols., 1995), que se refere ao “corpo erógeno da presença terapêutica”, considerada durante muito tempo como uma “incômoda” interferência na análise.

3. Transferência e repetição. Função e pessoa do analista
Aceitar a transferência como patrimônio da neurose implicou, no momento em que isso ocorreu, o reconhecimento de que o intrapsíquico não poderia revivido apenas como recordação, mas também como potência atual (agieren) na transferência; ou seja, com o outro. Nesse ponto, ocorre uma virada importante. Embora na transferência do sonho Freud tenha relativizado a significabilidade do objeto (através dos restos diurnos), em função de hierarquizar “a missão” do desejo inconsciente, com o aparecimento do conceito de neurose de transferência, ele volta a enfatizar a supremacia do objeto. Vemos assim como a figurado analista vai ganhando significação para o paciente ao longo do tratamento. “A assiduidade de encontros e as características do analista geram uma relação que torna possível o desenrolar de “momentos transferenciais” (Marucco, 1998).11 Nesses “momentos transferenciais” produzse a repetição dos clichês das estruturas fantasmáticas do narcisismo e do Édipo assim como de suas possíveis reedições modificadas e corrigidas, apoiadas na “singularidade real” do analista (Freud, 1905/2006; Marucco et al., 1995).
Em outras palavras, na situação analítica, a presença do analista como função e como pessoa (entendida esta como singularidade real) permite que a transferência seja mais que uma mera repetição, para se transformar-se em uma reedição corrigida e aumentada. Essa “singularidade real” poderia constituir um elemento de simbolização, na transferência, quando, então, possibilita que uma repetição invariável se transforme em uma nova edição representada.
Devemos, então, diferenciar estas repetições edípicas e narcisistas daquelas outras que, oriundas da repetição quase “pura” do analisando, tocam a pessoa do analista naquilo do seu inconsciente que não foi mobilizado em sua própria análise. Esse despertar do inconsciente “não analisado”, inédito, do analista (que, obviamente, não faz parte da função analítica), pode ser apropriado e chama para o trabalho de auto-análise. Neste sentido, poderíamos dizer que, na pessoa do analista, vão se hospedando diferentes elementos da relação com o analisando que devem “descer” da pessoa do analista (singularidade real) para a função analítica. Com esta postura, a função analítica não só implica uma posição de “suposto saber”, mas também inclui a particularidade real e os afetos do analista, com seus efeitos de ligamento e de desligamento; e mais ainda, inclui o inconsciente inédito da pessoa do analista que vibrou com a repetição pura do inconsciente do analisando. Encontro-me, aqui, próximo da noção de “campo” em psicanálise (Baranger & Baranger, 1969).

4. A repetição do arcaico e a mente do analista
Talvez tivéssemos de admitir que quando falamos de “função analítica”, costumamos pensá-la a partir do marco de um dispositivo que facilita operar analiticamente. Dispositivo que se apoiará, basicamente, no que denominamos “atenção fl utuante do analista”: as associações livres do paciente e o desvelamento dos significantes que vão surgindo para incluílos no campo representacional.
Entretanto, quando a estrutura da repetição, produto das primeiras inscrições na constituição do psíquico, irrompe no campo analítico, a questão do representável sofre uma guinada importante. O não-representado e irrepresentável da pulsão, que não chegam ao campo da palavra, produzem um “curto circuito” que os localiza na passagem ao ato ou ao corpo. As manifestações psicopatológicas no soma e as passagens ao ato referem-se, como já disse, ao chamado “o arcaico12 em psicanálise, à clínica dos fenômenos residuais, ou seja, a tudo aquilo onde, no lugar da representação de palavra, existem atos e, acrescento agora: paixões.
Volta a indagação: como se manifestam-se na clínica estas inscrições para além ou para aquém da representação de palavra e que não configuram fantasma?
Nesta repetição quase “pura” não apenas não há representação como há presentes fusionais e passionais que se expressam de diferentes formas, desde a fúria destrutiva até à tendência ao Nirvana ou, mais claramente, ao desejo de morte. A clínica contemporânea se transforma ao questionar a extraterritorialidade que tiveram o ato e o soma, e reflete os avatares do trabalho analítico ao “pisar” nessas zonas de confluência e de demarcação que constituem essas categorias de fronteira. É necessário esclarecer que essa “zona psíquica” está fora do campo do significante (em cujos labirintos de metáforas e metonímias vislumbra-se, sem dúvida, a silhueta do desejo). Essas expressões “para além da representação” desafiamnos a uma leitura clínica que poderíamos descrever como a construção do ato, ou como a tentativa de “representação” do corpo. Se, além de descrevê-la, pensássemos em como levá-la a cabo, poderíamos dizer que se trata de um processo de trabalho analítico pelo qual, em um movimento regressivo (Botella e Botella 1997) a partir da representação da palavra, o analisando poderia ir trazendo algum tipo de representação mais próxima ao sensorial (representações auditivas, táteis, olfativas, visuais etc.). E quando, no plano do sensorial, chegássemos ao signo perceptivo, próximo ao terreno alucinatório, eu proporia para a análise algo desafiante que começarei por enunciar da seguinte forma: na análise da repetição do arcaico não há história nem palavras, mas apenas “situação analítica”, ou seja, encontros que transformam. No campo da neurose (ou na zona do significante), a atenção flutuante do analista permite detectar, na associação livre do paciente, o golpe do significante. O analista pode tentar responder a essa potencialidade sensorial, traumática, pondo em jogo algo mais que sua contratransferência, ou seja, sua capacidade de rêverie (Bion, 1966), quase “sua mente”. Isso poderia ser definido, em parte, como o inconsciente inédito, não analisado que surge no analista quando a opacidade do significante não permite a análise da associação livre, nem sequer a possibilidade da atenção flutuante. A opacidade do significante, que préanuncia a repetição do ato, pode, ao mesmo tempo, produzir no analista um estímulo dessa “capacidade de sonhar”, a partir da qual talvez encontre aquilo que outorga, mais do que a representação, os traços de um pensamento não pensado.
Poderíamos denominar provisoriamente essa tarefa analítica como a mente do analista trabalhando diante da repetição do arcaico. Trabalho de elaboração do analista; revelador e também inquietante. Ocorre, no entanto, que quando esses “outros significantes” não lingüísticos são evocados na mente do analista, eles se expressam como “vivências”, e não como representações. Vivências do novo, do diferente; daquilo que se inscreve permanentemente para que, em algum tempo, se torne memória. Mais uma vez, estamos próximos do desafio de construir fantasmas ali onde só havia inscrições pré-verbais. É preciso insistir em que o grande risco, nesse momento clínico, é que o campo analítico sofra uma hipertrofia do irracional que o aproxime do campo da magia, em que a pessoa do analista se eleva como ideal (Marucco, 2005). Como prevenir isto? Só posso me remeter àquilo que talvez seja o mais antigo e imperecível no ser analista: a auto-análise, a re-análise que permite encontrar nexos, relações e, fundamentalmente, diferenciar o que cabe a ele e que cabe ao Outro e à relação com o outro.
Para concluir este tópico, pergunto: com o que contamos para pensar a “mente do analista” e seu funcionamento diante das repetições do analisando? Cito três possibilidades: primeiro, sua “singularidade real”, que permitiria que as repetições invariáveis se tornassem reedições corrigidas e aumentadas; segundo, sua capacidade de sonhar, que lhe permitiria outorgar representação à repetição do não-representado; e terceiro, a própria escuta do enigma de seu inconsciente não analisado, inédito, ativado diante da repetição do irrepresentável do analisando, e que sempre luta para adquirir novas representações. De posse desses instrumentos, como intervém o analista? Primeiro, mediante a construção, construindo a história do processo analítico, na sincronia transferencial, quase como uma espécie de reconstrução da verdade material que o analista viveu junto a seu paciente durante o processo de cura. Segundo, pela interpretação do intrapsíquico, isto é, da pulsão ligada às identificações primárias, com o objeto e no objeto, que se expressam em atos. E terceiro, pela construção conjectural desses fragmentos de história que podem contribuir para desenterrar o soterrado. Nesse ponto, estaríamos, metaforicamente, diante da criação do “tecido psíquico”, do não-nascido que pode nascer, ou seja, do surgimento do novo em psicanálise, que cede terreno do não-representável ao representável e avança sobre o irrepresentável. De qualquer maneira, é necessário, para que haja análise e não síntese, um grau imprescindível de desligamento13 que assegure sempre a conservação de algo inacessível, irrepresentável (o umbigo do sonho), que se subtraia à apropriação por parte do outro e se defenda dela.
Paro por aqui. Cheguei ao final do ensaio. Não sei se ficaram claras todas as quest que formulei e, menos ainda, as respostas. Mas quero, sim, deixar o testemunho de algo que vi tantas vezes refletido em minha clínica: a dor incontida daquilo que não se pode deter, o furioso e temível padecer que a repetição mantém ardente; a urgência desses analisados que procuram o analista como o que parece ser seu último recurso. Diante da repetição do para além, da pulsão de morte, nós, analistas, sentimo-nos muitas vezes incomodados ou desanimados. Outras vezes, pesa também o próprio destino, lançado na arena dos avatares, reconhecida na repetição do analisado. Penso que a análise é uma possibilidade inédita de ligamento, de mudança de rumo diante da repetição do destino. Para o analista, implica uma aposta pulsional com resultados imprecisos, que em alguns casos são eloqüentes, enquanto que em outros apenas se consegue moderar a repetição, e em outros se fracassa. Por fim, o tema deste ensaio põe à prova a própria convicção com respeito à análise, e convida a revermos juntos os fracassos terapêuticos. Se o fizermos, e se refletirmos sobre eles, poderemos oferecer ao novo milênio uma psicanálise metapsicologicamente sólida e audaciosa na clínica. Audácia necessária não só para enfrentar, com o trabalho analítico, a crueldade do destino, mas fundamentalmente para desmascarar, por trás dessa sina fatídica, a compulsão que desespera, construindo e reconstruindo permanentemente, com seus próprios escombros, até que o sujeito da análise possa semear, nesse tempo arrasador da repetição, a semente de uma história própria, inédita e com final aberto.

Referências
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Endereço para coorespondência
Norberto Carlos Marucco
San Luis 3364
CP 1186 – Buenos Aires – Argentina
E-mail: marucco@ciudad.com.ar



1 Título original: Entre el recuerdo y el destino: la repetición. Trabalho a ser apresentado no 45o. Congresso da Associação Internacional de Psicanálise, em Berlim, de 25 a 28 de julho: IPA 2007 – Remembering, Repeating & Working Through in Psychoanalysis & Culture Today. Tradução de Maria Teresa Moreira Rodrigues (membro associado da SBPSP).
2 Membro titular da Associación Psicoanalítica Argentina (APA).
3 Freud nos diz, referindo-se à repetição na vida das pessoas não neuróticas: “Nestas, tem-se a impressão de um destino que as persegue, de um viés demoníaco em seu vivenciar […] determinado por influxos da primeira infância. A compulsão à repetição que assim se exterioriza não é diferente da dos neuróticos, apesar de estas pessoas nunca terem apresentado os sinais de um conflito neurótico tramitado mediante a formação de sintoma” (itálicos meus) […] “Este ‘eterno retorno do igual’ […] surpreende-nos muito mais nos casos em que a pessoa parece vivenciar passivamente algo subtraído de seu controle, a despeito daquilo que, uma e outra vez, pela repetição do mesmo destino” (Freud, 1920, AE 18; 21-22, SE 18: 22).
4 Entendo que temos um forte desafio pela frente. Um trabalho de confrontação entre os diferentes esquemas teóricos que permita novas integrações, mas evitando, ao mesmo tempo, cair em dogmatismos.
5 Creio que não é preciso esclarecer que essa posição que defendo não implica diminuir o valor do rememorar na psicanálise.
6 Essas difi culdades, que começavam a revelar-lhe a repetição fora da análise, permitem-nos inferir que Freud já intuía que o conceito e o fato clínico da neurose de transferência não eram suficientes para conter todas as expressões da repetição.
7 Defino com este termo metafórico os momentos originários do psiquismo em que a pulsão, sem chegar à representação, tende basicamente à descarga em ato ou no corpo. Momento do psiquismo, na expressão de Green (2001), em que a pulsão está no máximo de sua potência enquanto ato, e no mínimo enquanto significação. Por outro lado, o conceito de “embrião pulsional” permite-me localizar precisamente a origem do psíquico próxima ao conceito de implantação, tanto no corpo como no outro (Laplanche, 1979).
8 Verschüttet (GW 16, p. 46). Buried (SE 23, p. 26). Soterrado: o esquecido por completo; o primitivo.
9 Por que Freud utilizará esse termo? Estará se referindo ao “mais recôndito” que se transforma em repetição? Ou seja, àquilo que “a criança viu e ouviu”, anterior à linguagem (Freud, 1937b/1986)?
10 Um tempo que, pautado pelo poder, nos des-subjetiva, nos faz menos vítima das recordações do que do passado que nos devora, se não andarmos no seu ritmo; e um tempo que dá pouca margem ao afeto, ao pensamento, à criação.
11 Refiro-me aos momentos-chave, decisivos para a mudança estrutural do paciente, em que o reviver transferencial se integra à história estruturante. As construções revelam-se, assim, como instrumento técnico privilegiado para inserir a vivência transferencial/contratransferencial, atemporal, num tempo histórico particular. Os momentos transferenciais constituem a passagem na qual a construção procura sempre integrar a história fragmentada do paciente, buscando se aproximar do encontro com a irremediável “unidade” perdida.
12 Entendo “o arcaico” relacionado a um tempo lógico na construção do psiquismo, e não em uma temporalidade evolutiva.
13 Um exemplo claro de como as pulsões atuam em relação a meios e fins. Nesse caso, por exemplo, o desligamento expressaria a pulsão de morte como meio para um fim ligado a eros.

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