quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A NEUROSE RELIGIOSA EM NIETZSCHE

A NEUROSE RELIGIOSA EM NIETZSCHE: a psicologia da religião presente em Além do Bem e do Mal 


“Nada é mais terrível e covarde do que o homem que foge de seu próprio demônio” (O Coração das Trevas – Joseph Conrad).


No capítulo III de Além do Bem e do Mal, concernente a natureza religiosa, Nietzsche elabora uma crítica histórica sobre o despertar religioso nos homens de toda espécie, de todos os tempos em face de seu olho de águia e de seu faro psicofisiológico, liberto das amarras e “avaliações de fachada” de toda tradição filosófica dogmática desde Platão.
Nietzsche percebeu no despertar religioso do homem três fórmulas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual, cujo sacrifício consiste num ritual de catarse, ascetismo e limpeza de todos os sentimentos, impulsos e instintos que o “homine religiosi” imagina como “terreno” ou mundano, de algo que está no mundo e na representação de sua vontade, como se a sua vontade fosse um teatro onde entidades diversas atuassem como duendes tentadores. Esse sacrifício neurótico pode decorrer basicamente tanto de uma devoção, de uma prova de fé a fim de evidenciar o seu afastamento e o seu desprezo pelo mundo, como também de um arrependimento ou de uma falta cometida pelas ações intermediárias de tais duendes personificados. Por conta disso, o homem religioso procura redimir-se por essas provações de autocrueldade sob o sol de uma verdade a priori cuja influenza sedimentou-se em seu frágil espírito. Em função dessa neurose, ele se sente arrebatado por uma “volúpia” sobrenatural, uma espécie de alumbramento, arroubos d’alma que imediatamente se transformam em “penitência e negação da vontade e do mundo”, que podem ser interpretadas por uma “epilepsia mascarada” identificada como uma crise convulsiva de entidades psicológicas que o “doente” religioso imagina como potências estranhas independentes de sua estrutura fisiológica. Aqui, potências estranhas são afirmadas pela negação de outras potências estranhas fundadas respectivamente nas oposições de valor bem e mal – num sacrificante processo de racionalização. Ora, essa alma religiosa, esse pato-lógico amesquinhou-se na caricatura de uma “moral como atitude doentia”, no dizer de Nietzsche. O homem religioso, especialmente o cristão tornou-se a hóstia da “decadênce” se acovardando diante da natureza e da própria vida. Ele por si próprioo sendo seu bode expiatório.
Em torno de tal neurose, fundamentam-se inusitadamente a insensatez e a superstição somadas a um temor através do “pessimismo incurável” presente na filosofia de Schop-penhauer. Esse pessimismo incurável é uma aberração abortada de um idealismo enfermo, de um dedo em riste contra as gradações multicores do mundo e da natureza, vistos como um câncer. Diante deste temor, o homem sentiu-se obrigado a fazer uma interpretação religiosa do existir de forma pessimista. Esse artista superficial e medíocre, imerso num profundo desgosto, falsifica a vida no que ela tem de belo e vital enxergando mal em tudo; calunia o mundo lançando todo tipo de imprecação com seu dedo acusador - dele se afasta e se distancia numa “jeremiada” de latidos covardes, anulando a sua natureza vital que reflete a sua própria vida, fechando-se na igreja de sua alma vacilante à espera de um Messias de óculos para a sua redenção.
Portanto, é a partir da negação da vontade e do mundo, fruto de sua neurose autoflagelante, que o homem religioso imagina buscar a sua cura, sacrificando e reprimindo os seus instintos vitais, a sua própria “natureza” que poderia levá-lo acima do bem e do mal e suportasse todo tipo de sofrimento com altivez e demonstração de superioridade sem necessitar de um fantasma divinizado. Mas, sem se aperceber destes predicados psico-fisiológicos e mergulhando num “êxtase” cego ante a imagem distorcida da cruz, ele se imagina agraciado com as condecorações da “santidade”, recebida graças a uma categoria coisificada que os racionalistas deram nome de fé, que nada mais é do que um simples “sentimento de potência” produzido pelo homem no homem para o próprio homem.
Logo, Nietzsche percebeu que o fenômeno do santo foi fabulosamente interessante para toda a cadeia de gerações por causa da sua “aparência de milagre, de imediata sucessão de opostos de estados d’alma julgados moralmente opostos: aqui parecia palpável que um ‘homem mau’, se tornasse de repente um ‘santo’, um homem bom” (Aforismo 47, A Natureza Religiosa em Além do Bem e do Mal).
De fato, todas essas oposições morais de valores partiram da preconceituosa, da medíocre interpretação religiosa da existência, refletida no culto apaixonado e excessivo das “formas puras” de toda tradição filosófica-cristã sob o hocus pocus dominante da moral dogmática. Certamente, “uma estupidez até a santidade”, com a finalidade única de domar e impor regras para um rio de correntezas cheias de vicissitudes e turvações in natura que é o “animal homem”.
        Apesar de seu fenômeno neurótico, Nietzsche preconiza a religião como um meio de educação e cultivo de acordo com a tipologia do caráter humano. Com relação aos fortes, indivíduos independentes, espíritos livres predestinados ao comando, a religião servirá como mais um meio de vencer resistências, insubordinações em massa para a manutenção e prevenção do domínio desses espíritos livres. Para tanto, será utilizada como um laço que une dominadores e súditos – mas, em favor daqueles, a religião pode-se constituir numa espécie de detector psicológico de um modo que possa desvelar os complôs ocultos e intencionais daqueles súditos que pretenderem se desgarrar das correntes da obediência. Além disso, ela pode ser utilizada como uma pomba da paz ou justiça referente ao caos social, à sordidez da política e a todo tipo de governo ditatorial e corrupto; ela pode ainda ser usada como escada de orientação e oportunidade por aqueles dominadores que almejam dominar algum dia, passando de dominados a dominadores. Como se percebe, a religião como um meio, entre tantos meios torna-se uma expressão cultural, pois deixa de ter um caráter universalista e prepotente para atender apenas as vontades e as necessidades conforme a realidade e a tipologia peculiar de cada indivíduo, de cada classe, grupo ou povo.
Para os homens ordinários, esses “animais de rebanho”, a religião servirá como meio de proporcionar a mansidão do espírito e a compaixão entre seus iguais, compartilhada na vida cotidiana, pobre e monótona. A função da religião para o animal de rebanho é como água de pântano que mantém a clorofila verde desses pobres seres vegetais que se limitam apenas aos seus afazeres subservientes. Assim, a religião é um alucinógeno, um paraíso artificial que alivia o sofrimento do rebanho, mantendo o seu contentamento com a realidade prática e dolorosa. No dizer de Marx: “a religião é o ópio do povo”, dessa massa informe e inculta atolada na lama de sua fraqueza e de sua apatia. É em suma a conservação do instinto de rebanho. Até aqui, Nietzsche reconhece no budismo e principalmente no cristianismo o supra-sumo dos escravos, algo “tão digno de respeito como a sua arte de ensinar mesmo os mais humildes a se colocar, pela devoção, numa ilusória ordem superior de coisas, mantendo assim o contentamento com a ordem real, no interior da qual vivem tão duramente – dureza essa que é tão necessária” (Aforismo 61, A Natureza Religiosa em Além do Bem e do Mal).
O problema grave e inquietante começa quando as religiões deixam de ser meios de educação e cultivo e passam a atuar com uma autonomia presunçosa como fim último do homem e do mundo. Elas acreditam piamente que carregam a chave da verdade, que se acham no direito de tomar a vida e as dores dos homens, dando uma interpretação generalizada em função das suas tábuas de valores universais, sem respeitar épocas, culturas, indivíduos e povos diversos como se todos fossem iguais. Sendo elas mesmas os fins, o porta-voz da única “verdade absoluta”, essas religiões, principalmente o “cristianismo”, mantiveram “o tipo homem num degrau inferior”. O pior é que elas não só mantiveram o que deveria perecer, os tipos malogrados, enfermos, oprimidos e fracos, mas também destruíram e degeneraram aquele “mais elevado tipo de ser humano que um homem representa”, cujo sofrer foi superlativo e que, sem a muleta do cristianismo, saberia sofrer e superar suas mazelas. Todavia, o efeito terrível dessa muleta absurda na economia geral da humanidade mostrou sua forma destrutiva para os homens superiores.
Foi dessa forma que os “homens espirituais”, os sacerdotes do cristianismo trabalharam de fato na degradação da raça européia, invertendo todos os valores, convertendo todos os sentimentos e lançando o ódio sob a terra, tachando-a de “vale de lágrimas”. Esses cristãos falsificaram a imagem da vida e fizeram com que o homem europeu tirasse os olhos da realidade, da sua própria natureza para fixá-los numa “realidade superior” que estava nele mesmo. O cristianismo enfraqueceu o homem, e tornou-o um fraco, um aleijão em relação a uma entidade superior na qual se baseia todo moral. Como diz Nietzsche, o homem europeu foi transformado num “sublime aborto”, cuja referência maior dessa atrofia é Pascal e apresento como uma de suas vítimas o poeta Charles Baudelaire. Boa parte do pensamento nietzschiano é arremessado sobre essa “funesta presunção” do cristianismo europeu. De fato, os homens cristãos europeus não sacaram que a lei maior e primordial da natureza estava nela mesma, no seu devir; e que o seu processo seletivo era inevitável para todas as espécies e o homem não poderia estar fora e além desse processo. Com suas tábuas universais, “com sua igualdade perante Deus”, esses espíritos “puros”, esses filisteus da “verdade” guiaram a vida e os caminhos não só da Europa, mas também da América transformando-os num “santo” e medíocre estábulo para os animais do rebanho destilarem o seu “livre arbítrio” enlatado, a exemplo de Königsberg e Port Royal.
Certamente, Nietzsche desferiu com “toda a tensão do seu arco” a sua filosofia crítica contra essa soberania absurda do cristianismo que se tornou um fim e a medida de todos os seres e todas as coisas. Essa presunção do cristianismo, desejando ele mesmo ser o fim e não um meio entre outros meios – além de diminuir o homem e torná-lo um joguete em suas garras de Harpia, condenou à morte aqueles que riram de sua “verdade”, que o digam as cinzas daqueles que passaram pela “Santa Inquisição”, entre outras insanidades religiosas cometidas pela tirania cristã “in nomi dei”, na sua forma mais sutil de violência e tacanhice ao longo de toda História.