quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Neurose obsessiva e religião: uma analogia possível

Neurose obsessiva e religião: uma analogia possível

Neste texto pretendo caracterizar a neurose obsessiva e sua possível relação com a religião, utilizando a teoria freudiana. Na neurose, o conflito básico existente é entre o eu e o isso, enquanto na psicose, é entre o eu e a realidade externa (Freud, 1924). O eu é a porção consciente, sofrendo pressões vindas do isso e do supereu, que pertencem ao inconsciente. Esse é o funcionamento básico de todas as pessoas. Porém, pode haver um desequilíbrio nessas forças, originando uma estrutura neurótica patológica ou psicótica. No funcionamento neurótico, existe a predominância da realidade externa (Freud 1924). O eu vive em constante conflito com o isso, em função das pulsões, principalmente a sexual. As neuroses são divididas em: neuroses narcísicas e neuroses transferenciais. As primeiras correspondem a um conflito entre o eu e o supereu, já as segundas provêm de um conflito entre o eu e o isso. As neuroses transferenciais são: fobia, histeria e neurose obsessiva. O sintoma, para o eu do neurótico obsessivo, tem um alto valor. Isso não em função de possíveis vantagens, mas porque traz uma satisfação narcísica única. A formação do sintoma favorece a ilusão de que os neuróticos seriam pessoas mais puras do que as outras, aumentando seu amor-próprio (Freud, 1927). Esse é o ganho secundário dessa doença. Na neurose obsessiva, durante a fase fálica, as pulsões sexuais são consideradas demasiadamente perigosas. Portanto, para fugir da tentação da masturbação, o eu recalca essa pulsão. Os atos compulsivos, que geralmente aparecem na fase da latência, funcionam como uma proteção contra isso. Além do recalcamento, ocorre uma regressão da fase fálica para a fase sádico-anal. Durante a latência, em função da regressão da libido, o supereu torna-se extremamente severo, e o eu, para obedecê-lo, desenvolve um alto senso de limpeza e inflexibilidade. A masturbação que é reprimida leva a uma aproximação gradual com a satisfação com atos obsessivos (Freud, 1927). A pulsão erótica, em função do recalque e da regressão, transforma-se em moções agressivas. Portanto, o que vem à consciência é um substituto diferente, deformado. A energia poupada na percepção da representação aparece através da pressão do supereu no eu. O supereu age como se a pulsão não tivesse sido recalcada. Então, o eu, por um lado tem um sentimento de culpa e de responsabilidade; mas, por outro, não sabe o que teria feito de errado. Em relação ao comportamento do neurótico obsessivo, isso é bastante específico, sendo, em muitos casos, considerado apenas como “manias”. A seguir um trecho de “Atos Obsessivos e Práticas Religiosas”, de Freud (1907), o qual explica de forma mais detalhada: Os cerimoniais neuróticos consistem em pequenas alterações em certos atos cotidianos, em pequenos acréscimos, restrições ou arranjos que devem ser sempre realizados numa mesma ordem, ou com variações regulares. Essas atividades, meras formalidades na aparência, afiguram-se destituídas de qualquer sentido. O próprio paciente não as julga diversamente, mas é incapaz de renunciar a elas, pois a qualquer afastamento do cerimonial manifesta-se uma intolerável ansiedade, que o obriga a retificar sua omissão. Tão triviais quanto os próprios atos cerimoniais são as ocasiões e as atividades ornamentadas, complicadas e sempre prolongadas pelo cerimonial - por exemplo, vestir e despir-se, o ato de deitar-se ou de satisfazer as necessidades fisiológicas. O cerimonial é sempre executado como se tivesse de obedecer a certas leis tácitas. Esses cerimoniais neuróticos podem ser comparados com ritos religiosos, havendo diversas semelhanças. Em ambos os casos, se o sujeito os negligencia, é tomado por um sentimento de culpa; qualquer interrupção é proibida e são realizados com muito detalhismo. Entretanto, também existem diferenças. Os rituais religiosos são sociais e iguais para um grupo de pessoas, enquanto os atos compulsivos são individuais e, na medida do possível, escondidos. Além disso, os cerimoniais religiosos tem um simbolismo por trás, enquanto os comportamentos do neurótico não apresentam, nem mesmo para ele, um significado consciente. Porém, os atos do neurótico possuem sim um sentido, só conhecido pelo inconsciente. Eles existem e devem ser seguidos em função de pulsões provenientes do isso (Freud, 1907). Na neurose obsessiva são utilizadas duas técnicas: o tornar não acontecido e o isolar. O tornar não acontecido está principalmente nos sintomas de dois tempos, que consistem em, com um segundo ato, suprimir o primeiro, como que por magia. Isso pode ser comparado com os pensamentos e atos dos neuróticos. O doente tem um determinado pensamento negativo (obsessão) e, com uma ação (compulsão), é como se aquele pensamento não tivesse acontecido. A outra técnica, o isolamento, consiste em fazer uma pausa motora após um acontecimento desagradável ou após algum ato que seja significativo para a neurose (Freud, 1927). Poderia se pensar esses dois comportamentos como análogos a certos costumes do catolicismo. Quando se confessa os pecados, ou seja, aquilo que nos provoca culpa, é talvez quase como tornar o ato não acontecido, já que se busca um alívio e o perdão de Deus. Ou será de nós mesmos? Será que não queremos ser “perdoados” por nosso próprio supereu? Já o isolamento pode ser comparado a quando se pensa algo negativo e se faz o sinal da cruz. Como se esse sinal diminuísse o poder daquele pensamento ou fato. São muitas as semelhanças entre a neurose obsessiva e a religião, me parecendo que o que mais diferencia a neurose da religião é o caráter coletivo que esta última tem, sendo assim completamente aceita e até estimulada socialmente. Então, não seria a religião (independente de suas variações), de certa forma, uma neurose obsessiva coletiva?
Referências:
FREUD, S. (1907) Atos obsessivos e práticas religiosas. Em: Obras completas.Imago: Rio de Janeiro, 1976.
_________(1924) Neurose e Psicose. Em: Obras completas. Imago: Rio de Janeiro, 1976.
_________(1924) Perda da Realidade na Neurose e na Psicose. Em: Obras completas. Imago: Rio de Janeiro, 1976.
_________(1927). Inibição, Sintoma e Angústia. Obras completas, Ed. Standard Brasileira. Imago: Rio de Janeiro, 1976.
por Franciane Souza Schmitz
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