sábado, 4 de agosto de 2012

ENTREVISTAS PRELIMINARES

Maria Cristina Bezerril Fernandes

O que se designa por "entrevistas preliminares" constitui um movimento inicial do dispositivo analítico, correspondente ao que Freud, em seu texto "O Início do Tratamento", chamou de tratamento de ensaio.
Embora estas entrevistas digam respeito à técnica da experiência analítica, não há como se falar em técnica sem se reportar à ética da psicanálise. Como diz Miller, "na análise as questões técnicas são, desde já, questões éticas, e isto por uma razão muito precisa: por nos dirigirmos ao sujeito. A categoria do sujeito não é uma categoria técnica. A categoria do sujeito, como tal, não pode ser colocada senão na dimensão ética.
No texto "O Estádio do Espelho", publicado em 1949, Lacan inventa um conceito – uma teoria do sujeito, que não cessará mais de aprofundar. Este conceito torna-se o ponto fixo, a partir do qual ele empreenderá seu "retorno a Freud".
Precisamente por se tratar do sujeito é impossível estabelecer padrões na prática analítica. Condições erigidas em regras não participam do rigor analítico – esvaziam e difamam a experiência analítica. O rigor se dá na condução da análise, sobre a qual o analista deve saber responder. Isto não quer dizer que a falta de regras resulte da falta de princípios. Eles existem, são transmitidos através da própria análise, sem explicitação, e é preciso dar-lhes um fundamento formalizado.
O que é um sujeito?
O que constitui o trabalho de uma análise?
Que lugar e função tem o analista?
De que tratam as entrevistas preliminares?
Mantendo em suspenso a questão do sujeito, partirei do que é colocado por Colette Soler: "uma psicanálise é o trabalho da transferência e nas entrevistas preliminares o que está em jogo é fazer trabalhar a transferência".
A inserção do paciente na transferência, não sendo da ordem da aptidão, supõe o ato analítico: como causa e empuxo ao trabalho da transferência. Lacan usou a metáfora do "umbral" – da análise como umbral, que faz entrar pela porta, implicando o sujeito numa verdadeira busca. E para que esta busca se instaure são necessárias duas coisas: sofrimento e questionamento.
A princípio, aquele que sofre busca na análise ajuda e alívio para suas dores. É só quando "algo vai mal" que se procura um analista. Lacan costumava recusar o pedido de análise daqueles que desejavam tão somente "se conhecerem melhor". Contudo, a queixa inicial demanda apenas uma palavra de cura, livrando o paciente do seu sintoma. E isto não é suficiente para que ocorra uma análise – receber alguém no consultório não quer dizer que este foi aceito e, muito menos, que esteja em análise.
Por mais que o sintoma conduza à análise, não significa que o sintoma apresentado ao analista de qualquer maneira autorize o início de uma análise. O sintoma analisável só se dá quando o paciente se questiona a respeito daquilo mesmo de que se queixa. Além do sofrimento e da demanda de cura – como se fosse possível alguém se "curar" do seu inconsciente – é preciso a suspeita de um sentido oculto no sintoma que escapa. O paciente terá que se supor um inconsciente e, mais, terá que aprender a amá-lo.
Na escritura lacaniana, "o inconsciente é estruturado como uma linguagem". Não estaria este postulado indicando que o acesso ao inconsciente está na própria fala do paciente, cabendo ao analista fazer com que ele exista a partir do ato analítico?
É necessário, portanto, diferenciar a queixa inicial ao analista do sintoma analisável. Entre sofrimento e questionamento, entre estes dois tempos, não há continuidade; e, o que funda a diferença, é a posição do analista ao suscitar a implicação do sujeito naquilo mesmo de que ele se queixa.
Do ponto de vista do analista, aceitar ou recusar uma demanda de análise já é um ato analítico. A prática das entrevistas preliminares significa que o começo é adiado. Há um tempo de compreender, que implica na questão diagnóstica, e um momento de concluir, no qual o analista toma a sua decisão. A indicação do uso do divã representa um corte que marca a descontinuidade destes dois tempos, significando ao paciente que, desde então, estará em análise.
Na maioria das vezes, o paciente está disposto a fazer tudo o que for preciso para se livrar do seu "mal" e o analista – "este analista" – é o único que pode ajudá-lo. Embora "este analista" já aponte para um endereçamento do sintoma, a transferência ainda não é analítica. Neste ponto, o sujeito quer apenas uma coisa: não saber nada.
Desde o início o paciente é posto a trabalhar – o reconhecimento pelo sujeito de um saber estranho é o que dá partida à transferência analítica. Na medida em que supõe que este saber existe, mas lhe escapa, deduz que é um Outro que o sabe. Um Outro que, desde o lugar do inconsciente, possa responder àquele que lhe questiona.
O conceito do sujeito, em psicanálise, implica no próprio desconhecimento deste em relação àquilo que o determina – o inconsciente. Esta relação de desconhecimento é constituinte do sujeito. Citando Lacan, "o inconsciente é este sujeito desconhecido do eu, não reconhecido pelo eu ... na Traumdeutung, quando Freud trata do processo primário, ele quer falar de alguma coisa que tem um sentido ontológico e que ele denomina o núcleo do nosso ser – der Kern unseres Wesen. O núcleo do nosso ser não coincide com o eu ".
No momento em que o paciente abandona a posição daquele que "não sabe nada" e se anima a trabalhar, esta animação põe em relevo a suposição de um sujeito no saber. Transfere esta suposição para o analista, identificando-o com "aquele que sabe ali aonde eu não sei". Esta transferência fixada no analista é uma transferência demandante: demanda ao Outro que responda.
O analista não sabendo do inconsciente mais do que o próprio sujeito, só poderá decifrá-lo a partir dos ditos do paciente, isto é, a partir do que as associações do sujeito contêm de mensagem. É preciso que o analista sustente a função do sujeito suposto saber para transformar a transferência demandante em transferência produtora pelo trabalho da associação livre – regra fundamental da psicanálise, única, que se encontra do lado do paciente. A operação do analista consiste em provocar o trabalho da associação, fazendo o paciente revelar que sabe mais do que diz. A fala como matriz da parte não reconhecida do sujeito constitui o nível próprio do sintoma analítico.
O sujeito suposto saber, como empuxo à transferência analítica, transforma o sintoma em enigma. Posto em forma de pergunta – pergunta do sujeito dividido e não esgotado por seu "cogito" – o sintoma torna-se analisável, por se incluir na transferência – amor de transferência.
O analista, como interpretação prévia à demanda do paciente, apresenta uma oferta – ele se oferece à transferência. Até aqui, dois termos: oferta e demanda. É exigível um terceiro: a recusa.
Sem a inclusão deste terceiro termo, o analista cede lugar à ilusão de um saber absoluto, que implica numa concretização do Outro. Uma análise levada nestes termos não passará, no melhor dos casos, de uma identificação imaginária do eu do paciente com o eu do analista – ilusão de reciprocidade. De acordo com Quinet, "como propor ao analisando uma espécie de concretização do Outro, sabendo que numa análise conduzida a seu término, o sujeito é levado a se confrontar com a falta do Outro, justamente, porque o Outro falta?".
Operar com três termos inclui o "não é isso" que é, precisamente, o que fica mais além da demanda, ou seja, o desejo enquanto desejo do Outro. Se a demanda está aquém do desejo, há que se suportá-la para que dela possa emergir a dimensão da falta. Segundo Lacan, "se o ser fosse apenas o que é, não haveria nem sequer lugar para se falar dele. O ser se põe a existir em função mesmo desta falta". Quem procura um analista o faz para falar desta falta, mesmo que não saiba que é isso o que o faz falar. Talvez, justamente, porque não sabe.
Freud, ao situar as condições de entrada na cura, dá uma indicação preciosa – ele dá lugar a um certo silêncio. O analista deve ser bastante "morto" para não ser fisgado pela relação imaginária, no interior da qual ele é sempre solicitado a intervir. Sua posição não é de saber, mas de ignorância – "douta ignorância" – demonstrando que não sabe com anterioridade o que o paciente quer dizer. Diferentemente de uma atitude de compreensão, o analista supõe que o paciente quer dizer "outra coisa", pois sabe que o fundamento do discurso é o mal-entendido.
A palavra que interessa ao discurso analítico é, precisamente, a que gira em torno da coisa a revelar, da coisa sem nome - o desejo – que encontrará mais facilmente uma passagem à medida em que a economia da relação imaginária tiver sido progressivamente diminuída.
O desejo como relação de ser com falta é, pois, o que cabe ao analista introduzir na questão sinto-mal do paciente, responsabilizando-o pela escolha de sua neurose. O paradoxo é que o lugar da responsabilidade do sujeito é o mesmo do inconsciente. O desejo é uma pergunta sobre o desejo. O sujeito tem uma pergunta sobre o desejo, e o sujeito do desejo, ele próprio, nada mais é do que uma pergunta: "Che Vuoi?", "Que queres?". Implicar o sujeito em sua submissão ao desejo como desejo do Outro é introduzi-lo na dimensão da falta – ética do desejo. Este ato interpretativo é chamado de retificação subjetiva.
A retificação subjetiva supõe a dimensão ética da psicanálise como resposta à patologia do ato que a neurose instaura na tentativa de escamotear a problemática questão da falta-a-ser. Como bem diz Quinet, "a retificação subjetiva aponta que, lá onde o sujeito não pensa, ele escolhe; lá onde pensa, é determinado, introduzindo o sujeito na dimensão do Outro".
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. – "O Início do Tratamento" – Editorial Biblioteca Nueva, Madrid, 1991
LACAN, J. – "O SEMINÁRIO - livro 2" – JZE, RJ, 1995
_______ - "O SEMINÁRIO - livro 3" – JZE, RJ, 1988
MILLER, J.A. – Conferências - Revista FALO, n. 2, l988
QUINET, A. – "As 4+1 Condições da Análise"- JZE, RJ, 1993
SOLER, C. – "Artigos Clínicos – A Transferência, A Interpretação, A Psicose"- Ed. Fator,
Salvador

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