terça-feira, 21 de agosto de 2012

Dor e resistência na clínica psicanalítica.
O manejo das transferências negativas em
Freud
Pain and resistance in psychoanalytical clinic.
The handling of negative transferences in Freud’s work
Priscila Pereira Robert*
Daniel Kupermann**
Resumo: O manejo da transferência negativa na obra de Freud é problematizado a partir do
conceito de resistência. Abordamos os problemas da clínica da histeria, das neuroses narcísicas,
do trauma e do masoquismo, com o intuito de demonstrar o percurso teórico-clínico do qual
emerge uma dimensão do manejo que, para além da interpretação, consiste na sustentação e
circulação dos afetos hostis que se manifestam como resistência à submissão no trabalho analítico
e como condição para a criação de possibilidades de lidar com o desamparo e a dor.
Palavras-chave: Transferência negativa, manejo, resistência, dor, clínica psicanalítica, Sigmund
Freud (1856-1939).
Abstract: The handling of negative transference in Freud’s work is problematized based on the
concept of resistance. We approach the problems of the clinics of hysteria, narcissistic neurosis,
trauma and masochism. We aim to demonstrate the theoretical and clinical course from which
emmerge a dimmension of the handling that, beyond interpretation, consists in supporting and
circulating hostile emotions that manifests as resistance to submission within the analytical work.
This would be the condition to create possibilities of coping with traumatic helplessness and pain.
Keywords: Negative transference, handling, resistance, pain, psychoanalytical clinic, Sigmund
Freud (1856-1939).
* Psicóloga, psicanalista, mestre em Letras/UFPR, doutoranda do Programa de Pós-Graduação
em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia/USP.
** Psicanalista, membro da Formação Freudiana (RJ), professor doutor do Departamento de
Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia/USP, autor dos livros Transferências cruzadas:
uma história da psicanálise e suas instituições (editora Revan), Ousar rir: humor, criação e
psicanálise, e Presença sensível: cuidado e criação na clínica psicanalítica, ambos publicados
pela editora Civilização Brasileira.
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Introdução
Se percorrermos os textos freudianos sobre a técnica analítica, desde Estudos
sobre histeria (1895) até Esboço de psicanálise (1937), não é possível deixar
de notar a insistência de Freud em lançar luz sobre os problemas e impasses da
clínica psicanalítica. As diferentes modulações que o conceito de transferência
adquire ao longo da obra de Freud demonstram o esforço contínuo de sistematização
de uma teoria da técnica que tenta abarcar as mais variadas manifestações
de resistência ao trabalho analítico.
O percurso teórico-clínico de Freud permite relacionar essas diferentes
formas clínicas de resistência às diferentes maneiras que o sujeito encontra
para lidar com as vivências de dor. Nas articulações sobre a clínica da histeria,
a resistência aparece como evitação da dor que a admissão na consciência de
uma ideia conflitante recalcada pode causar. A clínica do trauma e do masoquismo,
por sua vez, aponta para uma resistência que se refere à dimensão
traumática do desamparo. Pretendemos demonstrar que o manejo da transferência
na clínica freudiana visa criar condições para que o sujeito possa suportar
a dor e o desamparo, o que impôs a Freud a criação de estratégias de
manejo que levassem em conta a diversidade de resistências apresentadas por
seus analisandos.
É com este pano de fundo que os problemas relativos ao manejo dos afetos
hostis dirigidos ao analista na clínica psicanalítica serão apresentados. Partiremos
da clínica da histeria, circunscrevendo os afetos hostis dirigidos ao analista
no campo do desejo e na teoria da técnica dela derivada, para, em seguida,
demonstrar como os casos de “neuroses graves” – as “neuroses narcísicas”, nas
quais se evidenciam as problemáticas do trauma e do masoquismo – levaram
a mudanças no estatuto metapsicológico da agressividade, bem como abertura
para outras possibilidades de manejo da transferência negativa, contempladas
apenas de forma marginal em sua teoria da técnica.
Transferências negativas na histeria e na neurose obsessiva
As clássicas imagens de pacientes histéricas em cenas exuberantes, publicadas
em Iconographie photographique de La Salpêtrière (1876-1880), de
Charcot, renovam a lembrança do contexto no qual emergiu a psicanálise e,
também, a do caráter inédito da invenção freudiana no tratamento da histeria
(Pinto Junior, 2009). Na clínica psicanalítica nascente, a catalogação
médica de manifestações sintomáticas e a exibição pública e iconográfica dos
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pacientes histéricos foram substituídas pelo modelo clínico que deslocou a
cena da histeria para a construção de um teatro particular, singular e histórico,
no qual o analista adquire rapidamente estatuto de personagem importante,
senão protagonista.
Ao se dar conta de que sua condição de partícipe nas histórias de amor
fantasiadas pelas pacientes histéricas operava como obstáculo ao tratamento,
Freud é levado à elaboração do conceito de transferência. Em Psicoterapia da
histeria (1895), compreende as transferências como resultado de uma mésalliance
– falsa ligação –, que faz com que uma cota de afetos seja transferida
para figura do analista. Como estratégia de manejo, Freud busca tornar consciente
essa falsa ligação e inseri-la em nexo associativo com a história do paciente,
buscando relacioná-la a situações traumáticas às quais o sintoma
histérico deve sua origem. (Freud, 1895)
Convocado a participar do campo de fantasias atualizado na relação
transferencial e percebendo seus riscos tanto do ponto de vista ético quanto
técnico, Freud logo enuncia a necessidade de não atender às demandas de
amor de suas pacientes: cordialidade e empenho têm que bastar na condição
de substituto do amor demandado (Freud, 1895). Este cenário do amor de
transferência levará Freud a formular o princípio de abstinência, condição sine
qua non para o manejo da transferência na histeria (Freud, 1915[1914]).
Neste campo profícuo para o estabelecimento de ligações – campo de
Eros, por excelência (Freud, 1920) – é que o manejo da transferência em Freud
ganhará seus contornos; a dimensão ambivalente do amor de transferência
operará como veículo para o tratamento e também como sua principal resistência.
A positividade desejante da histeria, colocada em cena pela experiência
analítica, é o fundamento para a problematização freudiana do manejo transferencial,
e faz com que os afetos hostis dirigidos ao analista sejam atrelados ao
registro do sintoma e da sexualidade (Birman, 2009). Neste contexto metapsicológico,
a teoria do recalque e a problemática edípica operam como pedra
angular.
Em Dinâmica da transferência (1912), Freud apresenta duas formas clínicas
da transferência como resistência na neurose: a transferência positiva de
impulsos eróticos recalcados e a transferência negativa, relativa a afetos hostis
dirigidos à figura do analista. Na histeria, elas operam em dimensão ambivalente,
como é claramente observado na discussão freudiana sobre a transferência
no caso Dora (Freud, 1905). A atuação do “desejo de vingança” de Dora,
que leva à interrupção prematura do tratamento, revela a faceta negativa da
transferência, que é claramente articulada à dimensão positiva do amor de
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transferência. A questão central de Dora, como bem apontou Lacan (1951), é
relativa ao desejo.
Apesar de a agressividade não ter recebido estatuto metapsicológico autônomo
nos primeiros escritos de Freud, e de a teoria do manejo transferencial
ser construída a partir do amor de transferência, desde Psicoterapia da histeria
(1895), Freud identifica outros afetos hostis operando como obstáculo ao tratamento.
Além das resistências de transferência, Freud destaca duas formas de
queixas relativas ao analista: perda da confiança, quando a paciente se sente
pouco amada e insultada ou quando ouviu algum comentário desfavorável sobre
o analista ou o método de tratamento, e medo da dependência. Lagache
(1990) refere-se a essas queixas como “reações persecutórias”, quando o “amor-
-próprio” do paciente estaria posto em xeque. As soluções encontradas por
Freud (1895) para superar estes obstáculos – “discussão e explicação” – demonstram
que essas manifestações de hostilidade do paciente não impõem a
necessidade de criação de estratégias de manejo para além do uso da autoridade
e do esclarecimento pelo saber teórico. Assim, estas reações não são analisadas,
mas apaziguadas através da explicação, de modo a retomar o estado de
confiança anterior. Solução bastante distinta do manejo das resistências compreendidas
como transferências, que entram em nexo associativo e permitem
a circulação afetiva necessária ao trabalho clínico.
Já a problemática do ódio passa a ganhar relevância na obra de Freud a
partir dos estudos acerca da neurose obsessiva. Na análise do Homem dos Ratos,
Freud se vê diante de uma crescente transferência negativa. (Freud, 1909)
De início, insiste no trabalho interpretativo do ódio pelo viés da sexualidade
mas, aos poucos, o paciente demonstra a Freud que a relação do ódio com a
sexualidade não é tão evidente, conforme aponta Mezan (1998, p. 129):
No começo, Freud tem uma ideia muito clara do que significam as falas do
Homem dos Ratos, e propõe suas interpretações com a maior liberdade. Paulatinamente,
vai sendo obrigado a modificar o estilo e o tom dessas interpretações,
porque o paciente o coloca diante de uma explosão de agressividade e
hostilidade surpreendente até mesmo para Freud, que, no entanto, já havia
visto antes outras neuroses obsessivas.
Assim, Freud se vê diante de uma manifestação compulsiva do ódio no
campo transferencial, que aponta para a necessidade de mudanças no manejo
clínico. Em Dinâmica da transferência (1912), vemos que Freud atribui à manifestação
transferencial ambivalente na neurose obsessiva um caráter especial:
“uma separação antecipada dos ‘pares de contrários’ parece ser característica
de sua vida instintual e uma de suas precondições constitucionais” (Freud,
Dor e resistência na clínica psicanalítica.
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1912, p. 119). Do ponto de vista da teoria da técnica, o conceito de elaboração,
que aparecerá em Recordar, repetir e elaborar (1914a), parece ser uma das vias
para apreensão da especificidade do manejo das manifestações compulsivas de
ódio na neurose obsessiva. A virada metapsicológica dos anos 1920, ao trazer à
tona o problema do masoquismo, fornece o fundamento que permite esta articulação,
neste momento da obra de Freud, ainda um tanto nebulosa.
Transferências negativas nas neuroses narcísicas
Antes disso, no entanto, começa a ganhar relevo na teorização freudiana o
problema das psicoses, que culmina na publicação do texto sobre o narcisismo
(Freud, 1914b). O conceito de narcisismo permite a Freud abarcar a paranoia,
a esquizofrenia e a melancolia – que possuem manifestações clínicas bastante
distintas – no campo das neuroses narcísicas, em oposição às neuroses de transferência.
O que há em comum nas neuroses narcísicas é a incapacidade de realizar
transferência positiva, sendo, portanto, intratáveis pela técnica clássica.
Os sinais “positivo” e “negativo” da transferência passam a se referir, além da
distinção entre amor e ódio, à possibilidade ou não de se deixar influenciar
pelo trabalho analítico. As manifestações transferenciais ambivalentes na histeria,
o ódio na neurose obsessiva, as reações persecutórias da paranoia e a
indiferença na melancolia são, deste modo, compreendidas como manifestações
de transferência negativa. (Freud, 1917b, 1917c)
O campo das alterações do eu na psicanálise começa aqui a ser esboçado.
Ao reconhecer a inadequação do trabalho de superação das resistências relativas
ao recalque nas neuroses narcísicas, Freud é levado a pensar na necessidade
de outra descrição topográfica para explicar o conflito básico entre eu e
libido. (Freud, 1917b). A agressividade, neste contexto clínico e metapsicológico,
pende ora para o polo das pulsões sexuais, ora para o das pulsões do eu.
No entanto, em Pulsões e destinos da pulsão (1915), Freud arrisca postular uma
gênese específica para o ódio, embora não o articule ainda com a precisão metapsicológica
observada a partir da segunda tópica.
O narcisismo situado no campo do não-analisável pela técnica clássica
poderia ter encerrado o âmbito da intervenção psicanalítica estritamente às
neuroses de transferência, nas quais as capacidades egoicas de síntese e de associação
estão relativamente preservadas (Freud, 1919,1923). No entanto,
Freud permitiu-se certa flexibilidade na técnica nos casos por ele denominados
“neuroses graves”, nos quais, inicialmente sem se dar conta, estava lidando
com dimensões de resistência para além do recalque, em pacientes cuja capaa
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cidade de ligação estava prejudicada. Em Caminhos da terapia psicanalítica
(1919), diante da estagnação nas análises de casos de fobias e obsessões graves,
Freud defende A adoção de uma atitude ativa por parte do analista, além daquela
exigida pelo trabalho de interpretação. Seria preciso, de modo a conduzir
essas análises a termo, incitar o analisando, no momento oportuno, ao
enfrentamento do objeto da sua fobia ou do horror ao ato que o paralisa. Dessa
maneira, Freud autoriza a experiência da “técnica ativa” que vinha sendo
ensaiada, em Budapeste, por Sándor Ferenczi (1919). No entanto, nem Freud
nem Ferenczi levam adiante a empreitada, entre outros motivos, pelo reconhecimento
de que qualquer tentativa de encurtamento do tratamento analítico
estava fadada ao fracasso (Ferenczi, 1926; Freud, 1937).
Mesmo sem desenvolver a “técnica ativa”, os impasses do tratamento psicanalítico
dos neuróticos graves e a consequente necessidade de flexibilização
da técnica oferecem a Freud material clínico importante para a elaboração da
segunda tópica e do dualismo pulsões de vida – pulsão de morte, no qual a
agressividade ganhará destaque especial. Do ponto de vista da configuração do
campo transferencial, Freud se encontra diante de uma excessiva adesividade
da libido. Os pacientes aceitam de bom grado as interpretações oferecidas sem,
no entanto, inseri-las efetivamente no fluxo associativo, como ocorria na clínica
da histeria dos primeiros anos da psicanálise.
Assim, é possível notar que a concepção freudiana da transferência negativa
vai adquirindo contornos específicos a partir das diferentes modalidades
de sofrimento apresentadas pelos analisandos, que resultam em diferentes
configurações do campo transferencial. As manifestações clínicas da transferência
negativa e suas gradações demandam de Freud a reordenação da agressividade
em sua metapsicologia, o que demonstra que clínica e metapsicologia
permanecem, até seus últimos textos, intimamente relacionadas.
Transferências negativas no campo do masoquismo e do trauma
A reinscrição do dualismo pulsional em termos de pulsão de vida e pulsão
de morte e a elaboração da segunda tópica fornecem os elementos teóricos que
permitem a ampliação do conceito de resistência na clínica psicanalítica. Os
fenômenos clínicos da compulsão à repetição e a reação terapêutica negativa,
que apareciam de maneira marginal nas elaborações freudianas, ganham agora
destaque, apontando para problemas decisivos do manejo da transferência.
Em Inibições, sintomas e ansiedade (1926), Freud nomeia, ao lado das resistências
do eu, (relativas ao recalque e ao ganho secundário do sintoma) e
Dor e resistência na clínica psicanalítica.
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das resistências de transferência, as resistências do isso e do supereu. Assim, o
campo do manejo transferencial passa a englobar os fenômenos de compulsão
à repetição e as atuações que incidem no tratamento psicanalítico, e que conduzem
à inércia e ao impasse na condução clínica.
A partir de então, o estatuto da agressividade na clínica psicanalítica passa
a ser mais matizado, englobando uma problemática mais complexa do que
aquela apresentada na primeira tópica. A agressividade passa a ser compreendida
a partir da intrincação/desintricação entre pulsões de vida e pulsão de
morte e das relações estabelecidas entre as diferentes instâncias psíquicas (isso,
eu e supereu). A figura clínica do masoquismo, em sua dimensão constitutiva
e patológica, vem lançar luz sobre os problemas clínicos que fazem obstáculo
ao tratamento, especialmente os da neurose obsessiva e da melancolia (Freud,
1924, 1930[1929]).
As resistências do supereu, afirma Freud, dizem respeito à relação sadomasoquista
estabelecida entre essa instância e o eu. O sadismo do supereu e o
masoquismo do eu seriam responsáveis pelo sentimento inconsciente de culpa
e pela consequente necessidade de punição, que faz com que os pacientes resistam
à cura. Masoquismo moral é o termo utilizado para tratar desta complexa
relação de submissão e servidão entre as instâncias psíquicas (Freud, 1924).
No campo do masoquismo moral, há certo nível de desfusão pulsional que
leva à inércia e à autodestrutividade. A dimensão mortífera da melancolia
aparece
aqui como a manifestação mais explícita da pulsão de morte e da
crueldade do supereu. Em termos de manejo, Freud afirma que essa autodestrutividade
silenciosa, voltada para o próprio eu, se não atrapalha o trabalho
de interpretação, o torna completamente inoperante, o que permite, como a
experiência clínica demonstra, que esses pacientes utilizem as interpretações
do analista como justificativa para autopunições. Diante dessas formas clínicas
de resistência, relativas ao supereu e à pulsão de morte, Freud diz que não há
nada a fazer, senão continuar esperando e tentar promover “a lenta demolição
do supereu hostil” (Freud, 1940[1937]).
As resistências do isso, por sua vez, referem-se à compulsão à repetição.
Ao lado do problema da fixação em traumas, nos casos de neuroses graves
(Freud, 1917a), os sonhos traumáticos são o ponto de partida para a compreensão
da compulsão à repetição que traz novamente à tona problemas da economia
psíquica abordados por Freud em Projeto para uma psicologia científica
(1950[1895]). O que se repete nos sonhos dos neuróticos traumatizados de
guerra é uma vivência de desprazer que busca simbolização, estando os sonhos
traumáticos situados em registro diferente dos sonhos que são realizações de
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desejo e analisáveis pela técnica clássica (Freud, 1920). O desprazer que se
repete, no campo das neuroses traumáticas, refere-se à vivência de horror que
acaba com as fronteiras do aparelho psíquico: “Não existe proteção possível
em relação ao horror, pois aquilo que aterroriza não se circunscreve no tempo
e no espaço, mas se apodera da subjetividade como uma presa, algo que lhe
invade” (Birman, 1999, p. 148). Nessa dimensão do trauma desestruturante, a
ideia de conflito é parcialmente abandonada em favor da ideia de transbordamento
do aparelho psíquico (Souza, 2007). A repetição na transferência, nesses
casos, já não tem relação com a compulsão a associar, como na histeria,
mas na reincidência de uma vivência de desprazer não simbolizada. Trata-se
da repetição insistente do traumático, em ato na transferência. Neste momento,
Freud recorre novamente ao conceito de elaboração, que demanda do analista
uma presença sensível no contexto do tratamento dessas repetições, para
que algo novo possa surgir. Não se trata mais do trabalho de desvendamento
dos sentidos, como na clínica da histeria, mas de “algo de ordem prospectiva,
isto é, num vir-a-ser da subjetividade em análise” (Birman, 2006, p. 333).
Vimos que, no manejo transferencial da histeria a interpretação da transferência
auxilia no trabalho de admissão na consciência de uma ideia com intensidade
até então insuportável: saber dói, e a análise auxilia a suportar essa
dor (Kupermann, 2008). No campo da reincidência do traumático, não se
trata de uma representação recalcada que causa a resposta de angústia no eu.
Pelo contrário, é o próprio desprazer que reincide e pede simbolização. O conceito
de elaboração como destino possível para os fenômenos de compulsão à
repetição aponta a abertura, em Freud, para a dimensão sensível da clínica, na
qual a simbolização se constrói atrelada ao campo afetivo da experiência analítica
(Kupermann, 2010).
A problemática do trauma e do masoquismo, fruto da clínica com pacientes
neuróticos graves, aponta, portanto, já em Freud, uma tendência para outras
possibilidades de manejo da transferência a partir dos problemas impostos
pelas relações entre as diferentes instâncias psíquicas e pelos problemas das
alterações do eu. Freud (1940[1937]) afirma que o eu desses pacientes encontra-
se inibido pelo supereu, não consegue se desviar do id, possui uma organização
danificada, perdeu a capacidade de síntese e está dilacerado por impulsos
mutuamente opostos.
Em pacientes com esse nível de alteração no eu, a transferência negativa
pode se apresentar como um grande obstáculo ao tratamento. Diante das tentativas
do analista de tornar as resistências conscientes e colocá-las em conexão
com o restante do eu, Freud nota que esses pacientes deixam de apoiar os
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esforços do analista, descumprem a regra fundamental e perdem a convicção
do poder curativo da análise. Em outras palavras, Freud se depara com “uma
resistência contra a revelação de resistências” (Freud, 1940[1937], p. 255):
(...) sob influência dos impulsos desprazerosos que sente em resultado da
nova ativação de seus conflitos defensivos, as transferências negativas podem
agora levar a melhor e anular completamente a situação analítica. O paciente
agora encara o analista como um estranho que lhe está fazendo exigências
desagradáveis e comporta-se para com ele exatamente como uma criança que
não gosta do estranho e não acredita em nada do que este diz. Se o analista
tenta explicar ao paciente uma das deformações por este efetuada para fins de
defesa, e corrigi-la, encontra-o incompreensivo e inacessível a argumentos
bem fundados (Freud, 1940[1937], p. 255).
Aqui novamente aparecem afetos hostis dirigidos ao analista como obstáculo
à revelação das resistências, que já haviam sido identificados por Freud
desde Estudos sobre histeria (1895). Se, no entanto, no caso das pacientes histéricas,
a confiança no analista era facilmente restabelecida com “discussão” e
“explicação”, no caso desses pacientes, cujo nível de alteração do eu aponta
para uma organização subjetiva “não-neurótica” (Green, 2008), qualquer insistência
argumentativa ou interpretativa se mostra infrutífera.
Se levarmos adiante a afirmação freudiana de que nos fenômenos de compulsão
à repetição o trabalho se desloca da interpretação para a sustentação do
manejo transferencial, para que a elaboração possa acontecer, é possível atribuir
outro estatuto às manifestações de transferência negativa. Se o desprazer
que se repete na transferência é da ordem do traumático não-simbolizado, a
defesa agressiva frente a uma “revelação” do analista pode ser efetivamente um
ato inédito de um eu que, diante da reincidência do trauma, está agora em
condições de resistir (Birman, 2006).
A insistência do trabalho de interpretação, nestes casos, pode ser nociva
quando o paciente traumatizado não encontra no espaço clínico condições de
manifestação de resistência. Pode tanto anular a experiência analítica e levar o
paciente à reincidência traumática quanto resultar em adesão submissa às interpretações
do analista, como forma de proteção da revivência traumática,
isolando a dimensão afetiva e tornando a análise interminável. (Robert; Robert,
2010)
Estamos agora em condições de articular o problema do masoquismo
moral à questão do trauma que, não por acaso, emerge no mesmo contexto
teórico. A adesão submissa e masoquista do eu aos imperativos superegoicos
tem a importante função de garantir ao sujeito uma unidade narcísica que
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opera como proteção da vivência traumática do desamparo, tendo como resultado
um eu culpado, enrijecido e reativo. Se concordarmos com Freud
(1940[1937]), acerca da tendência dos neuróticos de colocarem o analista no
lugar do seu supereu, vemos uma configuração transferencial que pode adquirir
contornos sadomasoquistas, a partir do modelo do masoquismo moral.
É neste campo clínico que o manejo das transferências negativas parece
adquirir maior complexidade, e também seu caráter mais paradoxal. Assim, se
de um lado a transferência negativa pode operar como resistência para manter
a unidade narcísica e proteger do desamparo, de outro, pode configurar uma
tentativa de demolição do supereu hostil por meio das vicissitudes pulsionais
proporcionadas pelo campo transferencial. O campo do imprevisível na clínica
analítica se evidencia, aqui, abrindo espaço para a apreensão da transferência
negativa não como obstáculo a ser vencido ou como o limite do analisável,
mas como resistência à submissão e efetividade do trabalho clínico. Tal leitura
é coerente com a concepção de agressividade compreendida a partir da intrincação
da pulsão de vida com a pulsão de morte, que se direciona para o exterior,
sendo, portanto, indispensável para afirmação da vida (Freud, 1924).
Apesar de trazer à luz os problemas clínicos relativos ao narcisismo, ao
trauma e ao masoquismo e de enfatizar gradativamente o manejo da transferência,
Freud (1940[1937]) mantém, até seu último escrito, a interpretação
como horizonte do trabalho do analista. Será nas contribuições de Sandór Ferenczi
e Donald Winnicott que encontraremos o desenvolvimento de uma teoria
da técnica que permite maior cuidado no manejo transferencial.
Abordá-las, no entanto, ultrapassaria o objetivo do presente trabalho. O que
pretendemos ressaltar é que a clínica e a metapsicologia freudiana possuem
abertura para a dimensão sensível da clínica e demonstram a preocupação de
considerar as diferentes modalidades de sofrimento psíquico com as quais
Freud se deparou ao longo de seus anos de clínica (Kupermann, 2008b).
Para concluir, podemos afirmar que, nos primeiros anos de clínica da histeria,
as transferências negativas clinicamente significativas partiam do campo
do desejo, fazendo parte do cenário erótico, ambivalente e rico em fantasias.
Na clínica do trauma e do masoquismo, nos quais as manifestações destrutivas
e autodestrutivas da pulsão de morte dominam o setting, é na aposta da possibilidade
de emergência de Eros, com seu potencial de ligação e movimento,
que se configura o manejo transferencial (Freud, 1920, 1930). Assim, o manejo
da transferência negativa se desloca do campo interpretativo para a busca de
condições de sustentação e suporte dos afetos hostis vivenciados. O espaço
para que as transferências negativas atuem como resistência no encontro anaDor
e resistência na clínica psicanalítica.
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lítico – e não como resistência ao encontro afetivo – aparece aqui como condição
para que análise possa evitar o destino funesto da reincidência
desestruturante do abandono traumático e da consequente manutenção de
uma posição masoquista de submissão, por parte do analisando. Pelo contrário,
a agressividade expressa pelos analisandos, ao encontrar o suporte sensível
do analista, favorece a criação de outras possibilidades de elaboração da dor e
do desamparo.
Priscila Pereira Robert
e-mail: priscilafpr@gmail.com
Daniel Kupermann
e-mail: dkupermann@usp.br
Tramitação:
Recebido em 24/04/2012
Aprovado em 05/05/2012
Referências
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