segunda-feira, 19 de março de 2012

A religiosidade na sociedade moderna

A primeira corrente ? a que principiou os estudos das relações entre religião e psicologia ? é marcada pelo criador da psicanálise, Sigmund Freud (1856 ? 1939). Médico nascido em Viena, ele deixou clara sua aversão a religião. Curiosamente é um dos autores que mais teorizou sobre o assunto. Sua idéia é a de que a religião um produto negativo de conflitos ancestrais. Algo ocorrido ainda na fase remota do desenvolvimento do homem e que corresponde à horda primitiva, quando a morte do pai tirano pelos filhos ? a fim de que pudessem possuir as mulheres da tribo ? teria gerado um sentimento universal de culpa. Freud chamou esse sentimento de Complexo de Édipo, devido à semelhança da sua teoria ao Édipo Rei, tragédia grega escrita por Sófocles, por volta de 427 a.C. No Mito da Horda Primitiva o pai morto é representado pelo totem. Para apagar as marcas do crime, o homem teria criado as leis de incesto e exogamia de modo a sublimar a imagem do pai na figura do totem. Assim, nas festividades totêmicas, redimiam o remorso pelo crime cometido em rituais libertadores. A origem da religião não seria mais do que uma ilusão, similar ao sono, ao delírio, à neurose obsessiva, seria o reino do imaginário por excelência. Deus ocuparia o lugar de um imaginário "pai onipotente" (CROATTO, 2001, p. 20). Os textos de Freud estão divididos em três categorias: os que tratam especificamente do fenômeno religioso; os que indiretamente o consideram; os escritos que embora não estejam relacionados à experiência religiosa, podem, por sua vez, oferecer subsídios para elucidar a psicodinâmica do fenômeno religioso. De modo que podemos classificar a obra de Freud em três modelos de compreensão do funcionamento psíquico quanto ao fenômeno religioso. O primeiro afirma que a prática religiosa segue a lógica psíquica da neurose obsessiva; o segundo traduz a religião como uma ilusão capaz de aliviar o homem frente ao terror da morte. O último diz respeito à dinâmica psíquica empregada na relação com o sagrado.
Seguindo o funcionamento da psique na lógica freudiana, a pessoa religiosa, e somente ela, estaria tentada por pulsões que estariam recalcadas. Escapando esses recalques, surgiria o impulso de realizá-las, desejo esse encarado como um ato pecaminoso pelos fiéis. Para Freud, a religião surgiu de uma necessidade de defesa contra as forças da natureza, como todas as outras realizações da civilização. No indivíduo, ela surge do desamparo. Esse é inicialmente a insegurança da criança, e posteriormente, o desamparo do adulto. A vida mental da criança, enquanto bebê, passa pela fase de escolha do objeto do tipo analítico. A sua libido é direcionada pelas necessidades narcísicas a objetos que asseguram a satisfação de suas necessidades. A mãe, que satisfaz a fome da criança, torna-se seu primeiro objeto amoroso e também sua primeira proteção contra os perigos do mundo externo - a primeira proteção contra a ansiedade. Na função de proteção, a mãe é substituída posteriormente pelo pai, mais forte, que retém essa posição pelo resto da infância. Mas a relação com o pai é uma relação ambivalente: o próprio pai é também um perigo para a criança, talvez por causa de sua relação com a mãe. Assim, a criança teme e admira o pai. Quando o indivíduo cresce e descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra os poderes superiores (da morte, da natureza, etc.), empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme e, não obstante, confia sua própria proteção. Freud afirma que "é a defesa contra o desamparo infantil, que empresta suas feições características à reação do adulto, ao desamparo que ele tem de reconhecer ? a qual é, exatamente, a formação da religião." Mais tarde ele diz: "Assim, a religião seria a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o pai."
Freud afirma, porém, que as religiões estão cheias das mais gritantes contradições e discordâncias com a realidade que conhecemos. Então, ele se pergunta: sendo as religiões contraditórias, de onde vem a sua força? Onde reside a força interior das doutrinas religiosas, independentes, como são, do reconhecimento da razão? A isso ele responde dizendo que as ideias religiosas são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força desses desejos.
Uma ilusão, porém, é diferente de um erro. As ilusões não precisam ser necessariamente falsas, ou seja, irrealizáveis ou em contradição com a realidade. Ele cita como exemplo uma mulher que tem a ilusão de que um príncipe encantado virá buscá-la, casar-se com ela e lhe dar filhos. Isso em si não está em contradição com a realidade, e nem é irrealizável, pois essas coisas já aconteceram algumas vezes. Então, ele afirma que o que é característico das ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos.
Realmente seria muito bom que existisse um Deus benevolente, que cuidasse de nós e que nos desse uma vida após a morte. Um Deus que fizesse justiça a todas as injustiças deste mundo, e que nos recompensasse por todas as privações a que fôssemos submetidos por causa da civilização. Preferimos acreditar que isso seja verdade. Mas assim como uma criança não pode completar com sucesso o seu desenvolvimento para o estágio civilizado sem passar por uma neurose, a humanidade, de forma análoga, tombou em seu desenvolvimento através das eras. Isso é, a neurose infantil é uma parte do desenvolvimento de qualquer indivíduo, assim como a neurose da humanidade. Assim como o indivíduo supera sua neurose infantil, a civilização irá superar a sua neurose, e "o afastamento da religião está fadado a ocorrer com a fatal inevitabilidade de um processo de crescimento."
Outra vertente da psicologia sob o viés da religião surge através de Carl Gustav Jung (1875 ? 1961), psicólogo suíço que se afastou da corrente freudiana em 1913. Ao contrário de Freud, a perspectiva sobre a experiência religiosa em Jung é positiva. Para ele, o fenômeno religioso tem origem nas entranhas do homem e não fora, no mundo, como acreditava Freud ? idéia partilhada também por Durkheim, mas noutra disciplina, a sociologia. Por isso, Jung é tido como um rebelde da psicanálise ortodoxa de Freud e do médico vienense Josef Breuer, a partir dos estudos da dupla sobre a histeria.
Uma das conjecturas mais notável defendida por Jung é a existência de um inconsciente coletivo mais arcaico que o inconsciente individual. Trata-se de uma espécie de memória ancestral, de sedimentação da vivência das primeiras gerações dos seres humanos e que se manifestam em profundas marcas psíquicas, os quais ele chamou de arquétipos: os do inconsciente, seriam a fonte, tanto dos sonhos como dos mitos da religião (Jung sempre insistiu na associação entre uns e outros). De maneira que essa associação tem para ele um papel positivo: os mitos, como os sonhos, têm um papel estabilizador na constituição da personalidade (o Selbst ou "Si Mesmo", diferente do "Eu") (Ibdem.,p.21). Ainda que Jung partilhe o mesmo ponto de vista de Freud sobre o consciente ? algo como o leigo tem a respeito de si mesmo ? o inconsciente pessoal para ele é uma mistura do inconsciente e do pré-consciente freudianos. Ou seja, os conteúdos do inconsciente pessoal são acessíveis à consciência (Ego) e contém apenas os materiais que chegaram ao inconsciente como resultado das experiências pessoais do indivíduo e do "inconsciente coletivo" (PALMER, 2001, p. 125 ? 149). Em Jung, os arquétipos resultam dos mitos e das produções artísticas. Sendo assim, representam algo adquirido na experiência externa do indivíduo, que opera universalmente como força elementar, presente na essência humana. No entanto, Jung não se preocupou com a existência ontológica de Deus, mas com sua existência como realidade psíquica, ou seja, "fenomenológica". Para Jung, Deus é um fenômeno psíquico. E só. Ele descartava qualquer conotação transcendental ao termo. Jung se dizia um cientista empírico. Nesta breve consideração, observamos que Jung contraria a definição do pai da psicanálise em vários aspectos, ainda que muito da estrutura psíquica freudiana tenha sido aproveitada na sua teoria. As imagens primordiais e universais comuns a toda a humanidade seria para Jung uma camada mais profunda do inconsciente, o inconsciente coletivo. De modo que os fatores psicológicos agem independentemente da experiência do indivíduo. São adquiridos através de uma memória refratária e ancestral, vinda de antepassados e que, portanto, o individuo carrega no seu DNA. Por mais estranho que pareça às acepções acerca do Todo - poderoso a questão é que a experiência religiosa representa um campo aberto aos pesquisadores da religião de diversas áreas das ciências na busca de pistas que levem a decifrar o numinoso de Rudolf Otto, como ilustra Libório: o problema de Deus e do nascer da "experiência religiosa" ? se proveniente de dentro, de fora do homem ou de ambos ? é uma questão aberta para todos os estudiosos da Religião,que através das diversas ciências (antropologia, sociologia, psicologia, filosofia, teologia, etc.) abordam a experiência que o homem faz do numinosum, em sua breve ou longa caminhada, na face da terra, em busca do pleroma tão sonhado consciente ou inconsciente por todos os povos e culturas das mais primitivas às mais cultas (LIBÓRIO, 2005, p. 75). De modo que considerando os subsídios que buscam prover sentido ao fenômeno religioso e à experiência religiosa, diferentes das correntes teóricas de Freud e Jung ? e de seguidores que trouxeram novas formulações e críticas à psicologia da religião, a exemplo do austríaco Victor Frankl, que considerava, entre outras coisas, que a psicanálise destruía a integridade da pessoa porque todo o pensamento psicanalítico seria materialista, atomístico e mecanicista ?, vamos procurar interpretar as motivações que agem sobre a subjetividade dos fiéis por meio das técnicas de persuasão presentes no programa de televisão, através do poder sobrenatural da fé. Todavia, mesmo municiado de teorias fundamentais à compreensão da engrenagem mental, somado aos estudos interdisciplinares, como a sociologia durkheiana, marxista, e weberiana, temos a idéia de que possivelmente uma abordagem hermenêutica seja capaz de fornecer pistas para entender o que passa na cabeça daquele que crê. Do contrário, qual lógica move alguém a cruzar um pórtico de gesso na certeza de que fazendo isso vá se curar dos males que a aflige? Ou o que faz alguém no cair da tarde se prostrar diante da televisão empunhando um copo de água na crença de que forças superiores irão interceder em seu benefício? Qual dentre as disciplinas da ciência positivista pode explicar os sentimentos e revelações que ocorrem no íntimo da pessoa que acredita piamente no poder transformador dessas ações? Paden afirma: o esquema social seja revelador e útil, ele não desautoriza necessariamente outros níveis de explicação. Embora a teoria social veja a psique individual como parte da vida social, de muitos modos cada indivíduo é um agente psicológico único por seu próprio mérito e, como tal, é claramente uma fonte organizadora de cultura. A criatividade individual, explicada em termos quer de um inconsciente, quer de personalidade, gerou boa parte do que consideramos grandioso ou poderoso fator cultural. (...) A incongruência está em sabermos, que do ponto de vista puramente sociológico, existe a possibilidade de outras formas de interpretação, que não a social, e que estas, pertencem a variedades de sistemas simbólicos dentro da sociedade.
A linguagem da sociologia é apenas uma entre outras interpretações que são dadas na compreensão hermenêutica do fenômeno religioso. A religião se torna um fenômeno completamente diferente quando a enxergamos através do prisma da psicologia, os deuses, divindades e crenças, assumem então coloração e formas diferentes (PADEN, 2001, p. 86 ? 94). E a efervescência coletiva ? as assembléias movidas a paixões que se manifestam nos templos neopentecostais ? não se resume a contagiar somente indivíduos pertencentes a extratos mais humildes da sociedade: "Pessoas ? maiormente mais controladas, sensíveis e mais maduras emocionalmente ? vivem uma religiosidade mais profunda"( BARTHON; VAUGHAN apud LIBÓRIO, 2005, p.19). E é inegável, hoje, o bem-estar na saúde mental daquele que tem participação religiosa. Diante tantos obstáculos que dificultam reunir ciência e religião, fazemos nossas palavras de Muller na defesa de uma hermenêutica sobre a questão: (...) há de se estar aberto para deixar-se tocar pelo sagrado. Quem o estiver ? e minhas reflexões pretendem ser um estímulo para isto ? verá que isso lhe há de trazer um grande enriquecimento para a sua vida. Com isto, ele estará satisfazendo um anseio que é parte essencial da natureza de todo homem. (...) Na experiência do sagrado, eu entro em contato com um mundo que não conheço a não ser através da imaginação. Jamais o hei de ver ? pelos menos enquanto estiver vivo. Jamais o poderei tocar. E, no entanto, ele existe (MULLER, 2004. p. 9 ? 25).
Muitos são os estudos, nos mais diversos campos do conhecimento, que tentam explicar os fenômenos religiosos pela razão, mas, não podemos negar que longe estamos de desvendá-lo. Há uma lacuna enorme e inexplicável entre o numinosum, e o humano, que continua inseguro e carente, não consegue atingir a fase de crescimento prevista por Freud. As religiões estão crescendo em larga escala, tanto é que o século XXI, pode ser considerado o "século das religiões". Segundo o Atlas do Cristianismo Global, editado pela Edinburgh University Press, prognosticou que para o ano 2050 o agnosticismo retrocederia do atual 9,3 aos 6,1 por cento da população mundial. O estudo foi promovido pela Conferência Missionária Mundial de Edimburgo que se desenvolveu na Escócia para comemorar o centenário do primeiro grande encontro missionário inter-confessional de 1910, e o jornal espanhol La Razón MADRI, 02 Jul. 10 / 07:42 am (ACI)
Talvez, a multiplicidade de religiões, explique a atual situação do homem moderno, em relação ao sagrado. Não devemos ignorar que a razão não é suficiente para dar conta deste problema, ou disciplina qualquer. Entretanto, a Filosofia, que não pretende explicar, mas levantar questões, sobre os fenômenos. Apresenta inúmeras e sólidas possibilidades. Entre elas a máxima de Agostinho "o vazio do coração do homem é do tamanho de Deus"?


Fonte:
LUIZ ERNESTO MELLET: "A RETÓRICA DO SOBRENATURAL NA TV: Um estudo da persuasão no neopentecostalismo". (Dissertacão apresentada ao programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Católica de Pernanbuco, como parte dos requisitos à obtenção do grau de Mestre em ciências da religião, elaborada sob orientação do Prof. Dr. Luiz Carlos Luz Marques). Universidade Católica de Pernanbuco. Recife, 2009
(http://www.leaderu.com/truth/1truth12.html) disponível em 13 de março de 2011